O Eu e o Outro no Filme Documentário: uma possibilidade de encontro1

Sarah Yakhni
Universidade Estadual de Campinas - Instituto de Artes


Índice

À Fernando Passos
Pelo olhar sempre atento ao que há de único e singular em cada um de nós

À Jean Louis Leonhardt
Pelas primeiras idéias que me levaram a percorrer esse caminho

Resumo

Nosso trabalho situa-se dentro do contexto dos documentários que se constituem através do encontro entre o realizador e o sujeito do filme.

Partimos do pressuposto de que a qualidade da presença do realizador é fundamental para a relação que acontece durante as filmagens no sentido de trazer para o plano da representação elementos marcantes da obra como um todo.

O objetivo do nosso trabalho é investigar a relação que se estabelece entre o realizador cinematográfico e o sujeito que se constitui no tema do filme documentário. A nossa preocupação é investigar as condições para que esse encontro aconteça de maneira autêntica e reveladora e perceber a sua contribuição na realização dessa representação artística que é o documentário.

Résumé

Notre oeuvre se situe dans le context des documentaires Qui se composent à travers la rencontre entre le réalisateur et le sujet du film. Nous partons du pressuposé que la qualité de la présence du réalisateur est fondamentale pour le rapport Qui se passa durant les filmages dans le sense d'apporter au plan de la représentation des éléments marquants de l'oeuvre dans sa totalité.

Introdução

O pressuposto básico dessa pesquisa é a percepção, adquirida através da experiência profissional na realização de documentários, de que a qualidade da presença do realizador é determinante para a relação que se instaura entre esse e o sujeito que é o tema do filme. O contexto desse pressuposto se refere aos documentários que trabalham com o encontro de dois sujeitos - o realizador e o outro que se constitui no assunto do filme.

Esse tipo de documentário situa-se, necessariamente, na fronteira onde acontece o encontro entre duas pessoas, no domínio do inter-humano, sendo que o caráter dialógico da relação que se estabelece entre o realizador e o outro pode ser considerado como matéria que se constitui no centro nevrálgico por onde passam muitas das ramificações do corpo do filme como um todo. Dentro desse contexto, o nosso interesse é explorar o universo desse encontro, as suas peculiaridades, no sentido de desvendar as condições para que esse encontro se dê de forma integral e autêntica.

Buscamos como referência para nossa discussão a filosofia dialógica de Martin Buber que inaugura uma investigação profunda e inovadora sobre o que denominou de ``esfera do inter-humano'', onde o diálogo acontece. O autor considera que o diálogo verdadeiro passa a existir quando contém a ``palavra verdadeira' que nasce do encontro genuíno entre os homens.

De Carl Rogers, psicoterapeuta próximo ao pensamento existencial fenomenológico, tomamos os conceitos de ``congruência'' e ``autenticidade'' enquanto condições que tornam as relações humanas mais facilitadoras de crescimento, de aperfeiçoamento e de maturidade dos indivíduos.

O documentário que tem o outro como tema quase sempre tem a entrevista ou depoimento como base da sua narrativa. Dentro dessa perspectiva recorremos a Merleau Ponty que faz uma distinção entre ``fala autêntica'', aquela que formula pela primeira vez e a ``expressão segunda'', aquela constituída de uma fala sobre falas, que repete o que já foi ouvido e não implica na presença total da pessoa que fala.

Consideramos o cinema como obra estética tanto no momento da sua criação quanto no momento da fruição por parte do espectador. Este é o elo de ligação da obra com o mundo. No momento da fruição abre-se uma nova fronteira do inter-humano, na qual realizador e espectador dialogam e se vinculam por meio do filme. Nesse encontro de subjetividades é que se define o destino da obra de arte.

O ato de criação apresenta elementos fundamentais para o entendimento da transubjetividade da obra de arte, ou, em outras palavras, da sua comunicabilidade. A obra de arte é feita de subjetividades e dialoga através dessas subjetividades. A amplitude desse diálogo depende da obra alcançar um caráter universal, de conseguir ``falar'' à outras subjetividades. Essa possibilidade de comunicação inerente à obra de arte é considerada sob a ótica dos conceitos de ressonância e repercussão desenvolvidos por Bachelard em sua investigação sobre a imagem poética.

Apontamos para o caráter pré-lógico e pré-conceitual da arte tendo como parâmetros a teoria da estética formulada por Benedetto Croce, filósofo, historiador e crítico literário italiano, para o qual, a intuição exerce um papel fundamental na criação artística. Nesse sentido, a representação artística formula de maneira individual, única e singular.

No contexto da criação e realização de um obra como o documentário aqui analisado, consideramos que o encontro com o outro, o conhecimento profundo entre duas subjetividades que se dão a conhecer, traz em si elementos que farão parte da matéria feita de impressões e afetos, nesse todo coeso que é a intuição, em que o realizador do filme mergulha, num primeiro momento, para que se concretize a expressão artística em suas diferentes formas e matizes que traduzem a individualidade e a subjetividade do artista.

O encontro com o outro torna-se, assim, parte fundamental da subjetividade do realizador, da maneira singular com que intuitivamente, escolherá a forma de contar a sua história.

Uma vez definidas algumas das condições essenciais para que se instaure uma relação dialógica entre o realizador e o outro e definida a sua importância na realização do filme, a questão é saber como passar da relação, propriamente dita, para a sua representação cinematográfica.

Consideramos essa questão tendo como ponto de partida o ritmo, que expressa o fluxo de tempo no interior do fotograma. Tarkovski, cineasta russo, considera que o tempo específico que flui através das tomadas cria o ritmo do filme, o ritmo não é determinado pela extensão das peças montadas, mas, sim, pela pressão do tempo que passa através delas. Essa observação do cineasta nos remete à principal característica da arte cinematográfica - o movimento em sua duração, ou, em outras palavras, o movimento transcorrido em um intervalo de tempo.

No tipo de documentário aqui analisado esse fluir do tempo é muito marcado pela fala do outro. O conteúdo da fala, a sua expressão, marca o seu tempo.

O fluxo do tempo precisa ser filmado e precisa ser representado. A duração de um plano não pode ser arbitrária. Essa decisão está ligada à percepção desse tempo interno em cada tomada.

O tempo real do acontecimento em linguagem cinematográfica se traduz através do plano seqüência, sem cortes, como a melhor maneira de representar o fluxo do tempo e sua vibração.

A qualidade do encontro segue sendo a referência principal também no plano da representação, no sentido de determinar as decisões do realizador na construção da narrativa fílmica.

Motivação

O interesse dessa pesquisa não partiu de uma idéia e sim de uma sensação que se delineava a partir da experiência profissional ao longo dos anos na realização de documentários. O que nos primeiros tempos era uma intuição foi se firmando como uma percepção clara conforme a experiência ia se acumulando - a percepção de que a qualidade da presença do realizador é determinante para a relação que se instaura durante as filmagens e o para o que fica registrado seja na película, no caso do filme, seja na fita, no caso do vídeo.

Uma das características básicas do documentário é a de representar um fragmento do mundo histórico, o espaço documental é histórico e o realizador se situa como parte integrante desse mundo. Nesse sentido, o ponto de partida do realizador está sempre referido a alguém, a um grupo de pessoas, instituição, a um lugar ou manifestação cultural. O ``outro'' está sempre presente como representado , revelando o compromisso social e pessoal do cineasta com esse ``outro''. Nesse sentido, o filme é sempre um registro da singularidade do realizador na sua relação com o outro e com o mundo.

Essa relação sempre me pareceu crucial e determinante. Hoje, acredito que o encontro com o outro só se revela em sua totalidade quando ele acontece entre duas subjetividades, entre dois(ou mais) sujeitos singulares e presentes inteiramente, com a totalidade de seu ser.

O documentário que está em questão nessa pesquisa é aquele em que o ``outro'' é o tema do filme. A característica principal desse documentário é se constituir dentro do domínio do inter-humano, da relação que o diretor estabelece com as pessoas que está filmando.

A percepção de que essa relação é fundamental nesse tipo de documentário foi se formando ao longo dos meus encontros com as mais diferentes pessoas que serviram de referência para os filmes ou vídeos. Eu percebia que existiam encontros verdadeiros, genuínos, e outros nem tanto.... As explicações podiam ser muitas e diversas, mas havia a certeza de que quando acontecia um verdadeiro encontro, isto certamente se traduzia nas imagens gravadas, nos depoimentos obtidos. Os depoimentos vinham carregados de um ``quê'' a mais, de algo que todos percebiam, algo como uma sinceridade no olhar, um tom pessoal, uma transparência na fala que tocava quem via e ouvia de maneira mais profunda.

Como pretender falar do outro sem conhecê-lo e sem dar-se a conhecer? - essa sempre foi uma questão que me acompanhou. Os documentários mais tocantes, as cenas que nunca esquecemos são exatamente aquelas que traduzem, que refletem essa verdade subjetiva de cada um, fazendo dessa pessoa alguém singular, diferente de todos os outros seres humanos. Quando essa subjetividade consegue ser transmitida na tela é sempre um bom momento, um momento de partilha com alguém que se deu a conhecer, alguém que se entregou de corpo e alma naquele momento quando, certamente, havia um realizador atento e presente a seu lado, que por sua vez, também se deu a conhecer nesse encontro.

O verdadeiro encontro tem uma qualidade luminosa, elétrica, energética, pertence ao mundo das coisas vivas, que respiram, que nos transportam para um mundo cheio de significado interior, que alimenta e dá significado à existência de cada um. Nesses momentos o mundo se abre para além das aparências e sentimos a comunhão entre os seres. Esses são instantes preciosos - como aquela sensação que tive (estava realizando um programa para televisão) ao conhecer um agricultor , já de idade avançada, seu rosto marcado pela lida na terra e pelo sol que vincara sua pela curtida, me contando da sua relação com a terra, o quanto era fundamental para sua existência plantar e colher, ver a terra brotar e dar os seus frutos... E que ali ele queria acabar os seus dias - feliz como quando tinha começado ainda criança... Os seus olhos transparentes marejaram... E eu me senti inundada por uma emoção que carrego até hoje....Ou ainda aquele menino que me disse, olhos nos olhos, e com um grande sorriso estampado em seu rosto, que as árvores eram suas amigas e que só faltava elas saírem andando...Os exemplos são muitos mas a emoção é sempre muito parecida - é como uma conexão direta com tudo que é vivo...

O trabalho do realizador do documentário cujo tema é o outro, situa-se, necessariamente, na zona do encontro onde a reciprocidade da ação é que vai determinar o rumo dos acontecimentos e esse percurso precisa ser captado e traduzido em linguagem cinematográfica. Cada decisão do diretor em relação à linguagem envolvida no processo - posição da câmera, presença ou não do realizador no quadro, microfone direcional, sem fio ou lapela, plano seqüência ou cortes, perguntas em off ou não, etc. - determina o ponto de vista dentro do qual os acontecimentos irão se desenrolar, também reflete o tipo de aproximação e envolvimento que se terá com o outro; determina a qualidade da presença que terá esse realizador em relação ao outro. A utilização de diferentes recursos da linguagem cinematográfica é, a cada momento, uma opção do realizador, opção na qual os valores como presença, reciprocidade, integridade e comunhão, precisam ser levados em conta a cada instante, a cada cena , a cada gesto. Em última instância, essas opções fazem parte da construção artística do realizador, da expressão sensível que dará forma à obra de maneira subjetiva e singular.

Essas constatações me levaram a formular um itinerário de pesquisa:

1) como desenvolver uma relação verdadeira, como fundamentar um encontro entre duas subjetividades que partilhem profundamente um momento onde surja o novo, o que antes não se sabia, o inesperado. Um momento onde o singular se manifeste em sua plenitude, tendo como pressuposto básico a autenticidade dos parceiros.

2) quais os requisitos básicos para que haja uma conversa ou uma fala genuína sem cair na repetição de idéias e conceitos pré-determinados antes mesmo do encontro.

3) como conciliar a utilização dos elementos narrativos à disposição do realizador com essa postura voltada para o inter-humano, que caminhos será preciso percorrer para se conseguir atravessar o mundo pronto das aparências e desvendar o horizonte sempre mutável que permeia um verdadeiro encontro e de alguma maneira traduzir ou transpor essa qualidade para as telas.

No caminho percorrido na formulação dessas questões foi tomando corpo a percepção da proximidade existente entre elas e a filosofia dialógica de Martim Buber (1878 - 1965)2 . Sua obra inaugura uma investigação profunda e inovadora sobre o que denominou de ``esfera do inter humano'', onde o diálogo acontece. O fato primordial de seu pensamento é a relação, o diálogo na atitude existencial do face-à-face. Buber considera que o diálogo verdadeiro passa a existir quando contém a ``palavra verdadeira'' que nasce do encontro genuíno entre os homens. A filosofia buberiana evoca no pensamento contemporâneo a urgência do resgate daquilo que o homem tem de mais característico - a sua humanidade.

Carl Rogers, psicoterapeuta, que em suas investigações esteve sempre próximo ao pensamento existencial fenomenológico, no sentido de resgatar a experiência subjetiva, aponta para as condições que tornam qualquer relação, seja em terapia ou numa relação interpessoal, mais facilitadora do crescimento, da abertura, do aperfeiçoamento e da maturidade dos indivíduos.

Nesse sentido, Rogers caminha numa direção complementar à de Buber, acrescentando elementos importantes na discussão que aqui nos empenhamos, que é a de encontrar fundamentos para o encontro verdadeiro entre duas subjetividades na realização do documentário.

Merleau Ponty3 é outro autor que se apresentou no caminho de nossas indagações. Ele foi aluno de Husserl, fundador da fenomenologia, e abordou com profundidade a questão da linguagem num enfoque fenomenológico Ele faz uma distinção entre ``fala autêntica'', aquela que formula pela primeira vez e a ``expressão segunda'', aquela constituída de uma fala sobre falas, que compõe a linguagem empírica ordinária, é a fala que repete o que já foi ouvido, pensado e não implica na presença total da pessoa que fala.

Em sua rápida incursão pelo cinema, na conferência de 1945, ``O Cinema e a Nova Psicologia'' Merleau Ponty afirma uma fenomenologia que se distancia daquela baziniana fundamentada na crença na dimensão ``ontológica'' do processo fotográfico, sua objetividade essencial, e a conseqüente credibilidade que cerca a imagem. A essa idéia Merleau Ponty irá se contrapor, afirmando a ambigüidade vinculada à negação de qualquer absoluto, à admissão de uma incompletude fundamental da percepção, dada a condição do homem como ser mergulhado no mundo. O interesse do filósofo pelo cinema estará vinculado ao filme como objeto de percepção.

Para ele, a imagem cinematográfica apresenta uma figuração do comportamento dos homens - o estar-em-situação, inserido dentro de condições determinadas. No cinema torna-se manifesta a união entre mente e corpo, mente e mundo, e a expressão de um no outro.$^{ }$

Nossa pesquisa está centrada nos documentários que trabalham com o encontro de dois sujeitos - o realizador e o outro que se constitui no assunto do filme. O nosso interesse é explorar o universo desse encontro, as suas características, saber quais são as condições para que esse encontro se dê de forma integral possibilitando a revelação da essência desse outro e a descoberta do que há de singular e único naquela pessoa.

Acreditamos que a qualidade da relação que o realizador empreende com o sujeito do filme, no sentido de fazer emergir uma relação verdadeira, de descoberta genuína, aquela que introduz o novo, é bastante relevante porque traz em si elementos imprescindíveis que serão introjetados pela intuição do artista na sua matéria subjetivada e que estarão presentes no momento de sua expressão artística.

Realidade e Representação

O cinema, desde a sua criação, sempre esteve associado à noção de realismo, uma vez que a sua imagem reproduz uma característica essencial ao mundo visível, que é o movimento.

A relação entre discurso cinematográfico e a realidade foi e continua sendo uma das grandes discussões entre as diferentes posturas estético-ideológicas desde o surgimento do cinema. Ismail Xavier 4, aponta para o fato de que o eixo das discussões está justamente no modo como devem ser encaradas as possibilidades oferecidas pelo processo cinematográfico - desde o momento da filmagem até o processo de montagem. O autor aponta o fato de que, no caso do cinema, a tradicional celebração do ``realismo'' da imagem cinematográfica é mais intensa dado o desenvolvimento temporal de sua imagem, capaz de reproduzir, não só mais uma propriedade do mundo visível, mas justamente uma propriedade essencial à sua natureza - o movimento.

O desenvolvimento da semiótica à partir da década de 60 se deu justamente pela constatação da iconicidade e indexalidade da imagem na fotografia e no cinema.

A impressão de realidade no cinema, desde a primeira projeção cinematográfica em 1985 até os dias de hoje, sempre foi o ponto de partida para as discussões teóricas na área, principalmente a polêmica desenvolvida na França entre Jean Mitry e Christian Metz de um lado, e as revistas Cahiers du Cinéma e Cinéthique do outro.

O movimento efetivo dos elementos visíveis, como considera o autor, será responsável por uma nova forma de presença do espaço ``fora da tela'' . A imagem estende-se por um determinado intervalo de tempo e algo pode mover-se de dentro para fora do campo de visão ou vice-versa. Essa é uma possibilidade específica da imagem cinematográfica, graças à sua duração.

Nesse sentido, a dimensão temporal que caracteriza o cinema, como aponta Ismail Xavier, define um novo sentido para as bordas do quadro, não mais simplesmente limites de uma composição, mas ponto de tensão originário de transformações na configuração dada. O movimento de câmera reforça a impressão de que há um mundo do lado de lá, que existe independente da câmera em continuidade ao espaço da imagem percebida. Esse aspecto fez com que se associasse o retângulo da tela à moldura da pintura, permitindo a identificação do retângulo da imagem como uma espécie de ``janela'' que apresenta um universo que existe por si mesmo, apesar de separado do nosso mundo pela superfície da tela.

O autor chama a atenção para o fato de que o salto estabelecido pelo corte de uma imagem e sua substituição brusca por outra imagem, é um momento em que pode ser posta em cheque a ``semelhança'' da representação frente ao mundo visível e, mais decisivamente ainda, é o momento de colapso da ``objetividade'' contida na indexalidade da imagem.

Esse fato nos remete à intervenção e manipulação humana no processo da montagem cinematográfica e abre o campo da discussão em relação a representação frente à realidade na prática da realização cinematográfica.

A descontinuidade inerente ao processo de montagem será o ponto de partida na discussão e concepção de como se deve considerar a relação imagem-som na prática cinematográfica. Por um lado, estão aqueles que consideram a montagem uma espécie de heresia frente à objetividade do registro cinematográfico e a correlata ``impressão de realidade'', por outro lado a montagem é vista como fundadora do discurso cinematográfico - a manipulação das imagens tem o objetivo explícito de romper com o ilusionismo vislumbrado pela ``janela'' do cinema, afirmando-se como condição básica da narrativa.

Essas alternativas se traduzem, na prática, na opção entre buscar a neutralização da descontinuidade resultante da substituição das imagens ou buscar a explicitação dessa descontinuidade, sendo que essa articulação se dará, principalmente, no momento da montagem.

As vertentes que optam pela continuidade narrativa se utilizam do método da Decupagem Clássica, elaborado segundo regras e normas que apontam para a continuidade visual que procura manter o espectador dentro da ``janela da ilusão''. Nesse padrão realiza-se uma combinação dos planos no sentido de se conseguir uma seqüência fluente e contínua das imagens que ``camufla'' a descontinuidade real das imagens processadas na montagem, reconstituindo a continuidade espaço-temporal através da lógica diegética. Na decupagem clássica a montagem segue regras específicas para tornar-se invisível enquanto processo - a impressão que resulta é que o espectador encontra-se frente à frente com a própria realidade dos fatos apresentados.

Nesse sentido, a atenção e identificação do espectador são garantidas pela sintaxe de uma narrativa contínua que obedece a uma demanda de motivações psicológicas. Essa linha de representação narrativa tem em Griffith o marco de quem primeiro sistematizou esse modelo seguido por Pudovkin, principal discípulo de Kulechov, que deu uma dimensão teórica e didática aos fundamentos desse cinema fundado numa montagem que cria a continuidade, ritmo e sucessão lógica da narrativa.

O cinema alinhado à ``janela de ilusão'' que segue as regras da decupagem clássica tem sua representação maior na filmografia que se consolidou nos Estados Unidos depois de 1914. Aliado a um método de representação dos atores no modelo naturalista, filmagens em estúdios e estruturação em gêneros narrativos bem precisos, o cinema hollywoodiano se apoia na identificação, por parte do público, do mundo representado com o mundo real, como se o discurso cinematográfico não tivesse sido construído, já que tudo é feito de maneira a tornar invisível qualquer vestígio dos meios de produção da obra cinematográfica.

Em relação aos documentários, a narrativa que mais se aproxima dessa abordagem é aquela que se utiliza de elementos narrativos da ficção na reconstituição de fatos, na utilização de atores numa perspectiva naturalista de representação que contribuem para a diluição dos contornos entre a ficção e o documentário. Filmes como ``Iracema'' de Jorge Bodanski, ``O Velho'' de Toni Venturi e ``Corisco e Dadá'' são alguns exemplos de documentários brasileiros mais recentes realizados nessa linha.

Os caminhos alternativos ao cinema naturalista foram muitos e muitas vezes identificados com as vanguardas ao longo dos tempos. Citaremos só alguns que consideramos mais representativos.

Um dos caminhos alternativos ao cinema naturalista foi trilhado, como lembra Ismail Xavier, pelo expressionismo, tendência que começou a fazer uso de recursos estilísticos que se afirmaram à partir de ``O Gabinete de Dr. Caligari'' , de 1919. Sua característica maior é a elaboração de um espaço dramático artificialmente construído por um trabalho cenográfico que procura os mais diversos efeitos que instauram uma ordem visual muito distante da ilusão de profundidade dada pelas leis da perspectiva. Dos seus cenários mais utilizados, o expressionismo lançava mão de distorções, linhas curvas e formas que se distanciavam do espaço natural.

Com a perspectiva distorcida, a descontinuidade do espaço, as sombras exageradas, o cinema expressionista quer chamar atenção para o mundo invisível, desmascarando o mundo visível. ``Ancorado na idéia de expressão como encarnação direta do espírito na matéria, tal cinema não discursa, nem sequer fotografa o real; ele tem visões.''5

A vanguarda francesa do começo dos anos 20 também aponta para outros caminhos que não o naturalismo, como considera ainda Ismail Xavier. Esse cinema tem como perspectiva a expressão do essencial e a emergência da dimensão poética da imagem, que origina-se nas virtudes da própria imagem luminosa e numa relação mais sensorial com o mundo. O importante é cada imagem singular e seu poder gerador de uma nova experiência do mundo visível, num elogio às virtudes plásticas de cada relação câmera-objeto particular.

Dentro de tal perspectiva de realização, o referencial musical é assumido de perto por cineastas como Delluc, V. Eggeling e Hans Richter que trabalham com a dinâmica da luz e os seus efeitos geométricos e rítmicos na superfície da tela, se aproximando do desenho animado. Dissolve-se assim, a narrativa e o espaço dramático da ação e qualquer referência a um espaço-tempo natural exterior ao filme.

Na Rússia, também na década de 20, Eisenstein preconizava o cinema revolucionário, que caminhava, como coloca Ismail Xavier, rumo a uma estrutura francamente discursiva, baseada na combinação de elementos e comentários em torno de uma situação factual básica, assumindo o princípio de Maiakovski: sem forma revolucionária não há arte revolucionária.

Eisenstein propõe a ``montagem figurativa'' - uma montagem que interrompe o fluxo dos acontecimentos e marca a intervenção do sujeito do discurso através da inserção de planos que destróem a continuidade do espaço diegético, se transformando em parte integrante da exposição de uma idéia.

Para o cineasta russo trata-se de construir idéias e pensamentos através do que ele define por justaposição de imagens que irão se constituir no discurso do filme. A síntese produzida por tal montagem faz com que o cinema passe da ``esfera da ação'' para a ``esfera da significância, do entendimento'', assumindo a sua qualidade de discurso, como aponta Ismail Xavier.

No campo da realização documental, Dziga Vertov, outro cineasta russo marcou presença fundamental à partir da década de 20. A sua proposta é captar a vida em seu improviso, em sua autenticidade, principalmente a vida que acontece nas ruas. A montagem é marcada, é o lugar privilegiado onde as imagens se articulam tendo em vista a construção e a revelação da verdade. A sua unidade de trabalho é o fotograma, e é a partir do choque entre as imagens que o discurso é articulado. Esse choque é dado pelo encontro dos vários procedimentos estilísticos como ângulos escolhidos, movimento, luz, velocidade que vão potencializar a dimensão orgânica da vida captada em sua autenticidade.

O cinema surrealista da década de 50, que tem em Luiz Buñuel o seu maior representante, preconizava a liberdade e sua imagens deveriam obedecer a outros imperativos que não os da verossimilhança e os do respeito às regras da percepção comum. Nessa perspectiva, ainda segundo Ismail Xavier, a montagem obedecia aos imperativos únicos da imaginação, numa postura de agressão direta à decupagem clássica. Dentro da ótica surrealista, a montagem se distancia da ilusão de continuidade , criando uma cadeia associativa entre as imagens, muitas vezes, sem referências de espaço e tempo claras. O encadeamento das imagens obedece ao princípio da ``associação livre'' que tem como referência o modelo de composição das imagens oníricas.

O cinema da década de 60 vem ampliar o leque da gramática cinematográfica e suas possibilidades narrativas. Na França é o momento da ascensão da Revista Cinéthique e a substituição da perspectiva existencial - fenomenológica pelo retorno a Eisenstein e Vertov e o cinema de montagem. Abrem-se as possibilidades narrativas do discurso cinematográfico no sentido de revelar o próprio aparato técnico da realização cinematográfica.

A preocupação maior não é mais esconder ou camuflar a descontinuidade presente em cada corte mas sim revelar que se trata de uma narração, chamar a atenção do espectador para o processo e assim ir de encontro à identificação afetiva com o filme, que não mais se confunde com a realidade, se revela como objeto. É a época do surgimento do som direto e de câmeras portáteis que perdem o apoio do tripé e ganham vida pelas mãos do cinegrafista. As experimentações de linguagem estão na ordem do dia tanto no documentário como na ficção. Godard é um bom exemplo desse cinema revelador de seus mecanismos internos quando utiliza a narrativa de maneira diversa e descontínua trazendo para o primeiro plano a própria linguagem cinematográfica.

Essas diferentes linhas de abordagem da representação cinematográfica, apesar de mais presentes em determinados períodos da história do cinema, não se apresentam de maneira cronológica mas convivem lado a lado dentro da cinematografia mundial até os dias atuais.

Realidade e Representação no Documentário

A ``impressão de realidade'' é duplamente significativa para o gênero documentário, já que um dos princípios que fundamentam sua narrativa é estar referido diretamente a fatos históricos. Nesse sentido, a primeira impressão que o filme causa no espectador é que é a própria realidade que ``fala'' através dos sons e imagens e não a sua representação. Outro pressuposto de autenticidade do documentário é passar a impressão da não manipulação dos sons e imagens.

Mas todo e qualquer cinema, independentemente do gênero à que pertença é um discurso, uma interpretação da realidade. Desde o momento em que se escolhe o que filmar, de que ponto de vista, qual a duração do plano, quem entrevistar, o que perguntar ao entrevistado, como editar o material, enfim todas as decisões que envolvem a realização de um documentário constróem uma interpretação da realidade, traduzem um determinado ponto de vista subjetivo e singular. Todos os elementos constitutivos da linguagem cinematográfica revelam sempre a posição do realizador frente aos fatos que está narrando. Isto não significa dizer que o documentário não possa ser fiel à verdade de determinadas realidades.

Nesse sentido, podemos lançar um olhar para a trajetória que o documentário tem percorrido tendo como referência as diferentes maneiras como tem se dado a relação realidade x representação. Os modos de representação diferem entre si por empregarem os elementos da narrativa cinematográfica de maneiras distintas e historicamente datadas.

Bill Nichols6 destaca quatro modalidades de representação dominantes possíveis no documentário.

Documentário Expositivo

A modalidade expositiva se dirige ao espectador diretamente através de letreiros ou vozes em over (não diegéticas) que expõem uma argumentação acerca do mundo histórico, prevalecendo o som não sincrônico do comentário sonoro e imagens servem como contraponto ou ilustração. Filmes como ``Night Mail'' de Harry Watt e Basil Wright (1936), ``The Battle of San Pietro de John Huston (1945),e ``Victory at Sea de Henry Salomon e Isaac Kleinerman(1952-53) são apontadas pelo autor como representantes do modo expositivo pela utilização da narração over, extra diegética.

Filmes institucionais e de propaganda sempre se utilizaram dessa estrutura narrativa. No Brasil, podemos situar o início dessa produção com o aparecimento dos cinejornais do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), criado em 1939 durante o governo de Getúlio Vargas com exemplo característico do documentário expositivo.

O Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) dirigido pelo cineasta Humberto Mauro, produziu, à partir da década de 30, centenas de filmes educativos, institucionais e de reconstituição histórica marcados pela estrutura do modo expositivo.

Nos documentários expositivos, a lógica é dada pelo texto que argumenta em função de idéias que vão sendo expostas ao longo do filme. A montagem obedece à essa lógica no sentido de manter a coerência dessa argumentação em detrimento da continuidade espacial e temporal.

``Nanook do Norte' realizado em 1922 por Robert J. Flaherty é um dos clássicos do modo expositivo. A estrutura principal de todo o filme é a continuidade, composta por cenas arranjadas de forma lógica e coerente. O fluxo cronologicamente linear da imagem da obra de Flaherty e da maioria dos filmes expositivos, são estruturados com base na lógica de causa-efeito, premissa-conclusão, problema-solução.

Ainda dentro da perspectiva expositiva de narração, John Grierson instaura a preocupação com a narrativa no documentário de cunho institucional e educativo que vai caracterizar o documentarismo inglês da década de 20 até meados da década de 40.

A presença de entrevistas, quando existem, no modo expositivo, estão subordinadas à lógica da argumentação textual, sempre para lhe respaldar o sentido ou justificar algum item da narração que carrega consigo a responsabilidade exclusiva da argumentação.

Documentário de Observação

Bill Nichols denomina como modalidade de observação e modalidade interativa o cinema que ficou conhecido como cinema direto ou cinéma verité e que vamos analisar com maior profundidade por se tratar do tipo de documentário com o qual estamos trabalhando nessa pesquisa. Por ora, iremos caracterizar a sua estrutura narrativa em linhas gerais.

Segundo o autor, a modalidade de observação atua no sentido da não intervenção do realizador nos acontecimentos questão sendo filmados. São eles que determinam o andamento temporal do filme. A montagem sempre tem em vista a temporalidade autêntica dos acontecimentos. Em sua vertente mais radical, essa estrutura narrativa não comporta narração over, música extra diegética e até entrevistas.

A existência do som sincrônico faz com que o discurso esteja estruturado em imagens definidas historicamente no tempo e no espaço. Cada cena situa o espectador dentro da especificidade daquele lugar e daquele determinado momento. Bill Nichols considera que, nessa modalidade de representação, cada corte e conseqüente edição tem a função principal de manter a continuidade espacial e temporal da observação no sentido de manter o ``tempo presente'' sempre ligado ao momento da filmagem.

O autor ressalta que o modo de observação tem sido utilizado como ferramenta etnográfica, já que permite aos realizadores observar atividades e costumes de maneira direta, sem as mediações textuais do documentário expositivo. O que é representado é a experiência vivida e as características peculiares de seu cotidiano, no qual diferentes relações sociais são apreendidas, linguagens diferentes são ouvidas e identificadas em seus respectivos contextos culturais.

Documentário Interativo ou Cinema Direto

A modalidade interativa de representação vem eliminar a ausência ilusória do realizador colocada pelas outras formas narrativas. Dziga Vertov, na década de 20, em `` O Homem da Câmera'' já tinha revelado uma presença mais significativa do realizador ao colocar na tela a figura do realizador e sua câmera, anunciando, assim, as possibilidades que o cinema direto viria desenvolver mais explicitamente a partir da década de 50. A partir desse momento, o desenvolvimento tecnológico permitiu uma maior intervenção do diretor no filme, no sentido de explicitar a sua presença no processo de realização - a sua voz pode ser ouvida e revelada assim como a voz do outro, a sua presença física também pode ser revelada assim como a presença do outro.

O documentário que está em questão nesta pesquisa, aquele que se fundamenta pelo encontro de dois sujeitos, o realizador e o sujeito do filme, segue a trilha do ``cinema direto'' que se definiu com o surgimento do som direto.

Esse foi um momento fundamental na trajetória do documentário marcado por uma nova interação do realizador com a realidade a ser representada - a distância entre o realizador e o outro (sujeito e tema do filme) se encurtou em função das possibilidades do som direto. Pela primeira vez era possível deixar de falar pelo outro, através de uma narração over, e falar com o outro. A terceira pessoa do singular cede seu lugar para a primeira pessoa, aquela que fala por si própria, de corpo presente, com a gestualidade e entonação de voz que tornam o seu depoimento vivo e presente como nunca antes tinha sido possível. O documentário adquire um caráter de tempo presente, de tempo flagrado em sua continuidade. O ponto de vista torna-se móvel, todos podem dar o seu depoimento, a palavra torna-se acessível.

Os documentários realizados até fins da década de 50 tinham como característica o formato expositivo. Numa perspectiva histórica , a possibilidade do som sincrônico é fruto, por um lado, da evolução tecnológica dos meios de produção que propiciaram a gravação do som em sincronia com a imagem e o aparecimento de câmeras mais leves e, por outro lado, é fruto também da efervescência cultural e política presente nesse momento em vários países do mundo.

Essa confluência de fatores favoreceu uma abordagem mais participativa por parte do realizador, que busca e é testemunha de uma fala até agora inacessível. Nesse sentido, novas possibilidades marcam a realização do documentário - entrevistas, depoimentos, câmera na mão, uma montagem de caráter mais seletivo do que construtivista - e apontam para uma maior aderência à realidade.

A nova forma de realização cinematográfica foi batizada na França primeiramente como ``Cinéma Verité'' dentro do contexto de produção do filme etnográfico tendo à frente Jean Rouch e Edgar Morin como realizadores de ``Chronique d'un Été'', apresentado em Cannes em 1961. Em 1963, Mário Ruspoli propõe uma substituição do termo para ``Cinema Direto'' por considerá-lo menos restritivo e por possibilitar uma definição mais próxima a esse cinema que se relacionava de modo mais direto frente à realidade.

``Cinema Direto'' acabou traduzindo essa nova postura mais participativa e direta dentro da produção documental de diversos países: Office National du Film, no Canadá; Candide Eye, também no Canadá; Living Camera do Grupo Drew Associates, nos Estados Unidos.

O cinema direto trouxe uma nova dimensão ao documentário trazida pela palavra flagrada em sua espontaneidade, a dimensão da verdade no plano das relações humanas. ``O cinema direto é, em sua essência, um cinema da comunicação.''7 A partir de então a câmera capta um homem dotado de sua própria palavra, a sua voz vem trazer uma perspectiva mais pessoal e direta ao filme.

Para Bill Nichols, essa modalidade introduz uma sensação de parcialidade, de presença situada e de conhecimento local que deriva do encontro do realizador com o outro.

A qualidade de tempo presente é intensa e a sensação de contingência é bem clara no sentido que os acontecimentos podem tomar diferentes rumos dependendo da interação entre o realizador e o outro.

Documentário Reflexivo

Nesse tipo de documentário a representação do mundo histórico se converte ela mesma no tema do filme. O processo de representação se torna a principal preocupação da narrativa cinematográfica, como considera Bill Nichols.

Nessa modalidade há uma mudança de enfoque no sentido de privilegiar a relação realizador-espectador em detrimento da relação realizador-sujeito. O acesso realista ao mundo, a argumentação irrefutável, a capacidade de oferecer provas convincentes, o nexo entre a imagem e aquilo que representa, todas essas referências do cinema documental são colocadas em questão no sentido de problematizar a própria representação.

O filme reflexivo aponta para uma ênfase na intervenção deformadora do aparato cinematográfico, no processo de representação, questionando seu próprio status e convenções narrativas.

Uma vez esclarecidas as possibilidades narrativas do filme documentário e tendo situado essas diferentes maneiras de representação, cabe ressaltar que, muitas vezes essas formas se apresentam imbricadas, misturadas ao longo da narrativa do filme. Essas modalidades apontam para maneiras diferentes de narrar uma história ou, em outras palavras, para modos diferentes de estruturar a narrativa de um documentário e que se entrelaçam na constituição de um documentário.

A identificação dessas possibilidades traz consigo o entendimento de que o filme é um discurso e que esse discurso é sempre uma opção do realizador permeada pela sua visão de mundo e pela sua sensibilidade artística.

Tendo em vista o tipo de documentário que estamos analisando aqui, a qualidade do encontro entre o realizador e o outro é também parte constituinte da subjetividade do realizador que se dará a conhecer através do filme. É só na medida em que o realizador considera e atua com a totalidade de seu ser que a possibilidade de um encontro autêntico se estabelece, um encontro que possibilite o conhecimento profundo, que se revela para além das aparências.

Para Buber ``o principal pressuposto para o surgimento de uma conversa genuína (ou um encontro verdadeiro) é que cada um veja seu parceiro como precisamente esse homem é ... Experienciá-lo como uma totalidade e contudo, ao mesmo tempo, sem abstrações que o reduzam, experienciá-lo em toda a sua concretude.''8

Entendemos que o momento do encontro com o outro, quando se inaugura o espaço do inter-humano, é crucial na realização desse tipo de documentário pois é nesse momento que se definirá o quanto o realizador irá se conectar de maneira a alcançar um pleno conhecimento do conteúdo que constituirá o filme.

Não nos referimos aqui a um conhecimento objetivo que atinge maiores ou menores graus de veracidade, não se trata de alcançar uma verdade já estabelecida e embutida nas entranhas do real, trata-se aqui do conhecimento que nasce da verdadeira entrega, daquela que nos leva para a revelação do que antes não era conhecido, daquilo que nos é dado a conhecer quando abrimos mão de todo conhecimento anterior para encontrar a revelação do novo. A essência da subjetividade só se dá a conhecer dessa maneira, se não for por essa via ficaremos sempre no nível da aparência, nesse caso, no nível do já conhecido, do já dito, do já visto. Ultrapassados os limites das aparências, entra-se no terreno das descobertas, aquelas que afloram do desconhecido, trazendo luz a algo que antes não existia. A qualidade da presença do realizador é que estabelece a relação propiciadora desse conhecimento.

Espectador - Identificação e Repercussão

O cinema, como obra estética, destina-se ao espectador. É com ele que o filme dialoga, é nele que as imagens e sons ecoam numa relação reveladora de significados, sensações e sentimentos. O espectador é o elo de ligação da obra com o mundo - é através dele que a obra irá acontecer.

Nesse sentido, podemos considerar um segundo momento de encontro, mesmo que indiretamente, entre duas subjetividades - a do realizador, por um lado, e a do espectador ,por outro lado. Abre-se uma nova fronteira para o inter humano, onde realizador e espectador dialogam por meio do filme, se vinculam por meio dele e é nesse encontro de subjetividades que se define o destino da obra de arte.

A relação obra - espectador é tanto fundadora como reveladora de muitos aspectos da obra cinematográfica. Edgar Morin 9 utilizando-se de conceitos oriundos do campo da psicologia e carregados de uma perspectiva freudiana, aponta para um mecanismo de projeção-identificação na origem da percepção cinematográfica. Para ele, a identificação constitui a base do cinema.

Segundo o autor, o espectador encontra-se fora da ação, privado de participações práticas. Não podendo exprimir-se por atos, a participação do espectador interioriza-se pelo processo de projeções - identificações.

A ausência de participação prática determina portanto uma participação afetiva intensa na qual se operam verdadeiras transferências entre a alma do espectador e o espetáculo da tela.

Nesse sentido, Edgar Morin caracteriza o cinema como ``um sistema que tende a integrar o espectador no fluxo do filme. Um sistema que tende a integrar o fluxo do filme no fluxo psíquico do espectador.''10 Ele considera a participação afetiva como estado genético e fundamento estrutural do cinema, dada as semelhanças entre as características da imagem cinematográfica e determinadas estruturas mentais. Morin escreveu o livro ``O Cinema ou o Homem Imaginário'' em 1958 e teve como referência básica o cinema narrativo de Hollywood, mas a questão identificação-projeção dentro da linguagem cinematográfica e mais tarde a televisiva, depois dos anos cinqüenta, sempre foi uma questão presente para o entendimento da relação do espectador com a obra.

McLuhan, na década de 60, no contexto da sociologia da comunicação de massa, distingue o processo de identificação que acontece com os meios frios - a televisão, por exemplo, e o processo de projeção que ocorre nos meios quentes, como o cinema.

No caso da identificação, o espectador teria uma atitude de atenção para com o meio em contrapartida à uma atitude projetiva que acontece no cinema, na qual o espectador se confunde com o personagem, vivência a história do personagem como sendo a sua própria.

Christian Metz também retoma a discussão sobre a experiência do espectador caracterizada pela ``impressão de realidade'' e pelo processo de identificação. Numa perspectiva fenomenológica, ele vai buscar uma descrição das características da imagem e das condições de projeção do espectador que constituem a relação de identificação e o forte ilusionismo. Numa outra perspectiva, a psicanalítica, ele vai buscar na estrutura psíquica do espectador as explicações para o processo de envolvimento no cinema.

A obra de arte é feita de subjetividades e dialoga através dessas subjetividades. A amplitude dessa interação, a possibilidade de ``dialogar'' de perto com a humanidade em diferentes épocas e lugares, de atingir uma conexão direta com os mais diferentes tipos de pessoas ao longo do tempo é uma das características que fundamentam a obra de arte.

Bachelard 11 em sua investigação sobre a comunicabilidade de uma imagem singular, sobre a sua transubjetividade, vai buscar essa medida na fenomenologia da imaginação, ou, em outras palavras, no estudo do ``fenômeno da imagem poética, quando a imaginação emerge na consciência como um produto direto do coração, da alma, do ser do homem tomado em sua atualidade.''

O autor afirma que nos poemas manifestam-se forças que não passam pelos circuitos de um saber e aponta a alma e o espírito como indispensáveis para estudar os fenômenos das imagens poéticas desde o devaneio até a sua execução. O espírito pode relaxar-se, mas no devaneio poético, considera Bachelard, a alma está de vigília, sem tensão, repousada e ativa. Para fazer um poema completo, bem estruturado será preciso que o espírito o prefigure em projetos. Mas para uma simples imagem poética não há projeto, não lhe é necessário mais que um movimento da alma. Numa imagem poética a alma afirma a sua presença. O autor cita o poeta Pierre-Jean Jouve que coloca com toda clareza o problema fenomenológico da imagem poética quando afirma que a poesia é uma alma inaugurando uma forma.

Bachelard continua sua análise apontando que a comunicabilidade de uma imagem é um fato de grande significação ontológica e associa dois conceitos à percepção psicológica de um poema sobre o leitor - a repercussão e a ressonância. Na ressonância, afirma o autor, ouvimos o poema; na repercussão o falamos, ele é nosso. Parece que o ser do poeta é nosso ser . A multiplicidade das ressonâncias sai, então, da unidade de ser da repercussão. Pela repercussão é que sentimos, ainda segundo o autor, erguer-se um poder poético dentro de nós. É depois da repercussão que podemos experimentar ressonâncias, repercussões sentimentais, recordações de nosso passado. A imagem atingiu as profundezas antes de emocionar a superfície.

Acreditamos poder fazer um paralelo entre a imagem poética e a imagem cinematográfica. Primeiramente, no sentido de também atribuir à alma a morada da sua criação e ao espírito a sua execução enquanto obra. Nesse sentido, situamos a criação artística no plano da subjetividade e da singularidade.

Num segundo momento, podemos considerar a questão da transubjetividade e da identificação do espectador com a obra nos parâmetros da repercussão e ressonância apresentadas por Bachelard. A imagem cinematográfica repercute nas profundezas de nosso ser e somos como que transportados para dentro do filme, enraíza-se em nós, tornando-se parte da nossa própria linguagem, instaurando uma nova dimensão em nosso repertório criativo. É porque uma imagem repercute em nós que nos identificamos com ela. Nas palavras de Bachelard, a imagem torna-se um ser novo da nossa linguagem, expressa-nos, tornando-nos aquilo que ela expressa, ela é ao mesmo tempo um devir de expressão e um devir do nosso ser. Aqui, a expressão cria o ser.

Arte e Intuição

Consideramos a relação obra-espectador como um dos fundamentos da expressão artística e situamos o espectador numa das pontas do eixo da criação. Na outra ponta desse percurso estaria a criação mesma da obra, a sua revelação. Caberia notar aqui a circularidade desse eixo na medida em que a obra e o sujeito que frui essa obra se encontram e se interpenetram. A projeção-identificação e a repercussão são fenômenos que se desenvolvem na relação direta com o espectador.

Nos deslocando para o outro ponto desse percurso circular, o ato da criação, encontramos alguns elementos fundamentais para o entendimento da intersubjetividade da obra de arte, da sua comunicabilidade, em outras palavras, da sua universalidade.

A obra de arte é feita de subjetividades e dialoga através dessas subjetividades. A amplitude desse diálogo depende da obra alcançar um caráter universal, que consiga ``falar'' a outras individualidades. É só na medida em que a arte traduz em toda a sua plenitude a expressão de um singular, de um único, contido na experiência individual, é que ela atinge o universal. É só pelo reconhecimento da experiência pessoal e única, de sua singularidade, que a obra é capaz de traduzir a sua inspiração universal.

Essa capacidade que a obra de arte tem de emocionar, de repercutir em muitas almas e espíritos dos mais diversos tempos e lugares é o fundamento mesmo da arte e traz consigo a chave de sua origem enquanto expressão.

Benedetto Croce12, filósofo, historiador e crítico literário italiano, em sua teoria da estética formulada e sistematizada em ``Breviário de Estética'' de 1912 e Aesthetica in nuce'' de 1928, procura compreender a peculiaridade da arte face às demais atividades simbólicas do ser humano.

No seu percurso para caracterizar a obra de arte Croce aponta para o caráter pré-conceitual e pré-lógico da elaboração artística. Nesse sentido o autor avança em relação as concepções estéticas elaboradas anteriormente. Por um lado, Croce considera que o modelo racionalista trazia consigo a concepção da arte como signo ideológico, resultado da manipulação sensível das idéias, alegoria de conceitos e valores. Por outro lado, o ponto de vista irracionalista tratava a arte como fenômeno passional, inconsciente, resultado da sensibilidade tomada em sentido lato.

Croce avança no sentido de distinguir a arte tanto do conceito como da pulsão inconsciente. O núcleo da sua obra é a teoria da arte como intuição: ``a intuição do artista produz imagens, que estão aquém do julgamento de realidade; aquém, portanto, da percepção que distingue o real histórico do imaginário''.13

Esse conceito da arte se contrapõe ao esquema determinista de causa e efeito entre o historicamente acontecido, o socialmente pensado e o poeticamente imaginado. A obra de arte livra-se das amarras e liberta-se para o livre exercício da fantasia que Croce denomina ``forma autoral do conhecimento'' já que a intuição prescinde do discurso conceitual para figurar-se através das imagens.

A obra de arte situa-se, então, no plano da subjetividade, da manifestação do único, do individual que brota da intuição de cada um: ``é esse tesouro da experiência pessoal, feita de impressões e afetos, que permite o jogo diferenciador das intuições. Sem essa matéria subjetivada, a intuição careceria de objetos que lhe facultassem desempenhar a sua função intencional de ver por dentro e, daí, exprimir.''14

Para Croce, a arte é intuição pura ou pura expressão, não intuição intelectual à maneira de Schelling, não logicismo à maneira de Hegel, não juízo como na reflexão histórica, mas intuição totalmente isenta de conceito e de juízo, a forma auroral do conhecer, sem a qual não é dado entender formas sucessivas e mais complexas.

Cabe aqui nos determos na definição do que seja a intuição. Para tanto vamos recorrer à definição dada por Jung 15 no estudo que faz sobre os tipos psicológicos, quando elabora a sua caracterologia através da análise dos traços constitutivos da personalidade humana.

Segundo o autor a intuição é a função psicológica que se ocupa de transmitir percepções através do inconsciente (grifo do autor). A peculiaridade da intuição reside no fato de não ser percepção sensorial, nem sentimento, nem conclusão intelectual, se bem que possa apresentar-se sob essas formas. Na intuição, qualquer conteúdo nos é oferecido como um todo coeso, sem que sejamos capazes de dizer ou averiguar, de imediato, como teria chegado a formar-se. À semelhança da percepção, seus conteúdos possuem o caráter do que está dado, em contraste com o caráter do que é ``derivado'', ou do que é ``gerado'', próprio do sentir e do pensar. Daí resulta o caráter de segurança e de certeza do conhecimento intuitivo, o que levou Spinoza a considerar a ``scientia intuitiva'' como a forma suprema de todo o conhecimento. A intuição tem em comum com a percepção essa qualidade, cujo fundamento físico serve de base e causa à sua certeza. Igualmente se baseia a certeza da intuição num determinado estado psíquico de coisas, cuja constituição e disponibilidade ocorrem inconscientemente.

A definição apresentada por Jung esclarece vários aspectos da intuição principalmente no que tange a sua ligação com o inconsciente, por um lado, e o seu caráter de inteireza, de totalidade, por outro.

Acreditamos ser essas características que envolvem a definição dada por Croce , quando ele parte da observação de que a representação da arte, mesmo em sua forma mais altamente individual, abraça o todo e reflete em si o cosmos. E também quando afirma que, na intuição pura ou representação artística, o singular palpita pela vida do todo e que toda representação artística autêntica é ela mesma e o universo, o universo naquela forma individual, e aquela forma individual enquanto universo.

Nesse sentido, a representação artística formula de maneira individual, o artista dá forma à sua obra de modo único e singular. Em cada criação artística, em cada palavra do poeta, afirma Croce, está todo o destino humano, todas as esperanças, as ilusões, as dores, as alegrias, as grandezas e as misérias humanas. Para o autor, dar forma artística ao conteúdo sentimental é dar-lhe a marca da totalidade, assim, universalidade e forma artística se fundem numa só coisa. Em outras palavras, a forma artística, individualizando, harmoniza a individualidade com a universalidade, e portanto, nesse mesmo ato, universaliza.

Consideramos que o encontro com o outro, o conhecimento profundo entre duas totalidades que se tocam mutuamente, no contexto de realização do documentário que estamos analisando, é parte constitutiva dessa matéria subjetivada feita de impressões e afetos em que o realizador do filme mergulha, num primeiro momento, nesse fluxo contínuo de impressões, nessa corrente de estímulos que atingem o seu corpo e sua alma para que se concretize a expressão artística em suas diferentes formas e matizes que traduzem a individualidade e a subjetividade de cada artista.

É através dessa subjetividade que o filme irá tomar forma, é desse caldeirão feito de impressões individuais, que emergirá a obra como um todo. As escolhas (talvez mesmo não conscientes) que envolvem a estrutura narrativa do filme - posicionamento da câmera, utilização de grandes planos abertos ou primeiros planos, o uso de entrevistas ou narração, a presença ou não do realizador em quadro, utilização da câmera na mão ou tripé, a inserção musical - têm suas raízes fincadas nessa terra fértil que é a intuição do artista, matéria prima de sua expressão única e singular.

Para avançarmos na nossa análise, é preciso considerar, primeiramente, algumas características que fundamentam e delimitam o documentário enquanto gênero. Bill Nichols16 em sua análise sobre a representação da realidade no documentário, coloca que a motivação primordial, nesse caso, é o realismo, sendo que uma das expectativas fundamentais no gênero é que os sons e as imagens tenham uma relação indicativa com o mundo histórico. Nesse sentido, prevalece a premissa de que o que ocorreu na frente da câmera não tenha sido representado em sua totalidade para a câmera.

Lembrando o que colocamos no início, uma das principais particularidades do filme documental é a de se relacionar diretamente com os fatos históricos. O ponto de partida do realizador está sempre referido a alguém, a um grupo de pessoas, uma instituição, um lugar ou manifestação cultural.

Para Bill Nichols, o ponto de vista da câmera, no caso do documental, carrega em si duas operações distintas - a mecânica, de um dispositivo para reproduzir imagens, e o processo humano, metafórico, de olhar o mundo, e que revela a subjetividade e os valores de quem a manipula. O estilo, nesse caso, estaria ligado não só a uma ``visão'' ou perspectiva do mundo como também seria um testemunho da qualidade ética dessa perspectiva e da argumentação que ela carrega consigo.

Podemos acrescentar o ponto de vista artístico que nos parece de fundamental importância quando se pensa a realização do documentário, no sentido de considerá-lo sempre como obra carregada de significado estético. Lembrando Benedetto Croce, ``toda expressão pressupõe alguma impressão subjetiva, individual. Expressões particulares pressupõem impressões particulares. Mas esse pré-requisito genérico não reduz a palavra, ou imagem (grifo meu), poética à mera reprodução dos estímulos que chegam ao indivíduo. A expressão concretiza-se em imagens verbais, ou fílmicas (grifo meu), formas significantes que interpretam o estímulo, o qual bateu sem nome à porta do artista.''17

O ponto de vista do realizador será sempre subjetivo, único, mediado pela sua visão de mundo e sua sensibilidade artística. A relação subjetiva, singular, do realizador com o mundo histórico, objeto do seu discurso, é fundamental na configuração do documentário, pois é através dela que irá se delinear a obra.

Do ponto de vista do espectador esse nexo com o mundo histórico se configura na expectativa fundamental de que os sons e as imagens tenham sempre uma relação indicativa com os fatos. Como espectadores, aponta Bill Nichols, confiamos que o que ocorreu na frente da câmera tenha sofrido pouca ou nenhuma modificação para ser registrado. A literalidade no documental está centrada em torno do aspecto que as coisas tem no mundo como um índice de significado. O espectador estabelece um modo característico de compromisso ligado ao reconhecimento da realidade histórica, por um lado, e o reconhecimento de uma argumentação sobre essa realidade, por outro lado.

Considerando o documentário como sendo fundamentalmente o resultado da interação do realizador com determinada realidade, com um outro com quem ele entra em relação, podemos dizer que a fonte onde bebe o documental se encontra no âmbito do inter-humano. É dentro desse território que o filme irá se tecendo enquanto narrativa, sendo que cada escolha no entrelaçamento dos elementos de linguagem é uma opção singular do realizador, que dependerá de sua sensibilidade artística. É na dinâmica da relação do cineasta com o outro que o filme se instaura e se fundamenta.

Acreditamos que a relação que se estabelece entre o realizador e o sujeito do filme será uma das fontes importantes na qual a intuição do artista irá mergulhar para trazer à tona conteúdos e percepções que irão participar efetivamente de sua criação artística.

Um dos nossos objetivos nessa pesquisa é delinear e discutir os pressupostos e as condições para que se estabeleça um verdadeiro encontro na realização do documentário, no sentido de fazer emergir uma relação verdadeira, de descoberta genuína, aquela que introduz o novo, que será lançada e introjetada pela intuição do artista na sua matéria subjetivada e que estará presente no momento de sua expressão.

O Encontro

``Qualquer que seja em outros campos o sentido da palavra verdade , no campo do inter-humano ela significa que os homens se comunicam um-com-o-outro tal como são. Não importa que um diga ao outro tudo que lhe ocorre, mas importa unicamente que ele não permita que entre ele e o outro se introduza sub-repticiamente alguma aparência.'' Martim Buber

Iremos buscar, primeiramente, em Martim Buber algumas referências para trazer luz à nossa discussão sobre as condições para que um `` diálogo genuíno'' se estabeleça entre os homens. Sua filosofia do diálogo, da relação, "não é constituída por conceitos abstratos mas é a própria experiência existencial se revelando. Buber efetua uma verdadeira fenomenologia da relação, cujo princípio ontológico é a manifestação do ser ao homem que o intui imediatamente pela contemplação. A palavra, como portadora do ser, é o lugar onde o ser se instaura como revelação.''18

Em seu primeiro livro, ``Eu e Tu'' , editado em 1923, Buber lança as bases de sua filosofia dialógica, se debruça na investigação do ``inter-humano'', onde o diálogo acontece. Para o autor, a palavra proferida é uma atitude efetiva, eficaz e atualizadora do ser do homem. Ela é um ato do homem através do qual ele se faz homem e se situa no mundo com os outros. A intenção de Buber é desvendar o sentido existencial da palavra que, pela intencionalidade que a anima, é o princípio ontológico do homem como ser dia-logal e dia-pessoal e é através dela que o ser se revela.

Buber faz uma distinção entre uma conversação genuína e o palavreado - ``a maior parte daquilo que se denomina hoje entre os homens de conversação deveria ser designado, com mais justeza e num sentido preciso, de palavreado''.

``Em geral os homens não falam realmente um ao outro mas, cada um, embora esteja voltado para o outro, fala na verdade a uma instância fictícia, cuja existência se reduz ao fato de escutá-lo.''19

Para o autor, a palavra dirigida instaura o inter - humano , o campo entre duas totalidades que se tocam mutuamente. Uma fala só é verdadeira se nela descubro o outro e nessa medida ele se constitui para mim, eu o encontro e o confirmo, coloca Buber. É na relação que os seres se revelam e se confirmam e é a partir da linguagem que o encontro se realiza. É no dinamismo concreto que se instaura na conversação, no movimento desencadeado entre o falar, responder e o escutar que os seres se conhecem a si mesmos e aos outros, se revelam e são revelados.

Buber acredita que a linguagem só é autêntica na relação, no encontro, quando ela possibilita o acesso ao ser, que se torna realmente homem na revelação do encontro.

O que o autor chama de dialógico não é apenas o relacionamento dos homens entre si, mas é o seu comportamento, a sua atitude um para com o outro, cujo elemento mais importante é a reciprocidade da ação interior, sendo que , numa situação dialógica, o homem que está face à nós nunca pode ser nosso objeto pois sempre estaremos na relação com ele.

`` O maior mérito que cabe a Martim Buber está no fato de ter acentuado de um modo claro, radical e definitivo as duas atitudes distintas do homem face ao mundo ou diante do ser , que se traduzem pela palavra - princípio EU-TU e pela palavra - princípio EU-ISSO. A primeira é um ato essencial do homem, atitude de encontro entre dois parceiros na reciprocidade e na confirmação mútua. A segunda é a experiência e a utilização, atitude objetivante. Uma é a atitude cognoscitiva e a outra, atitude ontológica.''20

A atitude ontológica é aquela ligada à essência de cada um e aponta para o que existe de singular, seja em cada um individualmente, seja do ponto de vista da relação, que se traduz no encontro entre singularidades. A atitude cognoscitiva é aquela que objetiva, que atua no plano do particular, do mundo objetivo, que pode ser analisado e quantificado, do mundo onde se pode partir de análises e se chegar a conclusões definidas.

Buber considera que a relação com o TU é imediata, não mediada. Entre o Eu e o TU não se interpõe nenhum jogo de conceitos, nenhum esquema, nenhuma fantasia e a própria memória se transforma no momento em que passa dos detalhes para a totalidade. Entre o EU e o TU não há fim algum, nenhuma avidez ou antecipação, e a própria aspiração se transforma no momento em que passa do sonho à realidade. No modo EU-TU a entrega é total, as alteridades se encontram e se reconhecem na conversação genuína e surge a palavra de cada um ou o silêncio, a espera silenciosa da palavra não formulada, indiferenciada, pré-verbal.

Cabe aqui introduzir algumas idéias que o psicoterapeuta Carl Rogers criou ao longo do seu trabalho de terapia centrada no cliente desenvolvido na década de 40. Ele acreditava que as pessoas necessitavam de uma relação na qual seriam aceitas, sendo que as habilidades que o terapeuta rogeriano utiliza são a empatia e a consideração positiva incondicional. Para Rogers, a fronteira entre a psicoterapia e a vida comum é necessariamente tênue. Se a aceitação, a empatia e a consideração positiva constituem as condições necessárias e suficientes para o crescimento humano, então, considerava que elas deveriam da mesma forma estar presentes nas relações de ensino, amizade e vida familiar.

Carl Rogers, ao discutir as posturas possíveis na relação terapêutica, escolhe para si aquela em que os sentimentos e o conhecimento se fundiam numa experiência unitária que é vivida em vez de ser analisada, cuja consciência é não reflexiva e em que sou mais participante do que observador.

Para o autor, a essência da terapia é uma unidade de vivência entre o cliente e o terapeuta. Quando há essa unidade completa, essa singularidade, essa plenitude de vivência na relação, Rogers considera que, então, `` esta alcança a qualidade de fora desse mundo, uma espécie de sentimento de êxtase na relação na qual o cliente e eu emergimos no fim da sessão como quem sai de um poço ou de um túnel. Dá-se nesses momentos uma verdadeira relação Eu-Tu, para empregar uma expressão de Buber , uma vivência atemporal da experiência que existe entre o cliente e eu.''21

Tanto Buber quanto Rogers apontam em direção ao inter-humano, onde se instaura a entrega na relação, uma aceitação do outro em sua totalidade, a fluidez do encontro, e uma abertura para a experiência, onde nada está previsto de antemão, onde tudo acontece no aqui e agora, no processo de tornar-se.

A esfera do inter-humano nos interessa na medida em que consideramos a relação do realizador do filme documentário e o sujeito com o qual ele estabelece um contato, e que será o fio condutor de seu filme, como uma relação entre duas totalidades que se dão a conhecer. Em se tratando do documentário analisado aqui, que se refere diretamente á alguém ou à um grupo de pessoas e que fundamenta a sua narrativa através de depoimentos e entrevistas, obtidas do contato direto do diretor com essas pessoas, o aspecto dialógico dessa situação se torna fundamental na investigação que aqui empreendemos.

Se consideramos que o documentário está fundado na relação que se estabelece entre os sujeitos envolvidos no processo de sua realização é preciso fazer uma reflexão sobre a qualidade desse diálogo e sua natureza, ou em outras palavras, tentar desvendar a essência que funda esse contato.

Argumentamos anteriormente que desse contato depende, inclusive, as impressões e emoções que irão constituir o ponto de partida do artista ao buscar em sua intuição os caminhos que darão forma à obra. Também afirmamos que a obra de arte é feita de subjetividades e dialoga através dessas subjetividades quando abordamos a relação da obra acabada com o espectador. Mas podemos afirmar aqui que isso também é verdadeiro quando consideramos a relação do cineasta e o sujeito do filme. Essas duas subjetividades têm de conhecer-se mutuamente para que dessa interação resulte algo novo, vivo, que traga à tona uma descoberta, uma revelação que dependa exclusivamente desse encontro.

Nesse sentido, a esfera do inter-humano no contexto do documentário e o caráter dialógico da relação que se estabelece entre o realizador e o ``outro'' podem ser considerados como matérias que constituem o centro nevrálgico por onde passam muitas das ramificações que constituem o corpo do filme como um todo.

E para que a qualidade desse contato não fique na dependência do acaso ou de fatores que, muitas vezes, nos passam desapercebidos, quando empreendemos a realização de um documentário é preciso percorrer conscientemente esse terreno, iluminando os caminhos e atalhos que nos levam para o diálogo autêntico, para a relação dialógica propriamente dita.

O encontro do realizador com o ``outro'', no filme documental está impregnado por essa questão de maneira bastante profunda. Na medida em que nos dispomos a conhecer uma determinada individualidade, diferente da nossa, temos que estabelecer um contato direto e verdadeiro, nos deixar impregnar por essa subjetividade sem conceitos preestabelecidos, para que através de nosso silêncio interior possamos nos vincular de maneira criativa com esse outro. Se essa condição não for estabelecida no encontro com o outro, é grande a probabilidade de não encontrarmos o que há de único e singular em cada experiência, em cada encontro.

Para Martim Buber, o fator decisivo do inter-humano é o não-ser-objeto, isto é, que o ``outro'' aconteça como parceiro num acontecimento da vida. ``Por esfera do inter-humano entendo apenas os acontecimentos atuais entre os homens e que dêem-se em mutualidade ou sejam de tal natureza que, completando-se, possam atingir diretamente a mutualidade; pois a participação dos dois parceiros é, por princípio, indispensável. A esfera do inter-humano é aquela do face a face, do um-ao-outro;é o seu desdobramento que chamamos dialógico''.22

Quando consideramos a situação de encontro na realização do documentário precisamos levar em conta algumas peculiaridades. Uma delas refere-se à qualidade do conhecimento entre o realizador e o outro. Independentemente da motivação que levou o realizador para o filme - seja um contrato ou uma iniciativa pessoal, ele entrará em contato, por um determinado tempo, com uma realidade diferente da dele, conhecerá pessoas das mais diversas origens e culturas com o intuito de realizar a filmagem. Isto posto, ele tem algumas alternativas em relação a como se relacionar com a situação.

Geralmente os documentários prescindem de um roteiro preestabelecido anteriormente. O que acontece, na maioria das vezes é o levantamento de uma pauta e um contato prévio com as pessoas que farão parte do filme. Isso acontece exatamente porque não é possível fechar de antemão as situações, as falas e o decorrer dos acontecimentos que estão por vir. O documentário pressupõe uma abertura para a realidade - é na relação com essa realidade que o filme vai tomando forma. Nesse sentido, quando o realizador entra em contato com a situação e com as pessoas envolvidas ele geralmente não tem em mãos um roteiro definido e fechado, cabendo à sua iniciativa o modo como vai se relacionar e conhecer essa realidade.

Realidade x Experiência - Uma abordagem dialógica

É preciso lembrar que a realidade aqui não está sendo considerada como algo pronto, acabado, definido de antemão e constituída por uma materialidade externa ao realizador já que o tipo de documentário escolhido para essa pesquisa, que se refere diretamente a alguém ou a um grupo de pessoas e que se baseia em depoimentos e entrevistas, só pode ser realizado com a participação direta do cineasta. É só na medida em que o realizador acessar essa realidade com a sua experiência, entrar em contato direto com os acontecimentos que a sua vivência poderá nortear a construção do filme enquanto discurso.

Num primeiro momento, a questão que se coloca é a de como ultrapassar a tênue linha que separa a aparência da verdadeira essência das coisas. No caso aqui, como entrar numa relação que seja autêntica, na qual se estabeleça uma conversação genuína, uma conversação que pressupõe um encontro integral das partes envolvidas.

Buber lança alguma luz sobre essa questão quando aponta alguns dos pressupostos para o surgimento de uma conversação genuína. O primeiro, como já foi dito, é o fato de que cada um veja o seu parceiro como ele precisamente é, de maneira única e própria. Isso significa que cada um deve se colocar de maneira autêntica, sem querer parecer aquilo que não é , sem se preocupar com sua imagem como confirmação de si. Essa postura implica em não ter expectativas pré-concebidas em relação a si e ao outro.

Analisada no contexto da realização do documentário essa colocação nos remete à situação do realizador face a face com o(s) sujeito(s) envolvido(s) no filme. Se uma das preocupações fundamentais é ultrapassar o nível da aparência objetiva e descobrir a essência que se revela quando atingimos a subjetividade de cada um, a sua maneira singular e única de existir, então é preciso pensar na postura do realizador no seu encontro com o outro como um ponto de partida determinante nos acontecimentos.

A abordagem dialógica requer uma mudança de comportamento frente ao outro no sentido de se desfazer de expectativas e noções preconcebidas à seu respeito e caminhar em direção ao que Buber aponta como o principal pressuposto para o surgimento de uma conversação genuína - que cada um veja seu parceiro como precisamente é, descobrindo o outro enquanto totalidade, unicidade e concretude, sem abstrações que o reduzam.

Essa mudança de comportamento implica também numa postura integral, num olhar não redutor, e sim globalizante. Redutor seria o olhar que quer reduzir a multiplicidade da pessoa à características desmembráveis. Globalizante, no sentido de uma percepção totalizadora, que percebe o outro enquanto subjetividade única e independente. Dentro dessa perspectiva é que se concretiza a parceria entre as partes.

Tendo em vista a busca da conversação genuína e de um encontro verdadeiro (no sentido buberiano) entre o realizador e o sujeito do filme podemos considerar de fundamental importância que as premissas apresentadas por Buber - o não ser objeto, a parceria entre as partes, e a autenticidade sejam incorporadas na postura do realizador frente aos acontecimentos durante a realização do documentário.

Considerar o outro como sujeito e não como objeto - dentro dessa perspectiva nos diferenciamos de uma postura de distanciamento científico, de não envolvimento com o objeto de estudo, que teria como meta uma percepção objetiva e imparcial do outro, e nos aproximamos de uma postura dialógica que tem a interação como pressuposto de um conhecimento verdadeiro, da revelação das singularidades de cada um. Do ponto de vista dialógico, o sentido não está nas coisas e nem tampouco ele está dentro das coisas, o sentido aparece entre nós e as coisas.

Dessa maneira, o documentário se transforma em possibilidade de encontro, de conversação genuína, de parceria. Para realizar um documentário o cineasta entrará em contato com pessoas que, na maioria das vezes, ele ainda não conhece pessoalmente, mas já tem alguma informação prévia a seu respeito.

Esses dados preliminares podem ser confundidos com o conhecimento do outro, no sentido de levar o realizador a acreditar que conhece o outro de fato, o que acaba contribuindo para que ele incorpore idéias preconcebidas ou hipóteses a serem confirmadas no decorrer da relação. Nessa perspectiva, o realizador estaria apenas ``enxergando'' no outro a possibilidade de confirmação de sua hipótese, ou, em última instância, um prolongamento de si mesmo.

Em outras palavras, o outro estaria sendo considerado como objeto, como um conjunto de dados que fazem dele uma abstração. Essas informações sobre a pessoa não podem ser confundidas com o saber que se instaura na esfera do inter-humano, como revelação a partir do face-à-face, e muito menos servir de justificativa para qualquer relação de poder sobre o outro. O saber, o verdadeiro conhecimento, só acontecerá através do vínculo, na conversação genuína. Seria ingenuidade pensar que se conhece algo à respeito do outro sem entrar em relação com ele. A nossa ignorância em relação ao outro (seja esse outro uma pessoa, situação ou lugar) só cessa quando entramos em relação, quando nos abrimos para a interação. É só à partir do vínculo que poderemos ver o nosso parceiro como ele realmente é, em sua totalidade.

Carl Rogers vem acrescentar alguns parâmetros na consideração do inter-humano, do vínculo entre os homens, com alguns conceitos que se situam no plano de fenômenos que, segundo o autor, se revelam como importantes em todas as interações subjetivas.

O conceito de ``congruência'', segundo Rogers, foi elaborado para ``indicar uma correspondência entre experiência e a consciência. Pode ser ampliado de modo a abranger a adequação entre experiência, a consciência e a comunicação.

Para Rogers, a experiência refere-se ao que é experimentado pelos sentidos, é o que se passa com a pessoa, no seu interior. A experiência corresponde ao vivido. O acesso à experiência se dá por um conhecimento direto, não científico. A consciência estaria associada à percepção desse ou daquele estado experimentado, que nos damos conta. Segundo o autor, a experiência, então, refere-se aquilo que temos consciência. A comunicação corresponde ao ato da fala, à expressão daquilo que temos consciência.

O autor aponta para o fato de que a incongruência pode ocorrer entre a experiência e a consciência configurando-se uma atitude de defesa ou de uma recusa de consciência , ou ainda, pode manifestar-se entre a consciência e a comunicação, delineando-se , então, uma atitude de falsidade ou duplicidade. Se um indivíduo é, num dado momento, inteiramente congruente a sua experiência pode ser adequadamente representada na consciência e a comunicação estará em harmonia com essa experiência. A pessoa, num determinado momento de congruência plena, comunica necessariamente as suas percepções e os seus sentimentos. Evidentemente, os indivíduos diferem no seu grau de congruência e, num mesmo indivíduo, esse grau é variável conforme os momentos, dependendo do que está experimentando e da sua atitude de aceitar conscientemente a sua experiência ou se defender dela.

Quando Buber caracteriza o diálogo genuíno, por oposição ao palavreado, ele não está apenas se referindo ao diálogo como um caso particular da fala, mas do próprio fenômeno da palavra. A palavra é dialogal e, portanto, relacional. Ela nasce de um ouvir, e ela é uma resposta.

O conceito de congruência se aproxima do sentido que Buber dá à conversação genuína, ao estado de totalidade e inteireza dos parceiros para que se estabeleça um verdadeiro diálogo, para que os homens se comuniquem um-com-o-outro dentro da verdade de cada um, sem que se introduza alguma aparência. É só na medida em que os três planos apresentados por Rogers - o da experiência (o que estou experienciando nesse momento), o da consciência (ter a percepção da experiência) e a comunicação (a fala, a expressão) estejam em plena harmonia e que sejam recíprocas é que pode se dar o conhecimento íntimo entre as pessoas.

A correspondência entre a experiência, a consciência e a comunicação é outro dado importante quando analisamos a postura do realizador na sua relação com o outro. O fato do realizador se colocar de maneira integrada frente ao outro instaura a possibilidade de reciprocidade, no sentido de se estabelecer um vínculo que tenha como base a confiança mútua e uma abertura para a entrega. É só dessa maneira que poderá acontecer uma relação autêntica que tanto Buber como Rogers apontam como um aspecto fundamental da conversação genuína.

Carl Rogers, em sua experiência terapêutica, ressalta a questão da autenticidade do ser como um dos objetivos da relação terapêutica. Ele parte da expressão tirada de Kierkegaard - ``ser o que realmente se é'' - para configurar o desenvolvimento pleno da vida de uma pessoa.

Para o autor, o caminho em direção à autenticidade passa pela superação da ação que tem como referência o ``dever ser'' e o ``agradar os outros''. Nesse percurso esses parâmetros são substituídos pela busca de autodireção, uma maior abertura para a experiência e uma maior confiança em si mesmo e nos outros.

Rogers e Buber dialogam de perto no que se refere às condições para um verdadeiro encontro. Se para Buber, cada um deve se colocar de maneira autêntica, sem querer parecer aquilo que não é, para Rogers, a perspectiva da autenticidade se dá pela superação das aparências e da preocupação com idéias e expectativas pré-concebidas. Mesmo que Rogers não se refira à relação propriamente dita podemos considerar a autenticidade como pressuposto de uma relação dialógica , pois somente duas (ou mais) pessoas, livres das amarras da aparência e da expectativa em relação à si mesmo e ao(s) outro(s) são capazes de promover uma conversação genuína.

Outra condição essencial para que se estabeleça uma conversação genuína na perspectiva de Buber é ``tomar conhecimento íntimo de um homem'' . Para Buber isso significa experienciá-lo como uma totalidade e contudo, ao mesmo tempo, sem abstrações que o reduzem, experienciá-lo em toda a sua concretude.

Para que se entenda como chegar ao conhecimento íntimo de um homem é preciso compreender outros dois conceitos que Buber utiliza. O autor distingue três maneiras pelas quais podemos perceber um homem - observar, contemplar e tomar conhecimento íntimo.

``O observador está inteiramente concentrado em gravar na sua mente o homem que observa, em anotá-lo. Ele o perscruta e o desenha. E na verdade ele se empenha em desenhar tantos traços quanto possíveis.''23 Na observação, nenhuma relação é necessária entre o observador e seu objeto, pois aquele apenas reconstrói o objeto pelos seus traços característicos.

O autor continua sua análise dizendo que o contemplador não está absolutamente concentrado. Ele se coloca numa posição que lhe permite ver o objeto livremente e espera despreocupado aquilo que a ele se apresentará. Só no início pode ser governado pela intenção, tudo que se segue é involuntário. Não impõe tarefas à memória, confia no trabalho orgânico desta, que conserva o que merece ser conservado.

As duas atitudes têm em comum o fato de considerarem o outro um objeto separado deles próprios e de suas vidas pessoais e que pode ser percebido e apreendido de fora, através de uma percepção objetiva, não se colocando necessariamente a questão da relação, do vínculo. Nesse sentido, esses dois modos, se referem a acontecimentos fora de mim.

Em outras palavras, ``tomar conhecimento íntimo'' é a percepção da palavra dirigida através dos signos. Para Buber, os signos nos acontecem sem cessar, viver significa ser alvo da palavra dirigida, é preciso apenas perceber. Aquilo que me acontece é palavra dirigida. Enquanto coisas que me acontecem, os eventos do mundo são palavras que me são dirigidas. Os signos não são fatos extraordinários, são os fatos mesmos do dia a dia, é o tomar conhecimento íntimo desses signos que nos remetem às possibilidades do dialógico, do vínculo.

``Tomar conhecimento de um homem significa então, principalmente, perceber sua totalidade enquanto pessoa determinada pelo espírito, perceber o centro dinâmico que imprime o perceptível signo da unicidade e toda sua manifestação, ação e atitude. Mas um tal conhecimento íntimo é impossível se o outro, enquanto outro, é para mim o objeto destacado da minha contemplação ou mesmo observação, pois a essas esta totalidade e este centro não se dão a conhecer : o conhecimento íntimo só se torna possível quando me coloco de uma forma elementar em relação com o outro, portanto quando ele se torna presença para mim. É por isso que designo a tomada de conhecimento íntimo neste sentido especial como o tornar-se presente da pessoa.''24

Para Buber, existe ainda uma terceira condição para que se estabeleça uma conversação genuína - é que nenhum dos parceiros queira impor-se ao outro. Na verdade, o não cumprimento dessa condição implica, necessariamente, numa atitude de manipulação, que não leva em conta a subjetividade do outro.

Se não se levar em conta essa premissa na realização de um filme documental pode-se percorrer o perigoso caminho da persuasão e do convencimento. Para isso existem, no decorrer do processo de filmagem armadilhas que, muitas vezes, nem nos damos conta. Só para citar alguns exemplos, quando entrevistamos alguém, numa dada situação, basta uma pergunta formulada de maneira a conter em si uma determinada resposta para que se interrompa o fluxo da autenticidade e da verdade. Outras vezes, o simples fato de estarmos de posse do aparato técnico que acompanha a filmagem - câmera, microfone, etc. - é motivo para intimidar as pessoas ou tornar a situação artificial, perdendo a naturalidade que lhe era peculiar. É preciso encontrar o caminho para que se instaure o encontro verdadeiro, caso contrário, estaremos a meio caminho entre o simulacro e a dissimulação já que, citando Buber, por ser a conversação genuína uma esfera ontológica, constituída pela autenticidade do ser, toda invasão da aparência pode prejudicá-la.

A reciprocidade na relação é uma característica que vem se somar aos pressupostos apresentados por Buber. No diálogo, os participantes se confirmam mutuamente como pessoas, a relação é recíproca. É preciso que todos os envolvidos se tornem presentes na sua totalidade, sua unicidade, no seu centro dinâmico, para que a conversação genuína se instaure.

O autor aponta ainda a imprevisibilidade como fazendo parte da conversação genuína, ``ninguém pode saber de antemão o que é que ele tem a dizer: não é possível pré ordenar uma conversação genuína. Ela obedece, é verdade, desde o início, a uma ordem básica que lhe é inerente, mas nada pode ser determinado, o seu curso é o do espírito e alguns só descobrem o que tinham a dizer quando percebem o apelo deste espírito.''25

Essas considerações implicam em questões fundamentais quando transportadas para o plano da realização do filme documental. Uma delas é que o realizador tem que se colocar como parceiro no vínculo, como um dos participantes da conversação genuína. Não adianta apenas estar receptivo para a presença do outro, ou deixá-lo à vontade dentro da situação colocada pela filmagem, é preciso estar plenamente presente e disposto a sair de si, face ao outro e ao mundo, numa atitude de abertura, de deixar se manifestar em seu próprio centro dinâmico.

Portanto, para que se realize essa reciprocidade de maneira verdadeira, é preciso que o realizador se destitua de qualquer relação de poder frente ao outro, seja esse poder resultado de uma falsa idéia do saber sobre o outro ou de estar em vantagem em relação ao outro.

Dentro desse contexto, um dado a ser levado em conta nas relações que se estabelecem entre o realizador e o outro durante as filmagens, é o aparato técnico que acompanha a realização cinematográfica. A tecnologia, está sempre associada ao saber e ao poder por parte de quem detém os meios de produção, podendo se tornar um fator que contribui para que as relações se estabeleçam num padrão de desigualdade entre as partes envolvidas. Estar de posse da câmera pode significar, para o realizador, um controle sobre as pessoas, uma ``sensação'' de poder sobre o outro, de estar numa posição de vantagem sobre o outro. Mera ilusão, pois pensando assim se perde qualquer possibilidade de um contato verdadeiro e recíproco, já que o diálogo implica uma disposição da pessoa para fora, de encontro ao outro e ao mundo.

O modo como o realizador se relaciona com o aparato técnico pode ainda levar a outro equívoco - o de se ``esconder'' atrás da câmera e passar a olhar somente através das lentes, mediado por elas, como se a elas coubesse a revelação da realidade. Também, nesse caso, se perde totalmente a possibilidade de qualquer comunicação verdadeira e genuína, pois a relação fica restrita pela mediação técnica e não há um contato genuíno e mútuo entre as partes.

Buber se coloca a questão de saber se sempre, numa relação, a reciprocidade é total. Em sua opinião, ``todo o vínculo EU-TU, no seio de uma relação, que se especifica como uma ação com finalidade exercida por um lado sobre o outro, existe em virtude de uma mutualidade que não pode ser total.''26

O autor aponta as relações do educador e seu discípulo, por um lado, e a do psicoterapeuta e seu paciente, por outro lado, como relações nas quais a mutualidade não pode ser plenamente atingida.

No caso da relação do educador e aluno, que segundo Buber, tem como objetivo auxiliar a realização das melhores possibilidades existenciais do aluno, o professor deve apreender o aluno como essa pessoa determinada em sua potencialidade e atualidade, quer dizer, não como uma soma de qualidades específicas, tendências e obstáculos, mas como uma totalidade a ser afirmada. Isso só se torna possível quando o professor encontra o aluno como seu parceiro, em uma relação bipolar e, também, à medida que o professor experiência essa situação não só de seu lado mas também do lado do aluno, percebendo como tudo isso é para ele. A essa relação Buber chama de envolvimento. A limitação da mutualidade se encontra justamente nesse ponto, pois se a relação de envolvimento também atingir o discípulo, a relação perde a sua especificidade, que reside justamente na diferenciação de papéis entre ambos, e passa a ser uma relação entre iguais, totalmente aberta.

Dentro da relação terapêutica, ``para o terapeuta favorecer de um modo coerente a libertação e a atualização daquela unidade, em uma nova harmonia da pessoa com o mundo, ele deve estar, assim como o educador, não somente aqui no seu pólo da relação bipolar, mas também no outro pólo, com todo o seu poder de presentificação e experienciar o efeito de sua própria ação. Porém, de novo, a relação específica de cura terminaria no momento em que o paciente lembrasse e conseguisse praticar, de sua parte, o envolvimento experienciando assim o evento no lado do médico. O curar como o educar não é possível, senão àquele que vive no face-a-face, sem contudo deixar-se absorver.''27

Analisando a relação entre o realizador e o outro dentro do contexto do documentário, a questão que se coloca é saber se essa relação é, a exemplo das relações terapeuta-paciente e professor-aluno, uma relação que se especifica como uma ação com finalidade exercida por um lado sobre o outro e, portanto limitada na sua mutualidade.

Num primeiro momento, é preciso considerar que o cineasta procura o outro (ou os outros) porque quer fazer um filme a seu respeito. Nesse sentido, existe uma finalidade pré-estabelecida na relação por uma das partes envolvidas. Acontece que nesse caso, não existe uma pretensão de mudança ou transformação como aquela que caracteriza as relações do terapeuta e seu paciente e a do professor e seu aluno. O realizador do documentário pretende conhecer o outro como ele é, seu objetivo é construir uma narrativa fílmica que, de maneira singular, traduza esse outro, revele a sua história.

O tema de um documentário pode surgir de várias maneiras - uma delas é que ele seja dado ao realizador por encomenda, ou que ele se apresente como escolha própria, outras vezes, acontece que a idéia de um documentário surge depois de conhecer determinada pessoa ou grupo de pessoas com as quais o realizador teve algum envolvimento significativo e revelador. Em todos esses casos, o fato do cineasta ter como objetivo realizar o seu filme, não impede que se instaure o verdadeiro envolvimento, no sentido buberiano, entre o realizador e o outro, já que não descaracterizaria nenhum dos componentes da relação.

A Fala

Iremos buscar em Merleau Ponty algumas referências sobre o que ele considera a ``fala autêntica'' dentro de uma perspectiva fenomenológica para fazermos uma análise mais completa das possibilidades do uso da fala no documentário.

Tomamos a fala como representativa e reveladora por ser um dos pilares fundamentais sobre o qual se estrutura o filme documentário aqui analisado já que o seu caráter informativo tem como base, além do gesto, principalmente a palavra falada.

Em sua observação, o autor parte do fenômeno da fala e reconhece, primeiramente, que o pensamento, no sujeito falante, não é uma representação, isto é, não coloca expressamente objetos ou relações. Quem fala, não pensa antes de falar, nem mesmo enquanto fala - sua fala é o seu pensamento. A denominação dos objetos não ocorre depois do reconhecimento, ela é o próprio reconhecimento. Nesse sentido, a palavra, longe de ser o simples sinal dos objetos e das significações, habita as coisas e veicula as significações. A fala, naquele que fala, não traduz um pensamento já feito, mas o realiza.

Do ponto de vista fenomenológico, a fala não é ``símbolo'' do pensamento, se se entende por isso um fenômeno que anuncia um outro, pois na verdade, eles estão englobados um no outro, o sentido é tomado na palavra e a palavra é a existência exterior do sentido. É necessário que, de uma maneira ou de outra, a palavra e a fala deixem de ser uma maneira de designar o objeto ou o pensamento, para tornar-se a presença deste pensamento no mundo sensível, não sua vestimenta, mas seu corpo.

Segundo o autor, existe sob a significação conceitual das palavras, uma significação existencial, que não é somente traduzida por elas, mas que as habita e é inseparável delas. A operação da expressão faz existir a significação como uma coisa no coração mesmo do texto, quando se trata de obra literária, ela a instala no escritor ou no leitor como um novo órgão dos sentidos, ela abre uma nova dimensão à nossa experiência. Na música, acrescenta o autor, a significação musical de uma sonata, por exemplo, é inseparável dos sons que a trazem - uma vez terminada a execução, só poderemos, nas nossas análises intelectuais da música, reportar-nos ao momento da experiência ; durante a execução, os sons não são somente os ``símbolos'' da sonata, mas ela existe através deles, ela descende deles. Nesse sentido, a expressão estética confere ao que ela exprime a existência em si, ou, em outras palavras, a operação expressiva realiza a significação e não se limita a traduzi-la. O pensamento e a expressão constituem-se, pois, simultaneamente. A palavra é um verdadeiro gesto e contém seu sentido como o gesto contém o seu. É o que torna possível a comunicação.

A intenção significativa que movimenta a palavra não é um pensamento explícito, mas uma certa fala que procura se preencher, uma modulação sincrônica da existência de quem fala, uma transformação mesma do ser.

O autor chama a atenção para o fato de que, pela aparência das coisas, acreditamos ser a palavra a expressão do pensamento. O que nos faz crer num pensamento que existiria por si antes da expressão, são os pensamentos já constituídos e já exprimidos que podemos lembrar e pelos quais damos a ilusão de uma vida interior. Esses pensamentos já constituídos estão cheios de palavras, esta vida interior é uma linguagem interior. Nesse sentido, o pensamento ``puro'', afirma o autor, se reduz a um certo vazio da consciência, a um voto instantâneo.

Vivemos num mundo onde a palavra é instituída, considera Ponty. Nesse sentido, para todas as palavras do cotidiano possuímos em nós mesmos significações já formadas. Elas só suscitam em nós pensamentos segundos; estes por sua vez se traduzem em outras palavras que não exigem de nós nenhum esforço de compreensão. Assim, a linguagem e a compreensão da linguagem parecem seguir por conta própria e é no interior de um mundo já falado e falante que refletimos. Perdemos a consciência do que há de contingente na expressão e na comunicação, seja na criança que aprende a falar, seja no escritor que diz e pensa pela primeira vez alguma coisa ou em todos que transformam em palavras um certo silêncio.

Desse modo, Merleau Ponty distingue a palavra autêntica, que formula pela primeira vez, de uma expressão secundária, uma palavra sobre palavras, que forma o comum da linguagem empírica. Somente a primeira é idêntica ao pensamento. Se é palavra autêntica, ela levanta um sentido novo, como o gesto dá pela primeira vez um sentido humano ao objeto, se é um gesto de iniciação. As significações adquiridas, nesse momento, são significações novas. É necessário reconhecer, pois, como um fato último essa força aberta e indefinida de significar - quer dizer ao mesmo tempo apreender e comunicar um sentido - pelo qual o homem se transcende em direção a um comportamento novo, ou em direção ao outro, ou ainda, em direção a seu próprio pensamento através de seu corpo e de sua palavra.

Nos interessa chamar a atenção para alguns aspectos da fala autêntica apresentada por Ponty já que estamos buscando identificar o que seja um encontro pleno entre os seres. A palavra que é pensamento em ato (a palavra autêntica) só pode acontecer entre duas pessoas que se entregam mutuamente na conversação, cuja intenção significativa se encontra no estado nascente e formula pela primeira vez.

Dessa maneira, podemos aproximar a noção de fala autêntica apresentada por Ponty do conceito de conversação genuína considerada por Buber e da formulação do que seja congruência para Rogers. Os três autores apontam na direção do autêntico, do que é formulado pela primeira vez, no sentido de fazer emergir algo novo entre os seres, algo que não está dado de antemão, que traz a marca do acontecimento pleno entre duas totalidades que se tocam mutuamente.

Lembremos da distinção que Buber faz entre uma conversação genuína e o palavreado quando chama a atenção para o fato de que, em geral os homens não falam realmente um com o outro mas, cada um, embora voltado para o outro, fala na verdade a uma instância fictícia, que se reduz ao fato de escutá-lo. Essa distinção é idêntica àquela elaborada por Merleau Ponty quando diferencia a palavra autêntica da expressão secundária. Para Buber, na conversação genuína voltar-se para o parceiro se dá numa verdade total, ou seja, é um voltar-se do ser. ``O dizer é ao mesmo tempo natureza e obra, broto e formação, e onde ele aparece dialogicamente, no espaço onde a grande fidelidade respira, este dizer precisa realizar sempre de novo a unidade dos dois.''28

Ainda segundo o autor, a palavra nasce substancialmente , vez após vez, entre homens que, nas suas profundidades, são captados e abertos pela dinâmica de um elementar estar-juntos. O inter-humano propicia aqui uma abertura aquilo que de outra maneira permanece fechado.

Essa palavra que nasce entre os homens que estão conectados pela dinâmica da conversação genuína considerada por Buber é o que Ponty define como palavra autêntica em oposição a expressão secundária.

É Ponty quem afirma - Desde que o homem se serve da linguagem para estabelecer uma relação viva com ele mesmo e com seus semelhantes, a linguagem não é mais um instrumento, não é mais um meio, é uma manifestação, uma revelação do ser íntimo e do laço psíquico que nos une ao mundo e a nossos semelhantes.

Essa afirmação de Ponty poderia ser assinada por Buber tal é a semelhança com as suas proposições. Os dois consideram a linguagem como fundadora e reveladora dos seres. Em ambos a palavra pertence à esfera da relação entre os homens no sentido de revelar a condição humana na sua essência, é a revelação do ser íntimo como coloca Ponty, ou o conhecimento íntimo considerado por Buber.

O conceito de congruência elaborado por Rogers para indicar uma correspondência entre a experiência, a consciência e a comunicação numa relação humana se refere, em última análise, ao florescimento de uma palavra que integra essas três dimensões, uma palavra que brota do interior da pessoa como algo vivo e presente. Rogers afirma que, se um indivíduo é, num dado momento, inteiramente congruente, sua experiência fisiológica pode ser adequadamente representada na consciência, nunca incluindo, portanto, a expressão de um fato exterior. Isso porque, continua o autor, a consciência que está em conformidade com a experiência, sempre irá exprimir-se como sentimentos, percepções, significações derivadas de um quadro de referência interno. Se uma pessoa for profundamente congruente, toda a sua comunicação se situará necessariamente num contexto de percepção pessoal.

O sentido da congruência aproxima-se de alguns aspectos tratados por Buber quando caracteriza a conversação genuína - `` onde a palavra dialógica existe de uma forma autêntica, é pela franqueza que se deve fazer-lhe justiça. Tudo depende da legitimidade daquilo que tenho a dizer . Devo também estar atento para elevar ao nível de uma palavra interior e em seguida ao nível da palavra proferida aquilo que tenho a dizer precisamente agora mas que ainda não possuo sob a forma de linguagem.''

A fala, assim considerada, toma uma dimensão profundamente humana e existencial, onde revela-se o seu sentido relacional. Remonta ao seu sentido originário trazendo uma vibração energética que, com a banalização de seu uso foi se perdendo ao longo do tempo.

A fala autêntica adquire, nessa perspectiva, uma posição fundamental dentro do contexto da relação que se instaura entre duas subjetividades na realização do documentário. É ela que nos interessa alcançar. A fala que revela, aquela que é pensamento em ato, aquela que brota das profundezas do ser.

Representação da Fala - Cinema direto

O cinema direto foi um marco fundamental na trajetória do documentário - a distância entre o realizador e o outro (sujeito e tema do filme) se encurtou em função das possibilidades do som direto. Como consideramos anteriormente, começava ser possível deixar de falar pelo outro, através de uma narração off , e falar com o outro. A terceira pessoa do singular deu lugar à primeira pessoa, àquela que fala por si própria, de corpo presente, com sua gestualidade e entonação de voz que tornam o seu testemunho vivo e presente como nunca antes tinha sido possível. A fala assume importância crucial na constituição desse tipo de documentário, que adquire um caráter de tempo presente, de tempo flagrado em sua continuidade. O ponto de vista torna-se móvel, todos podem dar o seu depoimento, a palavra torna-se acessível.

É nesse contexto que a relação do realizador com o outro torna-se imprescindível no processo de produção do documentário , pois a interação entre as partes, que se dá principalmente na forma de entrevistas ou depoimentos, é um dos fatores que determinará o curso da narrativa do filme. À partir desse momento, o intercâmbio é flagrado dentro do próprio filme, as imagens passam a ser o testemunho visual desse encontro.

A qualidade de tempo presente é bastante intensa, os acontecimentos que irão participar do filme podem tomar caminhos diferentes segundo a interação dos agentes. Nesse sentido, a relação entre o realizador e o outro é fundamental porque é ela que vai determinar o rumo dos acontecimentos.

As entrevistas dentro do filme interativo, em contrapartida ao filme expositivo estruturado por uma narração over, são a prova da interação do realizador e o outro envolvido.

As entrevistas podem se apresentar de muitas maneiras que delineiam formas narrativas diferentes ente si. Num primeiro momento, podemos considerar a entrevista em que o realizador está presente, em quadro. A câmera, nesse caso, é testemunha do encontro e o realizador torna-se personagem do filme.

Num segundo momento, temos os casos de entrevista em que o realizador está fora do quadro:

Pode ser que o realizador não esteja em quadro porque ele também é o cinegrafista. Nesse caso, sua voz está sempre presente e o sujeito do filme fala sempre olhando para a câmera.

Quando o realizador não acumula a função de cinegrafista, pode acontecer de sua voz estar presente, mas o sujeito que fala não olha mais para a câmera mas sim em sua direção.

Outra situação é aquela em que, além de estar fora do quadro, também não ouvimos a voz do realizador. Nesse caso, o caráter de entrevista empalidece e a fala do sujeito toma a forma de depoimento.

O cinema direto não se caracteriza como um bloco monolítico no que diz respeito às suas possibilidades narrativas que resultam de diferentes modos de se relacionar com a realidade. Mas podemos afirmar que ele se caracteriza por uma atitude e uma técnica cinematográfica específicas em todas as etapas de realização do filme.

Para Gilles Marsolais29, o realizador desse tipo de documentário se caracteriza por uma atitude de observação e pesquisa. Ele encontra a substância de seu filme na vida e na sociedade. Nesse caso, para o cineasta, não se trata de ``fabricar'' a priori uma história e defini-la num roteiro fechado e decupado. Os próprios acontecimentos e a relação do realizador com eles é que vão definir o andamento do filme.

É claro que essa atitude se traduz de diversas maneiras segundo cada realizador. Alguns irão tomar notas sobre algumas idéias centrais que poderão nortear o trabalho, outros se preocuparão em delinear algumas ações possíveis que sejam representativas, outros ainda farão uma pesquisa exaustiva sobre o assunto que será abordado ou poderão imaginar um tipo de linguagem que se adapte melhor ao tema, mas nenhum terá em mãos, antes da filmagem, um roteiro pronto e decupado.

A equipe do documentário direto é bastante reduzida, compondo-se de duas à quatro pessoas, em média - o diretor, o cinegrafista, o técnico de som, um assistente. Vamos traçar, em linhas gerais, as atividades correspondentes a cada um.

O cinegrafista do documentário não tem a sua atividade programada e definida como no caso da ficção. Ele não sabe de antemão o que vai acontecer e como vai acontecer. Na maioria das vezes, ele tem de se adaptar às condições dadas pelo lugar e pelas pessoas presentes. Poucas são as vezes em que será possível fazer uma iluminação especial e não existe a possibilidade de estar com a câmera posicionada de acordo com uma decupagem definida anteriormente. A realidade é que será o seu ponto de partida. O seu esforço é múltiplo - estar atento aos acontecimentos, decidir muito rapidamente como enquadrá-los no sentido de obter uma imagem que capte o essencial e seja coerente com as premissas do filme discutidas com o diretor anteriormente, quando é impossível para o diretor falar diretamente com ele, principalmente se está filmando em som direto.

A responsabilidade do técnico de som recai exatamente no que foi a inovação do cinema direto - a captação sincrônica entre imagem e som . A escolha do microfone adequado à cada situação é muito importante, sendo que o direcional é o mais usado por permitir selecionar os sons que interessam. O técnico de som precisa escolher os sons que irá privilegiar à cada instante, seguindo os movimentos da câmera, para que esses tenham uma presença que corresponda às imagens.

Nesse contexto, a principal função de um diretor é traduzir suas intenções, transmitir o que considera essencial naquilo que irá ser filmado, no sentido de manter a equipe em sintonia com determinada idéia, sentimento ou percepção, criando uma coesão do ponto de vista à ser perseguido.

Ao diretor cabe estar sempre atento aos acontecimentos e suas possibilidades dentro da trajetória do filme como um todo. Ele tem de se relacionar, a todo instante, com a vida que está em andamento e que se reinventa em função do próprio fazer fílmico. Ele não dirige atores ou personagens definidos num roteiro, ele participa diretamente da realidade que está em curso, de cada instante presente e é nesse sentido que a sua relação direta com o outro é criadora e fundadora do filme.

Dentro do contexto de preocupação estabelecido por essa pesquisa está exatamente a relação que o diretor instaura com o sujeito do filme como determinante para a realização do documentário. A postura que ele assume perante o outro, o vínculo que ele estabelece com ele é o cerne de nossa discussão, já que acreditamos que a qualidade dessa relação é fundamental no sentido do filme conter uma pulsação própria que traduza algo de singular e intransferível através de seus sons e suas imagens.

O Tempo

``Assim como o escultor toma um bloco de mármore e, guiado pela visão interior de sua futura obra, elimina tudo que não faz parte dela - do mesmo o cineasta, a partir de um ``bloco de tempo'' constituído por uma enorme e sólida quantidade de fatos vivos, corta e rejeita tudo aquilo que não necessita, deixando apenas o que deverá ser um elemento do futuro filme, o que mostrará ser um componente essencial da imagem cinematográfica.''Andrei Tarkovski

O cinema nasceu ``como um meio de registrar o movimento da realidade em sua concretude e especificidade, no interior do tempo e único; de reproduzir indefinidamente o momento, instante após instante, em sua fluida mutabilidade - aquele instante que somos capazes de dominar ao imprimi-lo na película. É isso que determina o veículo cinematográfico. A concepção do autor torna-se uma testemunha viva, humana, capaz de emocionar e cativar o público só quando conseguimos lançá-la na impetuosa corrente da realidade, que apreendemos com firmeza em cada momento concreto e tangível a que damos expressão - único e irrepetível em textura e sentimento... De outra forma, o filme está condenado a morrer antes mesmo de ter nascido.''30

Essa observação de Tarkovski, cineasta russo, nos remete à principal característica da arte cinematográfica - o movimento em sua duração ou, em outras palavras, o movimento transcorrido em um intervalo de tempo. Tempo e espaço se cruzam no horizonte do cinema, formando a tessitura do filme.

O cineasta, cuja obra está impregnada pela ``discussão'' da noção de tempo, aponta como obra inauguradora do cinema o filme `Lárrivée d'un Train en Gare de La Ciotat, feito por Auguste Lumière e resultado da invenção da câmera, da película e do projetor. Pela primeira vez na história das artes o homem descobria um modo de registrar uma impressão do tempo. Tarkovski considera que nesse momento surgia um novo princípio estético no sentido de que se instaurava a possibilidade de reproduzir na tela esse tempo e de repeti-lo quantas vezes se desejasse, conquistara-se uma matriz do tempo, como coloca o autor.

``O tempo, registrado em suas formas e manifestações reais: é esta a suprema concepção do cinema enquanto arte, e que nos leva a refletir sobre a riqueza dos recursos ainda não usados pelo cinema, sobre seu extraordinário futuro.'' 31Foi esse o ponto de partida de Tarkovski no caminho percorrido pelo seu cinema - o tempo em forma de evento real.

Para o autor o cinema é capaz de operar com qualquer fato que se estenda no tempo. A imagem cinematográfica consiste, basicamente, na observação dos eventos da vida dentro do tempo, organizados em conformidade com o padrão da própria vida e sem descurar das suas leis temporais. O elemento básico do cinema, nesse sentido, é a observação direta da vida.

Essa consideração de Tarkovski vem se somar à caracterização que fizemos do filme documental como sendo uma representação do mundo histórico onde o outro está sempre presente. Nesse sentido, ainda citando o autor, podemos afirmar que o cinema é, antes de tudo, um registro da impressão do tempo.

No filme documentário esse tempo está diretamente ligado ao tempo do outro, esse outro real em carne e osso que se expressa de maneira única e singular. Podemos mesmo afirmar que, perceber e traduzir o tempo do outro, é um dos fundamentos do documentário.

Tarkovski aponta para o fato de que a concretude da imagem cinematográfica nos é dada através das formas naturais e reais da vida percebida pelos sentidos da visão e da audição. A pureza do cinema está justamente na capacidade dessas imagens de expressar um fato específico, único e verdadeiro. O autor segue esse caminho afirmando que a imagem torna-se verdadeiramente cinematográfica quando não apenas vive no tempo, mas quando o tempo também está vivo em seu interior, dentro mesmo de cada fotograma. A força do cinema reside no fato de ele se apropriar do tempo, junto com aquela realidade material à qual ele está indissoluvelmente ligado.

Esse pulsar do tempo interno é que nos interessa. No tipo de documentário aqui analisado, uma das marcas mais representativas da presença do outro acontece através da fala, seja por entrevistas, depoimentos ou ainda por uma narração em off. A fala do outro marca o seu tempo. A expressão de um rosto ou de um corpo enquanto a fala acontece, suas pausas para pensar, refletir, duvidar ou mesmo se contradizer configuram a dimensão da fala, instaura o tempo do inter-humano, o tempo do pensamento se formando, brotando e vindo à tona. Ouvir o silêncio é fundamental para se compreender a totalidade da fala.

A duração da fala no tempo precisa ser respeitada em sua integridade, é preciso levar em conta o tempo da expressão que está se formando, do pensamento que está sendo formulado.

Se, num primeiro momento o importante são as condições para que se estabeleça um diálogo verdadeiro, para que surja a palavra autêntica, aquela que formula pela primeira vez, num segundo momento, a importância se desloca para a sua representação no filme.

A representação da fala precisa conter esse pulsar interno da expressão de quem está falando.

Representação do Tempo

Até agora nos preocupamos com as condições necessárias para que se instaure uma relação dialógica entre o realizador e o outro por acreditarmos que a qualidade dessa relação é determinante para o processo de realização do documentário em questão. Por isso a postura do cineasta e sua relação com o sujeito do filme foi analisada tendo como pano de fundo os conceitos de conversação genuína, fala autêntica, congruência e autenticidade e parceria vistos pela perspectiva de Buber, Merleau Ponty e Rogers.

A questão que se coloca agora é como imprimir na película esse encontro, como passar da relação, propriamente dita, para a sua representação cinematográfica? Como manter e representar esse pulsar interno das ações e falas dos sujeitos ?

Primeiramente, podemos apontar como fator dominante da imagem cinematográfica ``o ritmo, que expressa o fluxo do tempo no interior do fotograma.''32

Consideramos essa afirmação, feita pelo cineasta no contexto do cinema de ficção, absolutamente válida em se tratando do filme documentário, no sentido de considerar que em cada fotograma já está impresso o ritmo dado pelo realizador dentro de cada tomada, cada enquadramento e na duração das ações dentro de cada plano rodado. Dessa maneira, a imagem cinematográfica nasce durante a filmagem e existe no interior do quadro.

Tarkovski considera que o tempo específico que flui através das tomadas cria o ritmo do filme, e o ritmo não é determinado pela extensão das peças montadas, mas, sim, pela pressão do tempo que passa através delas.

Essa observação vem reforçar a importância da qualidade da relação entre o realizador e o outro no documentário. Essa ``química'' entre os sujeitos se traduz, em termos cinematográficos, em imagens prenhes de fluxo temporal. A transparência da imagem, sua vibração interior depende da vibração do que está acontecendo na realidade. A imagem não inventa, traduz. Não podemos perceber a totalidade do universo, mas uma imagem carregada de poesia é capaz de exprimir essa totalidade.

O fluxo do tempo precisa ser filmado e precisa manter-se representado. No momento da filmagem, ele se instaura quando o contato entre os sujeitos é genuíno, terra fértil onde brota a palavra autêntica e onde a congruência é plena. É importante saber iniciar o plano no momento certo e, principalmente, saber quando terminá-lo para manter acesa a energia que vibra.

Na filmagem, a decisão quanto à duração do plano tendo em vista o seu fluxo de tempo interno, depende de vários fatores. Na hipótese do realizador ser também o cinegrafista, essa percepção depende somente de sua sensibilidade e percepção frente ao outro. Mas nem sempre o realizador acumula a função de cinegrafista e quando isto não acontece há que se criar uma sintonia bastante fina entre essas duas funções, já que, no documentário, a questão da improvisação, da necessidade de estar sempre atento aos acontecimentos e conseguir uma espécie de sintonia com eles, é fundamental para sua realização. As decisões do diretor, muitas vezes, se confundem com as decisões tomadas pelo cinegrafista. O olhar do diretor, muitas vezes, se confunde, ou talvez seja mais preciso dizer, funde-se com o do cinegrafista. A relação entre ambos é fundamental para que haja coesão na percepção do fluir do tempo em cada tomada. Na verdade, essa percepção é também construção desse fluir temporal, pois a câmera estará sempre escolhendo um ponto de vista para ``contar'' os acontecimentos. Numa entrevista, por exemplo, durante o depoimento da pessoa, a câmera flagra, ao se aproximar num plano mais fechado, um gesto da mão que revela uma tensão e que traz uma conotação singular ao discurso. Quando a imagem volta ao rosto já será com outra significação. O gesto da mão, de alguma maneira, trouxe uma nova perspectiva ao rosto, acrescentou-lhe uma nova vida. A conexão entre diretor e cinegrafista deve sempre apontar na direção dessa procura da vibração interna do tempo da ação para que as suas decisões construam essa harmonia.

A comunicação entre diretor e cinegrafista passa por olhares, gestos e mímicas que durante as filmagens representam verdadeiros códigos facilitadoras da conversação muda que necessariamente se estabelece. Intuição e sensibilidade são ingredientes fundamentais que, tanto um quanto outro, precisar estar acessando, para que o filme se construa com um olhar coerente e definido frente aos acontecimentos e situações que vão transcorrendo.

Não importa quais os procedimentos adotados durante a filmagem para que se decida a duração de um plano. O mais importante é que a referência para essa decisão esteja ligada à percepção do fluxo de tempo interno ao plano - esse deve ser sempre o parâmetro.

Em se tratando do documentário, o papel da montagem varia muito. As vezes, o filme é construído na moviola; suas articulações internas, o encadeamento das situações, são determinadas na sala de montagem ou edição. Mas, mesmo assim, o fluxo do tempo já está dado, a pressão do tempo presente em cada plano já está impressa. Cabe à montagem otimizar o potencial de cada tomada, perceber onde as coisas se encaixam pela sua própria dinâmica interna; os planos como que se procuram e se complementam, dando forma ao filme como um todo. Esse filme intuído, vislumbrado, antes do processo de filmagem e que agora emerge como unidade pronta e acabada.

Na verdade , o tempo impresso no fotograma, como considera Tarkovski, é quem dita o critério da montagem. A duração de um plano já está organicamente traçada no seu interior.

No processo da montagem, é preciso estar atento à mesma questão - manter o tempo sempre numa leve linha de tensão para que possamos senti-lo transcorrer. Tomemos um exemplo concreto de uma entrevista- imaginemos o rosto de uma mulher contando algo que para ela é difícil - ela fala, ela hesita, pára e pensa, volta a falar, mais uma pausa. É uma fala entrecortada, cheia de silêncios. Geralmente, as pausas sonoras, quando o rosto fica em quadro depois de falar, ou antes, ou durante, são consideradas tempo morto e cortadas na edição, principalmente em se tratando do padrão adotado pela televisão, onde pausa significa tempo perdido. O ritmo dessa ``limpeza'' é falso. Essas pausas são muito significativas, fazem parte do universo de quem fala, elas se somam ao que foi dito, deixam a imagem ``falar'' por si, expressam a essência da imagem cinematográfica. Elas constituem o tempo de quem fala. A expressão de um rosto ou de um corpo, entre as falas, pode dizer muito mais do que a palavra, pode revelar alguma emoção intraduzível mas sensivelmente visível.

A duração de um plano não pode ser uma decisão arbitrária. Acreditamos que ela esteja organicamente ligada à percepção desse tempo interno de cada tomada. Tarkovski argumenta que o tempo dentro de uma tomada se torna perceptível quando sentimos algo de significativo e verdadeiro, que vai além dos acontecimentos mostrados na tela; quando percebemos, com toda a clareza, que aquilo que vemos no quadro não se esgota em sua em configuração visual, mas é um indício de alguma coisa que se estende para além do quadro, para o infinito: um indício de vida. Sempre há mais num filme do que aquilo que se vê, pelo menos se for um verdadeiro filme. Ao registrar fielmente na película o tempo que flui para além dos limites do fotograma, o verdadeiro filme vive no tempo, se o tempo também estiver vivo nele.

O tempo real do acontecimento que, em linguagem cinematográfica se traduz no plano seqüência, feito sem cortes, muitas vezes é a melhor maneira de representar o fluxo de tempo e sua vibração contida na ação.

O Tempo Real

De que forma o cinema imprime o tempo?

Tarkovski responde a essa questão dizendo que é na forma de um evento concreto. E um evento concreto pode ser constituído por um acontecimento, uma pessoa que se move ou qualquer objeto material; além disso, aponta o autor, o objeto pode ser apresentado como imóvel e estático, contanto que essa imobilidade exista no curso real do tempo.

O tempo em forma de evento real. Nesse sentido Tarkovski aponta a essência do trabalho de um diretor como sendo a atitude de ``esculpir o tempo''. Ele compara o trabalho do diretor ao do escultor que toma um bloco de mármore e, guiado pela visão interior de sua futura obra, elimina tudo aquilo de que não necessita, deixando apenas o que deverá ser um elemento do futuro filme, o que mostrará ser um componente essencial da imagem cinematográfica.

O cinema, em sua essência, trabalha com segmentos de tempos reais impressos na película. Do ponto de vista formal, um filme é uma sucessão de `` pedaços de tempo e de pedaços de espaço.''33

Com o advento do som direto, possibilitando a captação de som sincrônico na filmagem, o cinema ganha maior consistência em relação ao grau de indexalidade da imagem.

Consideramos ``um índice como sendo um signo que se refere ao objeto que ele denota em virtude de ter sido realmente afetado por este objeto.''34

No caso do cinema documental, a dimensão sonora traz uma maior integração da imagem com a realidade que está sendo representada. O som correspondente às imagens - não falseia, ao contrário, atesta todas as nuanças de uma expressão, de um aspecto da natureza, dando uma maior consistência ao tempo real que transcorre dentro de um plano ou de uma seqüência.

O som direto dá à imagem a medida exata de seu tempo interno. Toda ação tem seu momento final, o momento onde ela já não diz. Toda ação carrega em si uma sonoridade totalmente integrada ao gesto. Toda ação produz o seu som correspondente (que pode ser o silêncio). Som e imagem se fundem carregadas de sentido interno e registrados no fluxo interno de cada fotograma.

Se o trabalho do diretor é esculpir o tempo, esse tempo impresso no fotograma, ele o faz tendo como referência o transcorrer da imagem e do som num determinado intervalo de tempo.

No documentário em som direto, o outro, aquele que se constitui no sujeito do filme, é quem carrega as marcas do processo vital interno a cada fotograma.

A possibilidade do som sincrônico trouxe uma tensão interna a cada plano, tensão essa dada pelo tempo real que flui em cada movimento, gesto ou palavra filmada. O gesto encontrou a sua verdadeira dimensão, a sua verdadeira vibração interna e a palavra proferida ganhou em autenticidade.

O cinema mudo exacerbava os seus gestos, acentuava a sua pantomima principalmente como uma forma de compensação para a lacuna que se instaurava pela falta do som que correspondesse à imagem. ``A voz ausente re-emerge em gestos e em contorções do rosto, espalha-se sobre o corpo do ator. O estranho efeito do cinema mudo na era do som está em parte ligado à separação, por meio de intertítulos, entre a fala de um ator e a imagem do corpo dele ou dela''. 35

Em sua análise sobre a voz no cinema Mary Ann Doane parte da relação entre voz e corpo como sendo fundamental - quem pode conceber uma voz sem um corpo? - questiona a autora.

Se a dublagem permitia uma aproximação maior do corpo e sua voz, o som direto trouxe à essa questão uma integração real entre o corpo que fala e a voz correspondente. A presença do corpo se torna mais integrada e sua expressão mais carregada de tempo presente, tempo que transcorre.

Mary Ann aponta para o fato de que o acréscimo do som no cinema introduz a possibilidade de representar um corpo mais cheio e organicamente unificado e ainda de confirmar o status da fala como um direito de propriedade individual.

Com o som direto isso se exacerba e o direito à voz se democratiza, o direito à palavra se torna a marca registrada do cinema direto.

Os procedimentos narrativos cinematográficos estão sempre referidos à articulação do espaço e do tempo. Se no filme de ficção essa articulação é planejada através da ``decupagem'', que vem a ser o último estágio do roteiro, no documentário, essa articulação é feita durante a filmagem e durante a montagem. É no processo de realização que vão se definindo as posições de câmera, a duração dos planos, os enquadramentos, em função dos acontecimentos que vão se desenrolando ao longo das filmagens.

Não nos interessa aqui definir regras e padrões para as diferentes possibilidades de articulação entre os planos no filme documentário. Nos interessa, sim, pensar em direções a serem perseguidas em função do que consideramos fundamental.

Podemos afirmar que o cinema, em geral, e o documentário que trabalha com o som direto e que tem o outro como tema, em particular, carregam a marca do tempo na sua constituição. O tempo é o elemento que funda o cinema, ele lhe pertence.

A imagem nunca pode deixar de ser um vislumbre da verdade e, no caso do cinema, essa verdade contem o tempo. Como coloca Tarkovski, a imagem concretizada será fiel quando suas articulações forem nitidamente a expressão da verdade, quando a tornarem única e singular - como a própria vida é.

Conclusão

A representação artística acontece num contexto individual, o artista elabora sua obra de maneira única e singular.

Lembrando algumas das considerações de Benedetto Croce, a arte abraça o todo e reflete em si o cosmos. Pela intuição pura a representação artística acontece, o singular se revela e se dirige ao todo, no sentido de que toda representação artística autêntica é ela mesma e o universo, é aquela forma individual enquanto universo.

Singular e universal se fundem na obra artística e aí é que se encontra a sua possibilidade de comunicação, a sua capacidade de emocionar diferentes pessoas em diferentes lugares e épocas.

A obra de arte só atinge essa grandeza se o artista está em conexão direta com a sua intuição. Como afirma Croce, a forma artística, individualizando, harmoniza a individualidade, e portanto, nesse mesmo ato universaliza.

Como atingir essa conexão entre o eu e o cosmos na realização do documentário, representação artística escolhida por essa pesquisa, e que depende necessariamente da relação com o outro, diferentemente de um poema ou um livro, que se caracterizam como criação mais solitária?

Concluímos que, no caso do documentário que trabalha com o encontro de dois sujeitos - o realizador e o outro, essa relação acontece no terreno do inter-humano e, portanto, implica numa abordagem dialógica, onde a postura do realizador é o ponto de partida determinante dos acontecimentos dentro da realização do filme. A qualidade dessa relação foi amplamente discutida tendo como base os conceitos da filosofia dialógica de Martin Buber, congruência e autenticidade de Carl Rogers e fala autêntica de Merleau Ponty.

A subjetividade do realizador, fundamento da sua expressão artística, está necessariamente, prenhe de impressões e afetos que nascem da relação com o outro. A qualidade da relação, a autenticidade do encontro, portanto, trazem elementos fundamentais para que se dê o conhecimento entre realizador e o outro e para que o filme consiga a universalidade da forma artística. Nesse sentido, o tipo de documentário analisado aqui começa a se constituir enquanto obra no momento do encontro.

A repercussão da obra no espectador, a sua conexão com a obra depende dela do fato de atingir uma dimensão universal enraizada na subjetividade do artista que encontra ressonância na subjetividade do espectador. As imagens repercutem em nossa alma, tornando-se um ser novo da nossa linguagem.

Bibliografia

Revistas



Notas de rodapé

... encontro1
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Multimeios do Instituto de Artes da UNICAMP como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Multimeios sob a orientação do Prof. Dr. Fernando Passos.
... 1965)2
Martin Buber nasceu em Viena em 1978. Seus estudos sobre a Bíblia e o judaísmo tiveram uma influência decisiva na teologia contemporânea. A sua filosofia do diálogo encontrada no livro Eu e Tu, publicadoem 1923, situa-se como relevante contribuição no âmbito das ciências humanas em geral e da filosofia antropologia filosófica. A filosofia de relação é o tema central de toda a sua reflexão.
... Ponty3
Ponty, M. Merleau, Fenomenologia da Percepção, Livraria Freitas Bastos, São Paulo, 1971.
... Xavier4
Xavier, Ismail, A Experiência do Cinema , Editora Graal Embrafilme, Rio de Janeiro, 1983.
...oes.''5
Xavier, Ismail, op. cit.
... Nichols6
Nichols, Bill. La Representacion de la Realidad, Editora Paidós Comunicacion Cine, Buenos Aires, 1997.
...ao.''7
Marsolais, Giles, L'Aventure du Cinéma Direct Revisitée, Cinéma Les 400 Coups, Québec, 1997.
... concretude.''8
Buber, Martin, Do Diálogo e do Dialógico, Editora Perspectiva, São Paulo, 1982.
... Morin9
Morin, Edgar, A Alma do Cinema, cap.IV - O Cinema ou o Homem Imaginário, in A Experiência do Cinema, org. Ismail Xavier, Editora Graal Embrafilme, Rio de Janeiro, 1983.
... espectador.''10
Morin, Edgar, op. cit.
...Bachelard 11
Bachelard, Gaston, A Poética do Espaço, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2000.
... Croce12
Croce, Benedetto, Breviário da Estética. Prefácio de Alfredo Bosi, Editora Ática, São Paulo,1977.
...ario''.13
Croce, Benedetto, op. cit.
... exprimir.''14
Croce, Benedetto, op. cit.
... Jung15
Jung, C. G., Tipos Psicológicos, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1976.
... Nichols16
Nichols, Bill, op. cit.
... artista.''17
Croce, Benedetto, op. cit.
...ao.''18
Buber, Martin, Eu e Tu, Tradução de Newton Aquiles Von Zuben, Editora Moraes, São Paulo,1974.
...a-lo.''19
Buber, Martin, op. cit., 1982.
...ogica.''20
Buber, Martin, op. cit., 1982.
... eu.''21
Rogers, Carl R., op. cit.
...ogico''.22
Buber, Martin, op. cit., 1982.
...iveis.''23
Buber, Martin, op. cit.,1982.
... pessoa.''24
Buber, Martin, op. cit., 1982.
...irito.''25
Buber, Martin, op. cit.,1982.
... total.''26
Buber, Martin, op. cit.,1974.
... absorver.''27
Buber, Martin, op. cit.,1974.
... dois.''28
Buber, Martin, op. cit.,1982.
... Marsolais29
Marsolais, Gilles, op. cit.
... nascido.''30
Tarkovski, Andrei, Esculpir o Tempo, Editora Martins Fontes, São Paulo, 1998.
... futuro.''31
Tarkovski, Andrei, op. cit.
... fotograma.''32
Tarkovski, Andrei, op. cit.
...co.''33
Burch, Noel, Práxis do Cinema, Editora Perspectiva, São Paulo, 1992.
... objeto.''34
Xavier, Ismail, op. cit, 1997.
... dela''.35
Doane, Mary Ann, A voz no cinema, in A Experiência do Cinema , op. cit.,1983.