Tattiana Teixeira
Faculdade Integrada da Bahia
A história da crônica no Brasil se confunde com a própria trajetória do jornalismo contemporâneo. Vinculada ao entretenimento - de um modo geral - ela começou a consolidar-se no país em meados do século XIX e, desde então, tornou-se um gênero quase obrigatório para os jornais brasileiros. Basta-nos um rápido panorama dos principais veículos nacionais: os de maior tiragem e alcance contam com cronistas em seus quadros, senão diária, ao menos semanalmente. Ligado, em sua gênese, ao folhetim - compreendido aqui não como o romance, mas como o espaço plural que abrigava uma série de textos voltados ao entretenimento - o termo crônica, durante este período, esteve associado a escritos sobre os mais variados assuntos, da política ao teatro, dos eventos sociais aos esportivos, dos acontecimentos do dia-a-dia ao universo íntimo de cada autor1. A miscelânea temática - que se explica historicamente, talvez, pelo fato de terem sido freqüentemente publicados no espaço destinado às variedades - se, por um lado, possibilitou que diferentes autores os exercitassem, por outro, pode ser apontada como fator preponderante para a falta de uma melhor definição, compreensão e valorização do gênero ao longo de sua história. Vários dos que escreveram crônica em algum momento buscaram compreende-la ou discuti-la, o que revela, ao menos, uma certa inquietação com esta modalidade discursiva tradicionalmente classificada como menor.
Um primeiro exemplo é José de Alencar. Convidado pelo amigo Francisco Otaviano2 para ser folhetinista do Correio Mercantil, em 1854, ele passa a assinar a série ``Ao correr da pena''. Naquela época, vale ressaltar, era comum os folhetinistas abordarem em suas colunas uma espécie de resenha da última semana, tendo em vista que estas seções eram publicadas aos domingos, tradicionalmente. Em um de seus primeiros textos, após fazer um breve relato da inauguração do Jockey Club, Alencar, então com apenas 25 anos, com alguma ironia faz considerações acerca do folhetim, neste caso, compreendido como a crônica dominical. Começa por mostrar-se inquieto diante da angústia de ver uma nova semana começar, imaginando o trabalho que virá pela frente, diante da sucessão de fatos a serem comentados no domingo seguinte: saraus, bailes, além das notícias. E segue classificando tal espaço como ``monstro de Horácio'' e ``desastrada idéia''3. Antes de o autor afirmar que ``enquanto o Instituto de França e a Academia de Lisboa não concordarem numa exata definição do folhetim, tenho para mim que a coisa é impossível'', pode-se, ainda, ter uma idéia do alcance do folhetim à época e a variedade de leitores que atingia. Quando argumenta que este espaço não pode ser visto como uma panacéia ou ``um dicionário espanhol que contenha todas as coisas e algumas coisinhas mais'', Alencar trata das diferentes reações e dos diferentes públicos que deveria agradar.
Mais tarde, Machado de Assis - que, em quatro décadas, foi cronista e publicou em jornais desde poemas até os romances publicados em capítulos4 - dedica-se a discutir o folhetim, termo que ele, à moda de Alencar, usa para denominar o que hoje compreendemos como crônica. E o faz mais de uma vez. Em 1859, no início da sua carreira, tentando definir ``esta nova modalidade literária'', revela, talvez com a tradicional ironia que lhe é peculiar, a relação que se estabelece entre o folhetinista e seu público dizendo que ``todos o amam, todos o admiram, porque todos têm interesse de estar de bem com este arauto amável que levanta nas lojas do jornal a sua aclamação de hebdomadário''. A vasta possibilidade de assuntos (ou a ausência deles), de algum modo também abordada por Alencar, merece a atenção e as palavras de Machado5. Anos depois, o criador de Capitu retoma o tema, desta vez dedicando algumas linhas à narrativa de uma suposta origem da crônica6, em um dos textos de sua ``Histórias de 15 dias'' .
Há alguns outros textos em que o folhetim/crônica é abordado pelo escritor. O porquê desta freqüência é difícil de explicar. Poder-se-ia dizer que a insistência em tratar de tal tema viria de uma demanda da época, pois é possível que os intelectuais estivessem a discutir, em alguma instância, aquele atrativo para vendas e público. Outra, seria a necessidade de criar um elo aproximativo com o leitor, fingindo abrir-lhes as portas para mostrar as dificuldades que rondam o dia-a-dia do cronista, contribuindo, assim, para dar-lhe maior importância e respeitabilidade. São hipóteses de difícil comprovação. O fato é que as metacrônicas também fazem parte do repertório dos escritores contemporâneos.
Um exemplo é Carlos Heitor Cony que, em 1998, publicou na Folha de S. Paulo ``A crônica como gênero e como antijornalismo''. O texto aborda questões como jornalismo e literatura, a relação entre crônica e artigo, para, enfim, defender a tese de que falta emoção ao jornalismo, mostrando as implicações desta ausência no dia-a-dia do cronista, a partir de um exemplo pessoal, a morte da cadela Mila, acontecimento que rendeu não apenas crônica, mas repercussão imediata junto a diversos leitores. O autor critica, assim, a falta de espaço no jornal para o trivial e a exigência da prestação de serviço, mesmo nas rubricas dedicadas a este `gênero menor em termos de literatura'. Para Cony, ``sobra um espaço reduzido ao cronista sem assunto, sem informação e sem outro serviço que não o estilo mais sofisticado que só será apreciado por determinados leitores e não pela massa consumidora do jornal ou revista.''7
Luis Fernando Veríssimo8, Afonso Romano de Sant'Anna9e Artur da Távolafotadic também escrevem crônicas sobre crônicas. Todos tentando valorizar esta modalidade discursiva (e o cronista, por conseqüência) ou abordar aspectos relacionados à sua produção/elaboração, do mesmo modo como fizeram Machado e Alencar, no passado. A necessidade de legitimação do gênero, portanto, permanece, mesmo depois de mais de 150 anos de presença quase obrigatória nos veículos brasileiros. Companheira de milhares de leitores, a crônica consolidou, ao longo de sua história, vários escritores brasileiros e prova disto é que, desde o século XIX, muitas delas foram reunidas em livro algum tempo após a publicação nos jornais. Foi assim com os folhetins de José de Alencar, republicados em 1874, bem como com as crônicas de João do Rio11 ou Mendes Fradique, pseudônimo de José Madeira de Freitas, que teve sua produção diária na Gazeta de Notícias reunidas em três obras lançadas em 1923, 1925 e 192812 e Mario de Andrade, entre outros. Ou seja, a prática de dar ao aparentemente efêmero a permanência da arte não é algo novo, embora boa parte da teoria que se produziu sobre a crônica tenha dificuldade em estabelecer a relação que ela tem com o jornal e com a literatura, a um só tempo: transitória e perene, paradoxal, portanto. Indiscutível, porém, é que o sucesso nos jornais repete-se nas obras literárias e exemplos não nos faltam. Carlos Drummond de Andrade, Rubem Braga, Carlos Heitor Cony e Luis Fernando Veríssimo são alguns deles.
Esta facilidade de estar em dois espaços aparentemente opostos intriga quando se trata de compreender as crônicas e instiga tanto estudiosos quanto os próprios cronistas. Sua aparente efemeridade não se compara à matéria jornalística -a publicação em coletâneas e afins é uma prova disto- e sua ligação com os acontecimentos do cotidiano dificulta, para alguns, a classificação enquanto literatura ou arte, de um modo geral. Híbrida é como muitos a denominam e a alcunha de gênero menor se perpetua a partir desta aparente indefinição conceitual.
Estas crônicas que ganharam vida com o advento dos folhetins têm como características o ritmo rápido - onde o texto flui sem subterfúgios e bem ao gosto da agilidade exigida pelos ledores de periódicos -, a visceral relação com o cotidiano - compreendido aqui como as circunstâncias que perpassam a vida em sociedade -, a presença efetiva do autor como sujeito ativo que dialoga permanentemente com o seu leitor e a brevidade dos textos que raramente ultrapassam duas laudas. Outra característica importante é a ausência de elementos da narrativa clássica, como enredo, trama e clímax, o que se dá pela própria natureza da crônica, classificada por Coutinho como gênero `ensaístico', ou seja, como aquele em que os autores dirigem-se diretamente ao leitor, sem usar artifícios intermediários,como acontece em epopéias, novelas e romances.
Ao relatar a gênese da crônica no Brasil, Coutinho explica que o termo, no século XIX, deixou de se referir exclusivamente a um relato cronológico de acontecimentos para denominar ``um gênero literário em prosa, ao qual menos importa o assunto, em geral efêmero, do que as qualidades de estilo, a variedade, a finura e argúcia na apreciação, a graça na análise de fatos miúdos e sem importância, ou na crítica de pessoas''13. E, já referindo-se às crônicas contemporâneas, mostra como, apesar do seu estreito laço com os fatos, elas podem ser consideradas arte, uma vez que os acontecimentos do cotidiano- ao contrário do que ocorre no jornalismo -só são usados como pretexto para que o autor exercite as suas `faculdades inventivas'14.
Nas palavras de Massaud Moisés15, a crônica tem com características, além da ambigüidade, a brevidade, pois o texto é normalmente muito curto; a subjetividade, apontada como a mais importante de todas e compreendida a partir do foco narrativo sempre na primeira pessoa; o diálogo16, que é o fruto desta subjetividade e que se revela em uma espécie de conversa imaginária com o leitor; o estilo entre o oral e o literário; a temática sempre ligada a questões do cotidiano e a efemeridade, pois, para Moisés, mesmo quando reunidas em livro, as crônicas são fugazes, não têm a permanência ou a durabilidade de outras obras literárias como o romance ou mesmo o conto17.
Destas características, a que deve ser relativizada é a última, tendo em vista que há inúmeros casos de crônicas que, reunidas em livro, eternizaram-se, ganhando novo estatuto. São exemplos as obras de Drummond, Rubem Braga, Fernando Sabino. A fugacidade, entretanto, parece adequada quando aplicada às crônicas que versam sobre temas bastante específicos, pois estas precisam de uma compreensão prévia do contexto no qual foram publicadas para serem compreendidas em sua totalidade. É por isso que resgatar as crônicas do final do século XIX que tratam de aspectos políticos e econômicos da época só tem sentido na medida em que há um estudo capaz de recontextualizá-las para os leitores contemporâneos, de modo que eles possam entender o Rio de Janeiro e o Brasil do referido período, os arroubos desenvolvimentistas do advento da República e mesmo os confrontos bélicos que aconteciam em várias partes do país. O mesmo acontece com muitas crônicas de Cony ou de Veríssimo publicadas na década de 60/70: elas requerem uma compreensão do ambiente social em que foram produzidas para serem absorvidas em sua totalidade.
Esta necessidade de contextualização foi apontada por John Gledson na Introdução do livro A Semana que reúne as crônicas publicadas por Machado de Assis, em coluna homônima na Gazeta de Notícias, entre abril de 1892 e novembro de 1893 (83, ao todo). Para este autor, as crônicas pressupõem uma comunidade que detém uma carga semelhante de conhecimentos acerca de determinados assuntos e isto as faz compreensíveis para este universo de leitores. Estar fora deste grupo de comuns - o que acontece com quem lê Machado de Assis hoje -significa ficar à margem do discurso das crônicas, o que inviabiliza o seu entendimento18. Por isso, as notas explicativas tornam-se fundamentais até para que se capte o humor e as críticas presentes em muitos destes textos. Daí porque é relativamente comum estudos que têm como base as crônicas selecionadas para figurar em coletâneas de Machado ou de outros autores que versaram sobre política, caírem em armadilhas do texto, em virtude deste desconhecimento.
Em crônica publicada no dia 10 de julho de 1892, um exemplo apresenta-se já no primeiro parágrafo. Nele Machado de Assis afirma:
``S. Pedro, apóstolo da circuncisão, e S. Paulo, apóstolo de outra coisa, que a Igreja Católica traduziu por gentes, e que não é preciso dizer pelo seu nome, dominaram tudo esta semana. Eu, quando vejo um ou dois assuntos puxarem para si todo o cobertor da atenção pública, deixando os outros ao relento, dá-me vontade de os meter nos bastidores, trazendo à cena tão-somente a arraia-miúda, as pobres ocorrências de nada, a velha anedota, o sopapo casual, o furto, a facada anônima, a estatística mortuária, as tentativas de suicídio, o cocheiro que foge, o noticiário, em suma''19
As notas de Gledson possibilitam a real compreensão do sentido do texto. Aqui S. Pedro e S. Paulo longe estão de referirem-se aos personagens bíblicos, mas à antiga província de S. Pedro, que na época já se chamava Rio Grande do Sul, e ao estado de São Paulo. Naquele período ambos viviam conflitos que ocupavam o noticiário: no Rio Grande havia uma guerra civil e em S. Paulo, intensificavam-se confrontos entre italianos e brasileiros. Sem as notas, todo tipo de especulação se faz possível, e nem sempre se chega ao verdadeiro sentido da crônica política. O uso do humor e de alguns recursos retóricos dificulta a compreensão deste tipo de texto, sobretudo quando desprovidos de algo que recomponha o contexto em que foram produzidos. O próprio Machado, aliás, nos fornece uma crônica produzida em meio à censura política do final do século, em 26 de novembro de 1893, que muitos podem interpretar de modo equivocado, por não conhecerem, por motivos evidentes, aquilo que está camuflado pela fina ironia do autor. Nela, o autor simula um certo enfado diante daquilo que é abordado pelos jornais:
``Repito, que me trariam os diários ? As mesmas notícias locais e estrangeiras, os furtos do Rio e de Londres, as damas da Bahia e de Constantinopla, um incêndio em Olinda, uma tempestade em Chicago, as cebolas do Egito, os juízes de Berlim, a paz de Varsóvia, os Mistérios de ParisLua de LondresCarnaval de Veneza20
O sentido de tal afirmativa, entretanto, é bem diferente. Mais uma vez cabe às buscas de John Gledson o aval do esclarecimento. Segundo o pesquisador, ``nenhum leitor contemporâneo deixaria de perceber que a referência aos jornais não é abstrata, mas concreta -a censura era tão severa que, na tentativa desesperada de preencher as páginas dos diários, usava-se tudo: triviais fait divers, notícias estrangeiras, notícias velhas, folhetins antigos, tudo que pudesse encher os jornais que já tinham sido reduzidos de tamanho''. Se esta condição parecia óbvia para a comunidade de leitores da época, como sugere Gledson, hoje o sentido não aparece de modo tão claro, o que comprova a nossa hipótese de que há crônicas que reivindicam, para serem compreendidas, a explícita conjugação texto-contexto que raras vezes encontra-se evidente no próprio texto.
O mesmo não acontece com crônicas menos específicas, é importante voltar a frisar. Elas se eternizam porque mantêm com os acontecimentos uma relação que se dá não no campo do presente em si, do aqui e agora da política, por exemplo, mas da ficção materializada a partir deste ou daquele fato fortuito, (re) lembrado pelo autor, a partir de um enfoque pessoal. Este episódio nem sempre foi vivido, presenciado ou compartilhado de algum modo concreto com o leitor antes de transformar-se em objeto da crônica e, neste sentido, ela está mais próxima do ficcional, como sugere Moisés, ao afirmar que ``o cronista pretende-se não o repórter, mas o poeta ou o ficcionista do cotidiano, desentranhar do acontecimento sua porção imanente de fantasia''. Portanto, mesmo referindo-se ao cotidiano, o cronista, neste caso, vai além dele, perenizando a crônica a partir da ficção que cria. Sua intenção, no geral, não é escreve-la a partir de seu comentário acerca de um (ou mais) fato específico, mas da sua perspectiva enquanto observador/personagem, (re) narrando-o ou resgatando-o, mas sempre o tornando acessível (compreensível) aos leitores de qualquer época.
Estas diferenças entre grupos de crônicas justificam a necessidade de, além de um conceito, agrupa-las de acordo com aspectos específicos que ajudem, sobretudo, aqueles que as têm como fonte de estudo ou objeto de pesquisa. Para Massaud Moisés elas se dividem em dois tipos: crônica-poema21 e crônica-conto. Além disso, ele chama de pseudocrônicas os textos que, ao seu ver, mais se aproximam de ensaios ou da prosa didática, onde a idéia prevalece sobre a sensação e a emoção. Segundo Moisés, ``o cronista tece a sua malha de considerações em torno de um acontecimento, não visando a persuadir ou a fazer prosélitos, mas simplesmente a pensar em voz alta uma filosofia de vida apoiada na fugacidade cotidiana''22.
Coutinho, por sua vez, propõe cinco divisões: a narrativa, a metafísica, a poema-em-prosa,a comentário e a crônica-informação. A classificação, entretanto, longe está de ser detalhada. É, na verdade, um esboço, um ponto-de-partida23. Luis Beltrão, por outro lado, definiu a crônica como ``a forma de expressão do jornalista/escritor para transmitir ao leitor seu juízo sobre fatos, idéias e estados psicológicos pessoais e coletivos. É menos ambiciosa que o artigo e menos rígida, pois na exposição e interpretação do tema abordado não se eleva a generalizações teóricas''. Segundo o autor, este tipo de texto está diretamente vinculado à atualidade -assim como todos os gêneros jornalísticos - , tendo passado por algumas mudanças ao longo de sua história24. Para melhor compreende-la, ele propõe a divisão em dois grandes grupos. Um refere-se à natureza do assunto abordado e subdivide-se em geral, local e especializada; o outro, ao tratamento dado ao tema e tem como subdivisões as categorias analítica, sentimental e satírico-humorística25.
Para o desenvolvimento desta pesquisa, entretanto, nenhuma destas divisões pareceu-nos satisfatória. Por isso, foi criada uma nova categoria, a saber: crônica política. Esta opção deveu-se a alguns fatores, sendo que o principal deles diz respeito à ausência de uma categoria que privilegiasse as crônicas ligadas a temas políticos, nosso objeto de estudo. Mesmo a satírico-humorística, proposta por Beltrão, não pode ser aqui utilizada por abrigar temas variados -uma crônica cômica sobre um determinado artista ou personalidade pública caberia perfeitamente neste grupo e, ainda que a definição aponte para os assuntos políticos como os mais adequados para figurar neste grupo26, não há nada que os tornem exclusivos. A categoria crônica política abrange, assim, aqueles textos onde o tema principal é a política nacional/internacional utilizando, para isto, a ironia e outros recursos retóricos ligados ao humor com o firme propósito de tecer comentários críticos a determinada conjuntura e/ou governo, tomando como ponto-de-partida acontecimentos previamente noticiados pela imprensa.
Em mais de um século de existência no Brasil, portanto, pouca coisa mudou na sua estrutura básica. Tanto assim que colaborador regular da imprensa carioca, desde meados do século IXI até 1897, Machado de Assis, apesar de sempre assinar suas crônicas com pseudônimos, uma prática comum à época, ajudou a consolidar este tipo de texto e, de certo modo, um método para se abordar a política que ainda hoje é preservado. Pouco a pouco, o autor foi construindo algo que ultrapassou a barreira do estilo para se consagrar como um modo de produzir a crônica política brasileira27. Entre as características presentes já em suas primeiras obras do gênero, a constante referência aos jornais como fonte de informação, a ironia (marca registrada do autor em toda a sua produção), a presença explícita do ``eu'' que comenta os acontecimentos políticos usando os mais variados argumentos, sem a intenção de doutrinar o leitor, mas de dialogar com ele, através de uma conversa informal, como aquela que se estabelece entre amigos em um encontro casual.
A forma machadiana de escrever crônicas certamente influenciou muitos autores, entre eles Carlos Heitor Cony cuja obra também é, não por acaso, objeto desta pesquisa. Colaborador do jornal Correio da Manhã , Cony lança a sua primeira coletânea de crônicas em 1963, reunindo textos publicados entre 61 e 63 naquele jornal. Longe de ser um iniciante - ele já havia escrito alguns romances entre os quais O Ventre e Informação ao Crucificado -, o autor publica, pela Civilização Brasileira, a Arte de falar mal, título homônimo ao de sua coluna no diário carioca. Dividida em duas partes- O Antropófago sem afago e Este corpo cansado -a obra reúne textos sobre os mais variados assuntos, desde lembranças pessoais até temas relacionados à conjuntura da época.
No ano seguinte, volta a publicar uma coletânea de crônicas, O Ato e o Fato. No prefácio anuncia que ali está a sua primeira crônica política, o que demonstra um conceito muito particular desta modalidade, uma vez que em A arte... é possível ler vários textos que abordam o tema. A explicação talvez se deva ao caráter das crônicas publicadas em 64, em plena ditadura, todas verdadeiros manifestos contra o governo instalado no Brasil. As anteriores ao regime têm um tom mais ameno, embora não menos crítico, e abordam a política de modo quase tangencial, com raras exceções.
Cony inicia com estas crônicas um período de confrontos com os militares, tendo sido preso seis vezes durante o regime. Em prefácio à obra, seu editor, Ênio Silveira, após classificar o Correio da Manhã como um jornal de prestígio que iniciou, no Rio de Janeiro, o combate à ditadura e a luta pela restituição do regime democrático no Brasil, aponta o autor de Quase Memória como o jornalista que, mais do que qualquer outro, ``se transformou no panfletário que a hora exigia e a Nação esperava para lavar a face e levantar a cabeça''28.
Com ``Da salvação da pátria'' Cony começa, ao menos oficialmente, sua carreira como cronista político, à qual se dedica até os dias atuais, colaborando diariamente com a Folha de S. Paulo. Uma nova coletânea do gênero, entretanto, só foi lançada no ano 2000, reunindo crônicas sobre o primeiro mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, isto é, o período compreendido entre 1994 e 1998. Em comum com as crônicas de Machado e com aquelas publicas em 64, alguns elementos fundamentais para a crônica política, isto é, a ironia, a referência a acontecimentos de algum modo noticiados pela imprensa, a presença do autor como alguém que se posiciona criticamente diante dos fatos, o diálogo virtual com o leitor, ou monodiálogo, como prefere Massaud Moisés29.
Estas características marcam também a obra do cronista político Luis Fernando Veríssimo que começou a assinar seus textos em 1968 e publicou, em 1973, seu primeiro livro -uma coletânea que reúne crônicas, muitas delas sobre política. Atualmente, o autor está presente todos os dias em importantes veículos brasileiros como o jornal Zero Hora, de Porto Alegre, e O Estado de S. Paulo. Fenômeno de vendas, o escritor é também cartunista- autor das famosas Cobras do Jornal do Brasil -e popularizou-se através de personagens como o Analista de Bagé, Ed Mort e a Velhinha de Taubaté.
Através da análise da obra destes autores foi possível, portanto, comprovar uma hipótese de trabalho que norteia as nossas pesquisas, isto é, historicamente, desde o século XIX, há poucas mudanças no modo de `fazer' crônica política no Brasil, embora não haja uma regra para a redação deste tipo de texto formalmente elaborada. Entre as primeiras crônicas de Machado de Assis e as mais recentes de Veríssimo, por exemplo, há elementos muito próximos que vão além da temática, apesar de todas as mudanças vividas pela imprensa brasileira desde os seus primórdios.
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