Antonio Albino Canelas Rubim1
O espetáculo tem uma história de relacionamento com o poder político e a política que se confunde com a existência mesma dessas modalidades de organização social e do agir humano. A plêiade de exemplos possíveis de acontecimentos históricos, nos quais essas longas relações comparecem, não só inviabiliza sua enumeração exaustiva, como também torna desnecessária a citação de alguns deles, pois, com extrema facilidade, nossa memória histórica pode ser assaltada por inúmeros episódios, nos quais espetáculo, poder político e política aparecem em vital interação. Na bibliografia, disposta ao final deste trabalho, encontram-se indicados estudos sobre alguns desses episódios, considerados emblemáticos.
A rigor, pode-se afirmar, sem medo de errar, uma premissa constitutiva desse texto, o espetáculo como um momento e um movimento imanentes da vida societária, de maneira similar às encenações, ritos, rituais, imaginários, representações, papéis, máscaras sociais etc. Portanto, o espetáculo deve ser compreendido como inerente a todas sociedades humanas e, por conseguinte, presente em praticamente todas instâncias organizativas e práticas sociais, dentre elas, o poder político e a política.
A questão a ser enfrentada não diz respeito então aos relacionamentos, historicamente existentes, entre espetáculo, poder político, política e vida em sociedade, mas a uma espécie de atualização desse problema: como o espetáculo, o poder político e a política se relacionam em uma nova e contemporânea circunstância societária, estruturada em rede (Castells, 1996-1998) e ambientada pela mídia (Rubim, 2000 e 2001)?
A caracterização da sociabilidade contemporânea tem demandado complexos e multifacetados esforços de reflexão, que apresentam muitas discrepâncias, mas, simultaneamente, contêm algumas convergências, dentre elas o reconhecimento do significativo lugar ocupado pela comunicação e pela informação na conformação da sociedade capitalista contemporânea. No âmbito dessas reflexões, considerado o foco de interesse específico do presente texto, certamente aquela empreendida por Guy Debord, em seus livros La société du spectacle (1967) e Commentaires sur la société du spectacle (1988) se destaca. O caráter inaugural do livro de 1967, seu impacto na época e o renovado interesse pela obra de Debord e da Internacional Situacionista na atualidade, de imediato, apontam a importância desse autor como inaugurador de uma reflexão sobre o espetáculo, realizada em sintonia fina com a contemporaneidade.
Ainda que, em um livro, escrito ao estilo manifesto, seja difícil exigir e buscar um conceito rigoroso e nitidamente formulado de espetáculo, dois eixos interpretativos ganham destaque e podem servir de âncora para compreender a concepção de espetáculo, conforme a construção teórica de Debord.
Um desses eixos aponta o espetáculo como expressão de uma situação histórica em que a ``mercadoria ocupou totalmente a vida social'' (Debord, 1997, p.30). Espetáculo, mercadoria e capitalismo estão umbilicalmente associados. Desse modo, a sociedade do espetáculo pode ser interpretada como conformação avançada do capitalismo, como a etapa contemporânea da sociedade capitalista. Guardadas peculiaridades e diferenças, a elaboração de Guy Debord pode ser aproximada, como muita probabilidade, àquela trabalhada por alguns autores contemporâneos que pensam a sociedade atual como a modalidade contemporânea do capitalismo, marcada pela intensa presença e convergência da comunicação, da informação, das telecomunicações, da informática e pela aceitação de que elas tornaram-se as mercadorias diferenciais, as zonas privilegiadas de acumulação e os setores de ponta do desenvolvimento científico e tecnológico dessa etapa do capitalismo.
O outro eixo interpretativo, que interessa sobremodo à escritura deste texto, a anunciada separação entre real e representação. Tal cisão, consumada na contemporaneidade, inaugura a possibilidade da sociedade do espetáculo. Nela, as imagens passam a ter lugar privilegiado no âmbito das representações. Nas palavras de Debord: ``O espetáculo, como tendência a fazer ver (por diferentes mediações especializadas) o mundo que já não se pode tocar diretamente, serve-se da visão como sentido privilegiado da pessoa humana'' (Debord, 1997, p.18). Entretanto, ``o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens'' (Debord, 1997, p.14). A emergência de uma sociedade do espetáculo depende assim desta ``separação consumada'', mas requer uma outra condição: a autonomização da representação frente ao real. ``Sempre que haja representação independente, o espetáculo se reconstitui'' (Debord, 1997, p.18).
A perspicácia das formulações, tornando-as capazes, em afinidade eletiva, de vislumbrar atentamente os movimentos do contemporâneo, sem dúvida, se constitui em um dos pontos de destaque da obra de Guy Debord e reafirma a atualidade de suas reflexões. Isto não pode significar, no entanto, a aceitação integral, sem mais, de sua elaboração teórica. Além da flutuação conceitual, natural em uma obra-manifesto, a construção de Debord encontra-se prejudicada, pois atribui ao espetáculo, como dispositivo imanente, uma conotação sempre negativa.
Tal visão prejudicada decorre de dois movimentos. O primeiro diz respeito à redução do espetáculo a um determinismo econômico, intrinsecamente mercantil e capitalista, que interdita ao espetáculo qualquer outra alternativa de realização, econômica e/ou ideológica, fora de uma dinâmica capitalista e suprime até mesmo a perspectiva da existência de contradições em seu processo de produção. O espetáculo, assim, seria sempre prisioneiro do capital, nunca poderia se produzir em suas zonas de fronteiras, fora de seus limites ou em manifesto antagonismo contra ele. O espetáculo de tal modo estaria comprometido com a forma mercadoria e a ideologia burguesa, que teria interditada qualquer possibilidade libertadora.
O segundo movimento está fundado em uma contraposição
questionável entre real e representação. Apesar de, em certos
instantes de sua exposição, Debord assinalar que ``a realidade surge
no espetáculo, e o espetáculo é real'' (Debord, 1997, p.15), a
composição majoritária do texto e a interpretação
prevalecente, inclusive para o trecho antes citado, constroem-se com base em
um problemático confronto entre real - tomado em conotação
positiva, porque assegurando uma relação ``direta'' com o mundo - e
espetáculo, marcado por um viés pronunciadamente negativo, porque
representação que implica em uma relação mediada, ``não
direta'' com o real. A valoração, sempre positiva, da pretensa
relação ``direta'' com o real e a desvalorização constante
da mediação, em uma contemporaneidade marcada exatamente pela
complexidade e profusão de mediações, de antemão, fragilizam
enormemente uma reflexão que pretende pensar, de maneira crítica, a
atualidade.
Debord vai adiante nessa trajetória e chega até a assinalar: ``As imagens que se destacam de cada aspecto da vida fundem-se num fluxo comum, no qual a unidade dessa mesma vida já não pode ser restabelecida. A realidade considerada parcialmente apresenta-se em sua própria unidade geral como um pseudomundo à parte, objeto de mera contemplação'' (Debord, 1997, p.13). O estatuto de ``pseudomundo à parte'' certamente não se configura como o mais adequado para uma elucidação satisfatória do espetáculo, nem do mundo contemporâneo.
Emergem, de imediato, vários problemas nessas formulações. Um: pensar a representação como se ela não fosse uma parte indissociável e construtora da realidade. Dois: conceber a representação como tendo um estatuto de realidade inferior ao (restante do) real, posto que este estaria fundado na contigüidade presencial, tomada como modalidade privilegiada de relacionamento para a construção incisiva da realidade. Três: supor a possibilidade de um acesso ao real sem o recurso obrigatório de mediações, inclusive das representações.
Na contramão das concepções deborianas, hoje parece assentado teoricamente que não existe a possibilidade de uma relação direta, não mediada, com realidade; que a representação não só faz parte da realidade, como aparece como dispositivo imprescindível de sua construção social e que o estatuto de realidade da representação nada fica a dever àquele atribuído ao restante da realidade, aliás, só possibilitada através do recurso às mediações. Tomando em consideração tais premissas, pode-se revisitar a sociedade do espetáculo, apontando suas limitações e desenvolvendo algumas de suas intuições, mesmo em rota de colisão como suas premissas e seus horizontes valorativos.
A idéia da autonomização das representações como condição da sociedade do espetáculo, demonstra, simultaneamente, a perspicácia e abertura do autor ao novo que conforma o contemporâneo, e os limites contidos em sua formulação teórica. Considerar a autonomização das representações como um processo imanentemente condenado, ao consolidar a cisão da totalidade social em real e representação, termina por obscurecer tal percepção, pois não a deixa entrever os potenciais contraditórios, configurados pela autonomização das representações. A superação de tais deficiências exige que a temática seja reinterpretada em outra constelação teórica.
Em outro horizonte, a cisão e a autonomização das representações poderiam anunciar e colocar em cena a questão da mediação e midiatização crescentes da relação do homem como o mundo e, mais que isso, demonstrar uma abertura à atualidade e introduzir uma das problemáticas mais radicais da contemporaneidade: a descoberta e a emergência de um novo mundo, midiatizado.
No rastro do pensamento original de Debord, mas sem a mesma envergadura teórico-conceitual e imaginativa, o livro de Roger-Gérard Schwartzenberg, L'État Spectacle (1977) acolhe o poder político e a política no âmbito da discussão do espetáculo no contemporâneo. Para ele, ``Hoje em dia, o espetáculo está no poder. Não mais apenas na sociedade. De tão enorme que foi o avanço do mal. Hoje, nossas conjecturas já não têm como único objeto as relações do espetáculo e da sociedade em geral. Como as tecia Guy Debord em 1967. Agora é a superestrutura da sociedade, é o próprio Estado que se transforma em empresa teatral, em `Estado espetáculo'' (Schwartzenberg, 1978, p.1). Para ele, enfim, o Estado se transforma em ``produtor'' de espetáculos e a política se faz ``encenação''.
O livro de Schwartzenberg constrói-se, em razoável medida, através de uma pretensa e até exaustiva descrição de inúmeros fenômenos através dos quais aparentemente a ``mediapolítica'' se mostra. Esta descrição vem acompanhada de uma ``análise comparativa'' entre esse conjunto de fenômenos e o funcionamento anterior da política, tomado quase sempre de modo idealizado. Já na primeira frase do livro este construto fica evidente: ``A política, outrora, era de idéias. Hoje, é (sic) pessoas. Ou melhor, personagens''. Apesar da fragilidade teórica demonstrada pela incapacidade de transpor o mundo das aparências, a potente descrição realizada e caráter inaugurador do livro asseguraram ao trabalho de Schawrtzenberg significativo impacto e vigência sociais.
Mas que isto, o livro, na esteira do trabalho de Guy Debord, instituiu como que uma ``matriz analítica de interpretação'' da relação entre espetáculo e política no contexto de uma sociedade estruturada por redes e ambientada pela mídia. Assim, L'État spectacle conforma uma ``tradição'' de pensar a ``mediapolítica'', de acordo com a denominação utilizada pelo autor, como esfera de pseudo-acontecimentos, para lembrar uma noção anterior de Daniel Boorstin citada no livro. Para o modelo de análise, a espetacularização do poder político e da política se define pela assunção, sem mais, de uma inevitável lógica produtiva da mídia, sempre impregnada e comandada pelo entretenimento, sobre a política, desvirtuando seu ser.
A ascendência da lógica (amalgamada) mídia-entretenimento sobre um dispositivo próprio e, muitas vezes, idealizado da política, inexoravelmente levariam o poder político e a política a uma ``despolitização''. Ou seja, a serem dirigidos por outras dinâmicas não oriundas do poder político e/ou da política, mas gestadas pela mídia-entretenimento.
Essa ``tradição'' de tal modo se tornou hegemônica nos estudos acerca das interações atuais entre espetáculo, política e comunicação que acompanhar a sua trajetória carece de sentido, pois a maioria avassaladora dos trabalhos, internacionais ou nacionais, inscreve-se, consciente ou inconscientemente, nesse modelo analítico, apenas com menor ou maior sofisticação. Nele, espetacularização pode significar meramente a prevalência de uma lógica estrangeira, a da mídia-entretenimento, e conseqüente despolitização, ainda que em graus variados.
Sérgio Caletti, por exemplo, depois de considerar ``...a idéia de espetacularização como hegemônica no debate latinoamericano'', produz uma síntese do padrão analítico produzido e continuamente acionado. Ele escreve: ``A hipótese da especularização, (...), reduz primeiro a política ao que ocorre na tela (...), a confronta logo como o dever ser que a República Ilustrada concebeu alguma vez como horizonte e seu modelo, descobre sua degeneração e a atribui a tecnologia'' (Caletti, 2000, p.67 e p.87).
Para construir um outro olhar, distante desse padrão analítico, acerca das relações contemporâneas entre espetáculo, política e comunicação, um conjunto de pressupostos devem ser revisitados, desenvolvidos e enunciados. O entendimento prévio da interação entre política e espetáculo pode servir como ponto de partida desse itinerário.
A afirmação que inicia este texto deve agora ser retomada. Como foi dito, os relacionamentos entre espetáculo, poder político e política têm uma longa história. Anterior ao surgimento da política na Grécia antiga, por volta do século V antes de Cristo, já o espetáculo estava estreitamente ligado ao exercício do poder político. As pirâmides do Egito aparecem ainda hoje como exemplos mais contundentes, porque testemunhos petrificados e persistentes, da espetacularidade realizada e possível ao poder político desde tempos imemoriáveis.
O advento da política não impossibilita a relação, mas determina algumas alterações importantes. A política, como modalidade específica de agregação de interesses e de resolução da questão do poder político, de acordo com as instigantes e aproximadas concepções de Cornelius Castoriadis e Hannah Arendt, interdita o recurso à violência como procedimento principal e legítimo ao tratar o poder político. O convencimento, a sensibilização, a argumentação, a pressão reivindicativa não violenta e não corrupta, enfim a busca de hegemonia, para utilizar o termo síntese de Antonio Gramsci, com a emergência da política, tornam-se os expedientes legítimos de como proceder para a conquista e a manutenção do poder político. Nessa nova situação, o espetáculo, antes afirmação suntuosa do poder, ganha uma nova dimensão, ele passa a ser produzido também como modo de sensibilização, visando a disputa do poder, e como construtor de legitimidade política. As articulações entre o espetáculo e o poder político ou a política mostram assim distinções relevantes.
O espetáculo, portanto, não aparece como estranho à política, apesar do deslocamento acontecido. O estranhamento só aflora, quando se trabalha com uma concepção unilateral, redutora e simplista da política, concebida como atividade orientada apenas por sua dimensão argumentativa. Tal visão racionalista da política não se sustenta nem factual, nem normativamente. Para a política entendida como acionamento sempre combinado e desigual de dimensões emocionais, cognitivas e valorativas, estéticas e argumentativas, o espetáculo aparece como uma possibilidade de realização, dentre outras em cena. Assim, perde sentido imaginar, como fazem equivocadamente muitos críticos da espetacularização midiática da política, que a mídia, e, em especial a televisão, ``... esteja agora desnaturalizando uma época de ouro em que a política se inclinava para o melhor argumento e representava de modo transparente os interesses gerais da sociedade'' (Landi, 1992, p.108).
A política supõe sempre um conjunto de instituições, práticas, atores capazes de produzir sua apresentação e sua representação visíveis na sociedade. A plasticidade desses inevitáveis regimes de visibilidade obriga a política a possuir uma dimensão estética, que não pode ser desconsiderada, em particular em uma sociedade na qual a visibilidade adquiriu tal relevância, como na contemporaneidade, através da nova dimensão pública de sociabilidade. A necessidade de considerar tal dimensão torna-se algo essencial nessa nova circunstância societária.
Um último pressuposto acerca da política precisa ser elucidado. A política não se realiza sem o recurso às encenações, aos papéis sociais especializados, aos ritos e rituais determinados. Antonio Augusto Arantes, estudando as manifestações de rua, por exemplo, lembra: ``...essas manifestações são, a um só tempo, ação (articulação pragmática entre meios e fins) e atuação (enunciado simbólico): rito, teatro e, por vezes, festa (Arantes, 2000, p.88). A contraposição entre a política anterior e a encenada ``mediapolítica'', reivindicada por Schwartzenberg e inúmeros autores seguidores da sua trilha, para desqualificar a nova situação política, tem, portanto, uma premissa insustentável: supor uma política que não comporta encenação (específica). A ágora grega, o senado romano, a coroação do rei, o parlamento moderno, a posse de presidente, as manifestações de rua, as eleições, enfim toda e qualquer manifestação da política, anterior ou posterior a nova circunstância societária, supõe sempre encenação, ritos etc. A mudança acontecida, portanto, não diz respeito à dimensão estética ou espetacular da política, mas a potência e a modalidade de seu acionamento em uma nova formação social.
Assim, uma reflexão que deseje enfrentar verdadeiramente o problema da espetacularização da política em uma contemporaneidade estruturada em rede e ambientada pela mídia não pode deixar de reconhecer que o recurso à emoção, à sensibilidade, à encenação, aos ritos e rituais, aos sentimentos, aos formatos sociais, aos espetáculos. Em suma, a tudo aquilo que, em conjunto com o debate e a argumentação racional, conformam a política. Por conseguinte, eles não podem ser considerados como atributos advindos tão somente da contemporânea espetacularização da política.
Depois desse percurso, da visitação de alguns dos autores fundadores da problemática e da enunciação de um conjunto de premissas, parece possível avançar na elucidação de conceitos de espetáculo e espetacularização, que possam apresentar um potencial analítico e que superem uma assimilação meramente valorativa das noções. A aproximação valorativa pode percorrer um largo e ambíguo espectro, desde uma significação negativa, quando os termos estão associados a uma ênfase na forma em detrimento do conteúdo, ao desvirtuamento da política pelo acionamento de expedientes externos ao campo e ao predomínio de lógicas produtivas despolitizadoras, até a um teor positivo, quando o espetacular situa-se no horizonte do admirável, sentido bem menos comum quando se trata de uma remissão das noções à política. A superação desse caráter umbilicalmente valorativo apresenta-se como essencial para a construção de um conceito com um bom nível de consistência e valor, agora sim, operativo.
Indo às origens, busca-se traçar um mapa de sentidos e acionamentos que constituem o conceito. Spetaculum, raiz semântica (latina) de espetáculo, tem como significado tudo que atraí e prende o olhar e a atenção. Recorrendo ao dicionário, três outras acepções de sentido podem ser enumeradas: representação teatral; exibição esportiva, artística etc e cena ridícula ou escândalo. De qualquer modo, todas elas implicam em uma visão atenta a uma circunstância, em uma relação entre espectador e evento, que chama a atenção e prende o olhar. Em todos os casos, a interação evento-espectador se afirma e o sentido do olhar comparece com prioritária menção.
Jesus Requena faz uma preciosa investigação do uso e da participação dos sentidos na construção do espetáculo. Conforme esse autor, o gosto, o olfato e o tato possuem um vínculo estreito com territorialidade e intimidade, inviabilizando a necessária distância e estranhamento requisitado como constitutivos da possibilidade do espetáculo. Já a audição peca pelo excesso de distanciamento. A mera utilização do ouvido apenas garante uma possibilidade de intuir a existência de um espetáculo que se realiza ao longe. Somente em associação como o olhar, o ouvido permite acesso ao espetacular. A visão, pelo contrário, afirma-se como o sentido condutor, por excelência, do espetáculo. ``O olhar se nos apresenta então, em todos os casos, como o sentido rei, como aquele sobre o qual o sujeito de constitui em espectador'' (Requena, 1988, p.57).
Esse corpo que chama a atenção conforma-se como um ato, um evento social e, excepcionalmente, natural. Mas de uma natureza carregada de sentido e memória culturais, como, por exemplo, um pôr-do-sol, dito ``espetacular''. Mas a esse objeto exibido exige-se movimento, trabalho que prenda o olhar do espectador e institua a relação espetacular. Tal interação processa-se através de uma ``dialéctica'' de sedução e desejo. Jesus Requena, por exemplo, observa: ``Um olhar, uma distância, um corpo que se exibe afirmado como imagem que fascina. Tem-se aqui, então, os elementos necessários para uma situação de sedução. Pois o que pretende o corpo que se exibe é seduzir, isto é, atrair - apropria-se - do olhar desejante do outro'' (Requena, 1998, p.59). Desse modo, o espetáculo instala uma relação de poder. E o poder, muitas vezes, afirma-se como e através da produção de espetáculos.
O caráter necessariamente público desse ato deve ser reivindicado de imediato. Para chamar a atenção e prender o olhar, o evento visa fisgar pessoas e para isso deve realizar-se publicamente. Mais que isto, a magnitude reivindicada e, muitas vezes, alcançada pelo evento espetacular requer a sua localização em um lugar, geográfico ou virtual, necessariamente público.
O espetáculo remete também à esfera do sensacional, do surpreendente, do excepcional, do extraordinário. Daquilo que se contrapõe e supera o ordinário, o dia-a-dia, o naturalizado. A instalação no âmbito do extraordinário potencializa a atenção e o caráter público do ato ou evento espetacular. A ruptura com a vida ordinária, condição de existência do espetáculo, pode ser produzida pelo acionamento de inúmeros expedientes, em geral, de modo intencional, mas, em alguns horizontes, até mesmo de maneira não prevista.
A produção do extraordinário acontece, quase sempre, pelo acionamento do maravilhoso (Carpentier, 1987), de um grandioso que encanta, que atraí e que seduz os sentidos e o público. Esse ``maravilhamento'' produz-se pelo exarcebamento de dimensões constitutivas do ato ou evento, da dramaticidade de sua trama e de seu enredo, através de apelos e dispositivos plástico-estéticos, especialmente os relativos ao registro da visão, mas também aos sonoros, em menor grau. A plasticidade visual, componente essencial, e a sonoridade tornam-se vitais: os movimentos, os gestos, os corpos, as expressões corporais e faciais, o vestuário, os cenários, a sonoridade, as palavras, as pronuncias, as perfomances; enfim, todo esse conjunto de elementos e outros não enunciados têm relevante incidência na atração da atenção, na realização do caráter público e na produção das simbologias e dos sentidos pretendidos com o espetáculo.
Recorrer a esse conjunto de dispositivos plástico-estéticos em movimento potencializa a dramaticidade, a teatralidade e a encenação contidas no evento espetacular. Daí a ênfase que alguns autores dão ao caráter dramático, teatral e de encenação do espetáculo. Mas o reconhecimento disso não pode fazer esquecer que a vida cotidiana e a política não midiatizada também possuem suas modalidades específicas de encenação e que a dramaticidade e a teatralidade também estão umbilicalmente presentes na vida cotidiana e na política, como componentes imprescindíveis à existência da sociedade.
O recurso a todo esse conjunto de estoques e fluxos instala o espetáculo em uma pertença nitidamente cultural, da qual depende para a definição mesma do que se vive como espetacular em sociedades determinadas. Sérgio Caletti assinala a relativização societária da percepção do caráter espetacular. Esse autor anota: ``Cada marco sócio-cultu de m