Formas recentes da prática jornalística:
reflexões sobre imprensa, ONGs, infância e adolescência

Fabiana Pereira 1


Índice

``Los niños ricos son tratados como si fuesen dinero, los niños pobres son tratados como si fuesen basura, y los del medio viven atados a la pata del televisor, acorralados por el pánico, así que es muy difícil ser niño en el mundo de hoy.''
Eduardo Galeano in: Rebelión, 17 de junho de 2003

Introdução

Esse trabalho tem o objetivo de avançar no conhecimento sobre as formas recentes da prática jornalística a partir do estudo da grande imprensa e de ONGs ligadas à infância e adolescência. Buscaremos mapear as relações travadas entre os profissionais da imprensa e as organizações não-governamentais, apontar pontos de conflito e convergência, descrever valores, discursos e práticas de alguns atores envolvidos na produção de notícias e observar as conseqüências para o tipo de produção jornalística resultante.

Além de bibliografia, incluiremos entrevistas com jornalistas que atuam e/ou atuaram nas redações na década de 90, descrição de material produzido pelas organizações não-governamentais e uma análise de textos veiculados nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo - os dois veículos vêm dividindo, ano a ano, a dos jornais de maior circulação do País, de acordo com as estatísticas do IVC (Instituto Verificador de Circulação). Escolhemos analisar os textos publicados no ano 2000, pois este encerra dez anos da criação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e de congressos nacionais e internacionais sobre o tema. O ano 2000 também fecha uma década marcada pelo paulatino enxugamento da redações2.

Até o momento foram investigados apenas textos do jornal Folha de S. Paulo e realizadas algumas entrevistas com jornalistas. Ainda não foi feito um estudo aprofundado de bibliografia relativa às noções de infância e adolescência.

Estado em reformas e criança na pauta

A década de 80 foi marcada por um ``pacto social'' entre os diversos setores democráticos, pressionados pelos movimentos sociais em busca da garantia de direitos3. Isso resultou, entre outros, na cobrança por um Estado democrático e mais atuante, na Constituição de 1988 e no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). Os anos 90, por sua vez, demonstraram um quadro composto pelo enxugamento do Estado, corte de gastos públicos, privatizações, liberalização dos preços, e a ampla regulamentação jurídica das atividades das ONGs (Lei das Organizações Sociais, em 1998; Lei da Filantropia, em 1998; Lei das Oscips, em 1999). Se o número de ONGs aumentou, cresceu igualmente a concorrência entre elas pelos financiamentos - essas organizações sobrevivem ora do financiamento estatal, ora do privado, ora de organismos internacionais ou de ambos.

Na década de 90, foi crescente a publicação pelos jornais das atividades das ONGs ligadas às questões da infância e da adolescência. Essa publicação acompanhou o aumento do registro de ONGs no país, resultante em boa parte da transferência das responsabilidades do Estado sobre a questão social para a esfera do que alguns autores chamam de ``terceiro setor'':

``A resposta às necessidades sociais deixa de ser uma responsabilidade de todos (na contribuição compulsória do financiamento estatal, instrumento de tal resposta) e um direito do cidadão, e passa agora, sob a égide neoliberal, a ser uma opção do voluntário que ajuda o próximo, e um não-direito do portador de necessidades, o ``cidadão pobre''.
(Montaño, 2002: 22)

Tal transferência de responsabilidades acabou resultando em uma fragmentação de ações, com caráter emergencial e provisório, ou seja, precário, pontual, focalizado, conforme detalha Laura Tavares Soares, no prefácio da referida obra:

``Substituem-se programas nacionais e regionais por iniciativas ``locais'' incapazes de dar uma cobertura suficiente e cujo impacto é praticamente nulo quando se trata de grandes contingentes populacionais em situação de pobreza e/ou ``exclusão''. Caímos no reino do ``minimalismo'', onde pequenas soluções ad hoc são mostradas como grandes exemplos pelo governo e pela mídia''.

Por esse quadro, parece preponderar nestes tempos uma ética do ter, do indivíduo que, por possuir solvência, consegue acesso aos direitos civis, políticos e sociais, uma vez que cumpre com seu duplo dever: pagar contas (impostos e consumo) e se auto-sustentar. É um cenário da ``redução do papel central do Estado como fonte de direitos e como arena de participação, e o deslocamento da nação com principal fonte de identidade coletiva. Dito de outro modo, trata-se de um desafio à instituição do Estado-nação''. (Carvalho, 2002). Assim, o Estado - ``enxuto'' e ``ineficiente'' - já não opera para garantir os benefícios aos indivíduos. No novo cenário, eles se submetem ao ajuste do mercado, como o grande regulador de relações, uma espécie de bedel - panóptico, para citar Foucault - que vigia a solvência (e principalmente a insolvência).

É um tempo de supervalorização da ação isolada, individual. Talvez por isso se valorize a dita ``ação voluntária'', o movimento das ONGs, o ``vire-se'', o ``mexa-se'', o discurso que diz que é preciso que cada um ``faça sua parte''. Passa a ``estar na moda'' quem diz ``fazer algo social''. Passa a ser virtuoso, portanto, aquele que se dedica à chamada ``inclusão''. Talvez por isso o excesso de verbos ``atuar'', ``agir'', ``assistir'', ``realizar'', ``protestar'', encontrados nos textos publicados sobre o tema. ``O princípio que se valoriza agora é o do movimento enquanto movimento e não a parada em fatos e situações'' (Filho, 2002). Assim, algumas ONGs - com o discurso de oferecer algum tipo de benefício à parcela da população excluída -, fortalecem-se e, na escala de valores entre bem e mal, pode-se arriscar que aparecem aos olhos os meios de comunicação alinhadas do lado do bem, contrapondo-se ao Estado falido, ``satanizado'' e associado, portanto, ao mal.

Valores ``positivos'' e organização
intelectual dos jornalistas

No que se refere ao chamado movimento pela infância, parece ter havido nos anos recentes uma espécie de apropriação e atualização do discurso dos movimentos sociais por algumas ONGs. Possuidoras de estrutura empresarial de produção de informação e a partir da associação de sua imagem a valores ``positivos'' (desenvolvimento humano, proteção à criança, solução de problemas), conseguiram relativa hegemonia por meio, entre outros, do abastecimento dos jornais com notícias sobre o tema, alicerçadas em grandes e estruturadas assessorias de comunicação, com produção ininterrupta de amplo material de divulgação (releases eletrônicos, prêmios, cafés da manhã, brochuras, campanhas publicitárias, anúncios, entrevistas coletivas, viagens). Com roupagem menos conflitiva e combativa que os movimentos sociais anteriores e com um tema de apelo altamente emocional e simbólico, essas organizações têm conseguido manter a discussão da infância e da adolescência dentro dos jornais paulistanos. Duas delas são a Fundabrinq (Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente) e o IAS (Instituto Ayrton Senna)4.

Como exemplo da ocupação desse espaço, é válido destacar, por exemplo, que a Fundabrinq possui há dez anos a coluna mensal ``Infância'', publicada no caderno Cotidiano da Folha de S. Paulo, às primeiras segundas-feiras do mês, fruto de parceria com a direção do jornal. Além da coluna, seus dirigentes escrevem nas páginas de opinião do veículo, têm suas opiniões publicadas no painel do leitor, também aparecem nas colunas econômicas e sociais e indicam ao jornal os experts que podem falar especificamente sobre um assunto (psicólogos, assistentes sociais, líderes comunitários, advogados, educadores). A instituição também parece funcionar como uma espécie de repórter (descobre, por exemplo, as prefeituras que priorizam a infância no Brasil, elabora relatórios e os envia aos jornalistas), consultora (indica e chancela os especialistas), além de um ``observatório da sociedade'' (discute políticas públicas, detecta e aponta problemas, elabora estudos temáticos).

Toda essa discussão sobre o poder das fontes e das assessorias de imprensa é antiga, ultrapassa os cem anos5. Com relação ao tema aqui referido, entretanto, cabe registrar que, mais do que abastecer redações com informações, operando de acordo com a lógica exigida pelos meios de comunicação, pudemos observar que tais organizações têm atuado num ponto importante: organizar intelectualmente os jornalistas para a causa da infância e da adolescência. Pode-se afirmar que há pelo menos três ONGs que vêm assumindo a função de organizar intelectualmente os jornalistas para o tema. São elas: as já citadas Fundabrinq e o IAS e a Andi (Agência de Notícias dos Direitos da Infância), criada em 1990 por jornalistas em Brasília. Com atuação nacional, é mantida com verbas da Comunidade Européia e do Unicef, é parceira tanto da Fundabrinq quanto do IAS.

Ao mesmo tempo em que formam os jornalistas, essas organizações também os cerceiam, os restringem e os influenciam de diferentes maneiras. No Brasil hoje é possível observar pelo menos duas estratégias claras dessas organizações para sensibilizar jornalistas para sua causa e formar uma rede produtora de informações sobre esse tema, principalmente repórteres. São elas: a rede Jornalista Amigo da Criança6 e o GP Ayrton Senna de Jornalismo7.

Meritocracia

Os prêmios para jornalistas parecem operar como um incentivo positivo aos profissionais de redação. Lidam com a vaidade dos jornalistas: reconhecem o trabalho que às vezes eles não sentem reconhecido por seus chefes dentro das redações8. Ao premiá-los, essas organizações talvez operem com o imaginário do jornalista na sua condição de divulgador da ``boa-nova'', mensageiro da mudança e missionário de uma causa - no caso, a da infância e adolescência -, ressaltando, assim, sua condição de agente transformador da realidade9.

Ao mesmo tempo em que esses prêmios são um estímulo para a produção de textos sobre o tema, também são uma forma de dar um certificado de ``bom'' ou ``mau'' jornalista, pois atribuem uma espécie de selo e de qualificação ao profissional (ter o título de Jaca é diferenciar-se na redação), contribuindo para a formação das ``grifes'' de jornalistas. São uma categorização e uma medida de eficiência e eficácia do profissional, mencionado por essas organizações como um divulgador, ou seja, aquele que dissemina as iniciativas que contribuem para a solução de problemas sociais. O termo divulgador é recorrente nos comunicados das organizações citadas. Às vezes, o jornalista também é tratado pelo termo fonte disseminadora, o que provoca um certo deslocamento de papéis: posiciona-se a fonte como ``repórter'' e o jornalista como ``fonte''. Por fim, além da característica simbólica forte, a premiação possui um componente concreto: a premiação em dinheiro10.

Rede x solidão

Ao longo da década de 90, principalmente a Andi aproximou jornalistas de todo o país, por meio de encontros nacionais, workshops, informação especializada (assinatura de revistas, vídeos, livros), sugestão de fontes e pautas e acabou criando uma rede de profissionais alinhados à prática que se poderia arriscar chamar de Jornalismo Social (em paralelismo às tradicionais categorias de Jornalismo Econômico e Jornalismo Político).

Em um encontro anual em Brasília, sob a coordenação e realização da Andi, jornalistas de todo o país escolhem e definem uma pauta conjunta para o ano seguinte, a ser publicada em seus veículos no dia 13 de julho, aniversário do ECA. Este ano, o tema escolhido foi Exclusão Social e Aids: Meninos e Meninas em Situação de Rua e Jovens Privados de Liberdade. Para a Andi, a estratégia de eleger um tema especial, para publicação de reportagem especial no aniversário do ECA ``reforça o sentimento de rede entre os profissionais de impressa reconhecidos pela Andi como sensíveis às questões que afetam esses segmentos da população brasileira''.

Essa possibilidade de troca de experiências entre profissionais de diferentes veículos e localidades parece contribuir para minimizar uma suposta solidão sentida entre os ``chatos da redação'' - jornalistas que brigam pela inclusão das pautas ``sociais'' e por vezes criam táticas e estratégias para terem essas pautas aprovadas. (Azevedo, 2003)

Assim, a Andi adquire ao mesmo tempo um caráter de fonte, pauteira, educadora, ``empregadora'' (o concurso Tim Lopes pagou em dinheiro pelas melhores sugestões de pauta dos jornalistas para que elas fossem realizadas efetivamente pelos veículos de comunicação) e movimento social (o Jornalista Amigo da Criança pode participar em eventos como palestrante, ouvinte ou repórter e é posto em contato com ONGs e organismos internacionais, personalidades e experiências de promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente). Contudo, nas formas recentes das práticas jornalísticas, pouco parece mudar dentro das redações, pelo menos de acordo com o depoimento da repórter de O Estado de S. Paulo, Adriana Carranca, que tem o título de jornalista amiga da criança:

``Eu acho que esses prêmios e títulos servem pra você, primeiro, não se sentir sozinho. Então, você fala: ``Puxa, tem um monte de gente que cobre essa área. Que legal. Tem um monte de gente interessada. Então, vamos trocar informações, vamos trocar idéias''. Isso é legal, te dá um estímulo. Mas fica nisso. Depois, o dia-a-dia da redação é meio... você tem um patrão, né?. Eu costumo falar assim: que todo mundo, fora a faxineira, é meu patrão no jornal. Porque eu presto conta para o departamento pessoal, para o financeiro, trazendo nota quando faço matéria fora, para todos os pauteiros, todos os fechadores, os editores, editores-chefes, o editor-executivo, o diretor de redação... É uma estrutura enorme em cima do repórter, que é quem está na rua. É uma estrutura muito grande, é muito cacique pra pouco índio. Então, o que acontece é que o jornalista, salvo grandes nomes que eu admiro, que eu não sei como eles conseguiram ter essa liberdade pra trabalhar, os que estão ali na redação, os comuns, conseguem se mexer pouco''.

Das denúncias às soluções ``eficazes''

Quanto às questões da infância e adolescência, a cobertura passou por uma fase com predominância de denúncias de problemas (maus-tratos domésticos, assassinatos em grandes centros urbanos, desnutrição aguda, trabalho infantil). Mais recentemente seguiu-se uma fase de busca de soluções. A expressão busca de soluções, entendida também como ``matéria propositiva'' ou ``investigação de soluções'', foi criada pelo jornalista Geraldinho Vieira, na época de sua atuação na Andi, conforme Âmbar de Barros em depoimento à autora em 9 de agosto de 2003. Foi a sensação de impotência causada pelas inúmeras notícias de crianças que sofriam maus-tratos ou eram assassinadas que fez os integrantes da Andi pensarem em montar um banco de êxitos:

``Aquilo ia me dando um baixo astral, uma sensação de impotência. E aí eu disse: Não, a gente precisa começar a montar um banco de êxitos. A gente precisa dar visibilidade para quem está fazendo e encontrando soluções. Porque, se eu, que sou uma militante, estou totalmente desmotivada, porque parece tudo tão ruim, imagine as pessoas normais. Nós temos que começar a trabalhar com o lado positivo. E isso foi uma percepção que eu tive: as boas práticas, os êxitos, o positivo...''.

Assim, para fomentar as ``matérias propositivas'', em parceria com o IAS, a Andi participa do GP Ayrton Senna de Jornalismo e, em parceria com a Abrinq, colabora na escolha dos jornalistas amigos da criança. Agora, a entidade planeja a criação de uma cátedra de desenvolvimento humano em cursos de jornalismo.

Na redação: os embates da cobertura

Nos últimos anos, surgiram discussões em torno da conceituação do termo ONG, que, de tão híbrido e ampliado, pode posicionar num mesmo patamar a Fundação Roberto Marinho e a Associação das Mães de Adolescentes Reclusos (Amar), de natureza e objetivos absolutamente distintos. Essa ``confusão'' se faz presente na hora da cobertura. Ela nos chama a pensarmos no posicionamento do jornalista, que cada vez mais têm de operar com complexas forças de poder, articulação e aliança - uma ONG pode ter, ao mesmo tempo, ligação com o governo, a iniciativa privada e os movimentos sociais e apregoar a causa da infância, sem, contudo, agir de modo relevante por ela.

Além da natureza complexa das organizações (com financiamento privado, parceria pública etc.), há dois complicadores na cobertura; é o recente surgimento de diferentes índices para mensurar o desenvolvimento humano (índice de Gini, IDH), que exigem a interpretação cruzada de dados, e a relativa ausência de ferramentas que permitem mensurar a real relevância de um projeto de uma ONG.

Um jornalista hoje recebe de 30 a 50 releases por dia dentro da redação11. A troca com o mundo externo ocorre cada vez mais pela máquina e cada vez menos existe uma realidade em estado puro (Filho, 2002). A comunicação, como espaço de troca de sensações, vivências, informações com o outro, hoje é ``realizada'' por meio de aparelhos e máquinas eletrônicas. (...) O agir hoje ocorre diante de uma máquina, diante de um sistema que mexe exclusivamente com o cérebro e com a capacidade imaginativa. (idem) Assim, os jornalistas, num contexto de redações enxutas, sem possibilitar sua saída (viagem para matéria especial, por exemplo), tendem mais a ``receber'' as crianças prontas pelos releases, pelo filtro das grandes organizações não-governamentais, do que a conhecer as crianças de fato, pelos cinco sentidos12. Levando-se em conta também que tais organizações por vezes contratam profissionais terceirizados para produzir informação a ser enviada pela imprensa, o leitor, na outra ponta, encontra-se cada vez mais ``longe'' da criança. Entre o leitor e ela, aumenta-se a distância.

Nesse contexto, as ONGs que não desenvolveram o esquema de produção de informações e de ação, não aparecem e, portanto, as crianças por elas beneficiadas ``não existem''. Vejamos trechos de depoimento em 30 de janeiro de 2003, da repórter Paloma Cotes, então responsável por fechar a coluna ``Infância'':

``As pequenas ONG também deveriam se profissionalizar porque o jornalista vive sem tempo, na correria, e as ONGs são pouco profissionais, não se organizam. Elas podem se profissionalizar. Só o jornalista que tem que correr atrás da notícia? Não. Elas também têm que se fazer notícia para ocupar o espaço''.(...) ``O assunto das ONGs que atuam com infância e adolescência ainda está tímido, um pouco escondido. As pessoas [jornalistas] tendem a procurar essas pessoas [ONGs] em situações ``caos''. Ouvimos alguém quando há um problema na Febem, ou quando há um caso de grande repercussão, por exemplo. É preciso pensar mais no assunto, bolar mais pautas, correr mais atrás''. (...) ``Acredito que vivemos uma grande crise no jornalismo. Mas isso não significa que o jornalista que fica na redação não esteja atento. Matérias sociais exigem apuração, em campo, muitas vezes. Acredito que a saída é investir em matérias de apuração de peso, especiais. E continuar dando o factual na medida do possível''.

Nesse contexto, aparece uma contradição: a repórter reconhece que o jornalista ``está sem tempo'' e que a reportagem de peso só virá com ``pesquisa de campo''. Instala-se uma espécie de conflito entre o ser e o dever ser. Além disso, a suposta desorganização das pequenas ONGs para produzir e entregar informações jornalísticas incomoda o jornalista de grande redação, que delas espera eficiência (rapidez e envio de dados prontos). Estabelece-se, assim, uma concorrência entre as ONGs: quem enviar mais consegue mais espaço. A lógica da relevância das ações dos projetos sociais (critério jornalístico) dá lugar ao critério quantitativo, da eficácia (mercado). Talvez o grande acerto de organizações como a Fundabrinq tenha sido o de operar nessa lacuna.

Nesse quadro, há ainda outros complicadores e/ou impedimentos que se impõem ao profissional no dia-a-dia: como realizar e publicar uma reportagem investigativa sobre uma ONG, por exemplo, quando a direção do jornal mantém uma parceria fixa com esta? É possível buscar outros especialistas para falar sobre o tema infância, quando as ONGs hegemônicas passam ao jornal uma lista deles13?

Deu no jornal: crianças como coadjuvantes e falta de dados e contrapontos

Realizamos uma leitura de 102 textos publicados no ano 2000 em diversas editorias da Folha, incluindo editoriais, artigos e opiniões do Painel do Leitor. Os textos continham necessariamente uma dessas palavras: adolescência, adolescente, criança, infância, ONG, Fundação Abrinq e Instituto Ayrton Senna. A análise se deu sob o ponto de vista da quantidade, relevância e clareza das informações apresentadas nos textos, de modo a fornecer o máximo de dados ao leitor.

Em linhas gerais, constatamos que o assunto ONG, infância e adolescência permeou diversas editorias e seções do jornal. Houve casos de repetição das mesmas notícias em cadernos diferentes do jornal. Todas as repetições eram de projetos ou programas da Fundação Abrinq:

a) Prêmio Criança 2000 - 6 notícias (coluna Mônica Bergamo, na Ilustrada; caderno Folhinha; coluna Infância, da Fundação Abrinq em parceria com o jornal; e mais três vezes no caderno Cotidiano);

b) Projeto Biblioteca Viva - citado cinco vezes (coluna de Gilberto Dimenstein, duas vezes no caderno Folhateen; duas vezes na coluna Infância, da Fundação Abrinq em parceria com o jornal);

c) Programa Adotei um Sorriso - citado 2 vezes (caderno Equilíbrio; caderno cotidiano);

d) Prêmio Prefeito Criança - citado 3 vezes (no caderno Cotidiano);

Os textos apresentaram pelo menos um dos aspectos listados abaixo. É necessário mencionar que alguns textos chegaram a combinar quatro aspectos:

1. Mais ênfase em quem faz a ação do que nas crianças que a recebem. Crianças ou adolescentes são deixados como parte menor do texto, em detrimento do prêmio ou do anúncio do projeto. Noticia-se com mais destaque a ação das ONGs e empresas do que o que acontece efetivamente com as crianças ou adolescentes;

2. Ausência de explicação de como (quais critérios) as crianças são escolhidas para ser beneficiadas pelos programas de assistência das ONGs ou de que maneira são concretamente beneficiadas por eles;

3. Ausência de explicação de como os projetos conseguiram solucionar um problema ou como (por quais critérios) foram escolhidos para receber uma premiação;

4. Total poder de fala concedido à ONG para se contrapor ao governo, criticá-lo, cobrar ação e oferecer a solução, muitas vezes sem que uma fonte do governo seja mencionada ou fale a respeito;

5. Posicionamento dos trechos em que as ONGs falam imediatamente após a descrição do problema, de maneira que suas declarações se contraponham ao que o Estado diz ou não faz (as ``aspas de crítica'');

6. Excesso de descrição da iniciativa ou do projeto e falta de informações básicas sobre seu funcionamento;

7. Falta de contraponto com as ações do governo em relação ao mesmo problema que a ONG se propõe a resolver;

8. Falta de precisão nos termos (atendeu / atingiu / direta ou indiretamente) ou confusão dos termos (projeto x campanha);

9. Texto não deixa claro ao leitor se uma iniciativa é do governo ou é de uma ONG;

10. Muito espaço e importância dados para uma iniciativa que atinge poucas crianças ou que não parece ser tão relevante;

11. A notícia ``positiva'' é negada pelo próprio texto (o início do texto comemora alguma iniciativa, mas ao final da leitura o texto contradiz seu início);

12. Texto em formato de agenda ou anúncio (o fato ainda não aconteceu, mas é antecipado pelo jornal);

13. Texto com caráter de pronunciamento oficial, com o resumo das atividades efetuadas pelas ONGs;

A criança que aparece nos textos é em sua maioria uma criança com baixa renda, que recebe uma ``ajuda''. Na maior parte das vezes, as crianças são quase sempre incluídas em algum estudo estatístico mencionado pelo texto. Esse excesso de textos quantitativos, estatísticos sugerem que o jornalista ainda não encontrou outra forma de cobrir infância que não seja por números, com especialistas, principalmente no momento das efemérides ou datas festivas (Natal). Raríssimas são as reportagem que ouvem as crianças, não foram encontradas matérias sobre crianças negras, não houve texto mencionando a família (a não ser uma sobre a sociedade norte-americana), somente um texto mostra que se escutou um psicólogo e nenhum ouviu um pedagogo. Quando se foca a notícia na organização ou no agente, não nas crianças, o texto se assemelha a um release da instituição.

Quanto à estrutura, muitas notícias sobre infância e atuação das ONGs se assemelhavam com a estrutura de uma matéria de serviços. Do ponto de vista da forma e do encadeamento do texto, a estrutura de uma notícia anunciando a construção de creches por uma ONG é quase a mesma estrutura de uma notícia anunciando uma sessão de cinema. Contudo, a notícia sobre creche soa como se já fosse resolver o problema, quando, na verdade, a creche ainda será .

Considerações finais e possíveis aberturas

O profissional de grande redação hoje ocupa muito mais o lugar de receptor do que produtor de informações, é mais espectador que ator, e a imprensa, ao eleger, direta ou indiretamente, algumas ONGs para falarem em nome da infância e adolescência, contribui para perpetuar a manutenção de um círculo vicioso: ONGs com boa estrutura financeira possuem assessorias de imprensa bem preparadas, que fazem com que elas tenham mais visibilidade. Com mais visibilidade, têm mais chances de conseguir mais financiamento e realizar mais projetos (sustentabilidade). Ao contrário, ONGs sem assessorias ou profissional de comunicação adequado, não aparecem na mídia, não alcançam a visibilidade e, portanto, não conseguem financiamento e não realizam mais projetos, tendendo à interrupção da atuação (ou extinção). Toda essa discussão acaba colocando em pauta os limites atuais entre os campos da publicidade, relações públicas e jornalismo e também sobre as novas organizações sociais que vêm se impondo a cada dia, ainda mais quando se observa, pelos textos publicados, que a criança e o adolescente são os principais ausentes nos textos, em detrimento da valorização das ``ações'' das ONGs.

De acordo com os primeiros depoimentos colhidos entre os jornalistas que cobrem essa área, parece estar em jogo o tempo todo a dualidade entre ``jornalismo de engajamento'' e jornalismo ``de neutralidade''. Quanto a isso, o jornalista Fernando Rossetti foi categórico em seu seminário no 3º Fórum Brasileiro de Imprensa, Terceiro Setor e Cidadania Empresarial, em 2001: ``Os jornalistas não estão preparados para cobrir o terceiro setor. Isso resulta em uma cobertura acrítica, muitas vezes ``encantada'', e que não considera o processo social por trás das atuações''. Entrevistas aprofundadas com profissionais da área devem ajudar a iluminar esse ponto de conflito.

Referências bibliográficas:

Sites:

www.fundabrinq.org.br

www.ias.org.br

www.andi.org.br

www.estadao.com.br

www.uol.com.br/fsp

www.rebelion.org



Notas de rodapé

... Pereira1
Mestranda no Núcleo de Cidadania do Departamento de Jornalismo da ECA-USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo).
...oes2
``O ritmo das admissões não consegue mais acompanhar o das demissões. O resultado são redações com um número cada vez mais limitado de profissionais, o que dificulta a produção de reportagens de fôlego na área social'', relata a diretora da sucursal da Folha de S. Paulo em Brasília, Eliane Cantanhêde. Ela lembra que o jornal chegou a ter 40 repórteres na capital federal e hoje possui 15. ``Com a redução de papel e de recursos humanos, a primeira pauta que se corta é a social''. In: Relatório Infância na Mídia - Andi/IAS, Ano 8, número 13, março de 2003.
... direitos3
``Depois de 1985, os direitos civis foram recuperados. Entre eles, a liberdade de expressão, de imprensa e de organização da sociedade''. (Carvalho, 2002)
... Senna)4
A Fundabrinq foi criada em 1990 em São Paulo por empresários do setor de brinquedos, ligados à Abrinq (Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedo). Sobrevive das doações de empresas, pessoas físicas e parcerias com o setor público. Tem como estratégia articular e mobilizar a sociedade civil e o poder público para transformar a criança e o adolescente em prioridade e promover e dar visibilidade a políticas e ações bem-sucedidas que possam ser disseminadas.O IAS foi criado em 1994 em São Paulo. Sobrevive dos royalties obtidos com o licenciamento da imagem do piloto Ayrton Senna, da marca Senna e do personagem Senninha e de verbas de empresas, públicas e de doações de pessoas físicas. Diz beneficiar diretamente 970 milhões de crianças. Sua estratégia abrange duas vertentes: Fazer - promover ações que atendam diretamente seu público-alvo por meio de programas e projetos, e Influir - que envolve tanto a mobilização das pessoas a favor do Desenvolvimento Humano das novas gerações como a produção e disseminação de conhecimento e tecnologias sociais em desenvolvimento humano de crianças e jovens.
... anos5
Ver Chaparro, M.C. ``Cem anos de assessoria de imprensa'' in: Duarte, 2003.
...ca6
O título de Jaca é concedido pela Andi (Agência de Notícias pelos Direitos da Infância) e pela Fundação Abrinq. Hoje, há 261 jornalistas com o título de ``amigo da criança''. ``Um dos aspectos mais importantes do projeto Jornalista Amigo da Criança são as oportunidades de aperfeiçoamento, treinamento e capacitação oferecidas em temas sociais e relacionados ao universo da infância e da adolescência. É uma iniciativa da chamada pedagogia social. Como parte dessa iniciativa, o projeto oferece: publicações da Andi, revistas especializadas em comunicação e educação, viagens e seminários''. Captado em www.andi.org.br.
... Jornalismo7
O Grande Prêmio Ayrton Senna de Jornalismo, lançado em 21 de março de 1997, é concedido anualmente desde 1998 pelo Instituto Ayrton Senna, também com apoio da Andi. As principais organizações que apóiam o Grande Prêmio são: ANJ (Associação Nacional dos Jornais), Aner (Associação Nacional dos Editores de Revistas), Abert (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão), Fenaj (Federação Nacional dos Jornalistas), Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e Andi (Agência de Notícias dos Direitos da Infância). Cada uma dessas entidades é representada anualmente, na Comissão Julgadora de cada edição do GP, por jornalistas de destaque nacional, ao lado de personalidades engajadas na defesa dos direitos da criança e do adolescente, e da presidente do Instuto Ayrton Senna, Viviane Senna. Captado em: www.ias.org.br.
...oes8
``A gente volta pra casa com vontade de trabalhar, de fazer''. Discurso do jornalista Marcos Guiotti Jr., da rádio CBN em Belo Horizonte, ao receber o troféu do 6º GP Ayrton Senna de Jornalismo em 21 de março de 2003, do qual foi ganhador na categoria rádio com reportagem ``Infância Doméstica''.
... realidade9
``Muitas vezes, o repórter tem o sentimento pessoal de que é mesmo um mensageiro da verdade que, no entanto, lhe é necessariamente expropriada pelo jornal.'' (Ribeiro, 2001: 133)
... dinheiro10
O jornalista premiado no GP Ayrton Senna de Jornalismo recebe R 20 mil brutos. Para efeito comparativo, o piso por sete horas de trabalho de repórter na capital paulista é de R 1.800 brutos mensais. Fazendo-se as contas, o prêmio acaba equivalendo quase a um ano de trabalho.
...ao11
De acordo com depoimento das repórteres Adriana Carranca e Luciana Garbin, de O Estado de S.Paulo
... sentidos12
``A imprensa passa por uma crise profunda. A tendência é mais matérias por telefone, e cada vez mais o jornalista vai menos para a periferia, quando a missão do jornalista é ir, ver, acompanhar e fiscalizar. Como as redações estão sem grana, os jornalistas não vão ao local, nem para falar bem, nem para falar mal''. Jornalista Gilberto Nascimento in: Seminário Mídia e Justiça, 15 de outubro de 2003.
... deles13
Em 1999, a ordem para cobrir os vencedores do Prêmio Criança, concedido pela Fundação Abrinq, entrava na pauta via direção de redação.