Manuela Penafria
Universidade da Beira Interior
A teoria cinematográfica tem estado algo arredada em estudar o som enquanto elemento expressivo e fundamental dos filmes. Como diz Arlindo Machado (1996) há uma terminologia bastante desenvolvida na área da imagem (profundidade de campo, enquadramento, etc.), o mesmo não se passa em relação ao som. (Quase) Sempre as discussões sobre o cinema têm como pressuposto que se trata apenas de um fenómeno visual. A componente sonora ou não é referida, ou é tratada marginalmente.
Antes de problematizarmos a relação entre a imagem e o som ou, se se preferir, entre o som e a imagem é importante apresentarmos os nossos pontos de partida. Em primeiro lugar, o som pode ser de diferentes tipos: Ambiente; Diálogos; Música; Locução (voz off); Ruídos. Por definição, o som é um fenómeno físico que se transmite sob a forma de ondas, usualmente, através do ar. Mas é, também, um fenómeno psicofísico, pois essas ondas estimulam o nervo auditivo e são percepcionadas pelo córtex do cérebro. Falarmos de som em cinema implica afastarmo-nos de um discurso que considera que o mesmo se dirige ao ouvido (assim como considerarmos apenas que a imagem se dirige ao olho). É necessário construir um discurso especificamente cinematográfico uma vez que o silêncio não entra na definição de som; sendo, eventualmente, o grau zero do som. A respeito do período do chamado ``cinema mudo'' bastará referir o cinema soviético dos anos 20 para imediatamente concluirmos que estamos longe de uma fraca ou nenhuma importância do cinema na época em que este não tinha som. Se não considerarmos apenas a definição técnica do som, o silêncio - aliás, inventado pelo ``cinema sonoro'', pois é neste cinema que o silêncio se ouve - assume-se como um elemento importante na construção de um filme. O silêncio sugere emoções e estimula outros sentidos (por exemplo ver alguém comer uma fatia de bolo sugere ``água na boca''). O silêncio da imagem sugere o som (e estimula outros sentidos); essa parte que falta à imagem é preenchida pela nossa imaginação.
Outro ponto de partida diz respeito ao espectador. A Psicologia clássica dizia-nos que cada um dos nossos sentidos era como um mundo, quase sem comunicação uns com os outros. As relações entre eles seriam construídas pelo pensamento e pela memória. Pelo contrário, para a Gestalt (alternativa à chamada Psicologia clássica) nós percepcionamos de uma maneira indivisa com a totalidade do nosso ser, percepcionamos um conjunto, um todo, uma organização, e esta percepção é a percepção natural. (Cf. Merleau-Ponty, 1945). Embora a visão seja o orgão pelo qual obtemos a maior parte da informação, isso não implica que os outros sentidos estão adormecidos enquanto vemos. As imagens e sons dirigem-se mais imediatamente aos sentidos da visão e audição. O tacto, o paladar, e o cheiro são estimulados pela imagem e pelo som. Em resumo, os espectadores dirigem-se aos filmes com todos os seus sentidos.
Em geral, falar do papel do som e das suas ligações com a imagem implica dividir a história do cinema em grandes momentos: 1927 marca o início do chamado ``advento do sonoro'' e 1959/1960 marca o início do registo síncrono de imagem e som com equipamento portátil (16 mm).
Esta divisão tem como pano de fundo a ideia de uma evolução do cinema - e da sua linguagem - determinada pelos inventos tecnológicos. As invenções técnicas nem sempre vingaram. Sempre que cada nova tecnologia se afirma é porque aceitamos que a mesma possuiu mais vantagens que desvantagens (é o que acontece no caso do digital em que a grande vantagem é a democratização dos meios). O exemplo mais marcante das contrariedades que os inventos têm de enfrentar é referido no texto ``O fonógrafo visual'' de Arlindo Machado. Machado diz que, antes da famosa apresentação do cinematógrafo em 1895 pelos irmãos Lumière (que marca o início do cinema), em 1877 Thomas Edison patenteou o primeiro fonógrafo de folha de estanho. Nessa altura, dá-se conta de uma limitação do seu aparelho: a falta de imagem. Mas, todas as tentativas em lhe juntar imagens resultaram de algum modo fracassadas, não sendo possível a exploração comercial do aparelho. Entretanto, os irmãos Lumière já tinham imposto um modelo dominante: a projecção em sala escura. O cinema só nasceu sonoro na sua versão individual - quinetoscópio de Thomas Edison. Na versão pública, a dificuldade em sincronizar a imagem com o disco rotativo de som, só seria ultrapassada em 1926 com a padronização pela Vitaphone da velocidade de projecção, 24 fotogramas por segundo para a imagem e 33 1/3 para o disco de som. O uso do fonógrafo de Edison destacou-se mais na gravação e difusão musical. ``(...) uma das primeiras utilizações bem sucedidas do fonógrafo foi como máquina de ditar textos para posterior datilografia, de larga aceitação nos escritórios do final do século passado.'' (Arlindo Machado, 1996,p.50). Como Machado realça, o percurso que o cinema seguiu foi mais no sentido de dar som à imagem e não, como tinha pensado Edison, dar imagem ao som.
Mas, para nós, a grande questão é: são os inventos que influenciam o cinema ou é o cinema que solicita e motiva novas invenções para responder às necessidades de expressão artística? A história do filme documentário tem sobre esta questão uma resposta clara. O registo síncrono de imagem e som - em sentido estritamente técnico, trata-se da gravação em simultâneo de imagem e som - com equipamento portátil permitiu a criação de filmes diferentes e alternativos aos anteriores. Esses novos filmes, opostos aos que usavam voz off (também denominada voice over ou locução) foram possíveis porque esse novo equipamento foi pedido pelos realizadores, foram eles que impulsionaram a construção e aperfeiçoamento desse equipamento. Daqui poderemos para já retirar uma primeira ideia a reter: no documentário, tal como no restante cinema, o uso do som é menos uma possibilidade técnica e mais uma opção cinematográfica. Queremos com isto dizer que o uso da tecnologia está, antes de mais, ao serviço das ideias e do estilo de cada autor.
A introdução de som nos filmes não foi um processo simples, demorou cerca de 30 anos (de 1895 a 1927). A plena integração e aceitação do som nos filmes parece ter sido condicionada pela ideia de que o perfeiçoamento sonoro devia estar ao serviço de um cada vez maior realismo, aproximando a experiência cinematográfica da experiência do quotidiano. Nos anos 30 e 40 os filmes que denominamos ``cinema clássico'' (de Hollywood) explorou os diálogos e a música. Os diálogos suportam e são necessários para a construção de uma boa história, de um bom argumento e a música acompanha a imagem (em plena sintonia e harmonia), reforçando o seu maior ou menor dramatismo. Imagem e som relacionam-se dependendo de uma determinada ideia de cinema. No caso, o cinema de Hollywood pretendia atrair o maior número possível de espectadores, emocionando-os, servindo como alternativa à vida quotidiana. Se estes sons são criados e gravados em estúdio, há outros que registados in loco permitiram a criação de filmes de cariz propagandístico (Convém lembrar que alguns momentos são propícios a um aumento da produção de filmes documentais, como no caso de Guerras). Para além do som ambiente - essencialmente sons da frente de batalha - a música acompanha as imagens glorificando a vitória. (Cf. os 7 filmes da série Why we fight, de Frank Capra - filmes de 1942 a 1945).
Mas, o som esteve sempre presente na projecção pública de imagens. Os sons das primeiras projecções feitas pelos irmãos Lumière vinham do conferencista que ajudava na compreensão das imagens e do pianista que acompanhava a maior ou menor intensidade dramática das cenas. O ``cinema mudo'' não é, pois, menos cinema que o realizado após 1927. Ou seja, a imagem e o som não são colocados no ecrã apenas pela sua possibilidade técnica, mas pelo que o som pode acrescentar à imagem e esta ao som. Entre ambos não há uma relação forçada, mas uma relação trabalhada por cada autor segundo o seu próprio estilo. Trata-se, portanto, como já referimos, de uma escolha e não apenas de uma possibilidade técnica.
O advento do sonoro foi, sem dúvida, uma das principais etapas na evolução do cinema, digo apenas do cinema e não da linguagem cinematográfica, pois embora possamos ou não concordar, André Bazin, no seu texto ``A evolução da linguagem cinematográfica'' (in O que é o cinema?) argumentou que a grande evolução na linguagem cinematográfica foi o uso do plano sequência e não o aparecimento do som. Aliás, com o aparecimento do som perdeu-se a montagem; verificou-se um retrocesso na linguagem cinematográfica uma vez que, após o grande período de utilização da montagem, recuou-se para um período - o cinema clássico de Hollywood - em que a imagem se subordinou ao som para este se poder manifestou essencialmente pelos diálogos. A ditadura do sincronismo da imagem com a palavra faz com que o som tenha a mesma função da montagem clássica, ou seja, permite uma continuidade da narrativa de modo a envolver o espectador.
Uma outra utilização do som, um uso do som como contraponto era defendido por cineastas como Eisenstein e Pudovkin. Para estes cineastas, o som deveria ser usado de modo contrapontual, ou seja, uma não-sincronia entre imagem e som. Por seu lado, a música (compor uma música) e o trabalho de montagem (no sentido de montagem vertical, tal como a entendia Eisentein) assemelham-se. Montar não é ligar uns planos aos outros, é encontrar linhas melódicas, harmónicas dentro do plano e fazê-las evoluir ao longo de outros planos e no todo do filme. Esta é uma posição coerente com as suas ideias e obra cinematográfica, basta lembrar que nos anos 20 os filmes soviéticos foram os que exploraram quase até ao limite a linguagem cinematográfica, em especial, no que diz respeito à montagem. Esta foi entendida pelo cinema clássico apenas na sua vertente de manter a continuidade espacial e temporal das cenas, como se fosse impossível trabalhar a montagem e o som, como se a experimentação não fosse o motor que faz avançar a linguagem cinematográfica. Tal subordinação da imagem ao som (em especial na sua vertente falada) compreende-se pelo fascínio da novidade que era ver/ouvir os diálogos ou então pela sua vontade em assumir características naturalistas. Estamos cientes que estas escolhas não são casuais, sabemos que por detrás do uso de determinados recursos cinematográficos em detrimento de outros, há motivações que podem nada ter a ver com o cinema).
Cineastas como Eisenstein, Godard, Bergman, etc. viram no som a possibilidade não apenas de libertar a imagem muda (ou de a prolongar) mas uma possibilidade de enriquecer a imagem, de a complexificar.
No tempo do ``cinema mudo'', as imagens têm um grande poder de sugestão sobre os outros sentidos. Michel Chion tem razão quando diz que o cinema nunca foi mudo, mas sim surdo. Ou seja, o som no ``cinema mudo'', vê-se/ouve-se na imagem.
Imagem e som: qualquer destas componentes do cinema é suficientemente forte para sugerir a outra. O título que demos a este texto pretende realçar precisamente este poder de sugestão, quer do som, quer da imagem. Ou seja, podemos dizer que é possível ouvir uma imagem e ver um som. Ou dito de outro modo, ``mudas são as tecnologias não o cinema.'' (Arlindo Machado, 1996, p.45). No ``cinema sonoro'' vê-se mais, porque o som sugere imagens e no ``cinema mudo'' ouve-se mais, porque as imagens sugerem sons.
Numa experiência limite, como seja a de um filme sem imagem, o som sugere a construção de imagem. No nosso quotidiano, também o som sugere a construção de imagem, por exemplo, se falarmos ao telefone com alguém que nunca vimos, construímos uma imagem mental dessa pessoa que a concretizar-se, parece-nos normal e aceitável que a imagem que imaginámos dessa pessoa se confirme e a não concretizar-se deixa-nos surpreendidos.
Arlindo Machado refere no seu texto ``O fonógrafo visual'', um filme de 1930 de Walter Ruttman, intitulado Wochenende. ``A obra de Ruttman é, antes de mais nada, uma composição sonora concebida especialmente para a audição na sala escura, uma obra portanto em que as condições psicológicas do ambiente cinematográfico foram levadas em consideração.'' (Machado, 1996, p. 41)O que nos parece interessante é que esta experiência venha de um cineasta que, como sabemos, iniciou um conjunto de filmes que se denominaram ``filmes-sinfonia'' com o filme Berlin, sinfonia de uma cidade (1927). Para estes filmes, muito famosos nos anos 20 (filmes mudos, portanto) as imagens deveriam ser organizadas de modo a mostrarem o ritmo, o dinamismo, e podemos dizer, transmitir os sons da palpitante vida de uma cidade. O filme Wochenende é, pois, o contrário desta experiência em fazer um filme cujas imagens consigam transmitir a vida de uma cidade.
O som sugere imagens e as imagens sugerem sons. Este poder de sugestão é evidente, em especial, quando uma imagem e som não estão sincronizados. Por exemplo, o início do filme Segundas ao sol (2003), de Fernando León de Aranoa, é potenciado não pelo uso do som ambiente que lhe corresponderia, mas pela utilização de música. Essa música permite ver melhor as imagens, realçando o seu carácter dramático (repressão policial sobre os manifestantes). A música permite-nos olhar para essas imagens de um modo diferente, se fossem apresentadas com o respectivo som ambiente seriam apenas parecidas com tantas outras que os telejornais nos mostram. No caso deste filme, o uso do som é contrapontual, ou seja, ao contrário do registo síncrono, a fonte sonora não está presente (não é visível) na imagem. É nesse não sincronismo que reside a sua força, o carácter dramático da imagem é realçado pela falta de som ambiente. A música permite ver melhor e mais.
O filme Entraste no jogo tens de jogar (1999), de Pedro Sena Nunes sobre a festa dedicada a S. João d'Arga, que tem lugar em Caminha (Minho), realça a interacção entre o sagrado e o profano. O uso contrapontual do som torna evidente essa interacção. O som da missa é-nos dado a ouvir com imagens da festa e vice-versa. O som é, então, potenciado pela imagem e esta é potenciada pelo som. Neste sentido, a simbiose entre o sagrado e profano é mais forte que a mera existência dessas duas vertentes na homenagem ao S. João D'Arga, uma não existe sem a outra, nenhuma delas se sobrepõe à outra, nenhuma delas é mais importante que a outra, ambas coexistem e cada uma delas depende da outra.
O uso sincronizado da imagem com o respectivo som resulta facilmente em sensacionalismo, muito recorrente na linguagem televisiva. Os telejornais banalizam as imagens. Na televisão (onde se ouve mais do que se vê) é o som, nomeadamente a voz off que comanda as imagens. Como se sabe, na montagem de qualquer notícia grava-se primeiro o som e só depois se acrescentam imagens. Pelo contrário, no documentário e, para o dizermos com Pedro Sena Nunes, um realizador para quem trabalhar e pensar o som é tão importante como trabalhar e pensar a imagem: ``Eu não consigo imaginar ou suportar um documentário em que não se sinta a escuta. Se quem fica do outro lado não está a ouvir, o objecto já não é um documentário. Se há definição possível do documentário será porventura essa: saber ouvir. E não é ouvir para registar. É saber que, para registares um bocadinho, muita coisa tem de ser ouvida.'' (Pedro Sena Nunes, 2000, p. 12).
Mas, mesmo em televisão, nem sempre a ditatura do som resulta pouco criativa. O vídeoclip é um género interessante precisamente por provar que, motivado pelo som, a construção visual pode ser criativa. À partida, este uso criativo do som é colocado em questão ao falarmos do filme documentário, uma vez que este terá como objectivo registar o mundo sincronizando a imagem com o som. O espectador aceita facilmente que só assim se representa fielmente a realidade. Se a captação do som in loco (síncrono com a imagem) é o mais vulgar, isso não quer dizer que não existe manipulação do som, muito pelo contrário. Quanto melhor é um microfone, mais ele capta, capta até aquilo que não se quer dar a ouvir. Um microfone é objectivo, não elimina os sons que não se pretendem ouvir. Já o ouvido humano tem a capacidade de se poder concentrar num determinado som (excepto em casos extremos) ainda que outros sons interfiram. No nosso entender, a questão que o documentário coloca não é uma questão de fidelidade, o filme documentário obriga a uma hierarquia de sons. A produção de um documentário exige que, em cada momento, se defina que som dar a ouvir; implica uma maior preocupação pelo detalhe.
Como já referimos, na história e estética do filme documentário há que salientar um momento importante - finais de 50 e inícios de 60 - altura em que surge equipamento leve capaz de registar imagem sincronizada com o respectivo som. Esta possibilidade, em conjunto com a mobilidade das câmaras fez surgir novos filmes. Este equipamento foi de tal modo inovador que entusiasmou os cineastas deste período, no sentido de proclamarem que, em definitivo, o filme documentário tinha atingido a sua forma máxima de representação da realidade. Com a introdução do som directo foi possível dizer-se que havia uma relação directa e linear entre a realidade e a sua representação. Entrevistas de rua e som ambiente enquanto parte integrante da realidade foram incluídas nos filmes. Mas, como sabemos, esse projecto de representação fiel da realidade foi mais um projecto de entusiasmo que efectivo. Quando a matéria da representação são imagens, estamos afastados do objecto representado, em especial, por questões estéticas (escolha de ângulos, enquadramentos, etc.), o que não permite essa relação linear com a realidade.
Este período - que teve várias denominações: ``cinema directo'' (América) ``free cinema'' (Inglaterra), ``cinema verdade'' (França), ``candid camera'' (Canadá) - tinha como grande aposta constestar o uso da voz off . Esta era considerada demasiado afastada da realidade e ao serviço de transmissão da ideologia governamental. Mas, com toda esta contestação, não foi só a voz off que foi retirada do documentário; também a música, enquanto recurso expressivo foi colocada de lado a favor de um cinema de imagens e sons reais. A música ocupou um lugar importante em filmes como Night Mail (1936), de Harry Watt e The River (1937), de Pare Lorentz. Hoje em dia, é difícil encontrar um documentário que use a música como recurso expressivo, é mais encontrar a música enquanto parte integrante do filme, na vertente de performance - é o chamado uso diegético da música. Em especial, a partir dos anos 60, encontramos esse uso diegético do som incorporado na estrutura do filme, como nos chamados rock-documentary: Gimme shelter (1970), dos irmãos Maysleys, Don't look back (1966) de Pennebaker e Woodstock (1970) de Wadleigh.
Por seu lado, o uso de voz off é, ainda hoje, considerado um recurso menos criativo, mas isso não pode ser aceite sem reservas. A prová-lo estão filmes como Noite e Nevoeiro (1955), de Alain Resnais, Terra sem pão (1932), de Luis Buñuel ou Os mestres loucos - Les Maîtres fous - (1923), de Jean Rouch.
Tal como dissémos no início deste texto, falta uma terminologia para o estudo do som. Os termos mais usados são os de voz off ou voz in. No primeiro caso, quando a fonte sonora se encontra fora de campo e no segundo, quando essa fonte é visível dentro dos limites do plano. Mas, esta definição não é de todo rigorosa. Serge Daney refere-se a esta questão, alterando o modo como pensamos essa relação. Para Daney (1983) a classificação das vozes deve ser feita tendo em conta o seu efeito na imagem. Daney refere-se apenas às vozes, mas podíamos alargar as suas reflexões a diferentes tipos de som. Para Daney, quer a voz off, quer a voz in têm a sua origem fora de campo. Assim, um comentário dito sobre determinadas imagens não exerce efeito sobre essas imagens, mas, sim, sobre o olhar que o espectador lança sobre essas imagens. A voz off dirige-se directamente ao espectador e não às imagens. É por isto que este tipo de som é usado nos filmes de propaganda. Pelo contrário a voz in é, para Daney, aquela que interfe na imagem, mesmo quando pronunciada a partir de fora. Esta voz provoca uma reacção ao que está dentro de campo. Ou seja, é isso que se passa quando ouvimos o realizador colocar questões a um entrevistado, ou quando duas pessoas estão a falar e vemos apenas o rosto de uma delas.
Aquelas vozes que são emitidas a partir de dentro da imagem (a fonte sonora é visível dentro do plano) dividem-se em voz out (pela boca) ou voz throught (pelo conjunto do corpo). Com a primeira, toca-se a natureza da imagem cinematográfica, uma vez que esse som sai de um corpo falso, de uma falsa superfície, de uma falsa profundidade. Por seu lado, o estatuto da voz throught é o da ambiguidade, é enigmático. Um certo tipo de enquadramento, uma personagem filmado de costas, um móvel, é suficiente para separar a voz da boca. Esse estatuto tem a sua origem no corpo expressivo, inteiro ou em apenas uma das suas partes.
Estas considerações de Serge Daney são importantes para pensarmos o cinema na sua complexidade e, na falta de uma terminologia mais desenvolvida para que aqui possamos apresentar conclusões válidas, podemos dizer que as relações que o som estabelece com a imagem implicam uma hierarquia. Esta é a segunda ideia a reter deste texto: o trabalho do som, quer do ponto de vista do cineasta quer do ponto de vista da análise implica que se estabeleça uma hierarquia sonora/visual tendo em conta os efeitos que se pretendem provocar, tendo em conta os efeitos que os diferentes tipos de som provocam na imagem e vice-versa. Aquilo que melhor se ouve e que pior se ouve no nosso quotidiano, pode não coincidir com aquilo que melhor ou pior se ouve no cinema. Ou seja, um realizador que realça os sons mais marginais e lhes dá significado é porque sabe aproveitar a possibilidade de trabalhar tecnicamente esses sons, é porque nos garante que em primeiro lugar estão as ideias e não as tecnologias. Para terminar, o vídeoclip Índios da Meia Praia, produzido pelo Cine Clube de Faro e realizado por Pedro Sena Nunes é um caso interessante nessa relação de hierarquia de sons. Ao longo de todo o vídeoclip o som da água do mar esteve sempre presente (ainda que não fisicamente audível - ouvia-se na imagem). E é esse mesmo som que ouvimos no plano final, onde, finalmente, som e imagem se interligam (se tornam síncronas) em perfeita harmonia.
Há ainda um longo caminho a percorrer no estudo sobre o filme documentário, a sua relação com a história do cinema, o seu contributo para a linguagem cinematográfica, o seu impacto e valor estético, social e histórico,...O Cine Clube de Faro, com esta iniciativa, vem lembrar-nos as potencialidades do som e, ao mesmo tempo, que esta é uma vertente essencial no filme documentário, que deverá ser matéria de reflexão. No essencial, é esta necessidade urgente que aqui pretendemos deixar, ao fazermos referência às reflexões de Serge Daney.