O plano-sequência é a utopia. O paradigma do filme-Zapruder*

Manuela Penafria[1]

Universidade da Beira Interior

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O filme de um único plano intitulado L'arrivée d'un train en gare de la Ciotat (1896), apresentado pelos irmãos Lumière assustou os espectadores, que se puseram em fuga, perante o realismo do movimento do ``comboio'' que se dirigia a eles. Mas, tratavam-se apenas de imagens, muito embora parecessem reais, demasiado reais.[2]

Qual a natureza da imagem? - isto é, qual o conjunto específico das suas propriedades? Este é o problema fundamental que se coloca a toda e qualquer imagem, quer aos primeiros desenhos que o Homem pintou nas pedras quer às novas imagens criadas por computador. As diferentes categorias de imagens (fotografias, cinema, desenhos, etc) são sempre imagens (entendemos que independentemente do seu suporte a sua natureza será sempre a mesma - o seu questionamento enquanto imagem não se coloca ao nível do seu suporte). Neste texto, iremos referir-nos à imagem dotada de movimento que materializa um fragmento do mundo perceptivo e que tem durabilidade no tempo. Pretendemos discutir a proposta do ``cinema directo'' em apresentar a realidade ``tal qual''. Essa discussão terá como ponto central o chamado ``filme-Zapruder'' que mostra o assassinato do Presidente Kennedy.

``Ora o que é a imagem para Bergson? Imagem é mais do que uma `representação' e menos do que uma `coisa' (Matière et Mémoire, I Capítulo). Existe a imagem: por isso, nem as coisas existem apenas na representação, nem as representações são somente fruto de representações e por essa razão diferentes de coisas. Em suma, o que nos envolve, o que nos atravessa, o que, por vezes, vemos, não são propria-

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mente coisas, nem propriamente representações - são imagens.'' (Edmundo Cordeiro, 1999: 449). As imagens existem independentemente de serem ou não percepcionadas. Essa autonomia das imagens leva a interrogarmo-nos sobre a nossa relação com elas. A imagem tem, aparentemente, a capacidade de nos colocar como se perante o mundo que quotidianamente percepcionamos e, ao mesmo tempo, deixa margem para nos interrogarmos sobre a verdade dessas imagens, no sentido de uma relação próxima, intrínseca e fiel com o que representam. As cópias ou as representações, facilmente deixam de ser cópias para passarem a ser o real mais o seu artifício. Tal como resume Edmundo Cordeiro o que está em causa é: ``não sei se por um lado e por outro lado, mas aparentemente, pelo mesmo lado, o real e a imagem.'' (Edmundo Cordeiro, 1999: 449).

Uma imagem enquanto re-presentação tem a capacidade de tornar presente algo ausente. Representar implica, necessariamente, tornar presente algo ausente. Mas, o processo de constituição de algo em imagem passa por uma operação que não é de todo natural. Esse processo de colocar algo em imagem (quer esse algo tenha existência - física, real - fora dessas imagens ou não) é o resultado de uma construção elaborada.

A partir de 1970, autores como Jean-Louis Baudry e Jean-Louis Comolli, chamaram a atenção para o carácter construído da imagem cinematográfica. Não estamos perante, dizem, uma representação natural. Essa representação é possível por um conjunto de tecnologia (câmara e lentes) construída segundo as leis da perspectiva da pintura e arquitectura do Renascimento. A representação Renascentista possibilita, como resume João Mário Grilo ``estabilizar um certo tipo de dispositivo capaz de representar os objectos sobre uma superfície planimétrica, de modo que essa representação seja semelhante à percepção visual que de um certo ponto de vista, se pode ter desses mesmos objectos.'' (João Mário Grilo, 1997: 48)

Assim sendo, entre o que vemos na imagem e o real há a codificação da representação, cujas regras estão presentes na tecnologia de captação/criação de imagens, não se trata então apenas de imitar o mundo, mas de criar um mundo. Nos anos 70 Jean-Pierre Oudart fez

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uma distinção entre ``efeito de realidade'' e ``efeito de real'', tendo o primeiro a haver, de acordo com João Mário Grilo, com a natureza geométrica da realidade e o segundo com a eficacia cénica e dramática. Ou seja, a célebre ``impressão de realidade'' (que é também a ``realidade da impressão'', questão discutida por Christian Metz[3]) depende ``simultaneamente, de um efeito de realidade, isto é, da figuração como produto de códigos picturais específicos (recordemos o efeito de profundidade de campo, produto do código da perspectiva artificialis, responsável pela ilusão de tridimensionalidade) e de um efeito de real, isto é, da constituição da representação em ficção, obrigando-se aquela a inscrever na sua estrutura espacial um lugar vazio, destinado a ser ocupado por cada espectador.'' (João Mário Grilo, 1986: 78).

Toda e qualquer representação implica convenções. O apagamento dessas convenções, ou seja, a invisibilidade, no representado, das condições de produção e representação favorece, sem dúvida uma maior credibilidade das imagens. O espectador assume, pois, como natural a proximidade entre o que vê no ecrã e o seu quotidiano. Ao assistir a um filme, o espectador experimenta uma elevada impressão de realidade. Por exemplo, no cinema de Hollywood os actores não olham directamente para a câmera[4], escondem a presença desta e facilitam a imersão do espectador na narrativa.

Colocar no representado a presença do dispositivo de representação é visto por alguns, em especial, pelos que mais se preocupam com a ética e legitimidade em representar o Outro, nomeadamente a Antropologia Visual, como um dever inerente a qualquer cineasta, em especial ao documentarista. Só assim se garante a compreensão crítica de um filme já que cineasta, processo e filme são um todo coerente. (Cf. Jay Ruby, 1988).

A possibilidade de uma divisão dentro do cinema entre cineastas que tentam levar a ilusão o mais longe possível e os que pretendem que os seus filmes sejam uma construção, ou dito de outro modo, entre imitar o mundo ou criar um mundo, não é tarefa fácil, pois a realidade inscreve-se no cinema por meio da técnica e os objectos deixam a sua marca (a película é impressionada) com alguma autonomia em relação ao seu autor. Se por um lado isto garante a impossibilidade de

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uma total falsificação, por outro lado, como vimos, estamos sempre perante imagens e não perante a realidade.

É no seio de toda esta problemática que vemos o ``cinema directo'' com uma proposta clara de (através de convenções) o cinema, nomeadamente, o cinema documental, nos dar acesso directo e linear ao nosso mundo. Esta sua proposta surge na sequência da utilização de câmaras de 16 mm, de som síncrono e portáteis. Num sentido meramente técnico, a designação de ``directo'' deriva da possibilidade de um registo síncrono da imagem e do som.

A nossa suspeita é que nas imagens documentais, mesmo (e, provavelmente, sobretudo) naquelas em que quem filma se esconde por detrás da câmara, não interferindo nos acontecimentos, há sempre uma parte de verdade e uma parte de mentira. As imagens registadas no âmbito deste movimento não têm um maior ou menor privilégio de proximidade com a realidade que outras imagens.

A atitude de fly-on-the-wall, (``mosca na parede''), designação pela qual também é conhecido o movimento americano de ``cinema directo''[5] consistiu, a partir do uso do então novo equipamento, em defender a representação da realidade ``tal qual''. Preconizava que o autor nunca devia interferir nos acontecimentos, não fazer uso de comentários, nem de entrevistas, nem de legendagens, nem recorrer à re-constituição dos eventos. Devia estar sempre a postos para filmar os acontecimentos, registá-los no momento em que eles decorriam. Proclama-se o colapso da distância entre a realidade e a sua representação e garante-se, dizem, uma representação verdadeira e inquestionável. O filme que marca o início deste movimento é Primary (1960) de Robert Drew, D. A. Pennebaker, Richard Leacock, Albert Maysles e Terence Macartney-Filgate; um filme sobre as eleições primárias presidenciais, em 1960, do partido Democrata disputadas entre os Senadores John Fitzgerald Kennedy e Hubert Humphrey, no estado de Wisconsin.

Entendemos que o realismo é apenas uma das vertentes ou características da imagem, por isso, o projecto iniciado com o filme Primary pode ser discutido e encontrado em toda a sua fragilidade no plano-sequência de Zapruder.

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Antes de mais, há que justificar de que modo o filme-Zapruder é aqui apresentado enquanto paradigma do espírito do ``cinema directo''. O plano-sequência é um plano que se enquadra bem nos pressupostos da concretização do projecto do ``cinema directo'' em apresentar a realidade ``tal qual''. Abraham Zapruder registou com a sua câmara de 8 mm, na Dealey Plaza em Dallas, a 22 de Novembro de 1963, o assassinato do presidente John Fitzgerald Kennedy. O filme-Zapruder é um filme em um único plano, começa com a comitiva a entrar na Dealey Plaza e termina quando (aparentemente) nada de mais importante há a filmar. Fazer um filme num único plano seria o melhor filme de ``cinema directo'', sem cortes, sem intervenção do montador, sem intervenção do autor. Filmado por acaso o filme Zapruder personifica o entusiasto (com as devidas reservas) de um autor do ``cinema directo'' em registar algo que aconteceu sem estar previsto. Apresentar no ecrã momentos da vida sem que seja necessário forçar os acontecimentos é algo de muito caro para este projecto de cinema. Curiosamente, quer Primary, quer o filme-Zapruder se centram na mesma figura: no Presidente Kennedy. Não podemos dizer que o projecto do ``cinema directo'' termina com o filme-Zapruder. Mas, a validade desse projecto é duvidosa e é essa a leitura que este filme sugere.

O filme Zapruder, ``...é o mais característico plano-sequência possível. O espectador-operador, de facto, não realizou quaisquer escolhas de ângulos visuais: filmou simplesmente do lugar onde se encontrava, focando no plano o que o seu olhar - mais do que a objectiva - via. O plano-sequência típico é, por conseguinte, uma `subjectiva'.'' (Pasolini, 1967:193).

Este filme feito por um amador, num tipo de registo que poderemos chamar ``filme caseiro'' tinha como intenção filmar a chegada do Presidente. Esse filme permaneceria nos arquivos de Zapruder, tal como qualquer outro registo, por exemplo, um aniversário de um familiar. No entanto, Zapruder filmou o momento em que Kennedy foi assassinado. Ainda que não tenha tido a intenção de, com esse material, fazer um documentário, Zapruder fez o que tantos outros fizeram nesta época: sair para a rua e filmar os acontecimentos do mundo, tentan-

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do ``apanhar'' algo de interessante. Embora filmado com a pouca qualidade técnica que é característica dos ``filmes caseiros'', o conteúdo desse filme não diz respeito a um grupo restrito de pessoas, trata-se de um acontecimento marcante na história dos EUA e do mundo. Essa rudeza estética e o carácter de sequência conferem-lhe um elevado grau de autenticidade.

Mas, a condição de acidental desse filme consiste em ser apenas um fragmento, o que implica ser uma narrativa inacabada e impede que uma única leitura seja imposta sobre as imagens. (Cf. Stella Bruzzi, 2000). No caso, esse material foi trabalhado com intenções bem diferentes quer pela Warren Commision, quer por Oliver Stone no filme JFK (1991).

Algumas intervenções sobre esse filme, pela Warren Commission, nomeadamente, o corte de alguns frames sob a justificação de que eram demasiado violentos para serem mostrados ou a ``acidental'' reversão de outros alguns frames, permitiram corroborar a teoria de que o Presidente foi alvo de um único atirador. À parte destas intervenções, o estatuto de evidência do filme (original, e sem intervenções) de Zapruder, não pode ser outro que não o da ambiguidade. É precisamente nesses termos que o coloca Pasolini. ``No filme possível sobre a morte de Kennedy faltam todos os outros ângulos visuais: o do próprio Kennedy, o de Jacquelline, o do assassino que disparava, o dos cúmplices, o dos outros presentes melhor colocados, o dos polícias da escolta, etc., etc. (...) a realidade vista e ouvida no seu acontecer é sempre no tempo presente. O tempo do plano-sequência, entendido como elemento esquemático e primordial do cinema, - ou seja: como um plano subjectivo infinito - é assim o presente. O cinema, por consequência ``reproduz o presente''. A filmagem em directo da televisão é uma reprodução paradigmática de alguma coisa que está a acontecer.'' (Pasolini, 1967:193). Se tívessemos todos os planos-sequência de todos os pontos de vista do assassinato de Kennedy, e fizessemos uma montagem ``obteríamos uma multiplicação de `presentes', como se uma acção em vez de se desenrolar uma única vez diante dos nossos olhos se desenrolasse várias vezes. Esta multiplicação de `presentes' abole, na realidade, o presente, esvazia-o, postulando cada um dos

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presentes a relatividade do outro, o seu imprevisto, a sua imprecisão, a sua ambiguidade.'' (Pasolini, 1967:194).

O filme-Zapruder mostra que o Presidente foi assassinado, mas não por quem e a partir de onde. Trata-se de uma representação que é inconclusiva. Só nos é possível confirmar o assassinato enquanto acontecimento. O paradoxo do filme Zapruder é que promete revelar-nos aquilo que permanecerá sempre para além do registo das acções, ou seja, não é capaz de mostrar as motivações e causas dessas acções. (Cf. Stella Bruzzi, 2000:16). As motivações e causas são deixadas para a interpretação do evento, ou seja, para a interpretação do plano-sequência de Zapruder.

``...o filme-Zapruder mostra claramente a pertinência da distinção entre cinema e filme (...) entendendo que, nessa diferença o cinema funciona como uma abstracção para a qual tendem todas as visões fílmicas parciais e, necessariamente, subjectivas ....'' (João Mário Grilo, 1995: 338) E, ``a subjectiva é, portanto, o limite realista máximo de qualquer técnica audiovisual. Não é concebível `ver e ouvir' a realidade no seu acontecer sucessivo senão de um único ângulo de cada vez: e esse ângulo é sempre o de um sujeito que vê e ouve.'' (Pasolini, 1967:193).

A proposta de Pasolini é que não é pela ``multiplicação de presentes'' que se consegue compreender o que aconteceu, é necessário uma coordenação entre planos de modo a ``tornar o presente passado'' procedendo à selecção dos momentos significativos de cada hipotético plano-sequência (o de Kennedy, o do(s) atirador(es), etc.) e não apenas o de Zapruder: ``Enquanto estes sintagmas vivos não forem postos em relação entre eles, tanto a linguagem da última acção de Kennedy como a linguagem da acção dos assassínos, são linguagens truncadas e incompletas, praticamente incompreensíveis.'' (Pasolini, 1967: 195)

A ``coordenação entre os planos'', ou seja, o trabalho de montagem (de escolha e coordenação) de um narrador resgataria a subjectividade característica de cada plano-sequência e tornaria o resultado final (o filme) objectivo.

Representar um evento, não é o mesmo que explicá-lo. (Bill Nichols, 1994: 121) E não é possível interpretá-lo, sem que se interve-

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nha nele. Enquanto documento, o filme-Zapruder está disponível para uma interpretação fílmica. Foi nesse sentido que Oliver Stone o trabalhou. JFK, uma (eventual) ficção sobre o assassinato de Kennedy e o contexto político em que tal aconteceu, transmite a ideia de que houve uma conspiração para matar o Presidente. Essa sua ideia é construída, essencialmente, à volta de um documento: o filme-Zapruder. A construção que Oliver Stone nos apresenta é isso mesmo: uma construção; que não tem pudor em exibir os seus pressupostos, nem de encenar as suas condições de possibilidade. Stone parte de um fragmento do mundo perceptivo, típico do ``cinema directo'' e acrescentou-lhe aquilo que esse movimento dava pouco ou nenhuma importância: o trabalho de montagem. Para o ``cinema directo'' a montagem servia apenas como colagem de fragmentos, de pedaços da realidade. A mistura entre imagens de ficção e imagens de arquivo é o traço fundamental que suporta a originalidade de JFK. Este filme é um excelente exemplo de que um registo enquanto documento (ou pedaço) da realidade deve ser trabalhado pela montagem, de modo a ser possível resgatar a parte de verdade que as imagens nos apresentam. Perante a incompletude do filme-Zapruder, Stone, passa do cinema ao filme e tenta reconstruir a realidade através de um trabalho intenso da conjugação de diferentes pontos de vista, por ele criados e, também, ampliando alguns frames (que ele seleccionou como essenciais) do filme-Zapruder.

Por um lado trata-se de um plano único e por isso completo, por outro lado, esse plano deixa em aberto outros pontos de vista sobre o acontecimento. São essas outras perspectivas, esses outros pontos de vista, ou subjectivas, que Oliver Stone trata de reconstituir. A originalidade da sua estratégia fílmica é que ``... propõe uma alteração ontológica à noção legal e legalista de arquivo - como súmula de documentos do passado -, legitimando um trabalho de reconstituição cinematográfica dos seus pontos cegos, i.e., de toda a matéria provável, mas não provada ... '' (João Mário Grilo, 1995: 341).

Uma outra particularidade desse filme é que em vez de ocultar o dispositivo de captura das imagens, (Cf. cena em que Jim Garrison, em tribunal, apresenta argumentos contra a célebre ``teoria da bala

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mágica''[6]) Stone liberta-se dos constrangimentos da não visibilidade do dispositivo técnico (chega mesmo a mostrar-nos Zapruder a filmar) o que lhe permite conjugar uma certa ideia de objectividade (que advém do plano-sequência original - de Zapruder) com a construção de um discurso que manifestamente defende a ideia de conspiração.

Só interferindo na realidade, ou seja, passar do cinema ao filme, através da montagem, e trabalhando o material que daí advém, ou seja, imagens e sons, é possível atingir se não a pelo menos uma verdade que, no caso, deixa pouca margem para contra-argumentação.

O filme-Zapruder enquanto documento não é um ponto fixo de referência, está infinitamente acessível através de interpretação e recontextualização, tornando-se um ponto de referência mutável. Enquanto documento não é falso, é incompleto. (Cf. Stella Bruzzi, 2000:21).

Apoiados em tecnologia leve e de som síncrono o ``cinema directo'' proclamou uma maior proximidade com a realidade, por ser possível filmar os acontecimentos no seu decorrer. A tecnologia enquanto garante e refúgio de uma suprema realidade e, consequente, verdade, é a utopia. Aspirar a uma utopia é, absolutamente, legítimo, mas o caminho a seguir, não é, certamente, o do ``cinema directo''. E a ideia de um puro documentário é, no mínimo, vulnerável. ``Não nos contentamos com a imagem, porque queremos que ela seja real, e não nos contentamos com o real, porque queremos que ele seja uma imagem.'' (François Flahault citado in Paulo Filipe Monteiro, 1999: 486). Em nosso entender, apenas e só através da intervenção sobre as imagens é possível alinhar argumentos que tenham de algum modo a haver com o atingir da representação autêntica da realidade.

Longe de se concretizar a utopia de uma relação linear e directa entre realidade e a sua representação, proposta pelo ``cinema directo'', o que de facto aconteceu foi o estabelecimento de convenções para diferentes géneros: documentário e ficção. Hoje, já não é mais possível (nem desejável) que essas delimitações ocorram. O filme JFK é disso exemplo. No essencial, o que herdámos do ``cinema directo'' foi aumentar, por parte dos espectadores, a expectativa quanto à veracidade das imagens.[7]


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Para além desta pesada herança, a tradição britânica dos anos 30[8] (baseada no uso da voz em off ou voice-over) lançou o documentário para o terreno da semelhança (por vezes, total identificação) com a reportagem televisiva. Tal como qualquer outro filme, o documentário é construído através dos recursos dramáticos e narrativos fílmicos. Se isso implicar afastarmo-nos da pureza dos géneros, que assim seja. JFK é um bom exemplo para seguirmos essa via. Assumindo a instabilidade que é a representação da realidade, o filme documentário poderá, em definitivo, assumir a sua condição de filme e aproveitar os recursos fílmicos para cumprir a sua tarefa de representação.

Esta proposta do ``cinema directo'' acaba apenas por apoiar-se em convenções em detrimento de outras, da nossa parte, defendemos que a intervenção sobre as imagens (em certo sentido, um regresso ao Formalismo soviético Vertoviano) será uma via a explorar pelo documentário, uma vez que nesse tipo de intervenção não existe uma hierarquia a priori dos recursos cinematográficos, sendo, no nosso entender, uma via que legitimamente poderá reclamar ser uma representação autêntica da realidade. Pautado por uma atitude ética de responsabilidade na representação do Outro esta via formalista poderá libertar o documentário das suas pesadas e constrangedoras heranças (que acima referimos). Beneficiando de um estatuto de cinema; outras vias em que a diversidade (de conteúdos e formas) poderão ser, não só esperadas como defendidas. Da nossa parte, parafraseando Stella Bruzzi (2000) acreditamos que a realidade existe e que pode ser representada, mas acreditamos que tal é possível se não existir qualquer menosprezo por um ou outro recurso cinematográfico. Isto leva-nos a rejeitar a categorização dos filmes por géneros e a enveredar por vertentes mais híbridas. Só assim será possível representar a realidade dado a complexidade de que esta se reveste. Por outro lado, embora não seja aqui o nosso tema em debate, colocamos a hipótese de uma leitura não redutora, mas de algum modo coerente relativamente a todas as representações cinematográficas. Tratam-se de representações do mundo (quer este exista materialmente, como no caso do documentário, quer não exista materialmente, como no caso da ficção) que partilham uma mesma atitude: o docu-

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mentarismo. Também um filme de ficção é um documento de uma determinada época, identifica-se com essa época uma vez que dela é resultante. Assim, em vez de adoptarmos a postura de que todo o cinema é ficção ou que todo o cinema é um documento (e em certo sentido todos os filmes podem ser um documentário) propomos a atitude documentarista, a atitude de documentar, de registar acções ou sentimentos, quer tenham efectivamente ocorrido ou não no nosso mundo, como atitude que após discutida na sua definição e implicações poderá contribuir para compreendermos a fragilidade das categorias por género e (eventualmente) compreendermos a complexidade de que não só a realidade, mas também o cinema se reveste.

Stone coloca-se no extremo oposto ao do ``cinema directo''. E é nesse outro extremo que consegue elaborar uma verdade fundamentada sobre um acontecimento filmado por acaso. Se um registo tiver alguma característica distintiva será, seguramente, o da sua maleabilidade para fazer parte de diferentes discursos.

Se por um lado, há quem defenda que há uma impossibilidade de representação da realidade (por exemplo, Michael Renov, 1993) e que todo e qualquer documentário (género que sempre se posicionou dentro da história do cinema, privilegiadamente, perto da realidade) falha redondamente naquilo que é o seu objectivo. O objectivo do documentário pode ser atingido apenas e só se nos afastarmos dessa concepção mais imediata, mais ``directa'' que é proporcionada pela tecnologia. Vem a propósito a seguinte afirmação: ``... é só enquanto for capaz de `esquecer' a sua dependência tecnológica que o cinema poderá ambicionar resolver-se, historicamente, como arte igual às outras, essencialmente com os mesmos problemas das outras artes que são, sempre, problemas de expressão e, nunca, problemas de produção.'' (João Mário Grilo, 1997:50).

O material-base do filme documentário são as imagens registadas, essencialmente, in loco, mas, não é possível estabelecermos só por isso uma relação de perfeita consonância entre realidade e sua representação. Tratam-se de objectos distintos. À imagem dotada de capacidades representativas acrescenta-se a capacidade narrativa, resultante da associação de planos (montagem). Ou seja, o material

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base de trabalho do documentário são as imagens e não a realidade. A intervenção interpretativa e, necessariamente, criativa, é bem-vinda. Um documentário é feito de vários documentos que são incompletos, mas que ganham sentido e interesse quando interligados uns com os outros.

Uma imagem significa, não podemos dizer que ela apenas mostra. Mas, há que procurar ou construir esse significado. Os cineastas existem no mundo e interagem com ele. Partilhamos a mesma posição de Jay Ruby (1988): o significado não é inerente às coisas. Somos nós que construímos e impomos significado no mundo. Organizamos uma realidade que tem significado para cada um de nós. É à volta destas organizações de realidade que os realizadores constroem filmes.

Não é possível (nem desejável, pois seria demasiado insuportável) que o filme documentário nos transmita a realidade propriamente dita, o que dele podemos, essencialmente, esperar é a(s) relação(ões) que estabelecemos com a realidade, o mesmo é dizer, modos de gerirmos a nossa relação com o mundo.

Ainda assim, se a respeito de um filme de ficção podemos dizer: ``é apenas um filme'', a respeito de um filme documentário do qual temos sempre elevadas expectativas, é-nos mais difícil negar a sua condição de re-presentação. É o que acontece com o filme-Zapruder. Mas, não podemos colocar de lado que é necessário trabalhar as imagens e sons registados in loco.

Apenas uma nota sobre a actividade jornalística que se baseia tal como o filme documentário no registo in loco. A postura do Jornalismo enquanto actividade que se baseia em transmitir a realidade é, basicamente, a mesma do ``cinema directo'', filmar os acontecimentos no decurso da sua ocorrência. O jornalista assume-se como mediador entre nós e uma realidade a contecer algures, sem interferir no que nos mostra, para assim garantir a ``objectividade'' do seu discurso. As imagens do jornalismo funcionam como ilustração e pretendem com o seu realismo (um ``estar lá'' substituído pelo registo) criar movimentos sociais de alerta, revolta, indignação, etc. E, nos dias de hoje, em especial os telejornais estão repletos de imagens de alerta social referentes a questões que a todos, enquanto cidadãos do mundo que somos, di-

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zem respeito. Só esta crença na verdade da imagem pode a bem dizer, melhorar o mundo, pois embora possamos no lado menos verdadeiro dessas imagens, não podemos dizer que o que elas nos mostram, nunca aconteceu. Ainda que possa existir desconfiança, pois todos sabemos da facilidade que é encenar algo, o contexto jornalístico faz-nos colocar de lado a desconfiança.

Como não podemos estar em todo o lado ao mesmo tempo, precisamos que as imagens que chegam até nós sejam verdadeiras, para podermos gerir a nossa relação com o mundo. E que essas imagens (refiro-me às imagens televisivas de acontecimentos) sejam o melhor ângulo possível. Este é, então, o papel que reservamos para os jornalistas: que nos mostrem os acontecimentos do melhor ponto de vista, uma vez que também eles, não podem ver um acontecimento de todos os ângulos, devem sim, escolher o melhor de entre eles.

Os acontecimentos de 11 de Setembro (de 2001) foram apresentados na televisão a partir de diferentes ângulos. Muitas pessoas que passeavam pela zona do World Trade Center filmaram o embate dos aviões sobre as Torres. Tivemos oportunidade de ver em todos os canais, imagens de diferentes ângulos do embate dos aviões. Perante a dificuldade em escolher o melhor ângulo, pois ninguém saberá dizer com certeza qual será o melhor (o mais verdadeiro), as televisões optaram por mostrar uma sucessão de diferentes ângulos. Aquilo que essa sucessão faz, como diria Pasolini, é construir uma ``multiplicação de presentes''. Com essas imagens, revivemos constantemente o mesmo acontecimento, não nos ajudam a compreender como foi possível que tal tivesse ocorrido. Será necessário trabalhar essas imagens (conjugadas com outras imagens), através da montagem, para se construir um discurso, uma (ou a) verdade sobre essa realidade. Serão necessários os recursos fílmicos para tal, mas estes não entram no discurso jornalístico.

No final do seu texto, Pasolini deixa em aberto (para o leitor) as possíveis relações entre cinema e morte. Podemos nós aqui tentar propor, pelo menos, uma relação que nos pareça apropriada.

``O cinema (...) é substancialmente um plano-sequência infinito, como exactamente o é a realidade perante os nossos olhos e ouvidos, durante todo o tempo em que nos encontramos em condições de ver e ouvir (um plano-sequência subjectivo que acaba com o fim da nossa vida): e este plano-

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sequência, em seguida, não é mais do que a reprodução (como já repeti várias vezes) da linguagem da realidade: por outras palavras, é a reprodução do presente.'' (Pasolini, 1967:195).

Sendo a vida de cada um de nós um imenso plano-sequência é necessário uma escolha dos momentos mais significativos desse plano-sequência para dar sentido à vida de cada um de nós. Essa síntese suprema verifica-se no momento imediatamente antes de deixarmos esta vida. Aí temos acesso ao sentido da nossa vida. ``...enquanto estamos vivos, falta-nos sentido (...) a morte realiza uma montagem fulminante da nossa vida: ou seja, escolhe os seus momentos verdadeiramente significativos (e doravante já não modificáveis por outros possíveis momentos contrários ou incoerentes, e coloca-os em sucessão, fazendo do nosso presente, infinito, instável e incerto, e por isso não descritível linguisticamente, um passado claro, estável e certo ...'' (Pasolini, 1967:196).

O sentido de que Pasolini nos fala é referente à vida de cada um de nós. Esse sentido só será então possível de ser conhecido por um único narrador: Deus. De igual modo, poderemos dizer que no plano histórico só será possível dar sentido ao mundo, escolher os momentos mais significativos, se o mundo terminar. A morte opera sobre a vida, dando-lhe sentido. A montagem é um recurso que procura dar sentido a um plano, mas ainda assim, deixa sempre em aberto novas construções de montagem. Completar os ``pontos cegos'' de um plano é uma tarefa infinita. A proposta de Pasolini em ``tornar o presente passado'' procedendo à selecção dos momentos significativos de cada plano-sequência é possível, mas só em certa medida, pois voltamos inegavelmente a cair nessa espiral que é completarmos cada um desses momentos com outros momentos, infinitamente. Tornar o presente passado resulta, por razões que se prendem com as próprias características do meio cinema, num presente (esta questão é referida por Pasolini). Sendo o cinema uma abstracção, como vimos acima, ``...o cinema funciona como uma abstracção para a qual tendem todas as visões fílmicas parciais e, necessariamente, subjectivas ....'' (João Mário Grilo, 1995: 338) é impossível atingi-lo uma vez que só nos é possível ``ver e ouvir'' a partir de um único ângulo de cada vez. A tentativa de registar a verdade de um acontecimento com um plano-sequência é

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a tentativa utópica de mostrar a totalidade do acontecimento menosprezando que se regista a partir de um ângulo de cada vez, e que por isso é um registo incompleto. Para tal, o recurso à montagem é essencial, o que implica passar-se do cinema ao filme.

Presos que estamos a um eterno presente, incapazes de fechar esse ciclo (a não ser no momento da morte), será impossível dar sentido a qualquer plano-sequência, ou a qualquer outro plano, uma vez que estes são sempre registados sob a condição das nossas limitações físicas do que vemos e ouvimos a partir de um determinado local. Eternamente destinados que estamos aos filmes e não ao cinema; o plano-sequência supremo que é o cinema, tal como o é a realidade, só Deus tem acesso.

Notas

1- Assistente no Departamento de Comunicação e Artes da UBI-Universidade da Beira Interior (Covilhã, Portugal). Inscrita em Doutoramento pela UBI em Ciências da Comunicação, área de cinema. Gostaria de agradecer a todos os que criticaram e fizeram sugestões ao texto inicialmente apresentado no Encontro Compós 2003 - Recife, permitindo que o mesmo fosse revisto e melhorado. Qualquer imprecisão que o leitor identifique deverá, obviamente, considerá-la da minha total responsabilidade.

2- Ainda hoje existem relatos a respeito da confusão entre a imagem de um acontecimento e a realidade desse mesmo acontecimento, por exemplo, o daquela senhora que teve de ser clinicamente assistida durante a exibição do filme de Lars von Trier, Dancer in the Dark.

3- Christian Metz, ``À propos de l'impression de réalité au cinéma'' in Essais sur la signification au cinéma, Vol. 1, Paris, Klinksieck, 1965.

4- Excepto em alguns momentos de filmes musicais. Os actores/cantores colocados diante da câmara garantem (ao espectador) que são os próprios que cantam.

5- O ``cinema directo'' foi um dos movimentos que se apoiaram na utilização de equipamento leve e de som síncrono. Em Inglaterra esse equipamento originou o movimento ``Free cinema'', em França iniciou-se o movimento de ``cinema verdade'' e no Canadá tomou a designação de ``Candid Camera''.

6- Segundo esta (rídicula) ``teoria'', uma mesma bala, disparada por Lee Harvey Oswald teria, provocado sete feridas em Kennedy e no Governador Connally. Esta ideia defendida pelo advogado Arlen Spector, levou a Warren Commision a concluir que houve apenas um único atirador.

7- Certas técnicas, como as imagens tremidas de um plano-sequência tornaram-se convenções. Esse tipo de plano pode ser utilizado para transmitir uma elevada impressão de realidade, mesmo quando os eventos apresentados nunca tenham efectivamente acontecido. Por exemplo, no filme The Blair Witch Project (1999) realizado por Daniel.

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Myrick e Eduardo Sanchez, o uso recorrente de imagens ao ombro facilitam ou, pelo menos, colocam no espectador a dúvida de que o que vê aconteceu efectivamente. Daqui podemos concluir que é, no mínimo, demasiado fácil transmitir realidade através das imagens.

8- Movimento documentarista britânico dos anos 30 iniciado por John Grierson realizador do filme Drifters (1929) e, posteriormente, produtor de grande parte dos filmes desta década, sendo um dos mais conhecidos o filme Night Mail, de Harry Watt e Basil Wright (1936).

Referências



Notas de rodapé

... filme-Zapruder*
In MÍDIA BR, Livro da XII COMPÓS - 2003, Org. André Lemos, Ângela Pryston, Juremir Machado da Silva, Simone Pereira de Sá, Brasil. Editora Meridional, 2004, pp 207-222.