Paulo Filipe Monteiro1
``Há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes
eléctricas''
Álvaro de Campos
O cinema, nos seus jovens cem anos, ao constituir-se em ``sétima arte'' tornou-se um campo privilegiado de reformulação do próprio conceito geral de arte, e, por isso, de toda a estética: é esta uma questão a merecer discussão aprofundada noutro texto e contexto. Por agora, e procurando responder tão directamente quanto possível à questão ontológica formulada neste número da revista, ``O que é o cinema?'', gostaria de discutir como o cinema veio reformular o contexto mais vasto da cultura e as implicações filosóficas que esse movimento acarretou.
Já no início dos anos 90, J. Hoberman [1991:2] escreve: ``se a invenção da fotografia obrigou a uma nova definição da arte, o cinema reinventou a cultura''. E Wilhelm Wurzer [1990:xiii-xiv, 23 e 98-104] argumenta: ``subitamente, a filosofia terá acordado num sítio radicalmente diferente através do medium do cinema'', com ``uma nova consciência do fim da filosofia''. O cinema ``delicia-se a imaginar imagens para clarificar o caminho para uma nova literatura do juízo (Ur-teil). Florescendo na luta do juízo longe do caminho próprio para o velho edifício da filosofia, filmar percorre diferentes lugares para o pensamento, mesmo, e especialmente, nos filmes.'' ``Filmar trilha o carreiro esquecido da imaginação de volta à caverna de Platão'': ``pondo em dificuldade a hermenêutica, a ironia do prazer de filmar reside no facto de o juízo se libertar do olhar singular e exclusivo do logos'', libertação em relação à qual o pensamento de Heidegger já tinha procurado abrir ``uma saída `ontológica' para fora da modernidade logocêntrica da cultura ocidental.'' Para compreendermos melhor o que aqui está em causa, e que Ian Jarvie desenvolverá, temos de antes explorar o terreno em que ocorre a primeira ligação do pensamento filosófico ao cinema. - ele a fenomenologia, e duplamente: quando, como veremos, defende ou procura uma ligação privilegiada do filme com o real, presta-se a uma ontologia; quando encara o cinema como um lugar de organização de novos estímulos sensoriais, de choques e de gozo, pede uma reflexão sobre a experiência do espectador. Uma privilegia a realidade prévia que o cinema regista; a outra, a nova realidade que ele cria no espectador. Como veremos, em ambos os casos a fenomenologia do cinema (que ganhou recentemente um grande impulso) retoma e reformula as mais antigas ideias sobre o cinema.
Comecemos pela primeira destas questões, a da relação do cinema com o real. Georg Simmel [1912:202] chamava à ``realidade'' ``uma categoria metafísica'', e já teremos muitas oportunidades de lhe dar razão.
Poderia esperar-se que, como nas outras artes ficcionais, houvesse no cinema uma divisão entre os que decidem levar, naturalisticamente, a ilusão da realidade o mais longe possível, num jogo convencional em que o espectador esquece que está perante o logro de uma ilusão (e paga, justamente, para ser enganado), e, por outro lado, aqueles que, para não abrirem mão das potencialidades artísticas ou políticas do seu trabalho, recusam esse ilusionismo naturalista, procurando que não se perca de vista que o cinema é uma construção e uma arte. - dentro desses parâmetros que Andrei Tarkovski2. faz uma dicotomia, quando diz que ``há duas categorias básicas de cineastas: uma compreende aqueles que procuram imitar o mundo que os rodeia; a outra integra os que procuram criar o seu próprio mundo. A segunda categoria é a dos poetas do cinema''.
O que torna, porém, esta questão do naturalismo ou anti-naturalismo mais complexa no interior do cinema é o facto de, sobretudo a partir dos anos 50, as características de registo que este medium possui levarem os que mais defendem o cinema enquanto arte - os ``poetas do cinema'', se retomarmos a terminologia de Tarkovski - a reivindicarem uma relação privilegiada com o real, mais verdadeira ou mais intensa do que a do cinema naturalista - o que vem a colocar o cinema, no dizer de Marina Zancan3, ``entre verdadeiro e belo, documento e arte''. A realidade parece inscrever-se no cinema por via da técnica, por obra de uma película que é impressionada pelo real, onde, ao contrário das outras artes, o objecto deixa as suas marcas com (alguma) autonomia em relação ao artista.
Arnold Hauser escreve em 1958 [p. 402]: ``o carácter essencialmente fotográfico do cinema impõe que deva conservar por alterar alguns pedaços da realidade e permitir que a `voz da natureza' seja ouvida mais directamente do que no caso das outras artes. Pois por `naturalistas' que estas possam ser na sua escolha de meios, nunca podem fazer mais do que imitar objectos naturais, e nunca podem usá-los num estado bruto e original inalterado. (...) O cinema é a única forma de arte que toma posse de consideráveis fragmentos inalterados da realidade; interpreta-os, evidentemente, mas a interpretação permanece fotográfica. Uma paisagem fotografada, ou uma rua, uma frase ou gesto fotografados permanecem muito do que são em si próprios.'' Esta incorporação do que é registado, independentemente da intenção artística que presidiu ao registo, acarreta evidentemente o problema do excesso ou impertinência do registado, que tem sido referido na teoria do cinema como o problema da ``visibilidade total'': ``o facto de que a câmara pode sem intenção registar pormenores não requeridos pelo desenvolvimento dramático do filme, em contraste com o romance, onde apenas aqueles pormenores que o romancista quer incluir encontram lugar na página impressa''4.
Mas, para alguns autores que referirei, como Bazin, é justamente esse excesso do registado que constitui a maior virtude do cinema: o facto de a câmara, mesmo contra a vontade de quem a manipula, captar sempre, em bloco, um pedaço integral de realidade, e manter essa integridade, significaria a impossibilidade de falsificação na sétima arte.
Essa relação com um real que a técnica, ao mesmo tempo que parece conseguir de forma inédita captar, afecta inevitável e imediatamente de artifício, não deixa de inquietar a reflexão sobre o cinema até aos nossos dias. - o problema daquilo a que Kracauer5 chamou ``a redenção da realidade física'' pelo cinema. - que, por um lado, como escreve Christian Metz [1968:108], ``a manipulação fílmica transforma num discurso o que poderia ter sido apenas o decalque visual da realidade''; pode acrescentar-se, por outro lado, que, ao fazê-lo, transporta mais do que aquilo que pertence à ordem desse discurso, isto é, há elementos no filme que não são criados pelo próprio filme, que lhe preexistiam. Mas como essa incorporação do real é feita numa linguagem, quase todos aqueles que lhe dão crédito ou até preponderância teórica reconhecem que se trata de uma incorporação ambígua e complexa. Não é fácil lidar com o fascínio e as armadilhas da realidade no cinema. O que é importante aqui sublinhar é que, nos anos 50 e 60 (recuperando algumas reacções dos primeiros tempos do cinema), a inscrição do real foi erigida em princípio máximo e exclusivo, em prejuízo dessa ambiguidade e complexidade do cinema, e os efeitos dessa atitude sentem-se ainda hoje.
Estas questões estão muito inteligentemente colocadas e discutidas no livro do brasileiro Ismail Xavier, O Discurso Cinematográfico (de 1977, revisto em 1984 e complementado por uma antologia de 1983), o qual, segundo o próprio Xavier [1977:9], se estrutura, justamente, em torno da ``concepção assumida por diferentes autores e escolas quanto ao estatuto da imagem/som do cinema frente à realidade (dentro das concepções conflituantes que se tem desta)''. Em relação a uma concepção do cinema como mero registo do real, a que chama ``ingénua'', Xavier [1997:12] lembra que, ``se já é um facto tradicional a celebração do `realismo' da imagem fotográfica, tal celebração é muito mais intensa no caso do cinema, dado o desenvolvimento temporal da imagem, capaz de reproduzir, não só mais uma propriedade do mundo visível, mas justamente uma propriedade essencial à sua natureza - o movimento'', daqui resultando uma ``multiplicação enorme do poder de ilusão.'' Já em 1932, Rudolf Arnheim reconhecia que a fotografia, à qual falta o tempo e o volume, produz uma impressão de realidade muito mais fraca do que o cinema, o qual dispõe por seu lado da dimensão temporal, bem como de um equivalente aceitável do relevo (obtido nomeadamente pelo jogo dos movimentos). Ou seja, comenta Metz [1965:24], na fotografia, ``esse material tão semelhante ainda o não era suficientemente: faltava-lhe o tempo, faltava-lhe dar conta do volume de um modo aceitável, faltava-lhe a sensação de movimento, comunmente sentida como sinónimo de vida.''
No cinema, escreve Morin [1958], ``a conjunção da realidade do movimento e da aparência das formas leva ao sentimento da vida concreta e à percepção da realidade objectiva.'' Ideia que, diz Metz [1966:17-19, 21], tinha já sido desenvolvida por A. Michotte van den Berck, em 1948. Para este autor, ``o movimento contribui para a impressão de realidade de modo indirecto (dando corpo aos objectos), mas contribui também de modo directo, na medida em que aparece, ele próprio, como um movimento real. Com efeito, é uma lei geral da psicologia que o movimento, a partir do momento em que é percebido, é na maior parte das vezes percebido como real, contrariamente a muitas outras estruturas visuais como, por exemplo, o volume, o qual pode muito bem ser percebido como irreal mesmo quando é percebido (é o que acontece com os desenhos em perspectiva). (...) O movimento é `imaterial', oferece-se à vista, nunca ao toque. - por isso que não admitiria dois graus de realidade fenomenal, o `verdadeiro' e a cópia. - muitas vezes por referência implícita ao sentido táctil, supremo árbitro da `realidade' - o `real' é irresistivelmente confundido com o tangível - que sentimos como reproduções as representações dos objectos''. Fugindo por definição a essa prova da materialidade do tacto, todo o movimento é percebido como verdadeiro e, assim, ``os objectos e personagens que o filme nos dá a ver só ali parecem em efígie, mas o movimento de que estão animados não é uma efígie do movimento, ele aparece realmente''.6 Ou seja, ``no cinema, a impressão de realidade é também a realidade da impressão, a presença real do movimento.''
Não admira então, lembra Xavier [1977:12, 58], o modo como o cinema foi recebido quando surgiu. ``Nos primeiros tempos, são numerosas as crónicas que nos falam de reacções de pânico ou de entusiasmo provocadas pela confusão entre imagem do acontecimento e realidade do acontecimento visto na tela. Os primeiros teóricos fizeram deste poder ilusório um motivo de elogio (ao cinema) e de crítica (aos exploradores do cinema), que lhes consumiu boa parte de suas elaborações''. Foi o caso de grandes críticos do cinema mudo, como Louis Delluc, com os seus elogios ``às revelações profundas do instantâneo fotográfico e de sua defesa da `poesia das ruas', cuja riqueza e espessura humana clama pela representação cinematográfica''.
Mas aquilo que rapidamente caracterizou a maior parte da prática e da teoria que vem do cinema mudo foi, pelo contrário, a possibilidade de manipulação que existe no cinema, e não a sua captação do real. - certo que um realizador como Stroheim, ao filmar Greed (1924), insistiu em ter décors naturais, dizendo: ``Formei-me na escola de D. W. Griffith e tencionava fazer um pouco mais do que o Mestre, no sentido do realismo fílmico. Filmar em verdadeiras cidades e não em praças desenhadas por Cedric Gibbons ou Richard Days, em alamedas reais, com eléctricos, autocarros e automóveis reais, andando em reais avenidas ventosas, com poeira e sujidade reais, em casebres ou em castelos e palácios verdadeiros (...). Ia povoar as minhas cenas com homens, mulheres e crianças reais, como os que encontramos todos os dias na vida real'' [cit. in Grilo, 1993:111]. João Mário Grilo [1993:122] destaca em Greed um desejo de ``aproximar o cinema do seu fundamento ontológico''; e cita declarações feitas por Stroheim em 1924: ``o público tem que saber que tudo o que von Stroheim produz é feito com a maior honestidade e é tão fiável como o National Geographic ou a Enciclopédia Britânica. (...) Porque cada coisa que põe diante dos olhos do público tem de ser a própria coisa - a coisa real.''
Mas, mesmo na obra do próprio Stroheim, esse caso de rodagem inteiramente fora do estúdio foi excepcional, e o certo é que, ainda nos anos 50, graças a teorias que vêm desde Eisenstein até Malraux, o cinema era visto sob a perspectiva privilegiada da montagem. Para Eisenstein, é graças à montagem que o cinema se afasta do seu lado mecânico ou técnico e começa a ser arte. Como escreve Brian Henderson [1971:79], ``para Eisenstein, como para Pudovkin e Malraux, os fragmentos de um filme por montar não são mais do que reproduções mecânicas da realidade; como tal não podem ser considerados arte. Só quando os fragmentos são devidamente articulados em padrões de montagem é que o filme se torna arte.'' - que, comenta Eduardo Geada [1985:12], ``o que está implícito nas teorias eisensteinianas da montagem é uma vontade inabalável de controlar o pensamento do espectador através de choques emocionais que não se prendam apenas com o nível temático do drama, do real representado, mas dependam radicalmente da formalização abstracta de uma hipotética cine-língua.'' Daí ``que no ensaio dedicado aos métodos de montagem Eisenstein insista tanto na analogia do cinema com a música, visto que a música é uma das raras práticas artísticas não legitimada pela representação do real capaz de desencadear fortes estados emocionais a partir da sua matéria pura''.
-, pois, se não uma novidade absoluta, pelo menos uma ruptura radical aquela que se dá quando, a partir sobretudo dos finais dos anos 40, a técnica de reprodução que é constituinte do cinema começa a ser vista por vários autores, de variadas tendências, como aquilo que faz o cinema tornar-se arte, graças a uma relação privilegiada com a realidade, e já não pela composição formal dos seus fragmentos. Como escreve Henderson [1971: 78 e 94], são ``dois tipos de teoria do filme''. ``As principais teorias fílmicas existentes são de dois tipos: teorias da relação da parte com o todo e teorias da relação com o real. Como exemplos das primeiras, temos as de Eisenstein e as de Pudovkin, que tratam das relações entre as partes e os conjuntos cinematográficos; como exemplo das segundas temos as de Bazin e as de Kracauer, que tratam da relação da realidade com o cinema.'' ``Estas teorias-tipo não são nem novas nem únicas no cinema. As teorias da relação da parte com o todo e as teorias da relação com o real (por vezes chamadas teorias da imitação) têm tido uma longa vida na história do pensamento estético em geral. Durante o século dezoito eram as principais abordagens e as mais largamente defendidas.'' Leia-se Monroe C. Beardsley, ``que sugere que, devido ao atraso da teoria fílmica, elas são ainda as abordagens principais neste campo.''
Noël Carroll [1988a:7-8], por seu lado, pensa estes dois tipos de teoria com os conceitos de ``paradigma do cinema mudo'' e ``paradigma do cinema sonoro'': ``Apresento Arnheim como o maior representante do que pode ser (livremente) pensado como o `paradigma do cinema mudo' no pensamento sobre o cinema.'' Arnheim defende a especificidade deste medium, e um dos capítulos de Film as Art chama-se mesmo ``Um novo Laoconte: compósitos artísticos e o cinema sonoro''. ``A tendência dos teóricos do cinema mudo - incluindo, além de Arnheim, S. M. Eisenstein, Lev Kuleshov, V. I. Pudovkin, Hugo Munsterberg, Bela Balázs e os impressionistas franceses - é considerar que a característica esteticamente mais significativa do medium cinema é a sua capacidade de manipular a realidade, isto é, de rearranjar e assim reconstituir o acontecimento profílmico (o acontecimento que transpira diante da câmara).''
André Bazin é o maior representante da outra tendência, o paradigma do cinema sonoro, em que a defesa do cinema se funda no seu estatuto ontológico. Por isso Carrol pode dizer que ``os teóricos do cinema sonoro - incluindo Kracauer e Cavell tanto como Bazin - celebram o que os teóricos do cinema mudo reprimem.'' - sob a influência da fenomenologia sartriana que Bazin, para quem toda a técnica remete para uma metafísica, vem defender a ideia de que a especificidade do cinema não reside na capacidade de manipulação da montagem mas no seu oposto, ou seja, no ajustamento plástico da imagem cinematográfica ao sentido da realidade [cf. Geada, 1985 c:12]. Esta perspectiva ontológica passou, já nos anos 50, a marcar a teoria e a prática do cinema, afectando muito fortemente, por exemplo, o arranque da Nouvelle Vague francesa e o Cinema Novo português.
Note-se que algo dessa valorização ontológica do cinema se encontra já naquilo a que Xavier [1977:54] chama o ``realismo crítico'', de tipo marxista, apesar do seu pendor ideológico, na medida em que ele procura devolver o real à nossa atenção: não já por técnicas microscópicas, como se pensava no início do cinema, mas fazendo-nos conhecer a realidade de todos os dias, tornando visível e audível o que na percepção quotidiana passa despercebido. - certo que se trata de uma realismo ``apto a colocar os factos narrados em perspectiva e capaz de organizar suas relações de modo a que se produza um efeito específico: a imagem e o som não se combinam com o objectivo de mostrar algo mas com o objectivo de significar algo'', ``em nome de uma compreensão do seu significado histórico. O que está admitido aí é que tal significado existe objectivamente no próprio real, sendo papel do reflexo artístico justamente a explicitação de tal significado através de instrumentos específicos de representação.''
O ponto de viragem situa-se quando começa a ser considerado menos importante marcar o significado das coisas do que deixá-las falar por si próprias. Encontramo-lo, sobretudo, no neo-realismo italiano do fim dos anos 40, que já não procurava a manipulação politicamente correcta das imagens, porque criticava a própria ideia de manipulação: ``comparando, pode dizer-se que, enquanto a crítica do realismo crítico à montagem do cinema clássico visava a natureza das relações aí representadas, a crítica de Rossellini visa o carácter manipulatório dessa montagem. (... ) A montagem é o lugar da intervenção que pode destruir a revelação do essencial (aquilo que emana de cada imagem)''. E assim essa ```ideologia da imagem não-ideológica' inverte uma antiga oposição: de um esquema em que a imagem é tomada como lugar da ilusão e o pensamento articulado em palavras como lugar do discurso racional e dos conceitos verdadeiros, passa-se a um esquema em que a imagem torna-se lugar da revelação verdadeira e a linguagem articulada torna-se obstáculo, convenção, ideologia.'' ``A estratégia neo-realista, tendo como ponto de partida o facto banal, estabelece que ``a observação essencial deste pequeno facto será captada pela observação exaustiva, pelo olhar paciente e insistente'' e que ``cada fragmento representa o todo; o expressa'' [Xavier, 1977: 60, 61, 63].
Duas figuras importa destacar na teoria do neo-realismo italiano: Zavattini e Rossellini. ``Para Zavattini, a imaginação é lugar da superposição de fórmulas mortas a factos sociais vivos, de negação daquilo que a própria realidade já tem de espectacular e maravilhoso''; ele propõe uma radical ``redução do espaço que separa a coisa da sua descrição'', num cinema em que, ``não somente posso me deter na observação de qualquer fragmento, como devo detalhar o máximo possível tal mergulho no fragmento'' [Xavier, 1977:60]. E devo evitar a montagem: no limite, pode dizer-se que Zavattini sonha com um filme num único plano.
No mesmo sentido, Rossellini escreve, em Abril de 1959, nos Cahiers du Cinéma: ``A montagem já não é essencial. As coisas estão aí (...). Porquê manipulá-las?'' O neo-realismo critica a découpage clássica por ser manipuladora e por criar ``um mundo imaginário que aliena o espectador de sua realidade''; se a découpage clássica põe o falso a parecer real, ``o neo-realismo propõe-se a substituir tal artifício pelo trabalho de obtenção da imagem que, além de parecer, procura `ser real'. Há uma ética da `confiança na realidade' e da sinceridade'', nota Xavier [1977:61], que sublinha ainda como se começa a valorizar a ambiguidade dos filmes e a criar finais inconclusivos, como fidelidade à abertura e ambiguidade do real. Repare-se que, em geral, toda a arte modernista caminhou no sentido da assunção e defesa da ambiguidade [cf. Monteiro, 1996:39-48], mas, como bem nota Xavier [1977:61, 79], ``uma coisa é dizer: a arte é ambígua. Outra é dizer: a arte deve ser ambígua porque a realidade é ambígua.'' Umberto Eco, no seu famoso livro A Obra Aberta, de 1962, oscila entre ficar pela primeira afirmação e caminhar em direcção à segunda. Na mesma época (quase nos mesmos anos), ``o que vemos em Bazin ou Mitry é uma admissão que vai mais adiante: a ambiguidade não é o traço exclusivo definidor do objecto artístico; ela é um elemento definidor da própria realidade.'' E nisso parecem-me mais próximos de certas posições heideggerianas sobre a necessidade de nos voltarmos para ``o Aberto'', de deixarmos respeitosamente espaço à emergência do ser, de permitirmos que ele brilhe e ressoe no seu silêncio e mortalidade (embora Heidegger soubesse que isso só podia ser feito na linguagem, casa do ser, e estivesse preocupado tanto com o afastamento como com a proximidade excessiva em relação ao mistério - cf. Monteiro, 1996:passim, sobretudo p. 287).
Entretanto, em 1951, surgiram os famosos Cahiers du Cinéma, de que um dos fundadores, e primeiro impulsionador, foi André Bazin, que já desde 1945 defendia, para o cinema, o respeito pela ``integridade fenomenológica'' dos factos. Na sua obra mais marcante, Qu'est-ce que le cinéma?, publicada em quatro volumes entre 1958 e 1962, Bazin escreverá, sobre os neo-realistas: ``eles não esquecem que, antes de ser condenável, o mundo, simplesmente, é''. Bazin vai sistematizar a perspectiva ontológica não apenas como uma possibilidade do cinema, mas como a essência a que o cinema deve manter-se fiel. - que no cinema, ao contrário das outras artes, não existe uma separação do mundo, uma heterogeneidade em relação à physis: o cinema é o ``estado estético da matéria'', escreve Bazin. Por isso, segundo este tipo de concepção, ``no cinema, há um ilusionismo legítimo que constitui base para o verdadeiro realismo, tanto mais verdadeiro quanto mais a realidade vista (ou que se supõe vista) através da janela cinematográfica permanecer integral, respeitada, intocável, porque a sua simples presença é reveladora - o que legitima, redime a ilusão (pecado) original'' [Xavier, 1977: 70].
Nesta perspectiva, a inscrição técnica, fotográfica, da realidade no filme permite abrir para um conceito de cinema em que o real deixa de ser pensado na sua acepção física para adquirir uma dimensão propriamente ontológica, quando não meta-física. Para Rossellini, há que procurar ``rever as coisas tal como elas são, não em matéria plástica, mas em matéria real. Então talvez possamos começar a orientar-nos.'' - essa passagem, ambígua, pouco transparente, da realidade física à realidade metafísica ou ontológica, que constitui o centro da obra de André Bazin. Como nota Henderson [1971: 95], ``Bazin procura provar que a fotografia e o cinema são descobertas que, pelas suas próprias características técnicas, satisfazem a obsessão humana do realismo, libertando a pintura dessa tarefa''. (O nosso Almada Negreiros, como se pode ver na recensão que faço no fim desta revista, argumentava no mesmo sentido.)
Em Qu'est-ce que le cinéma? [1958:43], Bazin escreve: ``só a objectiva fotográfica nos dá do objecto uma imagem capaz de despertar do fundo do nosso inconsciente esta necessidade de substituir o objecto por algo melhor do que um decalque aproximado: o próprio objecto, liberto das contingências temporais.'' Mas, de necessidade ou vocação do cinema, essa inscrição do real no cinema passa, para Bazin, a ser um facto consumado (e vie-versa): ``a imagem pode ser nebulosa, deformada, desfocada, sem cor, sem valor documental, mas ela provém, através da sua génese, da ontologia do modelo; ela é o modelo.'' Por isso, no dizer de Bazin, no cinema o objecto não é ``representado'', mas sim, ``na verdade, reapresentado, ou seja, tornado presente no tempo e no espaço. A fotografia beneficia de uma transferência de realidade da coisa para a sua reprodução.'' Isto deve-se à própria ``ontologia da imagem fotográfica'' (título de um dos ensaios de Qu'est-ce que le cinéma?,7 que pela sua natureza pode participar do real: ``a fotografia e o objecto em si próprio partilham de uma existência comum''. ``A existência do objecto fotografado participa da existência do modelo como de uma impressão digital'', porque opera ``uma espécie de decalque ou transferência'', como ``o Santo Sudário de Turim'': ``a moldagem das máscaras mortuárias apresenta também um certo automatismo na reprodução. Neste sentido, podia considerar-se a fotografia como uma moldagem, um registo das impressões do objecto por intermédio da luz.'' Se juntarmos a essa ontologia da imagem fotográfica'' a ``realidade suplementar'' do som, temos que, para Bazin, o cinema toca a realidade, tira alguma coisa dela, opera uma ér io das coisas. Tudo se passa como se a mise en scène devesse descer em direcção a essa humildade, despossuir-se dos seus poderes manipuladores para se tornar, por sua vez, humilde espectadora das coisas''.
Bazin compara ``os realizadores que acreditam na imagem'' com ``aqueles que acreditam na realidade'': defendendo uma ``auto-anulação perante a realidade'', ``os realizadores preferidos de Bazin são os que sabem preservar os princípios estético e psicológico do axioma da objectividade, recusando a trucagem e alinhando tanto quanto possível o olhar da câmara pelo olhar do homem. Daqui a valorização sistemática das objectivas que não deformam a perspectiva, da profundidade de campo que permite a liberdade da circulação do olhar do espectador e o efeito de montagem no interior do plano, do plano-sequência que regista fielmente o tempo real da filmagem, do respeito pela unidade do espaço cénico entendida como o garante da verdade na relação da câmara com os actores e com o real''; ``Bazin toma o partido da realidade porque o cinema ideal não fará mais do que conservar, pela escolha paciente e inteligente do cineasta, o espaço e o tempo que as coisas habitam'' [Geada, 1985c:12-13].
Daí também a defesa do plano-sequência, em que a câmara se mantém fixa a registar o que vê, e a condenação dos filmes e séries que fazem a montagem com raccord no eixo, isto é, a montagem naturalista que quer fazer crer na realidade e continuidade de um acontecimento, quando de facto está a colar diversos planos. ``Bazin quer um cinema que só conheça a imanência (...); uma passividade no olhar, cuja isenção lhe torna capaz de `receber' o que emana dos seres e do mundo. O mergulho radical na aparência fica sendo a condição para a acumulação de dados sensíveis capaz de provocar a ascensão (desencavação) das ideias justas - não ideológicas'' [Xavier, 1977: 75]. E parece-lhe que a tendência do cinema, depois do reinado da montagem (tanto no vanguardismo como na découpage naturalista clássica), caminha justamente no sentido do respeito pela matéria e o tempo; Bazin cita em seu apoio não só o neo-realismo, como as obras de Orson Welles, Jean Renoir e William Wyler, isto é, de todos os que, à multiplicidade dos planos cortados e montados, preferiam a profundidade de campo e o que ele baptizou de plano-sequência.
Repare-se que, apesar de ser contra a reorganização dos fragmentos num todo ideológico ou dramático que lhes dê um sentido determinado, Bazin não se opõe à narração ficcional - embora goste que ela seja do tipo ``objectivo'' e ``de reportagem'' como em certos escritores americanos (Hemingway, John dos Passos). Pode mesmo dizer-se, como Xavier [1977:71], que ``Bazin é um apologeta da narração ficcional e sua estética não poderia desembocar na proposição exclusiva de um cinema documentário, um cinema verdade'', embora incluísse tal proposta. - que ``há manipulações e manipulações; seu julgamento depende do nível em que elas se situam.'' Bazin aceita e defende a constituição de mundos ficcionais, sejam eles criados em primeira mão pelo cinema, ou adaptados da literatura; o que ele exige é que eles sejam filmados com o respeito por esses mundos, sem manipulações, como se eles fossem reais; é aquilo a que ele chama ``documentário imaginário'', como se a câmara estivesse a tornar visível, e por isso aparentemente real, a imaginação. ``Deste modo, em princípio arbitrário, ele considera legítima a manipulação que salva a inocência do cinema - o que se passa diante da câmara não pertenceria ainda propriamente a ele - e condena a manipulação especificamente cinematográfica - a montagem (esta mexe na santa imagem obtida pelo processo cinematográfico). As razões para tal tratamento diferencial vêm do facto de que nem Hollywood levou tão a sério como Bazin a necessidade de se manter, para além das deduções da razão que não acredita, uma fé irracional na verdade da imagem, uma fé que viria do fundo do psiquismo do espectador'' e ``que se manteria no cinema desde que se garantisse a não intervenção da montagem (...). Garantido isto, Bazin nos diz que, devido a esta credibilidade, o poder fundamental da imagem cinematográfica está em projectar um `valor de realidade' sobre a representação, sobre a mentira ou seja lá o que for que se passe diante da câmara''.
Ou seja, de facto, o grande inimigo, para Bazin, é a montagem, e nisso inverte ``a fórmula dos teóricos russos: a montagem seria o lugar da ruptura com o específico cinematográfico, mostrando-se um procedimento literário, porque instituiria um relato composto de imagens (fragmentos de factos ou de coisas), não a reprodução efectiva do facto na sua integridade. Somente esta reprodução atingiria o específico cinematográfico, ou seja, a atribuição do `valor de realidade' aos factos apresentados''. São de dois grandes tipos as traições ontológicas que, segundo Bazin, existem na montagem. Por um lado, ao seleccionar e ordenar os acontecimentos, impondo que vejamos primeiro uma coisa e depois outra, a montagem opõe-se ``essencialmente e por natureza à expressão da ambiguidade'': ela é a ``criação de um sentido que as imagens não contêm objectivamente e que provém tão-só de seu relacionamento''. Por outro lado, ``ela impossibilita a captação do que seria uma propriedade essencial das coisas e dos factos: a sua duração concreta; (...) quando, no cinema, a duração concreta não está expressa na imagem, só tenho uma ideia intelectual do tempo transcorrido. Na montagem, os fragmentos combinados são capazes de `significar' um espaço, assim como de sugerir, significar um tempo. Mas, isto não substitui a sua percepção efectiva'', a experiência do tempo como duração (``aqui Bazin inspira-se totalmente em Henri Bergson''). Essa só será garantida quando, contra a montagem, for assegurado o ``reinado da continuidade, tomada em seu sentido mais absoluto: não apenas no nível lógico (consistência no desenvolvimento das acções), mas também no nível da percepção visual (desenvolvimento contínuo da imagem sem cortes).'' A découpage clássica ``é eficiente do ponto de vista narrativo, mas não do ponto de vista da fidelidade à percepção natural.'' Bazin parte ``sempre da hipótese de que nossa experiência natural corresponde à percepção contínua de uma realidade também contínua e sem lacunas. Esta hipótese é decisiva no seu esquema, uma vez que toda a sua perspectiva estética pode ser sintetizada numa regra fundamental que define as condições necessárias e suficientes para o realismo no cinema: um espaço `à imagem do real' (tridimensional, contínuo, lugar de factos aparentemente naturais) é `captado' pela câmara de modo a que se respeite a sua integridade e de modo a que a imagem projectada na tela forneça uma experiência deste espaço que é equivalente à experiência sensível que temos diante da realidade bruta. Esta equivalência será obtida quando os meios especificamente cinematográficos estiverem mobilizados, não apenas para reproduzir uma certa lógica `natural', mas para reproduzir `certos dados psicológicos ou mentais da percepção natural''' [Xavier, 1977: 72-73].
Perante a evidência de ninguém fazer um filme inteiro num só plano, Bazin é forçado a admitir que a montagem tem de continuar a existir, mas apenas residualmente, sem instituir nenhuma relação essencial, nenhuma significação. Isto significa, porém, que as suas posições já não podem reclamar um estatuto ontológico ou epistemológico; são, isso sim, uma aspiração estética e ética, uma estilística, que seria mais legítima se se apresentasse como tal. O que desde logo põe em causa esta fundamentação ontológica do cinema num registo fotográfico é que apenas podemos recorrer mais ou menos aos planos-sequência, mais ou menos longos; mas o filme, no seu conjunto, terá sempre de recorrer à montagem de vários desses planos. De modo que, como já nos anos 20 defendia Eisenstein [cit. in Henderson, 1971: 82, 86], ainda que os fragmentos do filme se fundam com a realidade, sejam ``fragmentos de realidade'', a identidade dos fragmentos do filme com a realidade é inviável: este vínculo é ``dissolvido quando o fragmento se combina com outros fragmentos nas sequências de montagem'', dando-se uma alteração qualitativa do fragmento: ``o resultado distingue-se qualitativamente de cada elemento componente visto em separado''. Essa alteração qualitativa, evidentemente, não preocupava Eisenstein, que via nela, precisamente, a possibilidade de o cinema ser Arte, pela montagem: ``definir desta forma a arte cinematográfica implica a rejeição dos fragmentos não montados do filme, aquilo a que poderíamos chamar plano-sequência, como não sendo arte; é precisamente o que faz Eisenstein'', que considera o plano-sequência como pertencente ``ao período préhistórico nos filmes'' e um ``conceito totalmente antifílmico'' [Henderson, 1971: 80].
Querendo defender uma posição contrária, mas sem poder assentar numa análise, que invalidaria a carga ontológica que pretende dar aos seus argumentos e o obrigaria a apresentá-los como uma outra estilística, um outro jogo de linguagem, Bazin consegue defender as suas posições com veemência e interesse, mas com muitas fragilidades e inconsistências: em muitos aspectos, a sua obra é mais um exorcismo do que uma teoria. Como nota Xavier [1977: 73-77], ``em vez de se dirigir ao exame da percepção como actividade e ao exame das condições e implicações presentes nesta actividade - o que levaria Bazin na direcção de uma autêntica fenomenologia -, ele pressupõe razoavelmente conhecida sua natureza (dentro do modelo da contemplação) e concentra seus esforços na expulsão de qualquer actividade estranha a ela.'' Enquanto Arnheim, por exemplo, logo em 1932 tinha feito ``uma descrição de certas diferenças de imediato dadas na configuração da imagem projectada na tela (superfície plana, os limites do quadro, a escolha do ponto de vista, a descontinuidade instituída pela montagem)'', ``a estética realista de Bazin julga-se auto-definida sem que haja maiores explicitações sobre o elemento chave por onde começam as discussões neste terreno: a noção de realidade. As coisas `estão aí', disponíveis para a nossa percepção; elas duram e sua existência tem seus mistérios'', e basta. Nesse sentido, o seu ``realismo estético não é a expressão de um pensamento, mas um exercício do olhar. (...) O que importa é a manifestação de um estilo de câmara, de uma nova narração'', seja em Welles, em Wyler ou nos neo-realistas.
Os pressupostos físicos em que a teoria de Bazin assenta são muito mais discutíveis do que aquilo que ele está disposto a discutir. Desde a ideia da percepção natural contínua que existiria no quotidiano, como se percebessemos o mundo sem montagem, como fragmentos que não remetem para relações e significados, até à ideia absolutamente literal da reprodução que seria feita pela imagem fotográfica, como se não existisse, por exemplo, uma lente na captação e toda uma parte de técnica, e uma parte de convenção, nessa reprodução. Já em 1936 [p. 31], Walter Benjamin tinha analisado com muito mais atenção a complexidade dessa reprodução: ``a aparelhagem, no estúdio, penetrou tão profundamente a própria realidade que, para lhe restituir a pureza, para a despojar desse corpo estranho que a aparelhagem constitui, é preciso recorrer a um conjunto de procedimentos específicos: variação dos ângulos de filmagem, montagem que reúna várias sequências de imagens do mesmo tipo. Despojada de tudo o que a aparelhagem lhe acrescentou, a realidade torna-se aqui a mais artificial de todas, e, no mundo da técnica, a captação imediata da realidade enquanto tal não passa de uma ingenuidade''.9
Aliás, como lembra Bonitzer [1982: 121, 124], o que torna ainda mais inviável a posição de tipo baziniano é que, mesmo no plano-sequência, há sempre montagem, porque ``o lugar da própria câmara no campo, uma vez que recorta de modo interessado um pedaço do espaço visual, é já uma montagem'' - tal como a profundidade de campo é já uma organização dos planos na rodagem. Por isso, diz Bonitzer, na fórmula de Rossellini ``há toda uma batota histérica: a mise en scène esforçando-se por mimar o espectáculo passivo, aplicando-se gentilmente à realidade nua.'' O próprio Bazin não podia deixar de conhecer os múltiplos aspectos do artifício cinematográfico; ele queria era fundar uma ontologia que, em vez de partir desses aspectos, os ignorasse. Nas suas próprias palavras [1960: 124], ``é preciso, para a plena realização estética do empreendimento, que possamos acreditar na realidade dos acontecimentos, embora saibamos que são trucados''. Da mesma maneira, Bazin [1960:128] estava consciente de que, ao contrário da pintura, que é ``centrípeta'', a imagem do cinema é ``centrífuga'', isto é, os seus fragmentos vivem de uma relação extrínseca com um espaço exterior, off (aspecto que Noel Burch [1969] irá desenvolver), que não é fotograficamente reproduzido. Não é por acaso que, como vimos, Bazin acaba por centrar muita da sua argumentação nas vantagens de optar, tanto quanto possível, pelo respeito pelo tempo concreto das acções filmadas: é que, ao contrário do que queria fazer querer a profissão de fé na imagem (em que claramente assenta esta ontologia fotográfica), o espaço do ecrã de cinema, evidentemente, nunca reproduz o espaço real; só o tempo pode ser respeitado, e mesmo assim apenas em partes do filme, mais ou menos longas.
Em 1965, escassos anos depois da obra magna de Bazin, surge Theory of Film, de Siegfried Kracauer, um alemão exilado nos Estados Unidos, que também pugna por um cinema aideológico e não naturalista, a que Xavier [1977:55-59] chama ``empirista''. Mas Kracauer parte de um novo argumento: o fim das ideologias. ``A primeira de suas hipóteses, de nível mais geral, é fornecida pela sua visão da sociedade e da cultura contemporâneas, a seu ver, dominadas pelo que ele chama de `desintegração ideológica'. (...) A queda dos antigos credos é apontada por ele como correlata à expansão da ciência, cuja legitimidade reconhece e aplaude'' mas que coloca grandes desafios, ``concentrados em torno de duas questões básicas: a da impossibilidade de uma visão integrada do universo (...) e a da crescente abstracção que o conhecimento científico acarreta (...) Para Kracauer, imerso num oceano de instrumentos sofisticados e representações generalizadas, o homem teria se desengajado da realidade concreta. - como instância privilegiada da resposta a estes desafios que o cinema será abordado. Em princípio, será função não só do cinema mas da arte em geral, produzir experiências aptas a fornecer o retorno ao mundo concreto, a provocar a reactivação da percepção directa e vivida dos eventos. (...) No caso específico do cinema, esta missão fundamental adquire importância maior em função das próprias características deste veículo. Aqui, entra em cena a admissão da `essência realista' do processo cinematográfico como técnica de reprodução.''
Xavier sublinha a necessidade de analisar que tipo de realismo qualifica esta perspectiva ontológica: o que permite, no caso de Kracauer, ``qualificar seu realismo de empirista são três aspectos articulados, que se destacam em sua formação:
- (1) a revelação cinematográfica corresponde a uma leitura do `livro da natureza'; a realidade penetrada é, em princípio, o tecido dos fenómenos físicos, inclusive nos domínios inacessíveis ao olho natural (...)
- (2) este nível, natureza física, constitui o nível substancial do mundo que nos cerca: ele não simbolizaria nenhuma realidade transcendente. Em relação ao seu conhecimento, os homens estariam agora numa posição privilegiada, pois a desintegração das ideologias e a ausência de preconceitos oriundos destas ideologias estaria abrindo espaço para um corpo a corpo directo com a natureza (...).
Combinando (1) e (2), emerge um cinema redentor: `O cinema torna visível aquilo que não víamos - e talvez nem pudéssemos ver - antes do seu advento. Ele efectivamente nos ajuda na descoberta do mundo material com suas correspondências psicofísicas. Literalmente, redimimos este mundo da sua inércia, de sua virtual não existência, quando logramos experimentá-lo através da câmara. E estamos livres para experimentá-lo porque estamos fragmentados. O cinema pode ser definido como o meio particularmente equipado para promover a redenção da realidade física.'''
- (3) ``a noção de experiência - básica na sua própria concepção do papel da arte num mundo dominado pela ciência - reaparece como núcleo e limite da verdade humana a ser revelada pelo testemunho do cinema. (...) Dentro do fluxo da vida, em seus horizontes indeterminados, o apreensível é a experiência do momento singular e do `pequeno facto', a observação directa das acções elementares que definem o homem em sua relação com o ambiente. (...) Não surpreende que Kracauer seja categórico na afirmação da incompatibilidade radical entre a tragédia (no sentido clássico) e aquilo que ele chama de abordagem cinematográfica da realidade. A concepções de um cosmo ordenado e finito, de uma realidade plena de sentido, que emerge da representação clássica, não teria lugar na tela, pois o filme constitui um fluxo de acontecimentos aleatórios que envolvem homens e objectos, captando uma modalidade de existência imersa num universo infinito e contingente. No limite, a proposta de Kracauer implica na extensão de tal incompatibilidade a qualquer representação do mundo como totalidade organizada.''
``Dentro desta moldura ideológica de Kracauer'', continua Xavier, ``as regras gerais do bom cinema estarão bastante afinadas com o sistema da montagem invisível e da representação natural que caracteriza a decupagem clássica. No seu esquema, a montagem não é nada além do que uma `rota de passagem' (...). Seus pontos de atrito com Hollywood serão o aparato convencional e a manipulação que caracteriza a produção industrial. Em oposição à realidade fabricada'', Kracauer prefere ``a afinidade com os espaços abertos e não compostos, a afinidade com o não encenado, com o fortuito, com o sem fim, com o indeterminado'' (como Bazin, que no entanto estendia a sua crítica à découpage clássica). Neste aspecto, é possível aproximar Kracauer e o neo-realismo, que ele elogiava ``como um dos modelos do bom cinema em oposição a propostas não realistas de vanguarda e a certos géneros convencionais típicos a Hollywood.'' Mas note-se que, no caso do neo-realismo, nomeadamente no contexto do pós-guerra italiano, não se tratava apenas da redenção da realidade física, mas sim da realidade humana, fosse esse humanismo de pendor mais marxista ou mais cristão; era uma denúncia do mundo industrial capitalista que, embora não esteja fora do horizonte teórico de outros textos de Kracauer, amigo de Adorno, já não surge quando ele, no exílio americano, escreve Theory of Film: tal como em Bazin, ``a concepção que Kracauer tem da fotografia estabelece uma camisa de força a envolver o seu olhar dirigido aos filmes e não vemos aqui o crítico da cultura mais lúcido e aberto''; ``sua aceitação enfática da `verdade' inerente à técnica o enreda no `ilusionismo' num momento em que a discussão teórica já atingira maior complexidade, seja na reflexão sobre a `impressão de realidade' feita pelos fenomenólogos franceses, seja na crítica ao naturalismo feita por diferentes cineastas, notadamente Eisenstein.''
Além disso, a perspectiva de Kracauer, como aliás a de Bazin, cinge-se às questões da reprodução do real, sem considerar a criação de real que é feita no filme - sobretudo, mas não exclusivamente, no filme a que explicitamente se chama de ficção. Ou seja, falta nesta discussão aquilo a que, logo no início dos anos 70, se começou a chamar a diferença entre o efeito de realidade e o efeito de real. ``Tomando por base a tradição da pintura figurativa ocidental e os seus códigos de representação,10 Jean Pierre-Oudart [1971: 19-26] fez a distinção entre efeito de realidade, como produto de uma tecnologia e da utilização dos seus códigos pictóricos específicos (a perspectiva artificialis, por exemplo) e efeito de real, que permite a transformação da representação em ficção, pela inscrição, na própria economia figurativa da representação, de um lugar destinado a ser ocupado pelo espectador. No primeiro caso, o que está em causa é, principalmente, a natureza geométrica da imagem, no segundo, a sua eficácia cénica e dramática'' [Grilo, 1993: 34]. Esta diferença já estava, aliás, muito bem tratada (embora sem utilizar as expressões efeito de realidade e efeito de real, era da passagem de uma à outra que se tratava) num artigo de 1965 em que Christian Metz [pp. 22-23] sublinhou a importância de distinguir ``entre dois problemas diferentes: de um lado, a impressão de realidade provocada pela diegese, pelo universo ficional, pelo `representado' próprio de cada arte; e, de outro lado, a realidade do material empregue em cada arte para os fins da representação; de um lado, é a impressão de realidade, do outro a percepção da realidade, isto é, todo o problemas dos índices de realidade incluídos no material de que cada uma das artes da representação dispõe. (...) Na verdade, a questão é mais que há um ponto óptimo, representado pelo cinema, aquém ou além do qual a impressão de realidade produzida pela ficção tem tendência a decrescer. Além, temos o teatro, em que um material demasiado real faz fugir a ficção; aquém, temos a fotografia e a pintura realista, em que um material demasiado pobre em chamadas à realidade acaba por já não ter força suficiente para sustentar e constituir um universo diegético. (...) Entre esses dois escolhos, o cinema encontra um equilíbrio precioso: traz consigo suficientes elementos de realidade - respeito textual dos contornos gráficos e sobretudo presença real do movimento - para nos dar sobre o universo da diegese uma informação rica e variada, que o material da fotografia ou o da pintura não autorizam; mas, tal como a fotografia e como a pintura, ele permanece feito de imagens: a percepção do espectador trata-o como tal e nunca o confunde com um espectáculo real''. Assim, ``a porção de realidade que está disponível para a ficção é mais forte no cinema do que no teatro. Em suma, o segredo do cinema é conseguir meter muitos índices de realidade nas imagens, as quais, assim enriquecidas, continuam no entanto a ser percebidas como imagens. Imagens pobres não alimentam suficientemente o imaginário para que ele ganhe realidade. Inversamente, a simulação de uma fábula por meios tão ricos como o real, porque reais - é o caso do teatro - arrisca-se sempre a surgir como a simulação demasiado real de um imaginário sem realidade.''
Entretanto, entre a publicação de Bazin e a de Kracauer, já Jean Mitry dera à estampa Estética e Psicologia do Cinema, de que em 1963 saiu o primeiro volume e, em 1965, o segundo. Aí, como sintetiza Xavier [1977: 77-78], ``num primeiro momento de seu discurso, emerge uma crítica radical às crenças de Bazin. Mitry quer repor a fenomenologia em seu devido lugar.'' ``Buscando suas bases nas fenomenologias de Husserl, Merleau-Ponty ou Sartre, ou na filosofia da `duração' de Henri Bergson, ou nas formulações mais modernas no campo da lógica, Mitry reúne ecleticamente tudo o que é possível para, no fundo, esboçar uma nova filosofia. (...) E esta se traduz numa idéia do cinema que fica a meio caminho entre o realismo revelatório de Bazin (cinema amarrado ao real que ele duplica) e o cinema-discurso do semiólogo (cinema francamente irreal porque discurso inscrito nas convenções das várias linguagens nele presentes). A fórmula de Mitry será: no cinema o real se organiza em discurso.'' E, nessa transformação, inevitavelmente, ``algo se acrescenta (uma intencionalidade) e algo se perde'' (do real não mediado).
Assim, com uma perspectiva mais complexa, que não renega a linguagem, Mitry inflecte o pensamento de Bazin no sentido dos neo-realistas ou, mesmo, no do realismo crítico, juntando a materialidade resultante do registo cinematográfico com o reconhecimento e defesa da produção de novos significados no discurso fílmico. No dizer de Xavier [1995: 78-79], ``a imagem de Mitry carrega consigo a presença das coisas e tem como missão fundamental mostrar um `aspecto do mundo', tornar presentes os objectos como produto de um `olhar' que define um `campo' e uma `intencionalidade'. A realidade da tela é, à diferença do mundo real, orientada (tendente a realizar uma finalidade). Nela, a presença das coisas marca uma certa necessidade e o fragmento do mundo natural apresentado é inscrito num novo espaço-tempo'': ``a montagem, justamente com as características próprias do enquadramento (ponto de vista, limites do quadro), é responsável por aquilo que Mitry chama reforma dos elementos reais dados. (...) Mitry dirá que, no cinema, o real torna-se elemento da sua própria afabulação. `O tempo do romance é construído com palavras. No cinema, é construído com factos. O romance suscita um mundo, enquanto que o filme coloca-nos em presença de um mundo que ele organiza conforme uma certa continuidade. O romance é uma narração que se organiza em mundo, o filme é um mundo que se organiza em narração'''.
Repare-se que Mitry ``continua a usar a expressão `cinema = arte do real', admitindo a presença de uma ponte essencial que liga tal imaginário à realidade. Daí a utilização da ideia de reforma e não da ideia de construção: o imaginário é composto por vários `tijolos' extraídos do real, e estes, na nova ordem, não perdem o seu peso de `coisidade'. Tal ponte com o real fica mais evidente quando Mitry, enfaticamente, promove um ataque a qualquer construção francamente artificial apta a denunciar a não naturalidade do material visado pela câmara. Ele vai combater o expressionismo (preestilização dos cenários e uso ostensivo de pinturas), Eisenstein (metáforas impostas ao mundo diegético, o uso simbólico de objectos, montagem intelectual seguindo uma ideia e não os factos) e Bergman (cujos símbolos artificiais se misturam arbitrariamnete aos factos).''
Outras vezes, Mitry admite a existência de dois cinemas (sendo clara qual a sua preferência, embora nunca assumida como mera preferência entre dois cinemas possíveis, tal o essencialismo que tem caracterizado grande parte da teoria do cinema):``um cinema realista fiel à imanência, às coisas que existem, aberto, captando o mundo contingente - o aqui e agora -, o ser situado que vive diante da câmara. E um cinema irrealista, em busca de essências, que procura libertar-se do contingente e procurar verdades atemporais. Este último seria o lugar da obra fechada, cuja harmonia e perfeição estariam vinculadas à constituição de um espaço dramático semelhante ao teatral. O cinema realista seria, tal como o cinema contemporâneo (em torno de 60), o lugar da desdramatização, da perda de perfeição e o lugar da informidade. Um cinema capaz de se surpreender com as coisas, onde o acaso se insinua e o desenvolvimento lógico e coerente é abandonado em nome de uma maior `autenticidade' e de um maior `realismo' ao mostrar o instante, o momento vivido'' [Xavier, 1995: 78-79].
O facto de, já em 1963, a ideia de realidade no cinema ser integrada por Mitry numa complexa concepção de cinema como construção e linguagem não significa que deixem de surgir esforços de recupenema e dos seus efeitos em quem vê. As raízes dessa incompreensão remontam aos primeiros escritores como Munsterberg, que pensaram que o cinema era preeminentemente um medium de subjectividade. Esse erro está hoje tão fortemente entrincheirado na teoria do cinema como em qualquer outra época. Podia ter sido de outra maneira; a obra de Bazin continha em si as sementes de uma perspectiva melhor. Mas o `realismo' de Bazin era exagerado, e a reacção a ele era inevitável.'' Currie propõe-se regressar a ele, com mais nuances e sobretudo com novos fundamentos. Declara [1995: xxiii-xxiv, xvi, 283] dever muito, ``pelo menos em espírito, à linguística de Chomsky, e nada à de Saussure; muito à filosofia contemporânea da mente e à ciência cognitiva, e muito pouco a Freud e aos seus seguidores. Mas a influência mais forte neste trabalho é essa preocupação quase obsessiva com o realismo que tanto distingue o melhor da filosofia australiana.''
Tal obsessão leva-o a eleger dois grandes inimigos que, ao conceberem o cinema como construção simbólica, se afastam da objectividade: a filosofia da linguagem e a psicanálise. Defendendo aquilo a que chama um ``realismo perceptivo'', Currie insiste ``que os filmes em geral, e as imagens cinematográficas em particular, são em aspectos significativos como as coisas que representam'' (apesar de não serem iguais a essas coisas, como quer a ``transparência'', caso particular das ``teses da apresentação'', que no entanto Currie combate muito menos do que as ideias de ``ilusão''). Currie rejeita que exista ``algo de fundamental em comum entre as imagens e a linguagem'', e propõe o regresso à perspectiva ``fora de moda de que, enquanto as palavras operam por convenção, as imagens operam por semelhança. Na perspectiva semiótica, todas as representações são convencionais, e a ideia de que as imagens possam nalgum sentido ser como as coisas que representam é parte de uma obscurantista ideologia do realismo. Esta suposição (...) tem largo apoio na comunidade intelectual. Uma versão dela foi defendida por Nelson Goodman, e há pistas dela no trabalho do historiador de arte Ernst Gombrich e no psicólogo perceptivo Richard Gregory, cujas perspectivas se relacionam com a ideia de Karl Popper de que as percepções são `hipóteses'.'' Preferindo ignorar que se trata de mais do que pistas soltas, quer na teoria das artes (visuais ou não visuais), quer na própria teoria das ciências (conforme procurei sintetizar em 1996: 28-29, 69-81 e 179-193), Currie [1995: xvi, 281, 282] lamenta a capacidade que a ``suposição semiótica'' tem tido para ``persistir, particularmente nos estudos cinematográficos''. E procura contrapor-lhe uma alternativa, adequada pelo menos ao caso do cinema (que ele precisa, para o efeito, de conceber como medium predominantemente visual e pictórico): defende que as imagens do cinema ``são tipicamente imagens realistas: imagens que são, de modos significativos, como as coisas que representam. E é em parte em virtude da sua semelhança com essas coisas que nós podemos reconhecer o conteúdo descritivo dessas imagens. Por essa razão o cinema não é um medium linguístico, nem é, em qualquer sentido interessante, como um medium linguístico.''
O próprio Currie acrescenta logo algumas reservas à sua posição: ``é importante não se criar aqui uma falsa dicotomia entre aqueles que pensam que os trabalhos nos media pictóricos podem ser inteiramente compreendidos em termos de aptidões perceptivas universais em toda a humanidade e aqueles que pensam que as imagens requerem um acto de interpretação que de modo algum garante o mesmo resultado para todas as pessoas. Se as imagens fazem apelo a aptidões perceptivas básicas que são vastamente partilhadas nas comunidades e, segundo creio, até certo ponto são partilhadas por várias espécies, há ainda assim uma boa quantidade de trabalho interpretativo para ser feito quando as aptidões perceptivas são desenvolvidas''; pelo que existem ``alguns aspectos comuns e fundamentais entre a interpretação de obras linguisticamente codificadas e a interpretação do cinema ou de outros media pictóricos, apesar da existência do golfo natureza/convenção que os divide'' - mas, ao reiterar esse golfo, remete tal reserva para a insignificância e coloca claramente o cinema do lado da...natureza!
A partir daqui, Currie [1995: xiv-xv] procura também encontrar uma alternativa objectivante para a psicanálise: ``os teóricos do cinema compreenderam mal a relação entre as ordens simbólica e pictórica, e não conseguiram produzir uma psicologia plausível da experiência do cinema.'' ``E quando a ênfase da teoria do cinema se deslocou da linguística pura e dura para a psicanálise, o ímpeto para este movimento parece não ter vindo de uma rejeição do modelo linguístico, mas sim da ideia de que os modelos psicanalíticos são eles próprios como a linguagem'' (aqui a bête noire é Lacan e a sua ideia do inconsciente ``estruturado como uma linguagem''). Currie rejeita ``que a psicanálise, ou alguma versão dela, seja correcta, e que seja capaz de iluminar a nossa experiência do cinema. Acontece que eu não acredito nisso, porque acredito que a psicanálise é falsa, não apenas no sentido de ter umas quantas coisas erradas, como a teoria da relatividade provavelmente tem, mas no sentido de ser selvatica, profunda e irrecuperavelmente falsa, como é a física de Aristóteles. (...) - claro que a experiência do cinema, como qualquer outra, é assunto para a investigação psicológica, e não pode ser entendida em termos filosóficos a priori. Mas a psicologia de que precisamos não é a psicanálise - sobretudo não é a versão de Lacan (...). A psicologia empírica contemporânea e os filósofos da linguagem e da mente encontraram um modo de conjugar os seus recursos no projecto chamado ciência cognitiva. O objectivo é construir modelos plausíveis da mente e das suas funções, mais pormenorizados e específicos do que os filósofos por si sós poderiam conceber, e mais flexíveis e abstractos do que a neuropsicologia por si só poderia gerar. Em contraste com o programa psicanalítico, a ciência cognitiva combina uma argumentação clara e rigorosa e um compromisso com os padrões mais exigentes de testabilidade empírica que podemos conceber''. Não creio, porém, que exista na própria psicologia cognitivista contemporânea qualquer possibilidade de sustentar um objectivismo como o de Currie: pelo contrário, os modernos cognitivistas dedicam-se a factores que o ``realista australiano'' proibiria como subjectivos, tais como a construção, a narrativa, a metáfora, o inconsciente...11
Há mais de 20 anos, o cineasta Robert Bresson [1975: 139], nalguns aspectos próximo da concepção baziniana, estava já muito mais consciente do que se perde de real ao captá-lo com as máquinas e organizá-lo em discurso, e do que é preciso ganhar em estrutura cinematográfica; por isso adverte para a necessidade de ``ser escrupuloso. Rejeitar tudo aquilo que do real não se torna verdadeiro. (A horrível realidade do falso).'' Bresson enuncia assim o dilema: ``Fazer ver o que tu vês por intermédio de uma máquina que não vê como tu vês. E fazer ouvir o que tu ouves por intermédio de outra máquina que não ouve como tu ouves.'' Em consequência, Bresson distingue entre ``duas espécies de real: 1. O real bruto registado tal qual pela câmara; 2. O que nós chamamos real e que vemos deformado pela nossa memória e os falsos cálculos.'' Bresson prefere o primeiro: ``o teu génio não está na contrafacção da natureza (actores, cenários), mas na tua maneira pessoal de escolher e coordenar os pedaços a ela tomados directamente pelas máquinas.'' Tem, no entanto, consciência de que esse real é difícil de preservar e de fazer funcionar cinematograficamente: ``o real chegado ao espírito já não é o real. O nosso olhar é demasiado pensativo, demasiado inteligente.''
Assim, o que podemos é apenas ir ver como os cineastas se situam nessa tensão problemática, trabalhando mais sobre a montagem ou mais sobre os planos-sequência e, consequentemente, como resolvem (ou acentuam) os problemas levantados pelo que tem sido chamado a sutura dos vários elementos, entendida, por autores como Oudart ou Dayan, enquanto processo simbólico de montagem dos fragmentos de modo a assegurar ao discurso uma continuidade, cuja clássica eficácia, lembra Metz, consiste precisamente em apagar as marcas da enunciação e disfarçar-se em história.12 Não se pense, porém, que maior montagem implica sempre maior sutura, porque esta pretende-se imperceptível e a montagem pode ser assumida: justamente, ``ao cinema da sutura, que desde Griffith se foi impondo como o código matriz do cinema espectáculo, opôs Eisenstein o cinema da ruptura fundado na descontinuidade dos cortes de montagem, na colisão entre os planos, na heterogeneidade espacio-temporal'' [Geada, 1985:13]. A planificação clássica, pelo contrário, procura rasurar incessantemente as pegadas dos seus próprios passos, da montagem que efectuou; por isso alguns disseram que a narração clássica de Hollywood tem um estilo transparente e ilusionista; No`l Burch chamou-lhe ``o estilo de grau zero do acto de filmar''. Bordwell, Staiger e Thompson [1985, sobretudo pp. 24-41 e 174-193] chamam a atenção para o perigo de a pensar como ``narração invisível'', e preferem falar em ``narração modesta'', porque essa invisibilidade é construída, como muito bem mostram, através de procedimentos como a causalidade e a motivação através das personagens, como se fossem os impulsos e acções das personagens que encadeassem a narração sem intervenção de um narrador, que só aparece, com algum grau de auto-referencialidade e omnisciência, no início e no final do filme - ou então, mais sistematicamente, em certos géneros específicos, como o filme de mistério.
Todos estes desenvolvimentos da teoria do cinema obrigam a colocar de outra forma os problemas pensados pelas perspectivas ontológicas, ainda que se reconheça pertinência, não digo à necessidade, mas à possibilidade de defender um tipo de cinema que queira aproveitar a relação ambígua que este medium tem com a captação do real e que procure potenciá-la através, por exemplo, de uma coincidência entre o tempo fílmico e o tempo real, sabendo embora que isso só pode ser feito na duração de um plano. A questão do real tal como Bazin a coloca é, porém, sem solução: quando muito, a manipulação feita pelo cinema pode tornar-se mais visível ou mais invisível - mas, ainda assim, haverá sempre uma parte de visível na manipulação que se queira invisível, e uma parte de invisível na manipulação que pretende ser visí-vel. A manutenção de uma fundamentação ontológica global de tipo baziniano, como argumenta Henderson [1971: 90 e 94], manteria ``o cinema num estado de infância'' (o próprio Bazin defende que o plano-sequência ``serve para manter o cinema numa espécie de infância ou adolescência, sempre dependente do real, ou seja, de uma outra ordem que não a sua''); ora, argumenta Henderson, ``já não relacionamos uma pintura de Picasso com os objectos que ele usava como modelos nem mesmo uma pintura de Constable com a sua paisagem original. Por que razão é que a arte do cinema é diferente?''
E o facto é que, conclui Bonitzer [1982:130-132], ``todo o cinema parece ter-se voltado, em 1968, para a questão da produção das imagens. Ë fórmula de Rosselini responde a de Godard: ce n'est pas une image juste, c'est juste une image. Tudo se passa então como se as coisas, a realidade, e a crença que elas implicam, fossem subitamente evacuadas em proveito de uma interrogação sobre a imagem, sobre as `relações de produção' da imagem. A imagem godardiana já não é (se é que alguma vez o foi) transparente em relação às coisas, ela opacifica-se e simplifica-se perigosamente para já só se significar a si própria.'' (O mesmo se podia, aliás, dizer em relação ao som, de que Bonitzer não trata.) E isto não aconteceu por acaso. Em grande parte, o que se passou foi que se percebeu ao que podia conduzir o realismo nos filmes televisivos ou seus aparentados. Creio também que a introdução da cor foi importante: é muito curioso como o realismo ontológico, embora assente no mimetismo fotográfico, parecia ser defensável enquanto esse mimetismo não era completo, isto é, quando a imagem estilizava a realidade num preto-e-branco, mas se tornou suspeito de não artístico nem ontológico quando se conseguiu reproduzir a cor.
Assim, e regressando a Bonitzer, ``a Nouvelle Vague começou por definir-se pelo realismo dos seus temas e da sua linguagem, em oposição ao artifício dos mots d'auteur, das intrigas, do jogo e da realização afectados da `qualidade francesa'. Mas rapidamente, e graças sobretudo a Godard'' (e em boa parte por se perceber ao que podia conduzir o realismo nos filmes televisivos ou seus aparentados), ``essa reivindicação de um cinema preferencialmente em relação directa com a vida (e por isso mais realista) transformou-se numa reivindicação da liberdade da escrita, da libertação da mise en scène relativamente ao tema, ao guião, à própria realidade. Godard fez muito rapidamente esta viragem, desde o seu terceiro filme (A bout de souffle e Le petit soldat ainda continuam muito próximos de um thriller clássico). O jogo das `citações' nos filmes da Nouvelle Vague implicava já, pelo menos virtualmente, um retorno do cinema sobre si próprio, um assumir que o objecto já não era apenas a representação da realidade, mas também a do próprio cinema''.
Como escreve Hoberman [1991: 4], ``vindo da Cinemateca francesa no fim dos anos 50, Jean-Luc Godard foi dos primeiros a compreender que o período do cinema clássico tinha terminado, ou - dizendo de outra maneira - a ler a história do cinema como um texto. Esta perspectiva era comum no começo dos anos 60, particularmente nas grandes cidades americanas, onde a televisão oferecia um quadro, colocando uma cinemateca em miniatura em cada sala de estar.'' Assim, diz ainda Bonitzer [1982: 131], o cinema depois de 1968, reagindo contra ``o realismo nas suas formas cada vez mais triviais, cada vez mais baixas'' dos filmes e telefilmes naturalistas, ``caracteriza-se por um perda de confiança nas virtudes do realismo, ou por uma constatação do seu esgotamento. Tudo se passa, no período recente, como se, ao contrário do que queria Bazin, o cinema moderno caminhasse no sentido de um irrealismo cada vez mais patente, como se a imagem, desde Godard, se afirmasse resolutamente falsa.'' O mesmo Godard que afirmara ser o cinema ``a verdade vinte e quatro vezes por segundo'' desenvolve rapidamente essa concepção de verdade para longe do ``realismo'' baziniano, a favor de um trabalho de investigação que não parte da verdade, mas procura chegar a ela através da provocação do real e da linguagem.
As mais recentes aquisições da tecnologia do cinema vêm tornar ainda mais relativo o realismo que Bazin absolutizava: Wim Wenders, por exemplo, lembra em 1995 que, com a digitalização das imagens, a noção de ``verdade'' deixa de poder estar associada a uma imagem, e confessa que, enquanto no início dos anos oitenta ainda lhe era possível acreditar que o essencial do cinema era a imagem, hoje ``já a imagem bela não é prova ou garantia seja do que for''.
Assim, para Yvette Biro [1982:15-17], ``enquanto o primeiro período do cinema era expansionista e procurava integrar novos meios de expressão (som, cor, cinemascópio), o período de maturidade é caracterizado por uma violência de síntese. Estes meios de expressão já não servem para controlar se o filme é capaz de acolher novos fenómenos da vida, se está suficientemente perto da physis. O que está em jogo é mais importante: trata-se de saber se o cinema é suficientemente maduro para construir, a partir dos elementos de que dispõe, uma estrutura orgânica e coerente, criando assim o seu próprio modo de expressão autónoma. Enquanto mediadora pura, a técnica cumpriu a sua missão. Já não nos interrogamos sobre a sua fiabilidade, nem sobre os seus sucessos a transmitir os pormenores. Conhecemos a sua precisão e a sua omnipresença. Mas, nesta fase de evolução, o desejo de autenticidade, o desejo de ver o cinema reflectir a vida, vê-se suplantado pelo acento tónico posto na diferença. A mimésis tinha durado demais. Ora, como falar de autonomia intelectual sem prestar nenhuma atenção a esta organização imanente? O interesse acrescido pela linguagem fílmica, pela sua estrutura, explica-se por esta pretensão a uma independência interna. Alimenta-se da consciência que o cinema possui da sua autonomia, a qual rejeita tanto a tirania do naturalismo como a influência benéfica das outras artes. Neste sentido, podemos falar de uma segunda revolução do cinema'' (Biro emprega esta expressão ``por analogia com a segunda revolução industrial'', e considera como primeira revolução do cinema a descoberta da técnica cinematográfica): ``a partir de agora, a força expressiva da sua linguagem já não se realiza em certos pormenores técnicos, mas no conjunto da estrutura, na ordem das proporções e das relações internas.'' ``Este processo libertador coloca a intervenção humana, a presença do realizador, acima de todos os outros factores da criação cinematográfica. No mesmo movimento, a dúvida e o questionamento obtiveram direito de cidadania. Com efeito, o filme contemporâneo não é apenas uma visão pessoal; é também uma auto-reflexão, uma reflexão sobre si próprio, no decurso da qual a consciência que conhece examina as suas relações com o objecto do conhecimento.''
De algum modo, como nota Hauser [1958:398-399], esta auto-reflexividade e perda de transparência é inerente ao desenvolvimento de qualquer arte. ``Só uma arte bastante nova poderá ser geralmente inteligível sem ser necessariamente superficial; uma forma de arte mais altamente desenvolvida requer para sua compreensão uma familiaridade com fases anteriores que, embora substituídas, deixaram os seus vestígios.'' Assim, não admira que também no cinema se tenha desenvolvido ``um formalismo no qual as anteriores unidades de forma e conteúdo, modo e objectivo de representação, meios visuais e tema narrativo, se perderam.'' De algum modo, excepcional foi o primeiro período da sua história, em que, lembra Hauser, a linguagem do cinema pôde ser imediatamente apreendida, mesmo pela geração mais idosa, ``sem a mínima educação ou a mínima dificuldade. E é ainda, digamos, propriedade intelectual comum, embora os modos de expressão ``fílmicos'' - especialmente desde a invenção do cinema sonoro e da sua apropriação indiscriminada das técnicas do palco - estejam gradualmente a decair e a ser restringidos a determinados fins especiais, chamados ``artísticos''. A próxima geração dificilmente compreenderá todos os meios de expressão que foram criados na época heróica do cinema, e a clivagem que em outros ramos da arte divide connaisseurs de leigos, será também evidente nos públicos do cinema.''
Aquilo a que pelo menos a parte do cinema que se continua a reivindicar como arte procura aceder, como aliás é característico da arte modernista e neo-modernista, é a uma linguagem que, mais do que sobre o ``real'', toma como objecto de procura a sua própria essência (dela, linguagem), - aceder à ideia de cinema, como à de romance ou de pintura13 - e a essência do ``tempo''. Tarkovsky, por exemplo, afirma: ``procuro seguir o fluir do tempo no plano...A montagem junta, liga planos cheios de tempo e não de noções.'' Segundo Deleuze [1983 e 1985], o cinema passou da exploração do movimento para um trabalho sobre o tempo: não porque a imagem-tempo suprima a imagem-movimento, mas porque ``inverte a relação de subordinação. Em vez de o tempo ser o número ou a medida do movimento, isto é, uma representação indirecta, o movimento não é mais do que a consequência de uma apresentação directa do tempo''.
Justamente, a ideia de montagem, que, como mostrou Damisch a propósito das composições de Mondrian, remete ao mesmo tempo para uma lógica aparentemente decisional, dependente do sujeito, mas, paradoxalmente, não pode distinguir-se do automatismo maquínico e combinatório dos próprios materiais [cf. Miranda, 1986 :26-27], e que no cinema vimos inicialmente erigir-se em princípio estruturante visando alcançar o choque revelador e o estatuto de arte, essa ideia de montagem vai complexificar-se e ligar-se à ideia de tempo, mais do que à de real. Assim, escreve Bragança de Miranda [1986:28], ``como mostra Adorno, a montagem aponta para uma resistência ao real não-belo, anunciando a sua superação, mas, paradoxalmente, pois `o princípio da montagem, enquanto acção contra a unidade orgânica obtida subrepticiamente, estava fundado no choque. Depois deste se ter suavizado, as montagens tornam-se de novo uma matéria indiferente; o procedimento já não basta para operar por contacto a comunicação entre o estético e o extraestético, o interesse neutraliza-se em interesse histórico cultural' (Adorno, 1970: 178). Nem uma mera técnica, nem um transcendental da arte: o princípio da `montagem' torna-se explícito nas artes modernas, na pintura, mas também no cinema, ou na literatura. Mas segundo lógicas diferentes, pois ela própria se divide intrinsecamente, podendo ser uma agregação (arte moderna) ou um dispositivo (vanguarda), se é que não é base mesmo da obra de arte, enquanto condensação pura (arte `pós-vanguardista'). Só neste último caso a composição se torna elemento interno da obra. - o que mostra Gilles Deleuze em relação ao cinema, mas a sua ambição é muito maior: `le montage, c'est la composition, l'agencement des images-mouvement comme constituant une image indirecte du temps' (Deleuze, 1983: 47); mas essa constituição é o resultado imaterial da lógica composicional, uma determinação do todo da obra de arte que pressupondo o todo onde se articulam as imagens, posicionam essa pressuposição no tempo, mas apenas indirectamente, como um produto. Se há `montagem', isto não invalida que `la seule généralité du montage, c'est qu'il met l'image cinematographique en rapport avec le temps conçu comme l'ouvert' (Deleuze, 1983: 82).''
O entrechoque destas várias questões e perspectivas no curto espaço da vida do cinema e da sua teoria, bem como a ascensão e declínio da fundamentação do cinema no real, estão, evidentemente, bem patentes na ideia de documentário (e mesmo com uma certa antecipação cronológica em relação às teorias do cinema). Leia-se a este propósito o historial feito por José Manuel Costa no número 9 desta Revista [1989: 97-101]; aí se sublinha que o documentário não deve ``ser identificado com o primeiro impulso do cinema, ou com o seu mais automático e inocente exercício. O documentário foi uma invenção, e foi justamente uma invenção que reagiu aos extremos de manipulação em que o cinema caiu quando em busca da sua autonomia. O documentário-projecto nasceu quando o termo foi agarrado pelos autores da língua inglesa em plena década de 20 face ao percurso da ficção e da arte para os terrenos mais fechados da montagem. Quando nasceu, foi o contrário da inocência (já então impossível), foi o veículo de um olhar, ou de um poder, que dirige a câmara sob regras próprias.'' ``O documentário teve um segundo e último momentum através do que, normalmente, se designa por cinema-verdade, ou cinema-directo, cujo advento assentou na incorporação de nova tecnologia - as câmaras e gravadores de som portáteis - a partir de 1958/60.'' E também aqui se vai encontrar, como na ficção, uma evolução no sentido de um trabalho sobre o tempo. ``Na verdade, se há algo que me parece essencialmente distinto entre a primeira e a segunda épocas fortes do documentário, esse algo, derivando embora directamente da incorporação do som síncrono, pode ser encontrado na própria imagem e é a relação desta com o tempo.''
A segunda vertente da fenomenologia do cinema, isto é, a questão da experiência do espectador, surge, de algum modo, como alternativa e refutação da primeira; ou, mesmo quando, frequentemente, parte da incorporação da realidade, transforma-a num efeito de ilusão que leva o conceito de cinema para um território completamente diferente. - assim que a encontramos, por exemplo, em Balázs, para quem o cinema ``pode apresentar a realidade mas não tem nenhuma conexão imediata com ela. Precisamente porque ele a representa, está separado dela, não podendo ser a sua `continuação'. A conclusão a que Balázs procura chegar é que a janela cinematográfica, abrindo também para um mundo, tende a subverter tal segregação (física), dados os recursos poderosos que o cinema apresenta para carregar o espectador para dentro da tela'' [Xavier, 1977:16]. Uma argumentação como a de Bazin não tem em conta ``o núcleo do problema: o mecanismo de identificação. Este tem justamente seu principal reforço na manipulação dos pontos de vista própria à decupagem clássica. (...) A `impressão de realidade' não é um processo simples e linear que vai da fidelidade da imagem à fé do espectador, mas um processo complexo onde a disposição emocional deste contribui decisivamente para a produção do ilusionismo, retroagindo, portanto, na sua credibilidade'' [idem: 72].
Basta pensar, como lembra Metz [1966: 30], que ``a percepção da narração como real - isto é, como sendo realmente uma narração - tem como consequência imediata irrealizar a coisa contada.'' Mas nessa própria irrealidade outra coisa nasce. - que, escreve ainda Metz [1965: 15-16], na fotografia, ``a parte de realidade deve ser procurada do lado da anterioridade temporal: o que a fotografia nos mostra foi realmente assim, um dia, diante da objectiva''. Mas, justamente, ``a fotografia é muito diferente do cinema, arte ficcional e narrativa, de que conhecemos o considerável poder projectivo; o espectador de cinema não visa um ter-estado-lá, visa um vivo estar-lá.'' E o estatuto desse espectador que o cinema cria não é meramente passivo. Estas questões da identificação e da projecção afectiva do espectador constituem, porém, os aspectos que perspectivas como a de Bazin (ou, mais recentemente, Currie) se recusam a aceitar, porque é o real, e não a ilusão, a pedra de toque da sua teoria e a razão da sua luta. Indiquemos então, agora, essas questões.
Em ``Uma nota sobre o filme'' [apêndice a 1953: 427-431], Susanne Langer fala da ``poderosa ilusão que o filme realiza, não de coisas que estão acontecendo, mas da dimensão em que elas acontecem - uma imaginação criativa virtual; pois parece nossa própria criação e experiência visionária directa, uma `realidade sonhada'.'' ``O facto de um filme não ser uma obra plástica, mas uma apresentação poética, explica o seu poder de assimilar os materiais mais diversos e transformá-los em elementos não-pictóricos. Como o sonho, ele cativa e mistura todos os sentidos; a sua abstracção básica - aparecimento directo - é feita não só por meios visuais, embora estes sejam de suprema importância, mas por palavras, que pontuam a visão, e por música, que sustenta a unidade de seu `mundo' mutante.''
A partir daqui, Langer poderia ter partido para uma interpretação psicanalítica, que foi uma das primeiras leituras do fenómeno cinematográfico - o cinema como máquina de sonhos. A autora prefere, porém, nos seus breves comentários, tratar a interacção que existe entre autor (ou autorés do processo de fusão com a intenção do autor, da mesma forma em que a individualidade de um grande actor é fundida com a individualidade de um grande dramaturgo na criação de uma imagem cénica clássica. De facto, cada espectador (...) cria uma imagem de acordo com a orientação representativa, sugerida pelo autor, que o leva a compreender e experimentar o tema do autor. Essa é a mesma imagem que foi planeada e criada pelo autor, mas essa imagem é, ao mesmo tempo, criada também pelo próprio espectador.''
Muito mais recentemente, também François Jost [1992] argumenta que, ``se as imagens nos retêm, se somos capazes de discutir por causa delas à saída do cinema ou ao vermos televisão, é que, longe de as tomarmos por imitação ou duplicação do mundo filmado, não paramos de fazer delas um mundo à nossa imagem. Um mundo submetido às narrações que temos na nossa cabeça, onde compreendemos as personagens confrontando o seu ambiente cognitivo com o nosso, um mundo, sobretudo, que interpretamos em função das intenções que atribuímos ao responsável da comunicação narrativa''.14
Neste sentido, podemos afirmar, com Adriano Duarte Rodrigues [1991: 31], que, ``ao contrário da pretensão de Walter Benjamin, a irreprodutibilidade da arte não é necessariamente anulada pelo facto de uma obra original poder dar origem à multiplicação técnica de réplicas. Tem antes a ver com o facto de cada uma das suas réplicas se abrir para uma experiência estética original'', de cada vez que um receptor dela se apropria. Aliás, o próprio conceito de choque, que é tão decisivo no conceito de arte em Eisenstein e Benjamin como em Heidegger, abre para a consideração da experiência [cf. Monteiro, 1996: 108-110, 204, 270-283]. Como sublinha Vattimo [1989: 80], o choque ``antes de mais, não passa, fundamentalmente, de uma mobilidade e uma hipersensibilidade do sistema nervoso típicos do homem das grandes cidades. A esta excitabilidade e a esta hipersensibilidade corresponde uma arte centrada já não sobre a obra mas sobre a experiência, pensada no entanto em termos de variações mínimas e contínuas (segundo o exemplo da percepção cinematográfica).''
Pode dizer-se que o cinema tem especial atenção a essa experiência activa da recepção: em primeiro lugar, por ser ao mesmo tempo arte e indústria, e portanto se preocupar com as receitas provenientes do número de espectadores. Basta lembrar o sistema americano da preview retake que, como escreve João Mário Grilo [1993: 85-86], ``confrontava a última montagem com uma plateia típica do mercado em que o filme ia funcionar, submetendo-o depois - e consoante a reacção do público a essa projecção - a uma, ou a várias outras montagens e, até, à refilmagem de certas cenas que, ou não `funcionavam' simplesmente, ou eram consideradas `subaproveitadas' no quadro da economia narrativa-espectacular do filme em questão. Em rigor, o sistema de previews remonta, pelo menos, a 1914, quando a Mutual organizava projecções de controlo junto do público antes de dar luz verde à tiragem de cópias para distribuição. Tornou-se, a partir dessa altura, numa prática bastante usual dentro da indústria, abrangendo uma grande variedade de filmes e realizadores (de Griffith a Harold Lloyd, de Chaplin a Stroheim). Eileen Bowser conta como Griffith assistia à estreia de Intolerance nas principais cidades, cortando as cópias nas próprias cabinas de projecção, consoante as reacções do público: ``o resultado era que a cópia mostrada em Boston não era necessariamente igual à cópia mostrada em Nova Iorque, nem nenhuma delas igual à montagem feita no negativo original''. A este respeito, Koszarski escreve que `Griffith via os seus filmes como obras abertas e, por essa razão, o copyright do negativo era feito fotograma a fotograma'. Antecipando muitas das práticas modernas e correntes, Harold Lloyd chegava a fazer gráficos das reacções do público, de forma a articulá-las melhor com os diferentes momentos do filme.'' Mas será Irving Thalberg ``o primeiro produtor a estabelecer a preview como um passo essencial, e obrigatório, da pós-produção (...) `Filmávamos sempre com a ideia de que teríamos de refazer pelo menos vinte e cinco por cento do filme. Para eles um filme rodado e montado não estava acabado. Era apenas um primeiro esboço', referiu Clarence Brown, um dos mais respeitados (e respeitadores) realizadores da MGM''.
Independentemente, porém, desta dimensão industrial/comercial, o cinema, mesmo enquanto arte, tem particularmente incorporada uma atenção às reacções dos espectadores em cada momento do filme, vivendo em grande medida daquilo a que, a partir de Hitchcock, se tem chamado a ``direcção de espectadores'', tanto ou mais do que da ``direcção de actores'' [cf. Casetti, 1990]. Vimos que já nas teorias de Eisenstein se encontra um forte interesse pelos ``efeitos emocionais'' do cinema (da montagem) no espectador: por vezes eles parecem mesmo ser ``a categoria central da estética de Eisenstein'' [Henderson, 1971: 88]. Também Fassbinder afirmava: ``o realismo que tenho em mente e que quero conseguir é o que se passa na cabeça do espectador e não o que se encontra no ecrã - esse não me interessa absolutamente nada, é o que as pessoas conhecem todos os dias.'' - que, enquanto herdeiro do sistema de representação da figuração ocidental, com a distinção que vimos entre um efeito material de realidade e um efeito ficcional de real criado em função do espectador, o cinema ``intensifica (pela découpage e a montagem) os procedimentos de suturação, isto é, de fechamento do enunciado cinematográfico sobre um sujeito-espectador interpelado como sujeito da representação (como personagem, ainda que como um personagem especial, que Oudart nomeia, na sequência de Jean-Claude Milner, como Ausente'' [Grilo, 1993: 34].
Por isso Jean Louis Schefer [1979: 6 e 1980: 14-15] pode interrogar-se: ``será que o cinema como dispositivo se faz em relação a um espectador ideal que recebe os efeitos, que é o lugar do cálculo dos efeitos, que é a realização retardada dos registos do real?...Não será que o espectador é a máquina, de uma certa maneira? (...) Não será que a questão reside inteiramente aí, tendo em conta a criação de um dispositivo complexo de que o espectador faz parte?'' Essa experiência do espectador é real: o cinema ``não compõe e não ordena uma qualquer estrutura de alienação: trata-se de uma estrutura de realização e de apropriação de um real, não de um possível. O real de que se trata é aquele que vive já e momentaneamente como espectador. Não dessa vida momentânea e suspensa, mas dessa memória misturada de imagens e de afectos experimentais''. Grilo [1993: 53] comenta: ``na invenção do cinema, o que interessa, sobretudo, Schefer, não é a invenção maquínica de um dispositivo de `ilusões'; é a invenção de um novo sujeito, de um novo homem (de um homem imaginado) e a sua inscrição numa arqueologia do corpo e numa história das civilizações''. Ou seja, é um ``homem vulgar do cinema que é necessário opôr ao domínio exercido, na antropologia do cinema, pela figura de um hipotético homem imaginário (Morin).''
André Helbo [1984:98] escreve: ``Quando tentamos definir o discurso espectacular, dificilmente escapamos à categoria do paradoxo. Uma primeira aproximação abordaria o processo teatral em termos de delegação de saber por um autor a um meio cénico que se dirige ao espectador. Uma segunda hipótese inverteria o movimento do mandato: o espectador transmite à instância cénica (e ao autor) um poder especular, o de lhe comunicar a imagem do seu próprio desejo. Em ambos os casos se perpetua o duplo constrangimento de uma interacção lógica''.
A partir desta especial importância do espectador no fenómeno do cinema, vão articular-se uma série de concepções que importa discutir. Comecemos pela ideia de que o cinema atinge o espectador de uma forma emocional, mais brutal e preponderante do que nas outras artes. Já Thomas Mann [cit. in Biro, 1982: 11] se queixava: ``como é possível que no cinema se esteja sempre pronto a chorar, a carpir como uma criadinha? Esta matéria bruta que não sofreu nenhuma transformação, que vive `em primeira mão', é quente e atinge-nos no coração, como a cebola''. Mann fala em choro, mas note-se, com Bonitzer [1982: 138-144], que no cinema a ``conquista das lágrimas'' (de uma tradição melodramática) foi muito mais tardia e complexa do que a ``conquista do riso''; no início o cinema era quente devido sobretudo às gargalhadas.15 Seja para rir ou seja para chorar, o que aqui importa é que, como diz Edgar Morin [1956: 105], ``o que há de mais subjectivo - o sentimento - infiltrou-se no que de mais objectivo há: uma imagem fotográfica, uma máquina'': ``o cinema, ao mesmo tempo que é mágico, é estético e, ao mesmo tempo que é estético, é afectivo. Cada um desses termos pressupõe o outro. Metamorfose mecânica do espectáculo de sombra e luz, surge o cinema no decurso de um processo milenário de interiorização da velha magia das origens.''
Note-se que, com um essencialismo praticamente simétrico ao de Bazin, Edgar Morin tinha assente no processo de identificação/projecção o seu livro O Cinema ou o Homem Imaginário, de 1956, onde argumentava que, se o cinematógrafo primitivo era uma simples técnica de duplicação e projecção da imagem em movimento, o cinema, esse, é ``a constituição do mundo imaginário que vem transformar-se no lugar por excelência de manifestação dos desejos, sonhos e mitos do homem, graças à convergência entre as características da imagem cinematográfica e determinadas estruturas mentais de base. Dentro da literatura sobre cinema, Morin corresponde a um exemplo extremo da vinculação essencial entre o fenómeno da identificação e o próprio cinema como instituição humana e social. Para ele, a identificação constitui a `alma do cinema'. A participação afectiva deve ser considerada `como estado genético e como fundamento estrutural do cinema' (...). Dada sua perspectiva, vinculada a uma certa antropologia, Morin não parte para a defesa ou ataque de tal fenómeno, do ponto de vista ideológico ou estético (a sua própria definição do estético vai passar pela noção de participação afectiva). Ele está convicto de que esta relação, que um cinema particular num momento particular estabeleceu com o o espectador, é imperativa, fazendo parte da essência do novo veículo. Em 1966, a posição de Metz é basicamente a mesma'', mas na década seguinte já questiona as fissuras e desvantagens dessa identificação [Xavier, 1977: 16-17]. Este problema da identificação no cinema tem continuado a ser tão debatido que merece um tratamento à parte, noutro texto.16
Não deixa de ser curioso notar como, apesar de o cinema fazer exclusivamente apelo à visão e à audição, que Hegel17 situava no campo dos sentidos intelectualizantes, quando se pensa o cinema como arte dos sentidos e sensações se faça rapidamente uma associação às emoções, ao coração, mesmo às tripas, como se ele vivesse da sensibilidade material, dos ``sentidos inferiores''. O que apenas me parece explicar-se pelo facto de o cinema ter começado por ser concebido em comparação com outros géneros de ficção, de tipo literário. Bergman [cit. in Winston, 1973: 60] argumenta: ``a palavra escrita é lida e assimilada por um acto consciente da vontade em aliança com o intelecto; pouco a pouco afecta a imaginação e as emoções. O processo é diferente com um filme. Quando temos a experiência de um filme, dispomo-nos conscientemente para a ilusão. Pondo de lado a vontade e o intelecto, abrimos espaço para ele na nossa imaginação. A sequência de imagens actua directamente nos nossos sentimentos.'' E Pasolini [1965: 55] compara também: ``enquanto os instrumentos da comunicação poética ou filosófica estão já extremamente aperfeiçoados, formando verdadeiramente um sistema historicamente complexo, que alcançou a maturidade, os da comunicação visual, que estão na base da linguagem cinematográfica, esses, são completamente brutos, instintivos. (...) O instrumento linguístico sobre o qual se funda o cinema é por isso de tipo irracional. Isto explica a natureza profundamente onírica do cinema, assim como a sua natureza absoluta e inevitavelmente concreta, digamos o seu estatuto de objecto.''
Além disso, o cinema tem uma recepção que é colectiva, ao contrário do romance ou da poesia, e contínua. Winston [1973: 57] lembra que quem lê tem com a obra um contacto descontínuo, intermitente, ao longo de dias, semanas ou mesmo meses, ao passo que ``o contacto emocional de quem vai ao cinema é contínuo, o que torna mais fácil ao realizador manipular a resposta emocional do seu público'' (mas, por outro lado, ``o público de um filme geralmente não consegue digerir e absorver tanto como o leitor de um romance, que pode voltar atrás a alguma parte que esteja a ler e ajustar a sua velocidade de leitura à dificuldade das passagens.'') Por último, o cinema acrescenta à ficção uma maior corporização do que o romance (mas não maior do que no teatro...). Por exemplo, Bela Balázs,18 ``desde os seus primeiros textos, publicados nos anos vinte, defende a ideia de que durante séculos a imprensa tornou ilegível a face dos homens. Com o cinema, o corpo e o rosto do homem podem traduzir uma experiência espiritual visualizada sem a medição da palavra - o indizível torna-se visível'' [Geada, 1985: 10].
Não surpreende, assim, que surjam tentivas de aplicação ao cinema da fenomenologia de Merleau-Ponty.19 Foi o que fez recentemente Vivian Sobchack [1992:xii-xvii, 25 e 290], defendendo ``uma ``incorporação'' da experiência subjectiva na teoria do cinema''. Quando, nos anos 80, se pretendeu dinamizar o estruturalismo (que tinha mudado os estudos de cinema nos anos 70), reconhecendo a importância da linguagem e do discurso ``na constituição da economia `libidinal' do `eu' e do `inconsciente' político da formação social'', incorporou-se tanto o marxismo como a psicanálise numa análise pós-estruturalista. Mas, comenta Sobchack, ``a psicanálise neo-freudiana não esgotou a minha experiência, apesar de ter muitas vezes esgotado a minha paciência'', e o marxismo ``tendeu a negligenciar a experiência corporal [embodied] que vivo como `minha''', ignorando ou destruindo a subjectividade, ou então veio ``dissecar, abstractizar e fetichizar certas partes do corpo como se elas tivessem vida própria'', em vez de dar conta da ``integridade, mutabilidade e materialização sensual do corpo-vivido''. Por isso Sobchack vai procurar na fenomenologia existencial de Merleau-Ponty e na ``sua semiótica radical do corpo-vivido um método prático para descrever a estrutura existencial da visão cinemática'', que permita ``desenvolver uma semiótica e hermenêutica radicais, de fundamento existencial''. O objectivo é ``considerar a natureza corporal da visão, a contribuição radical do corpo para a constituição da experiência do cinema'', tendo em consideração ``não apenas a visão tal como aparece aos outros na sua modalidade objectiva enquanto visível, mas também a visão tal como aparece na sua modalidade subjectiva: invisível aos outros que não são o seu sujeito.''
A chamada de atenção assim feita por Sobchack é pertinente e útil: os problemas que se lhe colocam pertencem às objecções gerais que se levantam à fenomenologia (nomeadamente aos trabalhos de Merleau-Ponty) [cf. Monteiro, 1996: 245-270 e Miranda, 1994: 28-30, 54]. Bastará sublinhar que a sua concepção de corpo remete para uma concepção muito forte de sujeito e para um referente natural (a natureza da relação de percepção do corpo), ambos muito discutíveis e discutidos; ainda por cima, acaba por cair nos erros que apontava ao marxismo, ao fetichizar a visão como parte do corpo com vida própria e, dir-se-ia, absoluta. A este respeito, a ironia de naturalizar e fetichizar a visão é tanto maior no cinema quanto este se funda, não propriamente sobre a capacidade da visão humana, mas sobre o defeito da vista conhecido como ``persistência da visão'', que leva a ver como um contínuo o que, de facto, são fotografias separadas...O resultado do trabalho de Sobchack é, além do mais, como muitas vezes acontece na fenomenologia, exclusivamente programático, esgotando o seu esforço a anunciar uma maneira de colocar as questões, sem nunca chegar a pôr-se à prova.
No campo de um outro tipo de fenomenologia, a transcendental, podemos situar Henri Agel [1957, 1961, 1973] e o já citado Bazin de Qu'est-ce que le cinéma?. Já nos anos 90, Allan Casebier (nunca citando Agel e pouco usando Bazin) procura regressar a Husserl para construir uma teoria realista que afaste a grelha ``idealista/nominalista'' dominante nos estudos sobre cinema. ``Uma pedra angular do tratamento realista que Husserl faz da representação artística é a capacidade de quem percebe de transcender os seus actos perceptivos ao reconhecer o que um objecto de arte como a gravura de DŸrer retrata'', isto é, um cavaleiro de carne e osso, e não as linhas pretas que o desenham. A mesma coisa pretende estabelecer Casebier em relação ao cinema, recusando as análises generalizadas que lhe sublinham os signos e códigos, sem atender ao que é representado. Para isso recorre à distinção, que também era usada por Husserl e pelo meio filosófico em que escreveu, entre ``apercepção'' e percepção: apercepção (apperception), que vem de aperceber, ``é um modo de apreensão diferente da percepção mas intimamente ligada a ela. Quando alguém que percebe apercebe, ele ou ela `vive através' ou `passa através' dos sentidos (ou outros objectos) sem fazer deles objectos de percepção.'' - o que se passa, por exemplo, quando vemos através de óculos, mesmo que estejam sujos, sem nos determos nas lentes; ``de modo semelhante, ao seguir uma conferência, posso centrar a minha atenção no som da voz do orador (...) ou simplesmente viver através dela, experimentá-la aperceptivamente, e fazer do significado do que está a ser dito o objecto da minha acção.''
Esta concepção dos procedimentos perceptivos incorre noutro dos grandes riscos da fenomenologia: já não é o de se esgotar na chamada de atenção para os mecanismos da consciência, mas é o problema quase oposto de pretender aceder aos fenómenos passando por cima de qualquer reflexão sobre o funcionamento da consciência ou da linguagem. Dir-se-ia que essa concepção do cinema acredita a tal ponto na identificação criada pelo filme que a erige em princípio exclusivo, fazendo esquecer todos os outros, tal como nos esquecemos das lentes dos óculos através das quais olhamos; e assim não chega a reflectir sobre ela.
Karlheinz Stierle, em 1975, pensou esta questão (em relação à literatura, mas seria útil começarmos a aplicar as suas ideias ao pensarmos o cinema) de uma forma mais crítica, e por isso mais fértil, ``criando uma antinomia fundamental: aquela que separa a recepção dos textos pragmáticos da recepção dos textos ficcionais. Os textos pragmáticos são centrífugos: a sua meta encontra-se além deles, no campo da acção onde eles desembocam. Os textos ficcionais são centrípetos: nada existe para além deles próprios. Não significa isso, segundo Stierle, que eles existam fora de uma situação de comunicação; acontece que a ficção tem uma situação comunicacional implícita que parte da própria ficção. Uma das originalidades de Stierle consiste em considerar a hipótese de uma recepção quase pragmática do texto ficcional, quando a obra é ultrapassada em direcção a um campo de acção que é mera ilusão despertada no leitor pela própria acção do texto. Todas as modalidades `primárias' de recepção do texto se situam neste plano. Tudo aquilo que é designado como literatura de consumo consiste nesta fusão da ficção com a ilusão, criando um espaço extratextual, exterior à obra, ilusório, mas que não deixa de ser vivido na sua verdade como ilusão efectiva. Tal processo de recepção elimina o funcionamento dos vazios analisado por Iser, na medida em que, ocupando os vazios, produz um sentimento de continuidade plena equivalente ao próprio real. O leitor deixa-se fascinar por este real que o absorve, a recepção acaba por suprimir o papel que ele, leitor, desempenha na construção da obra, e estabelece-se um efeito de verosimilhança sem falhas. A recepção competente ultrapassa este estádio primário da recepção. Mas isto não significa que certas formas de literatura (a maior parte dos romances, por exemplo) não exijam uma recepção prévia quase pragmática. Daí a importância que Stierle atribui à segunda leitura, que é aquela que, indo além das ilusões da linearidade e continuidade, permite apreender o texto na espessura das suas estruturas sobrepostas, e convertê-lo, pelo trabalho da leitura, em volume e espaço textual'' [Eduardo Prado Coelho, 1987: 487].
Muitas das ramificações mais desenvolvidas destas perspectivas dos efeitos sensoriais, emocionais e identificatórios do cinema têm convergido na análise dos mecanismos de medo ou horror gerados pelo filme - umas vezes apenas nomeando esse fenómeno, outras tentando reflectir sobre as suas razões. No cinema parecem juntar-se os medos correspondentes às artes dramáticas com os medos associados às imagens, tudo isso no quadro novo e específico que é o seu. Em relação ao drama, vários autores, como Michael Goldman [1981:50], consideraram que ``o teatro surge dos jogos que fazemos com o medo e com a perda. Toda a arte é assim, mas o teatro está mais perto da raiz (...). Não porque os temas do drama sejam inevitavelmente desagradáveis, ou que as maiores peças contenham os maiores horrores. Mas a fonte da excitação teatral reside muito próximo da nossa mais primitiva percepção do medo; a vitalidade do artista dramático vem da natureza inerentemente ameaçadora dos materiais com que lida. Tanto no processo de personificação como na sua relação com o público, a arte do actor nunca cessa de lidar - com uma imediaticidade sem paralelo - com a volatibilidade do espectro de um mundo ameaçador'' - mesmo que seja o amor.
Por sua vez, em relação às imagens, já Lucrécio falava do terror que elas podem gerar [cf. Wurzer, 1990:xiii]. Ora, no cinema, o regime em que são apresentadas as imagens vai permitir potenciar esse terror. Por duas razões, argumenta Bonitzer [1982:115-116]. ``Sabemos desde André Bazin que o ecrã de cinema não funciona como a moldura de um quadro, mas como ``um cache que só mostra uma parte do acontecimento''. O espaço do quadro é centrípeto, o do ecrã é centrífugo. (Desde André Bazin, é certo, o espaço do quadro sofreu ele próprio modificações, sob a influência manifesta do cinema, e certos pintores, Schlosser, Cremonini, os hiperrealistas, simulam nas suas composições a existência de um espaço off.) O campo visual desdobra-se sempre num campo cego'', que potencia por um lado o erotismo e por outro lado o horror, tanto maior quanto, e é essa a segunda razão, a esse horror se junta, ``no que respeita aos espectadores, uma visão bloqueada, correspondendo ao dispositivo do ecrã e da projecção'': a câmara é livre ``mas o espectador, esse, só tem um direito, o de manter os olhos fixos no ecrã ou sair'' (enquanto que, diante da televisão, ``pode sempre baixar o som, aumentar a cor ou mudar de canal''). ``O espectador de cinema não é tanto o herói da caverna de Platão como o doente da Janela Indiscreta ou o herói da Laranja Mecânica, amarrado ao seu lugar e constrangido a manter os olhos abertos diante de um ecrã de cinema onde desfilam abominações.'' ``Se o cinema tem uma relação privilegiada com o erotismo por causa da visão parcial (voyeurismo e fetichismo), tem uma relação privilegiada com o horror por causa da visão bloqueada''.
Jean-Louis Schefer vai procurar reflectir sobre o medo provocado pelo cinema ultrapassando a discussão do dispositivo a favor de uma abordagem que se reivindica da fenomenologia. ``Houve há dez anos uma reflexão por parte dos Cahiers, de Cinéthique, sobre o dispositivo, que me parece proceder de uma ilusão tecnicista, completamente ligada a toda a reflexão de vanguarda, isto é, ao um poder de manipulação eficaz dos signos, a uma ciência da linguagem, que nunca seria uma ciência ligada à espécie, como lugar mesmo do terror que esta ciência nunca conhece.'' ``Pergunto-me se a resposta que podemos esboçar a tais questões não consistirá em tomar o fenómeno do cinema não como um fenómeno técnico ligado aos seus aparelhos, aos seus dispositivos, mas sim ao seu efeito geral de sideração, e ao facto muito preciso de que é a primeira máquina no mundo, muito mais do que a tragédia grega, que impregna a humanidade de guiões, de forma indelével e em movimento.'' ``Mesmo o que encontramos nas primeiras imagens imóveis de que fala Benjamin: há já um efeito de sideração que comanda a posição do modelo''. ``Sob todas as formas possíveis de denegação, é certo que se vai ao cinema - toda a gente - para simulações mais ou menos terríveis, e de maneira nenhuma para participar num sonho. Para uma participação no terror, no desconhecido, para coisas assim...E de uma certa maneira, o efeito de educação impossível, o efeito de anamorfose que é trazido pelo cinema sobre o espectador e que é real (provam-no as crianças que saem do cinema e ficam cowboys durante três horas): os comportamentos comandados, joga ainda assim com um deslocamento de qualquer coisa que ainda está por determinar no homem e que faz com que ele não seja um sujeito estruturado, precisamente. A força do cinema reside aí, também, creio. Ou seja, no limite, uma sala de cinema é um matadouro. As pessoas vão ao matadouro. Não para ver as imagens cair uma depois da outra, mas qualquer coisa nelas cai e é uma estrutura adquirida de outro modo, possível de outro modo, dolorosa de outro modo, que talvez só esteja ligada a uma produção de sentido e de linguagem''. Por isso o cinema ``não é uma arte como as outras. E isso é uma coisa que a mim me prende muito no seu poder. Eu sei que a escrita já não pode, ou nunca mais poderá, produzir efeitos de educação ou de anti-educação tão fortes. E não é de todo porque isto trabalhe mais o inconsciente, não é de todo porque há imagens que podem voltar sobre a sua metáfora como imagens de sonho, é porque isto trabalha exactamente indivíduos na sua solidão, ou seja, ali onde uma tal solidão não pode falar'' [Schefer, 1979:7].
Nesta argumentação de Schefer misturam-se muitos elementos diferentes, a maior parte dos quais não pode, como pretendido, distinguir o cinema das outras artes: porque solidão, também a literatura a produz. Que essa solidão não possa falar, é o que também acontece, pelo menos, na música. Também as outras artes fazem vacilar alguma coisa em nós, e a criança que leu um romance fica a viver segundo o que leu, porventura toda a vida, e não apenas três horas (não podemos reduzir a discussão a efeitos imediatamente miméticos). Resta o argumento de o cinema ter hoje efeitos mais fortes, ser mais actual...Mas isto era precisamenteiz, mes mo terrífica ). Em grande medida, trata-se de uma leitura tão pessoalizada dessa experiência que é quase intransmissível, levando a fenomenologia a um grau de solipsismo que está sempre no seu horizonte mas que ela raras vezes atingiu. Cite-se [1980: 96, 12]: ``vi os meus primeiros filmes depois de ter estado mergulhado nas cenas de guerra (os abrigos nocturnos, os bombardeamentos (...), viagem de noite sozinho num camião no inverno, quatro anos...)''. ``A catástrofe não tinha podido avançar um único passo mesmo através dos escombros, mesmo através de um luto até ao dia em que me levaram ao cinema. Sciuscia: todo o medo da guerra e quatro anos de terror e de objectos quebrados e de caras desaparecidas fixaram-se num instante nessa sala, sobre a imagem do primeiro filme. Aqui começou a primeira doença de que ele foi culpado e punido. A primeira doença de nervos, isto é a primeira identidade incerta e criminal que uma criança encontrara no medo (na sua primeira verdadeira solidão). (...) Foi assim que o mundo começou, isto é, se tornou indescritível.'' ``Não contesto que haja nisso um prazer''; ``é o fundo do que se acredita ser uma `participação imaginária' nas acções filmadas: é um gozo do ser moral e é por isso, em minha opinião, que está tão próximo do seu extremo que é o medo (este é o cúmulo de uma simulação de realização dos afectos vivendo uma privação de objecto). A realidade desses sentimentos é uma sujeição a um mundo que não é outra coisa senão a derrisão deles.''
- possível, ainda assim, encontrar, dispersos na obra de Schefer, alguns elementos analíticos sobre os mecanismos que no cinema geram o terror. Por um lado, são de ordem física: alguns deles já os tínhamos encontrado em Bonitzer, e afinal Schefer parece não se distanciar de uma reflexão sobre o dispositivo técnico, que antes recusara. - uma experiência física (porque ``a significação é aqui um corpo''): ``experiência desta noite experimental na qual alguma coisa vem mexer, animar-se e falar diante de nós''. Essa experiência parece desdobrar-se em várias características: entramos neste mundo ``cegamente, por esse ponto de luz a tremer''; experimentamos a desproporção porque estamos perante ``um corpo infinitamente maior do que o nosso'', ``invariavelmente situado por trás do nosso, por trás da nossa cabeça'' (é ``uma mudança de proporção do visível de que serei sem dúvida o último juiz mas o corpo, mas a consciência experimental''); ``uma máquina gira, representa acções simultâneas à imobilidade do nosso corpo''; ``a perturbação da voz humana (e talvez apenas a suspeita de que ela pode significar) junta-se à imagem'' - apenas não temos o odor [Schefer, 1980: 102, 10, 21, 103]. Por outro lado, essa ordem física está ligada a uma ordem, ou desordem, psicológica, e é aqui que o contributo de Schefer pode ser maior: ``esta experiência, esta memória, é solitária, escondida, secretamente individual''. O cinema cria afectos ``sem destino, ou seja sem mundo (não há mundo prévio a essa cor dos afectos)''. ``O sentido vem a seguir, só chega depois desta instabilidade dos afectos''. Não existe ``ancoragem de sentimentos no filme''. ``Somos rejeitados para fora dele pelos sentimentos ou os afectos que ele faz nascer em nós; só os faz nascer estimulando-os sobre personagens, ``bocados de homens'' que devem por isso morrer para assumir essa perenidade fora de si próprios.'' ``- esse, a meu ver, o laço imprescritível entre o cinema e o medo - um aumento da afasia de sentimentos no ser social'': há uma ``supressão da humanidade em nós próprios''; é-se remetido para ``a espécie desconhecida, naquele que está a ver o filme'' [Schefer, 1980: 11,18,35,17,12,101].
Esta questão do medo servir-nos-á ainda para passarmos a outro nível, a meu ver mais complexo e rico, das relações entre o cinema e a fenomenologia, tal como é elaborado por Ian Jarvie em Philosophy of the Film, de 1987 [sobretudo nas pp. 127-130, 134-137, 121-125]. Jarvie propõe que, por momentos, consideremos o seguinte: ``assistindo a um filme assustador nós, o público, temos medo. No mundo exterior, nós, o público, por vezes temos medo. No entanto, no cinema, nós, o público, não corremos qualquer perigo: o nosso medo é imaginário. (...) A questão é se o nosso medo no cinema é um fenómeno de medo ou é um fenómeno de ida ao cinema que podemos distinguir fenomenologicamente do medo propriamente dito. Por medo propriamente dito podemos significar a emoção experimentada por alguém que está em perigo real no mundo vivido, como oposto a observar o perigo na ilusão do cinema.'' A questão que interessa a Jarvie destacar é a seguinte: ``e se se provar ser difícil distinguir o medo num filme do medo no mundo real? E se os filmes fornecerem simulacros tão poderosos da experiência imediata que a reflexão e a intuição não conseguem abrir uma fenda fenomenológica entre eles? Claramente, isso seria um desastre. Colocaria a fenomenologia numa posição idealista, incapaz de distinguir o mundo imaginado do mundo real. Aqui podemos começar e entender por que razão Bazin e o seu seguidor Cavell estão tão preocupados em forjar uma relação forte entre o mundo real e o mundo no filme. O mecanismo sem condutor, ou automatismo, é a sua garantia de que o que está no filme é contínuo com o mundo real, ou uma extensão dele. (...) - esse o argumento de Bazin a favor do plano longo contra a montagem. Sabemos então que o que estamos a ver é parte do mundo ou, para ser mais preciso, quando foi filmado era parte do mundo real.''
Ora, essa concepção do cinema como registo do real é, como vimos, ingénua. ``Infelizmente para Bazin e Cavell, o mundo dos filmes inclui animação e abstracção, cenas filmadas em tempo real e outras não filmadas de todo. Alguns realizadores usam planos longos, outros a montagem; e muito judiciosamente misturam ambos conforme as necessidades da exposição. Mas todos cortam, e uma vez que há corte, independentemente da frequência, o espírito cria um mundo que não está presente em sítio nenhum nem nunca esteve. Sesonske coloca assim a questão no seu argumento reductio sobre Jules et Jim: ``Spade e Archer nunca partilharam um escritório em São Francisco; Jules e Jim nunca partilharam uma rapariga no Paris de antes da guerra...Mas suponhamos que eu era um experimentado viajante no tempo e queria testemunhar realmente esse breve momento do mundo projectado em que Jules observa Catarina e Jim sairem da ponte arruínada. Para onde me deveria dirigir, e para quando? Para Paris em 1933? Não os encontraria ali. Então, para Paris em 1961. Poderia de facto encontrar Oskar Werner e Henri Serre, mas Jules e Jim? E se eu observasse na terça de manhã, digamos, todos os 17 takes de Oscar Werner junto ao rio, de onde três breves planos de Jules a observar serão usados no filme?'' Claro que a resposta a estas perguntas retóricas é que não os vou encontrar ali. Não apenas porque a câmara, a película, os químicos, os cenários, o guião, o projector, o cinema são artefactos feitos pelo homem. Acima de tudo, o mundo aparente projectado no ecrã é um artefacto humano, um artefacto da mente, ainda que fortemente assistido por muitos recursos materiais. - um mundo que tem fronteiras no enquadramento, no corte, nos genéricos inicial e final. (...) Tal como temos a impressão de profundidade onde não há profundidade, temos a impressão de um mundo onde não há mundo.''
A questão tem pois de ser deslocada para fora do terreno fechado dessa impressão ilusória de um mundo real, embora não devamos deixar de pensar essa complexa identificação, nomeadamente pela constituição de mundos imaginários, como parte essencial da experiência do cinema.20 George Linden [1970] escreve: ``o filme pode dirigir-se directamente e registar as nossas formas-de-estar-no-mundo, e por isso está mais preocupado connosco como seres do que como personae. O filme não nos fornece uma mera `libertação da realidade física': fornece-nos outras vozes, outros mundos nos quais estar. Não é antes de mais uma representação, mas uma apresentação.'' ``O que Linden parece estar a dizer'', comenta Jarvie, ``é que os filmes não estão amarrados a uma realidade única, antes abrem diante de nós muitos mundos possíveis que se nos apresentam tão vivamente que temos a sensação do que é estar neles. Isto distingue Linden de Cavell, que usa o artigo definido e por isso parece ver `o' mundo (fílmico) visto e o mundo real vivido como continuações um do outro. Cria no entanto dificuldades dentro da fenomenologia: se temos uma sensação tão intensa de estarmos nos mundos possíveis dos filmes, como havemos de os pôr entre parêntesis em relação ao mundo real em que vivemos?'', isto é, ``diferenciar não apenas o real das aparências, em geral, mas também, dentro dos filmes, o ficcional do factual? Vendo esse problema avultar, Linden escapa por um caminho que é um dos preferidos dos irracionalistas dos últimos cem anos: sugere que o problema é criado pelas palavras (em vez de formulado nas palavras). De alguma forma, a linguagem torna-se suspeita. E na medida em que a linguagem incorpora o pensamento, esta suspeita pode provir de uma desconfiança em relação ao pensamento ou tender para ela. E como os filmes contêm pensamento e linguagem, segue-se, ou que não devemos ter confiança neles, ou que devem ser louvados na medida em que não utilizem linguagem''.
Diz Linden: ``um filme não é pensado, é percebido.... Os filmes não são literatura. São quando muito escrita-por-imagens (image-writing). O crítico de cinema literário tem um conceito onde devia ter o coração...'' ``As palavras nos filmes deviam ser limitadas ao mínimo, expressivas e concretas. As crianças mostram e contam (show and tell). Os realizadores, como os poetas, deviam mostrar.'' Ou seja, comenta Jarvie, ``Linden contrasta o pensamento e a percepção, aparentemente alheado da possibilidade de a percepção não ser mais do que um modo de pensar, nomeadamente pensar sobre aquilo a que chamamos o mundo externo. Como hipótese, imagino que a sua ideia é que a percepção é um processo causal, que os estímulos no mundo apenas têm impacto nos nossos sentidos, que então espelham ou reflectem esses estímulos. Mesmo sem uma educação filosófica, podemos recorrer a Munsterberg para explicar cuidadosamente como esta visão do receptor passivo não serve, como a imposição da ordem no manancial indiferenciado da experiência é levada a cabo pela mente, pelo pensamento. Não podemos ver filmes sem pensar sobre eles.''
O que torna interessante esta perspectiva de Jarvie é que dá conta dos aspectos sensoriais e emocionais que provocam a identificação com o filme mas recusa as armadilhas de acreditar numa identificação completa: o que ele destaca no cinema, como sua especificidade e sua força, é justamente esse jogo constante, inerente ao medium, entre estar dentro e saber que se está fora, entre aparência e realidade. E nisso inspira-se em Husserl (que adiante, como já veremos, critica), para quem ``a fundação segura para tudo o que sabemos reside na experiência imediata. Ela não é sensação, ou seja, empírica; não é lógica, ou seja, analítica; é um tertium quid, fenomenológico. A tarefa de fenomenologia é descrever a essência dos fenómenos como eles se apresentam à consciência.'' Ora, ``os filmes são, obviamente, um bom cereal para o moinho do fenomenólogo, porque fornecem uma caso ready-made em que a existência é posta entre parêntesis [bracketed]. Isto é, as coisas no filme não existem aqui e agora tal como parecem existir. E no entanto podem fornecer-nos dados suficientes para a reflexão fenomenológica, parecendo-se muito com aquela reflexão que empreenderíamos se confrontados pelo Lebenswelt.''
A aristotélica suspensão voluntária da descrença tem no filme um suporte muito mais ilusionista do que as antigas narrativas, e mesmo do que o teatro (e, acrescente-se a Jarvie, as novas realidades virtuais vêm relembrar estas questões: somos de novo crianças enganadas pela realidade das imagens e sons, estendemos o braço para os pássaros que parecem voar para nós e que ainda não aprendemos a perceber como ilusão). A questão é que, ``ao mesmo tempo, parecem apresentar adivinhas. Vamos querer saber qual é a essência dos filmes e distingui-la com bastante clareza da essência de estar-no-mundo. - claro, assistir a um filme é uma forma de estar-no-mundo, mas também envolve um fenómeno a que podemos chamar estar-no-filme.'' Neste aspecto, Linden viu bem o problema, já que ``caracteriza a natureza da experiência fílmica como `diádica', consistindo na ``interdependência, coexistência e síntese de objectivo/subjectivo, mundo exterior/mundo interior, relações universais/particulares (...). A participação do espectador é descrita como uma experiência de `excarnação ou bi-associação'.''
``Em termos simples, experimentamos o mundo como se estivéssemos fora dos nossos corpos, e no entanto fazemos isso experimentando com os nossos corpos.'' - por isso mesmo, diz Jarvie, que o cinema abala seriamente os problemas do conhecimento e do ser. ``No campo do conhecimento cria sérias dificuldades a qualquer teoria do conhecimento directamente perceptiva. Estimulando fortemente dois dos sentidos, confronta-nos com o problema, de início quase insuperável, de demarcar este mundo fílmico do mundo real. Mais do que isso, deleita-nos com o conhecimento de que esse mundo fímico e nós estarmos a vê-lo é também, num certo sentido, parte daquilo a que chamamos o mundo real. Se Munsterberg tem razão, confronta-nos com os nossos próprios processos mentais e no entanto torna-nos menos susceptíveis, e não mais susceptíveis, à ilusão e à alucinação.''
``Repare-se como a descrição cartesiana do Eu corresponde à ida ao cinema: o ponto de consciência individual olhando desde o seu interior para fora, para um mundo que é dado e separado, contendo objectos que nos permitem vê-los e manipulá-los na sua separação uns dos outros e de nós. Não admira que Linden queira que nos encaminhemos para uma união afectiva com as imagens no ecrã: se ali nos mergulharmos, podemos aprender a entregar-nos aos outros, a tornar-nos permeáveis e a quebrar o nosso isolamento. Só que isso não é possível; é uma fantasia comparável à daqueles romancistas que sonham com a nossa entrada para dentro do ecrã. A nossa condição epistemológica é exactamente paralela às condições em que estamos no cinema; somos espectadores que não se podem tornar participantes. Estamos numa permanente condição de bracketing, o nosso Lebenswelt significa que estamos de fora e nos reflectimos''.
O facto de essa condição ser permanente é o que separa Jarvie de Husserl: porque, para este, ``quando conseguimos o contacto com a essência dos fenómenos, podemos tirar os parêntesis e retomar o contacto com o mundo, ultrapassar a alienação. Ao nosso estado chamou Husserl `atitude natural', algo com que obviamente rompemos pelo bracketing. O problema intrigante é: como havemos de voltar à atitude natural? Suspender a atitude natural não é um caminho para fora do nosso dilema: é a perda de toda a possibilidade de estar na atitude natural que constitui o nosso dilema (Gellner). Somos seres cartesianos para sempre. A consciência do nosso dilema, como a auto-consciência induzida na criança, é um estado irreversível. Como A. J. Ayer disse uma vez, é perverso fazer um tragédia do que não podia ser de outro modo.'' ``O mundo inteiro estar treinado na fenomenologia (o sonho de Husserl) não mudará isso, tal como o mundo inteiro ser psicanalizado (o sonho de Freud) não resultará no fim das neuroses e da infelicidade.'' Aliás, nos seus últimos escritos, Freud aceitou a ideia de que a nossa condição nos é inerente e tentou explicá-la.
Assim, diz ainda Jarvie, ``os filmes são uma metáfora ready-made para a inocência perdida.'' De facto, ``os filmes preservam no âmbar da experiência a noção de um sujeito que vê e de um objecto experimentado, interagindo, é certo, mas não de um modo que possa abolir a distinção sujeito/objecto.'' Pode mesmo dizer-se que o filme é hoje a grande escola de aprendizagem e treino dessa distinção, mesmo para o ``homem vulgar do cinema'' de que fala Schefer. ``Em termos de desenvolvimento, começamos como crianças que vão espreitar atrás da televisão à procura das pessoas pequenas, ou tentam enfiar braços pelo ecrã. Um tal realismo naf evolui gradualmente para uma física mais sofisticada - na prática, não na teoria, porque muito poucas são as crianças que acabam por saber suficiente física para explicar o que acontece na televisão. Mais maduros, um filme convida-nos a que o tomemos como real, seja ele uma ficção, um documentário, um registo científico ou um desenho animado. Este convite é feito e aceite, sabendo que a realidade consiste de facto em sentar-se num quarto escuro com poderosas fontes de luz e som que nos encharcam. Nós, como público dos filmes, avaliamos a realidade putativa que nos oferecem da mesma forma que avaliamos as teorias. Um requisito mínimo é que sejam internamente consistentes - o que por vezes é um assunto muito subtil, que envolve exactamente que imagens devem suceder-se umas às outras para manter o sentido consistente do espaço no ecrã. Depois, requeremos que sejam consistentes com outras teorias que possuímos, ou, se forem inconsistentes, como quando o Superhomem voa, que o sejam minimamente. Em terceiro lugar, devem ser consistentes com a sua própria prova. Quando um documentário nos mostra, como o San Pietro de John Huston, um soldado a atirar uma granada seguido por um grande plano da granada a explodir, somos alertados para o pensamento preocupante de que a superfície severa e realista deste filme pode esconder uma grande quantidade de manipulação de artefactos.''
De modo que, sempre que nos damos conta de que esse artifício está presente mesmo no filme (e no género) que mais nos parecia real, estamos a praticar a arte da contínua oscilação entre aparência e realidade. Desta maneira, à medida que vamos ``aprendendo a organizar a interacção das nossas mentes e sentidos de forma a conseguirmos dar sentido aos filmes, aprendemos também como distinguir os filmes no nosso meio como não reais. Assim, todos nos tornamos como os filósofos de Platão: aprendemos com naturalidade a mapear, ajustar e jogar com a fronteira entre a aparência e a realidade. Tão completa é a nossa mestria que podemos reflectir sobre ela''. ``Os filmes, portanto, trazem de volta o problema da aparência e da realidade, desde a atmosfera rarefeita da disputa filosófica, devolvem-no às pessoas, que o reconhecem como uma preocupação básica e que aprendem a resolvê-lo numa base de rotina e de jogo. Concretizado e desmistificado, envolve uma função mental básica, a da cognição, e embora os filmes não nos mostrem como a cumprimos, mostram-nos que podemos cumpri-la e de facto a cumprimos.'' Neste sentido, ``um dos maiores recursos do privilégio social - um maior discernimento intelectual - é desafiado na sua base pelo cinema.''
- neste sentido que podemos dizer que Jarvie retoma algumas das ideias formuladas por Merleau-Ponty na sua conferência de 1945 [p. 117], em que o fenomenólogo francês defendia a notável convergência, na mesma época, entre o cinema e a nova filosofia: esta ``não se constitui no encadeamento de conceitos e, sim, no descrever a fusão da consistência com o universo, seu compromisso dentro de um corpo, sua consistência com as outras. E este assunto é cinematográfico por excelência. (...) Se, então, a filosofia e o cinema estão de acordo, se a reflexão e o trabalho crítico correm no mesmo sentido, é porque o filósofo e o cinema têm em comum um certo modo de ser, uma determinada visão do mundo que é aquela de uma geração. Uma ocasião ainda de constatar que o pensamento e a técnica se correspondem e que, segundo Goethe, `o que está no interior, também está no exterior'.'' O filme, comenta Xavier [1977: 76], é ali visto como um ```objecto de percepção' capaz de, pelas suas próprias características, tornar explícitas certas estruturas que organizam o nosso comércio com o mundo: a imagem cinematográfica apresenta uma figura do comportamento dos homens capaz de expressar a contingência como condição humana (o estar-em-situação, inserido dentro de condições determinadas).'' Mas, mais do que Jarvie, Merleau-Ponty destaca, no cinema, ``a união entre mente e corpo, mente e mundo, e a expressão de um no outro. Nele, trata-se de tornar manifesta a falência da dicotomia interior/exterior e mostrar que o sentido é aderente ao comportamento.'' Ou seja, o seu conceito de cinema ``vincula-se à crítica de Merleau-Ponty à concepção clássica da percepção - aquela que promove a separação entre a sensação (desorganizada) e a inteligência organizadora. Como a nova psicologia (Gestalt) o mostra e a fenomenologia da percepção o interpreta, a percepção é uma actividade e marca uma relação corporal com o mundo, uma decifração estruturada, anterior à inteligência.''
O desenvolvimento da linguagem fílmica tem até permitido tornar cada vez mais consciente e explícito esse jogo que todos jogamos entre a aparência e a realidade. Para Jarvie, essa é uma prova do poder e flexibilidade do medium ``o facto de, a princípio ludicamente e depois cada vez mais seriamente, o filme, sem quebrar as suas convenções, se tornar capaz de retratar o processo da sua própria experiência. As personagens falam para o público, puxam os bordos do enquadramento para si, empurram o título `Fim' de forma a terem mais tempo; as personagens dos desenhos animados saltam para fora do tinteiro e desafiam a mão que as desenha; recusando-se a ser espartilhadas, as personagens aludem conscientemente a outros filmes, e até saltam entre filmes; e assim por diante. Os filmes mostram-nos como viver com o bracketing'', e parecem ser um espaço privilegiado para jogar com as operações que nele estão envolvidas, e mesmo explicitá-las. Robert Stam [1985] (apoiando-se, entre outros, em Bakhtine, Metz e Genette) chama ``tradição reflexiva'', tanto no cinema como na literatura, a esta colocação em evidência das construções ficcionais através de interrupções, fracturas ou descontinuidades, como quando a narrativa realista é interrompida para realçar os mecanismos artísticos: os protagonistas saem da personagem para se dirigirem ao leitor, ou a câmara recua para mostrar um microfone em frente da cara de um actor (Stam estuda essa reflexividade em romancistas como Cervantes e Nabokov, dramaturgos como Brecht e Jarry, realizadores como Hitchcock, Bu-uel, Fellini, Godard, Wenders e Woody Allen).
David Boyd [1989: 195-197] analisou recentemente um conjunto de seis filmes, mostrando que ``cada filme representa, de uma forma ou de outra, mais uma variação sobre o tema familiar do círculo hermenêutico''. Isto far-nos-ia já deslocar das questões, digamos fenomenológicas, da cognição e da consciência para as questões, no entanto aparentadas, da interpretação e da consciência do seu perspectivismo: o filme aparece também como lugar privilegiado de consciência do trabalho interpretativo. Possivelmente, diz Boyd, ``a semelhança mais significativa entre os filmes que discutimos aqui como ``ficções de interpretação'' é simplesmente a frequência com que os seus vários dramas interpretativos acabam em fracasso'', são crónicas de fracasso: mas isto não significa ``que as conclusões dos próprios filmes sejam uniformemente niilistas'' (basta ver Rashomon ou 8 e 1/2); significa apenas que assumem como central a problemática do incessante questionamento interpretativo, a que não é possível fugir.
Robert Scholes [1976], considerando que a narratividade pedida a quem vê o filme é especialmente ``categorial e abstracta'', escreve: ``um filme bem feito requer interpretação, enquanto que um romance bem feito pode apenas requerer compreensão''. Conclusão que me parece demasiado esquemática, apenas possível na comparação entre filmes que requerem do espectador um especial trabalho de interpretação e romances que deixam poucos ``vazios'' para serem preenchidos. O mesmo tipo de comparação é feito por Peter Ruppert [1980: 63], que compara dois filmes de Wenders e Fassbinder que adaptam romances, concluindo que ``ambos os filmes procuram um maior nível de reflexão em quem vê do que as obras [literárias] em que se baseiam''. Por sua vez, Currie [1995: 282] vê assim as semelhanças e diferenças de interpretação na literatura e no cinema: ``Apesar do facto de o cinema ser essencialmente um medium não linguístico, é possível desenvolver uma teoria geral da interpretação que dê conta tanto da literatura como do cinema. Segundo essa teoria, a interpretação é explicação - explicação por referência a causas intencionais. Com um romance ou um filme, a tarefa do intérprete é formular hipóteses plausíveis sobre as intenções narrativas que produzem a obra. No entanto, a literatura e o cinema oferecem tipos de possibilidades narrativas bastante diferentes, e, em particular, o papel dos narradores em quem não se pode confiar é mais reduzido no cinema do que na literatura. O cinema mostra a necessidade de uma categoria de narrativas em que não se pode confiar mas que não têm narrador.'' Não podemos, aliás, esquecer que a visibilidade e corporeidade que o filme dá às personagens e situações restringe o leque de possíveis que teríamos na simples leitura. Leia-se também David Bordwell [1989], em volta das questões da interpretação dos filmes, incluindo o estudo da ``retórica em acção'' em sete interpretações diferentes do filme Psycho, de Hitchcock.
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