Paulo Filipe Monteiro1
Casos como o de Balzac, Ezra Pound, Céline ou mesmo Eliot e Pessoa, têm sido usados para mostrar que, por paradoxal que pareça, há por vezes ligações entre práticas artísticas das mais revolucionárias e posições políticas das mais conservadoras. O estudo do cinema português das últimas décadas pode ajudar a lançar alguma luz sobre esse paradoxo, mostrando como se pode criar e desenvolver esse tipo de combinações.
Sublinhe-se que o cinema português dos anos sessenta não foi politicamente conservador: o paradoxo foi muito menos dos cineastas do que do regime, que desde muito cedo, com António Ferro, incorporou um programa estético vanguardista. Dizemos apenas que, ao contrário do movimento cineclubista, que o Estado Novo, mesmo na sua face marcelista, não hesitou em extinguir, o chamado ``novo cinema'' pôde, ainda antes do 25 de Abril, controlar todos ou quase todos os lugares da instituição-cinema, tendo assim nas mãos o poder de produzir, ensinar e criticar, apesar do seu alinhamento político à esquerda. Uma situação contraditória a que aliás se vieram juntar, mais tarde, outras duas: durante o período revolucionário do Verão de 1975, o grupo do novo cinema foi afastado a favor dos cineastas do velho cinema; e, nos anos noventa, foram duas pessoas há pouco saídas da área comunista as chamadas a defender e gerir um modelo liberal e populista que procurou durante algum tempo acabar com a hegemonia que o grupo do novo cinema tinha conseguido recuperar com o 25 de Novembro.
Esse poder dos autores do novo cinema, que manifestaram uma extraordinária capacidade simultaneamente artística e organizativa, parece que não impediu, antes potenciou, o tipo de posições esteticamente vanguardistas de que procurarei enunciar alguns traços, e é nelas que temos de procurar as explicações para as contradições enunciadas. Que essa nossa vanguarda estética possa ter ocupado os lugares centrais, ao contrário do que usualmente acontece e do que foi a tendência do cinema mundial na segunda metade do século, eis outro paradoxo maior e muitas vezes mais fértil.
O novo cinema nasceu, em Portugal, quase a partir do nada. O cinema anterior, que tinha vivido o seu apogeu nos anos quarenta, assistira durante a década de cinquenta a uma irreversível decadência, em termos de ideias, de renovação estética, de público, e até, pura e simplesmente, de produção. Basta dizer que em 1955, geralmente referido como ``o ano zero do cinema português'', não se produziu nenhuma longa-metragem portuguesa.
O problema não estava na falta de procura: nos anos quarenta, o número de salas quase duplicara, o mesmo acontecendo ao número de espectadores de cinema: sintoma, decerto, de alguma expansão económica (com aumento da taxa de industrialização), de uma redução da taxa de analfabetização para 40 por cento, bem como da popularidade atingida pelo cinema em geral, e pelo cinema português em particular, nos anos trinta e quarenta. Esse aumento da procura tornava mais gritante a decadência da produção nacional, iniciada ainda nos anos quarenta, a ponto de, em 1948, o Estado Novo se ter decidido pela primeira vez a promulgar uma ``lei de protecção'' que instituiu um ``Fundo do Cinema Nacional'' onde os produtores passaram a poder ir pedir subsídios e empréstimos para as suas produções: ao mesmo tempo, estabeleciam-se quotas para a exibição de filmes portugueses.
Isso não chegou, no entanto, para travar a decadência de um cinema que os cineastas maiores abandonavam, de que o público desertava e que, salvo raras excepções, levava as empresas à falência, mesmo com os dinheiros públicos e com produções cada vez mais modestas. Nem o recurso a nomes famosos da revista, da canção, do toureio, do ciclismo ou do hóquei em patins, ensaiando variações das fórmulas cómicas, folclóricas e sentimentais, nem tão-pouco o recurso a algumas co-produções com o estrangeiro, travou a degradação, quantitativa e qualitativa, do cinema português, bem patente nesse número zero de longas-metragens registado em 1955.
Muitos dos cineastas tiveram, então, de recorrer às curtas-metragens, sempre ou quase sempre documentais, cuja quantidade (embora raramente a qualidade) não cessou de aumentar na década de 50, devido à política de subsídios do novo Fundo do Cinema (que quase sempre apoiou mais documentários do que ficções) e também às encomendas de serviços públicos ou religiosos e de algumas empresas privadas. A própria publicidade foi recorrendo ao cinema em ritmo crescente, tal como os cineastas foram recorrendo à publicidade como ganha-pão. A partir do final da década, foi nos documentários e na publicidade que primeiro se revelaram muitos dos nomes daqueles que vieram mudar o nosso cinema.
Para compreender bem o significado do triunfo dessa nova geração,
há que frisar que ele foi conseguido sobre as cinzas dos movimentos mais
politicamente perigosos para o Estado Novo, como o cineclubismo e o
neo-realismo. Comecemos pelo movimento cineclubista. Os múltiplos
cineclubes, onde se exibiam filmes, se animavam publicações e
até, nalguns casos, se faziam filmes de formato reduzido, vinham
protestando contra a situação do cinema português, a que a
revista Imagem chamou, em 1952, ``cidadela de analfabetos e comerciantes''. Em
Agosto de 1955, realizou-se em Coimbra o primeiro encontro nacional dos
cineclubes portugueses; nas suas conclusões, defendia-se a necessidade
de uma legislação adequada que regulasse o "Estatuto do Cinema
Não Comercial", uma maior facilidade na obtenção de cópias
de filmes, a edição de documentos e revistas especializadas, e
lançava-se a ideia da criação de uma Federação
Portuguesa dos Cineclubes, agrupando uma vintena de cineclubes, que na
época representavam uma enorme massa associativa. A resposta estatal
não foi nada favorável. Em 1957, foi proibida a exibição
livre do filme de formato reduzido. Em 1958, realizou-se, em Santarém, o
último dos encontros nacionais dos cineclubes; o de 1959 foi proibido. O
ataque movido pelo Estado Novo, ataque que se estendeu das barreiras à
contratação de filmes à censura e à própria
intervenção policial, veio cercear drasticamente o movimento dos
cineclubes, cujo apogeu, registado nos anos quarenta e cinquenta, não
pôde assim prolongar-se na década seguinte. No documento de 1967 ``O
Ofício do Cinema em Portugal'', de que adiante trataremos, lê-se:
``A desconfiança oficial acerca do Movimento acabou por reduzir a sua
vitalidade a partir sobretudo de 1959, ano em que chegou a ser proibido um
5 Encontro marcado para Torres Vedras. Em dez anos, o Movimento perdeu
mais de 20.000 sócios e actualmente apenas funcionam 18 cineclubes,
quando na naquela época havia cerca de 40.'' Perversamente, o
próprio Decreto-Lei n.
40 572, de 16 de Abril de 1956, ao criar a
Federação Portuguesa dos Cineclubes, tornava-os simples
episódios do circuito comercial de arte e ensaio e sobretudo punha
debaixo de controlo o que antes era um movimento disperso e subversivo;
depois, já nos anos sessenta, virá o saque das instalações e
dos documentos dos cineclubes.
Estes são assim destruídos antes de poderem dar frutos visíveis a nível da produção de grande formato, com que no entanto sonhavam: o único filme que se pode considerar como filho do movimento cineclubista é Dom Roberto, de José Ernesto de Sousa, dirigente cineclubista que consegue financiar e rodar o filme sem qualquer apoio estatal, graças ao entusiasmo do movimento. Essa seria a sua maior novidade, mas faria do filme, justamente, um caso à parte no novo cinema, que não mais seguiria um esquema de produção deste tipo.
Apesar da novidade do esquema de produção, ainda hoje a generalidade dos críticos e historiadores do cinema português faz questão em sublinhar que não foi com este filme que se iniciou o novo cinema; o que evidencia uma convergência (embora, evidentemente, por razões diferentes ou mesmo opostas) entre a destruição do movimento cineclubista e o tipo de estratégia, organizativa e estética, adoptada pelos homens do novo cinema. Estes viam em Dom Roberto um resquício do neo-realismo que rejeitavam (mais ainda do que o poder político da época, que, mesmo a contra-gosto, sempre tolerava o neo-realismo literário predominante nos anos sessenta e até apoiará algumas adaptações cinematográficas dessa literatura.
Dom Roberto tem sido comparado, com alguma razão, aos filmes com que Manuel Guimarães experimentou, em 1951 e 1952, fugir ao tom euforizante e patriótico, procurando que o nosso cinema acompanhasse a renovação que noutros países se iniciara logo a seguir à Segunda Guerra Mundial. Apesar da recepção entusiástica que os grupos mais oposicionistas dedicaram logo ao primeiro filme (Alves Redol, Cardoso Pires, Piteira Santos, Fernando Namora, Luís Francisco Rebello escreveram a favor de Saltimbancos, e a revista Imagem dedicou-lhe mesmo um número especial), Portugal mantinha-se, nessa como noutras matérias, orgulhosamente arcaico. E esse breve eco do cinema neo-realista italiano nem sequer teve seguimento na carreira deste realizador, que, depois de um terceira tentativa, entre 1953 e 1956, com graves dificuldades de produção e com drásticas amputações pela censura, acabou por tentar, em 1958, o recurso comercial a uma cançonetista da moda, além de enveredar pelos documentários. Quando brevemente voltar ao neo-realismo, em 1963 e 1965, já o neo-realismo cinematográfico estará a ser ultrapassado nos seus berços italiano e francês, e não tem condições para vingar em Portugal, onde, em termos de cinema, quase não chegou a existir. Adiante veremos o que o novo cinema tem a propor como alternativa. Antes, não deixemos de ver em que suportes institucionais assenta.
Há várias frentes com que o Estado, ao mesmo tempo que desmembra os cineclubes, passa a gerar uma série de transformações do cinema português. A primeira delas é a televisão. Em 1955, o tal ano zero da produção de longas-metragens, ``como que em coincidência simbólica e negativa'' (Luís de Pina, 1987, p.123), é criada a Radiotelevisão Portuguesa, por decreto de Marcelo Caetano, então Ministro da Presidência. As primeiras emissões experimentais têm lugar em 1956 e as regulares a partir de 1957. De algum modo, é verdade que o início da televisão vem prolongar a crise do cinema, crise ``que o Estado não pode (ou não quer) resolver, agora que outro meio infinitamente mais persuasivo - a TV - lhe pertence por inteiro'' (Pina, 1987, p.139). O Estado vê nela o melhor veículo para a sua ideologia, quando não mesmo para a pura propaganda, o que diminuirá o investimento no cinema. Mas, por outro lado, repare-se que, uma vez que nesta época o Estado não é um tradicional financiador dos nossos filmes, este menor investimento tem sobretudo conotações positivas: significa que o cinema ficará mais liberto de encargos ideológicos e gozará de uma liberdade maior, ainda que, já se vê, muito relativa; em breve, como já veremos, os dinheiros do Fundo de Cinema irão por vezes abranger cineastas e mesmo filmes que até há pouco tempo não faziam parte do horizonte do cinema que em Portugal se desenvolvia e autorizava. A própria televisão não foi buscar os artistas e técnicos do velho cinema: parecia ``querer afirmar-se diferente do cinema, já que, nestes anos de crise, deixou uma série de cineastas em más condições económicas para ir buscar à Emissora Nacional e a outras entidades os realizadores e técnicos de que precisava...'' (Pina, 1987, p.123), e que serão um dos núcleos da nova geração do cinema português.
Em relação mais directa com o cinema, o Estado promulga em 1959 e 1960 vária legislação, não particularmente renovadora, e dá, aí já com efeitos decisivos, um novo fôlego a dois organismos recentes: a Cinemateca e o Fundo do Cinema. A Cinemateca Portuguesa tinha já sido criada em 1948, mas só abre ao público em 1958, começando desde logo a organizar ciclos estrangeiros de grande novidade e interesse. Desses ciclos terá especial impacte a Retrospectiva do Cinema Mudo Americano (1913-1929). Bénard da Costa (1983) comenta: ``Seixas Santos e António Pedro Vasconcelos escrevem em 1965, na Tempo e o Modo, que a Retrospectiva do Cinema Americano "era, no nosso País, o maior acontecimento cultural desde o aparecimento do Orfeu". Exagero? "Terrorismo" cinéfilo, bem próprio desses anos? Em parte. Mas o que todos queríamos salientar era o que pela primeira vez víamos: o glorioso passado duma arte, tantas vezes chamada a arte do nosso tempo, e que, pela primeira vez, era revelado a uma geração.'' Ou seja, o que a Cinemateca provocava, ou pelo menos apoiava, junto da nova geração de criadores e espectadores, era a redefinição do cinema como arte - conceito que antes raras vozes (como Manoel de Oliveira e José Régio) tinham defendido, contra a produção nacional.
Mesmo fora da Cinemateca, houve por essa altura uma certa liberalização nos filmes estrangeiros que tinham exibição autorizada (em relação aos portugueses, a censura era mais rígida). A abertura de horizontes foi completada por um inédito movimento editorial relativo às novas perspectivas do cinema, em obras originais ou traduções. Em 1967, o relatório ``O ofício de Cinema em Portugal'' sublinhará: ``é de notar que este esforço editorial não foi um acontecimento fortuito, mas sim o fruto de um clima geral de entusiasmo criado à volta do cinema pelos cineclubes, e que o seu aparecimento é consequência directa do declínio destes.''
Além disso, renovou-se a crítica, não só, como até
aí, em revistas especializadas, mas nos próprios jornais
diários, que passaram a reconhecer o cinema ao lado das outras artes. O
próprio Fundo do Cinema subsidiou a revista Filme, dirigida por Luís de
Pina, que se começou a publicar em 1959. ``No seu n 20 - Novembro
de 1960 - a revista dedicava um dossier ao que já chamava "novo Cinema
português'', afirmando, pela pena do seu director, "que este, vivendo
nos últimos anos de uma desconsoladora mediania, precisa de sangue novo.
Os que ficaram para trás, alimentando-se das próprias
limitações e criando o mito da impossibilidade de fazer cinema em
Portugal, parece já nada terem para dizer. O futuro do Cinema
português está pois nas mãos das personalidades que reunimos
nestas páginas". Seis anos depois das apóstrofes da Imagem (que cessou a
sua publicação em 1961), era a certidão de óbito, feita de
dentro, do cinema dos anos 50. E, entre as "personalidades reunidas nestas
páginas", figuravam nomes que depois muito dariam que falar, quase todos
eles pertencendo já aos quadros da R.T.P.'' (Bénard da Costa, 1991,
p.115).
Em 1958, entra para titular do Secretariado Nacional de Informação (SNI) César Moreira Baptista, homem que ``tinha poucas ilusões quanto à capacidade dos cineastas no activo e que, para poder prosseguir uma obra no cinema, necessitava de descobrir novos talentos'' (Bénard da Costa, 1991, p.114). Deu-se então, escreve João Mário Grilo (1992, p.157), ``uma inflexão assinalável na política do então SNI, que, entre outras coisas, administrava os dinheiros do Fundo'': ``efectivamente, a estagnação do tantas vezes chamado "cinema nacional", a imperiosa necessidade de sustentar a máquina tecnológica da televisão e, já agora, as vozes quase consensuais que exigiam um cinema novo porque, como referiu Cunha Telles, "a degradação era tal que ninguém a poderia defender ou sustentar", fizeram com que o Fundo ensaiasse um esforço de renovação, implementando uma política de formação, nomeadamente com a atribuição de Bolsas de estudo para o estrangeiro, e incentivando produtores''. Repare-se que, se inflexão houve, foi ao reencontro do vanguardismo estético de António Ferro, que considerava as comédias dos anos quarenta filmes grosseiros, reles e vulgares, o ``cancro'' do cinema português.
Assim o Fundo, ao mesmo tempo que corta cerce o movimento autónomo dos cineclubes, continua por sua própria iniciativa, com mais meios e mais controlo, a renovação por eles iniciada, acolhendo mesmo alguns elementos não afectos ao regime, procurando formar os novos valores indispensáveis à renovação - decerto numa tentativa para os não lançar numa oposição aberta, ou sem contar até que ponto eles iriam subverter a ideologia e o cinema até aí dominantes. O Fundo concede bolsas de estudo a alguns jovens candidatos, como António da Cunha Telles e Manuel Costa e Silva (para Paris), Fernando Lopes e Faria de Almeida (para Londres) - para além deles, mas sem apoio do Fundo, José de Sá Caetano cursa cinema em Londres (1959), Paulo Rocha estuda em Paris (1959-61), enquanto José Fonseca e Costa estagia em Roma (1961). Note-se que o ambiente que estes jovens estagiários encontram lá fora é de grande renovação das pessoas e linguagens do cinema. Como reconhece Paulo Rocha (in Silveirinha, 1994), ``eu tive muita sorte. Ao contrário de alguns colegas meus tive muita sorte ao começar. No começo do anos 60 a juventude europeia estava na moda. Ser novo, ter ideias novas era de repente um valor.'' Mesmo no Portugal salazarista, como se poderá ver pela rápida ascensão dos novos valores.
No regresso de Paris, diplomado em realização, Cunha Telles dirige o jornal de actualidades Imagens de Portugal, é colocado à frente dos serviços de cinema da Direcção-Geral do Ensino Primário - a preocupação estatal com o cinema abrangia, na altura, o ensino mais elementar... - e sobretudo é nomeado director do I Curso de Cinema do Estúdio Universitário de Cinema da Mocidade Portuguesa, presidido por Fernando Garcia. O curso, iniciado em 1961, tem o apoio do Fundo do Cinema e do Ministério da Educação; o próprio Moreira Baptista estará presente na sessão de abertura. O seu sucesso é desde logo avaliado pelos cerca de 200 alunos inscritos, por ele passando um extenso grupo de futuros realizadores e técnicos do "Cinema Novo". Luís de Pina (1987, p.142) virá a considerá-lo um ``embrião da nossa futura Escola Superior de Cinema''.
Outra importante frente de renovação introduzida pelo Fundo do
Cinema é o apoio a um novo tipo de documentários, em que o cinema
surge como arte e não como mero suporte técnico de propaganda
turística. A abrir essa frente documental, estivera o único
``novo'' dos antigos cineastas: Manoel de Oliveira. A sua posição
destacada deve-se, porém, ao apoio dos cineclubes, que lhe tinham
realizado homenagens (nomeadamente o Cineclube do Porto, em 1954), e
também ao seu próprio espírito de iniciativa e tenacidade. Em
1955, depois de ver recusado o apoio à longa-metragem Angélica, Oliveira
desloca-se à Alemanha para estudar as questões técnicas da
película e fotografia a cor e, com aparelhagem que ele próprio
adquire, escreve, produz, realiza, fotografa e monta O Pintor e a Cidade, de 26 minutos,
estreado no S. Luiz, em Lisboa, em 1956. ``O filme - talvez a única vez
na obra de Oliveira - foi entusiasticamente defendido pela unanimidade da
crítica. Entusiasmo que se repetiu em Paris e em Veneza e lhe valeu em
1957 o primeiro prémio internacional da sua carreira, em Cork, na
Irlanda. Face a este acontecimento, em 1958, o S.N.I. decidiu emendar a
mão. E atribuir-lhe, pela primeira vez, dois subsídios que viriam a
permitir - já nos anos 60 - O Acto da Primavera e A Caça'' (Bénard da Costa, 1991,
pp.110-111), além de lhe dar o prémio para a ``melhor fotografia''.
Entretanto, a Federação Nacional dos Industriais de Moagem
encomenda-lhe o documentário O Pão, que vem a conhecer duas versões e a
estrear-se em 1959. Ao mesmo tempo, Oliveira vai fazendo um filme muito
experimental sobre o universo pictórico do pintor Júlio, irmão
de José Régio (As Pinturas do meu Irmão Júlio, rodado entre 1958 e 1965). Em 1963, a revista
Plateia organiza uma homenagem nacional a Oliveira e dedica-lhe um número
especial. No mesmo ano, Acto da Primavera, já uma longa-metragem mas ainda profundamente
documental, tem estreia comercial em Paris; é recusado pela
selecção oficial de Veneza em 63, mas vem a ganhar, em 1964, a
Medalha de Ouro do Festival de Siena. ``Só em 1964, em Locarno, A Caça e O Acto se
impuseram à atenção da crítica internacional. Jacques
Bontemps escreveu nos Cahiers du Cinéma (Outubro de 1964, n. 159) que A Caça era ``bande
suffisamment à part pour planer au dessus de tous les films
presentés''. Pela mesma altura, Freddy Buache homenageou, em Lausanne,
Oliveira e Trnka. Em 1965, foi a vez de Langlois e da Cinemateca Francesa.
``Voilà plus de trente ans que Manoel de Oliveira illustre le cinéma
portugais'', escrevia-se em Dezembro de 1965. Só neste ano o
prestígio internacional de Oliveira começou, para além das
referências mais antigas e altamente elogiosas de Bazin ou Sadoul''
(Bénard da Costa, 1991, p.122).
Vários outros documentários, significativamente sem apoio do Fundo, vão tornar cada vez mais presentes e já visíveis os novos caminhos do cinema português. Fernando Lopes, bolseiro do Fundo, regressa de Londres, reocupa o seu posto na Televisão, e logo em 1961 roda um primeiro documentário, intitulado As Pedras e o Tempo, também claramente em ruptura com o habitual ``documentário turístico''; no mesmo ano realiza uma série de televisão e, no ano seguinte, dois documentários, O Voo da Amizade e As Palavras e os Fios. Outros documentários de novo tipo vão surgindo, como Verão Coincidente e Nicotiana, de António de Macedo, Faça Segundo a Arte, de Faria de Almeida, e Era o Vento... e Era o Mar, de Fonseca e Costa.
A ascensão do novo cinema consegue mesmo ultrapassar algumas contrariedades, ligadas, sobretudo, à guerra entretanto surgida em África: ``novas dificuldades vão levantar-se ao Cinema português, que, em obras de fundo, poucas relações tivera com o ultramar [...]. A prioridade nacional dada ao conflito - e nessa prioridade está o domínio absoluto, a "mobilização" da RTP - atrasa naturalmente as soluções de fundo''. As eleições de 1958, a guerra, o ``caso do Santa Maria'' expuseram e geraram mais revolta contra o regime e provocaram o aperto da censura, que levaria às prisões ``de cineastas e críticos como Fonseca e Costa, Vasco Granja, Henrique Espírito Santo, e até Manoel de Oliveira, libertado por imediata intervenção de gente do cinema junto da Presidência do Conselho, no momento em que decorriam as homenagens à sua obra'' (Pina, 1987, p. 44). Mais tarde, foi preso o distribuidor José Manuel Castello Lopes.
Mas o apoio dado pelo regime aos novos cineastas foi maior do que esses incidentes puderam fazer crer. Por exemplo, como lembra Bénard da Costa (1991, pp.117-118), ``em Agosto de 1962, o S.N.I. desceu a terreiro para protestar contra a afirmação que considerava ser caluniosa de ter recusado fundos a Manoel de Oliveira. O qual, mais ou menos por essa altura, foi preso pela PIDE. De todas essas contradições se vivia.'' Por isso, ``as leituras maniqueístas não ajudam. Esta história do "fascismo" português foi bastante mais complicada do que depois a pintámos. Na história do cinema isso é quase exemplar.'' Triunfaram ``cineastas em que o cineclubismo tinha sido mais percursor do que ventre gerador e que, se progressivamente se distanciaram do Poder, tentaram com ele a coexistência possível.''
Além disso, também em contra-tendência à renovação, prossegue a tentativa de fazer reviver, embora com menos meios, as velhas comédias, tentando assim criar sucessos comerciais, ainda que muitas vezes com o apoio do Fundo estatal - como se poderá ver no capítulo seguinte, de Fausto Cruchinho. ``O cinema dos mais velhos, com raras excepções, tenta apenas, perante o recuo do público, os condicionalismos censórios, a falta de financiamento, a força da TV e a ameaça crescente do automóvel, do disco e do fim-de-semana, uma fórmula comum de sobrevivência, no momento em que o SNI (depois de 1968 transformado em Secretaria de Estado da Informação e Turismo) decide reforçar o seu apoio ao cinema sobre a realidade ultramarina. E essa fórmula consiste, muito simplesmente, no embaratecimento acentuado dos custos de produção e na escolha de argumentos sentimentais, de agrado fácil, imediato, contados numa linguagem acessível, dirigida a um público que se presume inculto e pouco exigente, quase sempre concentrado no Odeon, que se transforma numa espécie de bunker do nosso cinema mais elementar. A regra, agora, é essa: não mais a produção desafogada dos anos 30/40, mas um cinema de pobre, na economia e nas ideias'' (Pina, 1987, p.155).
``Vindo da Lisboa Filme, onde trabalhara na produção durante mais de
dez anos, Manuel Queiroz [...] fundara a Cinedex em 1962, onde vai intentar
(com apoios financeiros do fundo do Cinema) um esquema de produção
contínua, de características comerciais, [...] que, durante
três anos, iria dar origem a um surto de produção quantitativa
importante (dez filmes)'' - incluindo dois filmes para a infância (um
género quase nunca produzido entre nós), em torno da amizade de um
grupo de crianças por um cão. ``1964 é o ano de Calvário:
Rei da Rádio, vencedor do 1