Irene Machado1
Durante a guerra do Golfo, as telas de televisão do mundo inteiro levaram ao ar, durante os telejornais, imagens de um céu escuro onde, de vez em quando, aparecia o clarão de um bombardeio ou de um porta-avião. O silêncio e o vazio da cena, vez por outra, eram quebrados pela voz de um jornalista a falar sobre algo de que não se tinha muita certeza. ``A única verdadeira imagem dessa guerra que a televisão nos mostrou foi a tela negra - supostamente os céus de Bagdá - e alguns minúsculos pontinhos luminosos representando os bombardeios distantes. Se recordarmos as representações aparatosas que usualmente o cinema faz da guerra, estamos aqui diante de um verdadeiro processo de corrosão do espetáculo bélico, uma operação de esvaziamento dos códigos televisuais, a ponto de, muitas vezes, de reduzir a cobertura a uma voz sem imagem, a voz vacilante e monótona de Peter Arnett, transmitida de Bagdá via telefone'' (Machado 1991-2: 173).
O jornal impresso diário, cuja iconografia sempre privilegiou a fotografia, ficou privado dessas imagens que a televisão oferece ao vivo. Na ausência de informações mais precisas, os jornalistas abriram espaço mais uma vez para o imaginário e preencheram o branco da página assustada com desenhos, diagramas, tabelas numa tentativa de ativar as imagens de algo que não se podia alcançar. Segundo José Manuel de Pablos (1999) a Guerra do Golfo tornou possível o desenvolvimento de um gênero jornalístico até então pouco explorado: o infojornalismo. A infografia foi a grande redentora da falta de fluxo contínuo de informações e de material visual que as forças políticas, envolvidas no conflito, impediram de ser veiculadas (sobre a censura no período de guerra ver Machado 1991-2).O jornal impresso tratou de desvendar a iconografia que certamente mostraria um outro mapa dos acontecimentos. ``A imprensa, privada de um bom material gráfico disponível sobre o que sucedia no Iraque, teve de desenhar a ação, por que os jornais, desde o século XX, se haviam comprometido com seus leitores a oferecer uma parte de suas informações de forma gráfica '' (De Pablos 1999: 60).
Enquanto a tela da televisão permaneceu escura e apenas aberta para a reprodução de vozes que chegavam via telefone, o jornal tratou de desenhar o outro lado do front. Em primeiro lugar, era preciso localizar o Iraque, desconhecido para grande parte da população mundial. O mapa apenas delineado na tela da televisão ganha ocupa quase todo o espaço da página e os acidentes do território ganha relevo e dinamicidade com setas, diagramas, caricaturas, desenhos, cores, diversidade de tipos graficos - um verdadeiro palco das operações militares que ninguém via. Diga-se de passagem que palco (ou teatro) das operações se tornou a rubrica do cenário bélico configurado graficamente em conflitos posteriores. De igual modo, se na tela os aviões invisíveis, os Scuds soviéticos e as armas inteligentes, nunca foram exibidos nas páginas do USA Today e do El Mundo eles ganharam visibilidade apareceram desmontados em sua engenharia e poder de fogo.
Situar o desenvolvimento de um gênero jornalístico - no caso a infografia - no contexto da Guerra do Golfo, como o fez De Pablos (1999: 63), não pode ser entendido como um mero historicismo tão comum às necessidades de justificativas condicionadas a causas imediatistas. Trata-se de uma inserção que procura chamar a atenção para o fenômeno da solidariedade de mídias que, de certo modo, trouxe uma alternativa para se pensar a condição dos media fora do cenário da a crise, trazendo para o primeiro plano da discussão o uso que o jornalismo faz da linguagem gráfica e do design explorando de modo conseqüente a riqueza da semiose enunciativa. Se entendemos por enunciação aquilo que definiu Mikhail Bakhtin como a semiose que ocorre entre o dito e do não-dito num contexto dialógico - e nisso estão implicados vários constituintes cênicos de todo processo interativo - de fato, a representação midiática desse episódio bélico torna-se exemplar. A infografia foi uma experiência ímpar de preencher o contorno do mapa imobilizado na tela e adentrar graficamente o território do front. O não-dito ganha expressão visual e chama a atenção para aspectos não muito conhecidos da própria natureza da mídia. A representação da cena em movimento não é próprio do jornal impresso, daí a ênfase no fotojornalismo e de um conceito bastante limitado de fotografia. O impresso pode ser estático, o grafismo não. Aí está a grande descoberta da enunciação infográfica: é a escrita gráfica, o design gráfico que permite a modelização do movimento e o desvendamento das várias semioses que nele operam. Prova disso é que a infografia faz valer também seu caráter narrativo: com o passar dos dias a cena se modificava, ainda que o mapa do território continuasse a ser o gráfico de base. O conjunto das infografias avançava diariamente numa narrativa que ninguém sabia direito onde iria dar. Ainda que estivesse muito longe de ser um substituto das imagens ao vivo e das fotografias que não foram tomadas in loco, a infografia significa a semiose de uma cena onde o não-dito é parte constitutiva da enunciação. Disso os censores, provavelmente, não se deram conta.
É preciso continuar com a imagem da televisão na mente, não como tela escura e imóvel, para se entender esse gênero jornalístico que surgiu, não de uma guerra, mas de uma aproximação solidária entre diferentes codificações. Tiremos da tela o episódio da Guerra do Golfo e pensemos na mídia audiovisual que é a televisão. É do encontro entre mídia audiovisuail, gráfico-digital e impressa que se desenvolveu o gênero informativo muito significativamente chamado infojornalismo - gênero que resulta da intervenção nos códigos gráficos que modelizam a informação em diferentes meios explorando, portando, suas potencialidades semiósicas.
Antes de entrar nas particularidades do gênero, é preciso esclarecer os termos que designam o campo midiático e foco de interesse deste estudo. Infojornalismo é uma tradução direta do termo infoperiodismo cunhado pelo espanhol José Manuel de Pablos (1999) para denominar o uso da infografia como sistema de escrita multicódigos no jornal impresso em tempos de cultura de mídias eletrônico-digitais. No âmbito de nosso estudo, porém, infojornalismo é processo de infossemiose que se desenvolve num ambiente informacional em que a mensagem exibe interferências semióticas tanto no processo de produção quanto no de recepção. O estatuto verbal, por exemplo no meio impresso, entra em conexão com sistemas audiovisuais, cinéticos, digitais, sem contudo perder sua condição gráfica mas, pelo contrário, arrastando-a para um outro limiar de expressividade. É no espaço gráfico que as linguagens audiovisuais, cinéticas e digitais são modelizadas de modo a oferecer um texto no sentido da moderna semiótica.
Do ponto de vista epistemológico, infojornalismo corresponde a uma necessidade de as linguagens da comunicação exercitarem sua capacidade de pôr a informação em linguagem e fazer valer o potencial dialógico das relações solidárias entre elas. Infojornalismo significa, por conseguinte, semiose da informação no jornalismo. Infossemiose não diz respeito ao meramente informático: semiose da informação designa o movimento de criação de linguagem num cosmos dialógico ou num cosmos potencializador de informações ávidas de se constituirem em linguagem. Infossemiose não apenas não sofre, portanto, do determinismo informático da contemporaneidade, como também a transcende.
E é como sistema multicódigos modelizador da informação - ou se se preferir, de semiose da informação - que nos interessa discutir aqui o infojornalismo.
O infojornalismo é o gênero informativo que operou uma das mais férteis ``transferência de formato'' na escrita gráfica, fazendo com que a informação possa ser expressa por diferentes codificações de linguagem no jornalismo. Embora estejamos aqui a falar da modelização no jornalismo impresso, na verdade o infojornalismo é im gênero da escrita gráfica do jornalismo e pode se manifestar indistintamente no meio impresso, audiovisual ou digital. Aqui está o centro do que concebemos como potencialidade semiósica da linguagem jornalística. A transferência de formato se realiza em função do desenvolvimento de relações dialógicas entre diferentes códigos que migram para meios muito diferentes de seu habitat semiótico original. Assim, a informação na página de jornal é enunciada segundo uma forma de escrita que tanto pode estar na página, como na tela da televisão quanto na tela do computador. O infojornalismo foi concebido como gênero informativo exatamente por sua capacidade modelizante em relação aos códigos de representação da linguagem jornalística. Isso significa que o gênero não se restringe a uma mídia mas pode ser modelizado em diferentes sistemas semióticos.
Devemos aos semioticistas russos a noção de gênero como uso dialógico da linguagem e de modelização como princípio dialógico processador da semiose entre diferentes sistemas da cultura. Os chamados sistemas modelizantes são, por conseguinte, sistemas sensíveis a interações, abertos ao diálogo e prontos para migrarem de uma região a outra, tal como as aves que migram de uma região para outra guiadas por um sensório radicalmente desenvolvido. Essa é a metáfora epistemológica do infojornalismo como sistema modelizante. É somente como base semiótica que a palavra agencia o sistema modelizante favorecido amplamente pela sua condição gráfica: é o grafismo do código da escrita verbal que permite aqui as semioses de outras ordens, seja audiovisual e até mesmo cinética. A própria condição da linguagem escrita é alterada, como já afirmei em outra ocasião (Machado, I. 2002).
O gênero é modelizado pelas codificações de diferentes mídias tornando-se manifestação da dialogia que permite a migração de formas e transferência entre formatos. Voltando às notícias de guerra nos jornais (impressos, televisivos, online) as páginas que registram o confronto são denominadas palco dos conflitos ou teatro das operações (ver contra-ataque americano ao Taleban, Folha de S. Paulo, 18 de outubro de 2001) e nelas desfilam toda sorte de infográficos: diagramas, setas, boxes, linhas, cores, tabelas, desenhos de relevos e texturas. Ou seja, os atores da luta são a própria semiose. Essa é a principal característica do infojornalismo como gênero que modeliza a informação a partir de diferentes codificações em desenvolvimento nesse estágio da cultura. Além disso vale lembrar que servir-se da mesma palavra - página - para referir-se ao suporte da escrita analógica e digital não é uma carência terminológica ou transporte inconseqüente, mas uma constatação de que esse é, de fato, um nicho semiótico.
Tendo em vista o exposto até agora, a definição de infojornalismo como gênero informativo diz respeito, sobretudo, ao modo particular de uso da linguagem gráfica e, conseqüentemente, da modelização de formas que migram de um sistema a outro. É muito importante considerar que tais migrações não acontecem em razão de implantação de novos recursos, mas sim graças ao dispositivo semiósico de representação: buscam-se instrumentos expressivos na mídia que os tiver mais desenvolvidos segundo a melhor interpretação do próprio signo. Se entendemos semiose como ação inteligente do signo, não se pode ignorar que ``inteligência'' aqui não é apego ao novo, mas sim busca de mananciais expressivos favoráveis à representação. A infografia com sua base gráfica, que existe tanto no meio impresso, no audiovisual, no eletrônico-digital, é o manancial expressivo do infojornalismo. Existirá onde houver necessidade de se organizar a informação textual em sua dimensão gráfico-visual numa página. Por que envolve processos gráficos de diferentes mídias, o infojornalismo é aqui focalizado como um processo de semioticização da escrita gráfica no jornalismo. Daí a importância de se entender a transmutação do conceito de escrita: não estou considerando apenas aquilo que se faz com a linguagem verbal mas tudo aquilo que se faz com outros códigos sejam eles visuais, sonoros, cinéticos, audiovisuais e digitais - como geralmente nos referimos às linguagens midiáticas.
Nesse sentido, a infografia se encarregou de disseminar um tipo de linguagem que permitiu o desenvolvimento de uma sólida argumentação gráfica, de que trataremos mais adiante. Por ora basta dizer que a infografia envolve competências que estão além de uma leitura seqüencial, típica da leitura alfabética, e mais próximas do raciocínio lógico que também está na base das operações estéticas realizadas pelos diferentes ramos profissionais que a executam - repórter, fotógrafo, ilustrador, designer gráfico - de modo a colocar a notícia num ambiente ecológico agenciador das possibilidades enunciativas dos acontecimentos em pauta. Por conseguinte, ``implica uma maneira de trabalhar que potencializa esse gênero visual impresso renascido com a ajuda de jornalistas munidos de uma cultura visual adequada para saber em cada momento que é o mais infograficamente conveniente'' (De Pablos 1999: 43).
O desenvolvimento da argumentação gráfica e de competências semióticas singulares mostra que o infojornalismo não é apenas uma estratégia didática de transmissão da informação. Esse nos parece um posicionamento ingênuo e cego para alcançar a dimensão crítica que ele exercita. A infografia não leva apenas ao reconhecimento semiótico da linguagem gráfica que a escreve mas, ao fazê-lo, nos obriga a refletir sobre sua tendência a voltar-se, cada vez mais, para si própria como linguagem. Isso, contudo, não pode ser visto como um aspecto estético do infojornalismo, mas reflete uma dimensão ética da condição metacomunicativa do jornalismo contempoâneo, sobretudo do jornalismo internacional em que ``a comunicação primária é substituída pela comunicação mediada em relação à qual torna-se periférica: nos grandes conflitos a tendência é empurrar a comunicação primária para a periferia da comunicação social e aumentar o poder de força da comunicação mediada que se instala, assim, no centro da comunicação social'' (Marcus 1993: 378). O que é a comunicação internacional senão a comunicação sobre a comunicação? O potencial dialógico enunciativo - cada vez mais fundado na citação - mostra que a tendência cada vez mais presente nas mídias é a prática de ser discurso dentro do discurso, mídia dentro de mídia. Tudo isso tem a ver com a relação ou efeito de uma mídia sobre a outra, o modo de tradução, o modo como as pessoas se relacionam com os meios e evidente a ecologia da comunicação.
A performance gráfica antes de ser observada como performance do estágio tecnológico da cultura precisa ser compreendida como discurso crítico que os meios exercitam entre si. Somente por esse viés é possível acompanhar a argumentação gráfica que ela está a nos oferecer como alternativa da comunicação linear ainda plena dos vestígios de causalidade da interação oral-aural.
De Pablos, José Manuel (1999). Infoperiodismo. El periodista como crador de infografia. Madrid: Síntesis.
Machado, Arlindo (1991-2). ``O telejornal em tempo de guerra''. Revista USP, n. 12, pp. 172-185.
Machado, Irene (2002). ``Semiótica como teoria da comunicação''. Tensões e objetos da pesquisa em comunicação. Porto Alegre: Sulina, pp. 209-234.
Marcus, Solomon (1993). ``International Communication: from the aboutness to the self-referential approach''. In Tracing the Semiotic boundaries of Politics (Pertti Ahonen, ed.). BErlin: Mouton de Gruyter.