A ponte dos Suspiros - O romance histórico como bildungsroman1

Ivone Ferreira

A história oficial diz que em Junho de 1578 D. Sebastião parte para uma jornada no Norte de Africa com cerca de 18000 homens, entre eles os melhores cavaleiros portugueses e alguns estrangeiros. A batalha travada a 4 de Agosto de 1578 provoca a morte a Sebastião, rei de Portugal, aos dois reis mouros Muley-Hamed e Muley-Moluco e a 9000 homens, crendo-se que os restantes comba- tentes terão sido feitos cativos.

A crise dinástica introduzida pela morte do rei que perece sem deixar sucessor e umas cerimónias fúnebres realizadas em 1578, por ordem do Cardeal Dom Henrique, sem corpo presente deixaram dúvidas sobre a efectiva morte do rei. Filipe II de Espanha rea- liza outras exéquias com a presença do que dizia serem as ossadas do seu sobrinho, num cortejo feito com todo o alarido, como se de confirmar a morte do monarca, perante o povo, se tratasse. O Desejado torna-se naquele que pode devolver a independência a Portugal e restaurar a identidade portuguesa, sobrevivendo sob a forma de mito na mente daqueles que acreditam no regresso do rei encoberto.

N'A Ponte dos Suspiros Fernando Campos sugere uma história alternativa à oficial, formulando a hipótese de sobrevivência do monarca português à batalha. Acompanha o regresso deste a Portugal onde assiste ao seu funeral e ao sofrimento e miséria do povo, acabando por desistir de recuperar aquilo que lhe pertencia, o trono.

Sebastião, aliás Savachão, nome que adopta para evitar ser reconhecido, refugia-se no Sinai onde, vinte anos mais tarde, em confissão, é incitado a não fugir à responsabilidade que lhe havia sido confiada por Deus.

``Pecaste. Contra Deus e contra o teu povo. Sabes que a realeza vem de Deus?''

Acenou que sim.

``Vou dar-te a única penitência possível. Regressa, rei. Cumpre o teu dever e o teu destino. Retoma o governo do teu reino.'' 2

Dirige-se a Itália, a Veneza mais propriamente, a fim de falar com o arcebispo Graziani que o conduziria ao papa Clemente VIII para que, perante este, pudesse apresentar provas que comprovassem a sua identidade. Aí encontra Frei Estêvão de Sampaio e Marco Túlio Catizone que, por tantas físicas com monarca, virá a ser morto para poupar a vida a D. Sebastião. Seguem-se prisões e infortúnios, a audiência perante o papa, a procura de sinais que atestem a identidade de Savachão, o reconhecimento por alguns familiares, a morte de Frei Estêvão e de Túlio acusados de impostores, o assassinato do traidor Nuno da Costa e o recolhimento de D. Sebastião no mosteiro em Limoges.

O romancista formula a tese que aponta para a sobrevivência do monarca mas não a dá como a certa. O autor aceita a incerteza, tanto no início como no fim do romance.

``Está sepultado neste túmulo, se é verdade o que dizem, Sebastião!'' 3

A epígrafe inicial 4aponta para isso mesmo e o epílogo, feito por um narrador não omnisciente, traça os passos do país até à independência e o crescimento do mito sebástico.

O romance de Fernando Campos é extremamente rico começando pela temática que escolhe. Defende Fleishman que ``the plot must include a number of historical events, particularly those in the public sphere (wars, politics, economic changes, etc.), mingled with and affecting the personal fortunes of the character.''5 Dificilmente algum facto do passado respeitaria mais este objectivo pois a batalha é, dos acontecimentos da esfera pública, dos mais marcantes na história de Portugal. É a partir deste acontecimento, a batalha de Álcacer Quibir que Campos molda um novo D. Sebastião, cumprindo assim a segunda parte da frase acima citada.6

A ficção parece-nos credível porque, socorrendo-se de dados conhecidos, colocando datas, locais e personagens que não nos são estranhos e geram em nós uma certa curiosidade ou simpatia, o romance tem meio sucesso garantido. O autor associa, por exemplo, o agravar da doença e morte de D. Catarina a uma visita de D. Sebastião em que esta tenta dissuadir o neto de participar na batalha.

A Ponte dos Suspiros fornece um ponto de vista alternativo à versão oficial, a história tem já local científico consagrado, não entra em litígio com a ficção. Independentemente de terem sido feitas boas ou nas escolhas no romance, não se pretende dar uma escolha legítima ou institucional mas apenas fazer ficção.

``Verdade? Mentira?... Problema que não se põe desde que a ficção inicia o seu incontestável poder de criar...''7

Estamos perante uma obra com uma estrutura tipicamente ficcional mas que bebe de acontecimentos históricos, vai buscar personagens e locais para a partir daí criar. Estamos pois, perante um obra de poiesis.

Dizia Rebelo da Silva em Ódio velho não Cansa que ``Em assumptos históricos, o dever do romance consiste em cunhar com a verdade mais aproximada a expressão fiel do viver e crer de Portugal, ou de outra qualquer nação, n'uma designada epocha''8 e Campos consegue isso muito bem. Consegue transportar o leitor para uma época passada, não se cingindo a isso.

Estamos perante uma criação que pretende ser verosímil mas não pretende dar uma vertente pedagógica à ficção através deste género híbrido que é o romance histórico. Se é que Campos concebeu uma função didáctica para o romance, em última instância esta estará presente nas explicações dadas ao porquê de colocar o padre Luís Álvares no púlpito dos Jerónimos e não Frei Miguel dos Santos9 porque o autor segue a lógica de um cardeal que não se quer comprometer com o novo poder enquanto não tiver certezas absolutas quanto à morte do rei português. O cardeal preside à cerimónia mas é o padre Luís Álvares que profere o sermão.10

A interligação história/ficção funciona muito bem ``pela inclusão de dados rigorosamente históricos no meio da intriga'',11 dados que segundo Fernando Campos são os ``pequenos, grandes, estranhos sucessos'' que fundamentam o romance.12 Tal como Saramago n'O Memorial do Convento, Campos usa dados que podem ser facilmente procurados em arquivos históricos. Não se detém como este em descrições demoradas mas consegue recriar o ambiente da época, a fome do povo, a prostituição, os mendigos, o funeral em latim, as romarias, os saltimbancos ciganos,...

Começa por reconstituir um cenário propício ao aparecimento do Sebastião Desejado que há-de voltar para restituir a independência a Portugal e fundar o Quinto Império. No início do romance só há ``vazio e nada''.13

A passagem do tempo e espaço é bem conseguida, expressando movimento, sobretudo quando narra a jornada de Frei Estêvão e a viagem de D. Sebastião até à casa onde estava D. Catarina. 14

``Dias e noites, noites e dias... Montanhas nevadas, desfiladeiros despenhados, (...).A que trabalhos te deitas, Frei Estêvão de Sampaio... à chuva e ao vento, às tempestades desabridas, às neves e ao desvairo das águas transbordadas... os meses que passam, (...) Abril, Maio, Junho... ir e voltar... A que trabalhos te dás, Estêvão de Sampaio, só porque acreditas que o homem de Veneza é o teu rei e ainda chega a tempo de salvar o reino espoliado.''15

O narrador começa por ser um estrangeiro, morador em San Beneto em casa de Jerónimo Migliori.

``Contar-vos-ei tudo como se passou'' 16

Não existe um narrador único com uma só focalização17 o que dá mais vida à história e não a torna cansativa, dramatiza a diegese e mostra, precisamente, de que forma a história pode ser plural, constituída por muitos pontos de vista. A primeira fase é narrada pelo próprio D. Sebastião que conta o seu percurso até ali.

``E o romeiro continuava a contar...`` E o romeiro continuava a contar...''18

Há outros narradores como Frei Estêvão e Marco Túlio. O romance é contado na 1ª pessoa e é interessante reparar no episódio em que D. Sebastião começa a olhar o Sebastião passado como distinto de si:

``O outro que eu era mandá-los-ia enforcar por muito menos.'' 19

``Esta foi a guerra que eu não quis travar... e tinha-a em minhas mãos. Maldito rei.''

Também Cristina Vieira sentiu o mesmo embaraço que nós para, em certos momentos, determinar quem narra a história. Uma confusão que a autora julga ``ser propositada (...) simbolizando a própria incerteza que reina nos nossos espíritos relativamente ao destino verídico de D. Sebastião''. 20

``Nevoeiro cerrado. Não vejo nada, meu senhor. Vagas sombras cinzentas, esbranquiçadas, que se esvaem, se me desfazem em humidade pelo fumo que sou..''

``Quem fala? Quem fala? Que vozes são estas?...'' ``Ali. João nasceu... mil e seiscentos e quatro...

(...)

Nevoeiro, neblina, bruma... é como o conhecimento humano. Que sabes tu? Que sei eu? De vez em quando uma réstia de sol que alumia, lá em baixo, aquela vereda... ''

O não dominar o futuro, dá em certa medida suspense mas prevemos, ao longo da leitura, que o romance vá terminar de acordo com a história e é isso que acontece. Conceber o contrário seria descredibilizar o romance histórico e torná-lo apenas um romance. O narrador não é omnisciente e aquilo que se procura é reflectir sobre a história. Há duas hipótese decorrentes de Álcacer Quibir, o rei pode ter ou não morrido. Uma delas é sobejamente conhecida. Porque não abordar a outra?

As cenas são curtas, algumas pouco exploradas, aparecendo sob a forma de resumo, outras enriquecidas e adornadas, facto que é compreensível se compararmos, por exemplo, com ``A dama de pé-de-cabra'', de Herculano. A história é contada sempre com uma proximidade marcada entre o narrador e o ouvinte, é uma história importante que se encontrou num livro antigo, portanto merece respeito e não vamos dizê-la a toda a gente e de qualquer maneira. N'A Ponte dos Suspiros também se trata de uma narração que está envolta de secretismo (sob pena de qualquer revelação a alguém pouco honesto poder acarretar a morte do rei), o Sebastião que conta ao cónego as sua desventuras durante vinte anos. Contando uma história, há sempre a necessidade de abdicar de certos pormenores e dar maior realce e outros: é isso que faz o narrador do romance em análise. Há elipses, algumas implícitas outra facilmente perceptíveis pelo maior espaçamento entre os parágrafos, como se mudássemos de espaço cénico.21

Existe ainda uma menor complexidade narrativa em comparação com outros romances denominados clássicos, o que não torna a obra menos primorosa. O autor entra na obra a convite de Patrick Lizé, que preparava um guião, e esta é, na opinião de Cristina Vieira, a razão pela qual A Ponte dos Suspiros aparece com uma linguagem prática e visual.22 A construção é muito mais incisiva e menos fastidiosa, ou correr-se-ia o risco de se produzir algo cansativo que se junta à vasta obra produzida sobre o sebastianismo.

``Não estamos, nem poderíamos estar perante um mero romance histórico de muita acção, nos moldes anacronicamente românticos de um Alexandre Dumas ou de um Alexandre Herculano, feito de encomenda para garantir sucessos de bilheteira''.23 Neste caso o autor trabalha nas lacunas que a história lhe dá; não tem maior margem que esta. Aliás, tomá-la seria diminuir a credibilidade que o romance histórico oferece. Adequa-se ao que diz Martin Kuester em Framing Truths, ``I would suggest that historical novels in the context of this study are works of fiction that deal with questions of historical consciousness in a historically conditioned situation on the lebels of author, narrator, characters, or action''.24 Não se trata de fazer uma pintura de acontecimentos, não é jornalismo, não se procura trazer o cheiro local ou regressar aos primórdios da acção, procurando fazer história através dela. Vê-se o passado não como algo estático que a história aprisionou na sua totalidade mas antes, como algo aberto, onde o escritor pode encontrar riquezas para construir novas ficções.

Quando o carácter dos indivíduos é suficientemente conhecido, quando os monumentos e tradições estão bem arraigadas nos indivíduos é mais fácil o escritor recriar um tempo, não para fazer história mas para, a partir desta e recorrendo a pormenores de verosimilhança construir uma outra história. Não ``fazer história'' mas dar oportunidade ao leitor de conhecer uma outra versão que é nada mais do que uma estória mas também nada menos do que esta.

As personagens existiram na realidade e esse é, a nosso ver, um grande ganho no romance em análise. Optar por criar uma personagem é partir do zero. O escritor teria que pintar na sua mente os traços desta, o seu andar e vestir, comportamento, ``como é que ele agiria nesta situação?''. Aqui temos, não um protagonista qualquer mas, em primeiro lugar, uma personagem conhecida do público leitor que, dada a língua do romance ser o português, será minimamente conhecedor da cultura portuguesa; em segundo lugar, o facto de os traços desta personagem serem bastante conhecidos, leva a que a leitura do romance permita não uma primeira abordagem à personagem mas um reavivar desta na nossa mente25; estamos então não perante uma apresentação deste mas perante uma re-apresentação de uma personagem

A identificação da personagem principal é dada na primeira página em sinal de augúrio. Não estamos perante uma história qualquer, senão o gondoleiro não teria sentido aquele calafrio.

``Que palidez! pensa o gondoleiro. Como rebrilham aqueles olhos no escuro do capuz! A barba a grisalhar antes do tempo, os dedos brancos na mão, como de cadáver mas bem cuidados, aferrados ao bordão, a acenar leve adeus... É prà i algum grande senhor, apesar do burel e do desalinho...

Vê afastar-se, a esvoaçar na névoa, a sombra da capa de romeiro, ouve-se o eco dos passos sem imagem esbater-se na fundura cinzenta em direcção a São Marcos. Sente um arrepio:''Uma alma do outro mundo!'' Persigna-se e abala dali.''26

Os olhos que brilham no escuro do capuz e falam de mistério; os dedos brancos, associados à expressão de cadáver, não é aleatório, o rei morto que afinal está vivo. A roupa de romeiro, associada a uma certa fatalidade desde Frei Luís de Sousa de Garret; a sombra da capa, adivinha fatalidade; o arrepio e a finalização: ``uma alma do outro mundo!''

Diz Fátima Marinho que a ``utilização de personagens referenciais no primeiro plano acarreta modificações substanciais na concepção da narrativa''27, de facto ela pode ser, em parte, castradora uma vez que, a credibilidade até então trabalhada para dar consistência ao romance, corre o risco de se esvair se a personagem sofrer no final um destino que contrarie a história oficial, a história que vingou e que o leitor conhece.

Este Savachão que Campos cria movimenta-se com um certo à vontade dentro da história. O leitor chega ao fim e pode perguntar: ``E se o escritor tem razão? E se isto é verdade?'' Sabe-se que não é esse o intuito do romance, dá-se apenas mais uma possível interpretação entre tantas outras que não precisa de ser verídica. Não se trata aqui de colocar personagens aleatoriamente num tempo histórico antigo, não se trata de reconstruir o passado, não se trata de recriar um ambiente específico.28 Não se pretende fazer história.

Quanto à personalidade do herói e das restantes personagens que o rodeiam há aqui um recurso às virtudes que se crêem ser intemporais. Há, no entanto uma contextualização bem gerada pois esquecer a virtude da fidelidade seria descredibilizar a história.

`` Em nenhuma maneira hei-de ir nem eu nem as galés sem levar Vossa Alteza, ainda que me mandeis cortar a cabeça. Sofrê-lo-ei melhor do que desamparar-vos.'' 29

De salientar, sobretudo, é o crescimento da personagem do ``segundo'' Sebastião (Savachão), uma conversão, um mudar de vida. Quanto aos outros, a virtude nobre da lealdade que leva Frei Estêvão e o sócia calabrês a abdicarem de tudo para lutarem por um ideal e a punição dos maus com a morte de Nuno da Costa.

O romancista recorre a uma série de estratagemas narrativos para tornar simpática a personagem aos nossos olhos e que segundo Vieira30 se resumem a dois: as humilhações e maus tratos a que tem o rei tem que se submeter ( pedir esmola, recorrer à sopa dos pobres -e comer depressa, assistir ao próprio funeral, as prisões, o episódio com os pombos na Ponte dos Suspiros, os interrogatórios e castigos corporais, o retiro para Limoges) aproximando-o assim quase de um messias;

``Dão-me daquilo que lhes tirei. Tirei-lhes o pão, sequei-lhes as terras, roubei-lhes a caça, trouxe-lhes a viuvez e a orfandade, a miséria e a morte... e vê tu que me dão a amizade e do pouco que possuem. Que lição!''31

O segundo, a atracção física que Sebastião encontra em Estrella e o amor numa prostituta, alguém sem nome a quem o rei chama princesa.

``Nunca olhara nenhuma mulher. Os padres habituaram-no a desviar os olhos.'' 33

``Queres que te leia a sina, chico? (...)

``Como te chamas. Moça?'' perguntou Savachão.

``Estrella, Senhor''

``Tratas-me por Senhor..''

``No lo es?'' 34

Para alem de contribuir para humanizar o rei, o episódio ajuda a aumentar a tensão dramática, visto que a cigana adivinha a realeza de Savachão. Contribui ainda para o aumento da tensão o sermão fúnebre que abordando a morte e ressurreição de Lázaro metaforicamente se adequa à sobrevivência de Sebastião.

O leitor já identificou Sebastião com Savachão mas é necessário haver o reconhecimento na ficção, o que aumenta o suspense. O reconhecimento é questão fulcral para a resolução do conflito.

``Meu filho é deveras assombroso o que referes, mas em ocorrência de tanta gravidade...

-Poderei apresentar provas concretas?''32

Frei Estêvão vem a Portugal procurar provas para se certificar que é mesmo o rei. Acompanha-se toda a jornada, as conversas com a irmã da ama da Rainha D. Catarina, com o barbeiro, o alfaiate, o sapateiro que cantava as trovas do Bandarra, para depois ser feito o reconhecimento efectivo do rei e possa também o leitor tirar qualquer dúvida que ainda tenha.

No que diz respeito ao herói, há algo de Alexandre Dumas e d' O Homem da Máscara de Ferro aqui. Não pretendendo cair no romantismo, a personagem Sebastião ou Savachão é propícia a histórias deste género. A história de um irmão mau e um bom, sendo que o mau ocupa o trono e condenou o irmão a uma vida de prisão com uma máscara para que ninguém lhe veja o rosto, é condensada no protagonista deste romance de Fernando Campos. Há uma diferença clara entre o primeiro e o segundo Sebastião. Estamos perante uma personagem modelada que quanto mais se afasta do seu trono - se bem que lutando por ele, mais se aproxima do carinho do leitor. Um herói nada apagado, que vai crescendo a pouco e pouco, humanizando-se, como se a batalha de Alcácer Quibir fosse catártica.

Nas personagens principais, ganha força um Telo, Frei Estêvão e Túlio, que entregam as suas vidas para salvar a daquele que julgam ser o seu rei. Até neste aspecto há um beber da história para credibilizar a ficção, recorrendo ao espírito da época.

Fernando Campos destaca nas notas finais o trabalho que acarreta um romance histórico. Foi necessário procurar os documentos da época, situar as personagens em locais importantes e facilmente reconhecíveis, dados facilmente comprováveis pelo leitor se este decidir consultar um manual de história. Mas documentar-se não é suficiente pois o leitor não tem acesso à documentação nem se deixa influenciar pelas palavras do escritor. É necessário que essa documentação seja visível no romance, de forma despercebida e natural para que o leitor olhe para a ficção não como algo artificial e construído, mas que lhe pareça uma história possível. Desta forma é importante a inserção de costumes e palavras da época.

O texto segue ao máximo os preparativos para a batalha, as bulas papais que podem atestar a audiência papal estarão na Biblioteca do Vaticano. E verídica a execução de Frei Estêvão.33 A execução aconteceu, tal como o romancista a coloca, na praça de Sanlúcar de Barrameda, em Espanha. Também a existência de Marco Túlio Catizone é verdadeira, bem como a morte conjunta com frei Estêvão por se fazer passar por D. Sebastião.34 É verdadeira a carta do Vice-Rei de Nápoles a Filipe de Espanha a sugerir uma troca de prisioneiros no Castell dell'Ovo; existiu ainda o mosteiro em Limoges onde o arqueólogo Antoine Texier descobriu uma capela dedicada a São Sebastião e que os mais velhos diziam ter abrigado um rei com esse nome.

N'A Ponte dos Suspiros, Fernando Campos trilha um caminho ``muito peculiar nos meandros que se poderiam revelar traiçoeiros, pelo risco de repetição, de um dos mitos portugueses mais difundidos e revisitados, intra e extra fronteiras, pela mão de diversos intelectuais de diferentes quadrantes da cultura''35 mas que o autor resolve muito bem, recriando o ambiente de nevoeiro característico de um canal no início do romance e terminando a obra com incertezas e brumas que, segundo a crença popular, seriam características do dia em que o rei regressasse.

O cónego a quem Sebastião conta a história afirma nunca ter ouvido nada tão trágica desde as desventuras do Rei Édipo. Fazendo esta comparação está, de certa forma, a eternizar a história do rei português. Diz Fátima Marinho que ``a intromissão do mito na vida quotidiana reforça os laços existentes entre as épocas e as situações e ajuda a construir um universo diegético muito próprio, onde cada vez mais os limites cronológicos se esbatem''.36 Conceber a sobrevivência de D Sebastião à batalha é mais facilmente conseguido devido à força e presença deste mito na história portuguesa

``- Das pessoas que particularmente o conheceram, ando a inquirir as marcas do corpo dele.

- Para terdes a certeza de que é ele, desta vez?

- Como te passa semelhante ideia pela cabeça?

Desatou a dar lustro às botas e a cantar:

... de terra em terra andará

muita gente há-de morrer...

- E se fosse? - perguntei.

Parou a função e olhou-me muito sério:

-É.''37

Fernando Campos pegou em factos e personagens históricas que se tornaram lenda, o que tem até sentido numa altura em que ainda nos questionamos se existe uma identidade portuguesa ou se não terá esta sido, em parte, mudada pela integração de Portugal numa entidade económica mais abrangente como a União Europeia. A história de Sebastião interessa porque, por acréscimo, interessa a Portugal e ganhou até destaque na literatura inglesa, para não falar de nomes como Sérgio, Vieira ou Pessoa, em Portugal.

``Naquele tempo, disse Maria a Jesus'' recordava Savachão o texto conhecido ``senhor, se tivesses estado aqui, o meu irmão não teria morrido... ''

``qui Credit in me, etiam Si mortuus fuerit, vivet... ''

``... ainda que morto, viverá '' 38

Nada mais adequado ao sebastianismo, nada melhor para descrever o mito. O rei morto que continuou vivo por séculos, enraizado nas tradições de cristãos novos.

``Um rei sem reino... um povo sem pátria''39 Temática que viria a ser desenvolvida por diversos intelectuais que procuram refazer a identidade portuguesa e restabelecer o orgulho da nação, fazê-la regressar aos bons tempos de outrora e trazer à realidade o mito do Quinto-Império, colocando os portugueses como nação iluminada.

``-Que coisa é pátria? Há hoje em Portugal, sabeis muito bem, quem tenha pejo de pronunciar sequer a palavra. (...) Enterrou-a a loucura de um rei que levou o reino a fazer guerra de África...

-(...)Não lhe chameis funesta. Vinte e poucos anos, reparai, bastaram vinte e poucos anos para se apagar a identidade da pátria e da nacionalidade.''

``A flor do reino morreu em Alcácer Quibir''

``-Vedes?- mostrava Pimentel o documento a Nuno da Costa, que se mantivera um pouco arredado.

-Portugal não morreu! -disse Lourenço com a voz embargada e os olhos húmidos.

-Morreu- respondeu entre dentes Nuno da Costa.''40

A questão da identidade, será verdadeiro ou não este D. Sebastião, é mais abrangente do que aquilo que se poderia julgar para quem não conheça a cultura portuguesa. Esta busca pelo reconhecimento e esta mudança na identidade do rei mostra o processo do povo português e a importância da construção de uma identidade nacional. Há um esforço considerável para convencer uma série de personagens da sua verdadeira identidade que se nota na procura de sinais que possam comprovar a identidade do rei e trazê-lo de volta à pátria. Depois, uma crítica apontada à pouca resistência dos portugueses (os poucos que havia passaram-se para Espanha), apenas uns poucos têm ousadia para resistir mas acabam por ser castigados.

``Como ele dorme! Que frágil parece! (...) se mo matam?...Não matam a ideia. Irei até ao fim. Para o proteger ou para o ressuscitar fá-lo-ei, se for preciso, substituir por esse outro que, parecido com ele, aí vai a velejar o seu sonho. Tire-se um rei, ponha-se outro, conquanto, na floresta de enganos e desenganos, permaneça a ressurreição... ''41

Através das trovas de Gonçalo annes Bandarra, colocadas na boca do sapateiro no romance e posteriormente dos escritos de António Vieira e Fernando Pessoa entre outros, D. Sebastião torna-se mito.

A originalidade de Campos está em encontrar uma história alternativa para a figura de D Sebastião, destino alternativo ao da historiografia oficial visto que os outros romances do mesmo autor respeitam os dados mais públicos, sendo considerados, segundo a terminologia de Joseph Turner como romances históricos documentados.42 N'A Ponte dos Suspiros, Campos movimenta-se com à vontade respeitando os dados oficiais e constrói uma narrativa ``que não é apenas verosímil em termos ficcionais; é também plausível e bem sustentada em termos históricos''.43 O desaparecimento do rei após a batalha está bem justificado, o que é questão fulcral. Este teria decidido despojar-se de tudo o que lhe pertencia, tomado as roupas de um morto em combate e permanecido no anonimato por ter exigido esta condição aos que o sabiam vivo.44

A Batalha de Álcacer Quibir foi um ponto de viragem na História de Portugal, trazendo a dependência a um domínio estrangeiro, a perda de um império, daí a prudência papal na ficção em reconhecer D. Sebastião, rei de uma antiga potência que não mais tem valor. Esta viragem histórica vê-se na viragem do próprio D. Sebastião, o seu destino acaba por ser o destino do seu povo, frustração e humilhação.

Alcácer é a conversão do monarca, uma mudança de nome (tal como Pedro, de Simão para Pedro, de ``caniço'' para ``rocha'') que corresponde a uma mudança de carácter e também de estatuto. A imagem sonora traduz bem essa mudança para algo popular e nada nobre. Depois há um crescimento neste D Sebastião que a pouco e pouco se humaniza, que assiste ao próprio funeral, que abdica de tudo, que olha uma mulher pela primeira vez.

``Esta obra não é apenas um romance histórico é um bildungsroman, isto é, um romance que traça o itinerário de um homem em aprendizagem interior, em progressão psicológica, moral e espiritual (acaba como monge entre agostinianos franceses de Limoges), inversamente à queda política e social''.45

Bibliografia



Notas de rodapé

...bildungsroman1
Romance que traça o itinerário de um homem em aprendizagem interior.
... reino.''2
CAMPOS, Fernando, A Ponte dos Suspiros, Difel, 2ª edição, 1999,, pp.74.
... Sebastião!''3
Idem, pp. 206.
... inicial4
Alegue o historiador com os escritores que da dita batalha, por estas ou aquelas razões, o fazem sair vivo e juntamente com os outros que, por outras razões, o fazem na mesma batalha morto. Destes dois sucessos certamente um é certo. Humanamente não podemos saber qual o verdadeiro. Por não expor a perigo o crédito da verdade, fique a questão indecisa'' Rafael Bluteau, A Ponte dos Suspiros, página 7.
... character.''5
in MARINHO, Maria de Fátima, O Romance Histórico em Portugal, Porto, Campo das Letras, 1999, pp. 2.
... citada.6
No Epílogo d'A Ponte dos Suspiros pode ler-se: ``sobretudo o que mais me empenhou foi recriar e encher personagens tão ricas como um rei Dom Sebastião, na sua lenta e dolorosa transformação de rei soberbo em pobre farrapo humano abatido e transfigurado, como um Frei Estêvão de Sampaio e um Marco Túlio Catizone, que levam a sua lealdade até ao supremo sacrifício da própria vida.'' Fernando Campos.
... criar...''7
CAMPOS, Fernando, A Ponte dos Suspiros, Difel, 2ª edição, 1999, pp. 213.
... epocha''8
Lisboa, Empresa Lusitana Ed., 3ª edição, pp.16.
... Santos9
Questão que ainda suscita dúvidas na historiografia
...ao.10
VIEIRA, Cristina Maria, ``Fernando Campos e A Ponte dos Suspiros: para uma história alternativa de Álcacer Quibir'' in Revista ``... à Beira'', nº 0, Universidade da Beira Interior, Departamento de Letras, 2001, pp.64.
... intriga'',11
Maria de Fátima, O Romance Histórico em Portugal, Porto, Campo das Letras, 1999.
... romance.12
CAMPOS, Fernando , Op. Cit., pp. 213.
... nada''.13
Idem, pp. 9.
... Catarina.14
Idem, pp. 14, 15.
... espoliado.''15
Ibidem, pp. 100
... passou''16
Idem, pp.12.
...ao17
VIEIRA, Cristina Maria, ``Fernando Campos e A Ponte dos Suspiros: para uma história alternativa de Álcacer Quibir'' in Revista `` ... à Beira'', nº 0, Universidade da Beira Interior, Departamento de Letras, 2001, pp.57.
... contar...''18
CAMPOS, Fernando , A Ponte dos Suspiros, pp. 19.
... menos.''19
Idem, pp. 37.
...ao''. 20
VIEIRA, Cristina Maria, ``Fernando Campos e A Ponte dos Suspiros: para uma história alternativa de Álcacer Quibir'' in Revista `` ... à Beira'', nº 0, Universidade da Beira Interior, Departamento de Letras, 2001, pp.58.
...enico.21
Idem, pp.41.
... visual.22
Idem, pp.41.
... bilheteira''.23
Idem, pp.41.
... action''.24
Maria de Fátima, O Romance Histórico em Portugal, Porto, Campo das Letras, 1999, 1º capítulo, pp.
... mente25
Claro que estamos a trabalhar ficção mas é impossível o leitor não identificar o Sebastião d'A Ponte dos Suspiros com o Sebastião Rei de Portugal.
... dali.''26
CAMPOS, Fernando, A Ponte dos Suspiros, pp. 9 e 10.
... narrativa''27
Maria de Fátima, O Romance Histórico em Portugal, Porto, Campo das Letras, 1999, 1º capítulo, pp.
...ifico.28
MARINHO, Maria de Fátima, ``O romance histórico na 1ª pessoa'', Intercâmbio, nº 6, Porto, Instituto de Estudos Franceses da Universidade do Porto, 1995, pp. 67.
... desamparar-vos.''29
Noronha para D. Sebastião. Campos, A Ponte dos Suspiros, pp. 13.
... Vieira30
VIEIRA, Cristina Maria, ``Fernando Campos e A Ponte dos Suspiros: para uma história alternativa de Álcacer Quibir'' in Revista `` ... à Beira'', nº 0, Universidade da Beira Interior, Departamento de Letras, 2001, pp. 53.
... lição!''31
A lição da história. A tensão é agravada por estes monólogos que parecem interiores.
... concretas?''32
Campos, A Ponte dos Suspiros, pp. 84.
...ao.33
``à notícia de um falso D. Sebastião, em Veneza tudo largou e foi ao encontro do embusteiro, acabando por ser preso e morto'' A. do Rosário, ``Sampaio, Estêvão'', Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Verbo, s. d., volume 16, pp. 1201-1203 citado por Vieira, Cristina, ``Fernando Campos e A Ponte dos Suspiros: para uma história alternativa de Álcacer Quibir'' in Revista ``... à Beira'', nº 0, Universidade da Beira Interior, Departamento de Letras, 2001, pp.64.
...ao.34
Idem
... cultura''35
Vieira, Cristina, ``Fernando Campos e A Ponte dos Suspiros: para uma história alternativa de Álcacer Quibir'' in Revista `` ... à Beira'', nº 0, Universidade da Beira Interior, Departamento de Letras, 2001, p.40.
... esbatem''.36
MARINHO, Maria de Fátima, ``Reescrever a História'', Línguas e Literaturas, Volume XII, Porto, FLUP, 1995.
...-É.''37
Campos, A Ponte dos Suspiros, pp.111.
... viverá ''38
Idem, pp. 63.
...atria''39
Idem, pp. 37.
... Costa.''40
Idem, pp. 131, 132.
... ''41
Idem, pp. 147.
... documentados.42
Vieira, Cristina, ``Fernando Campos e A Ponte dos Suspiros: para uma história alternativa de Álcacer Quibir'' in Revista `` ... à Beira'', nº 0, Universidade da Beira Interior, Departamento de Letras, 2001, p. 46.
...oricos''.43
Idem, pp. 47.
... vivo.44
Campos, A Ponte dos Suspiros, pp. 20.
... social''.45
A terminologia é de Mikhail Bakhtine. Vieira, Cristina, ``Fernando Campos e A Ponte dos Suspiros: para uma história alternativa de Álcacer Quibir'' in Revista `` à Beira'', nº 0, Universidade da Beira Interior, Departamento de Letras, 2001, p. 52.