A Deriva do Humano

Gerson Dudus
Faculdade de Filosofia de Campos


Índice

A Deriva do Humano

``Uma criança cyborg come maçãs transgênicas na árvore do desconhecimento do bem e do mal.''
Manifesto Anti-Parasita

Quando criança - trinta anos atrás, eu lia o gibi dos primeiros X-Men. Depois, já adolescente, só lia ficção científica - aquelas do Julio Verne, Arthur C. Clarke, Ray Bradbury e, principalmente, Isaac Asimov.

Dois filmes foram lançados em 2000 - X-Men e o Homem Bicentenário - o primeiro baseado nos super-heróis de HQ da Marvel Comics e o outro num conto do livro `Eu Robot e outras histórias' do Asimov.

A pergunta óbvia, posta em cheque pelos dois filmes é: o que significa ser Humano? Existe uma definição esclarecedora e definitiva? ou, como dizia Nietzsche, o homem é uma ponte do animal para o além do homem? O homem é uma coisa que passa, e vai originar outra coisa, mesmo talvez continuando a existir - como o livro não deixou de existir depois que inventaram a internet.

Para quem não conhece as histórias, aí vão algumas informações:

X-Men são seres humanos diferentes, mutantes, espalhados pelo mundo - uma espécie de salto evolutivo. Eles não são aceitos pelos outros humanos (como se fossem negros ou muçulmanos ou nordestinos ou gays ou) Então, o Dr. Xavier, mutante paranormal, resolve abrir uma escola para ampará-los, educando-os para entender o que são e usarem melhor suas potencialidades. No filme, um senador de direita quer forçar a aprovação de uma lei no congresso americano que obrigue os mutantes a se identificarem publicamente, porque imagina assim poder proteger os humanos dos poderes dos mutantes. Enquanto isso, outro mutante, Magneto, acredita que é preciso destruir os humanos e continuar o processo de evolução a partir dos mutantes. Xavier se contrapõe aos dois, porque acredita que as duas espécies devem aprender a conviver e se ajudarem.

O Homem Bicentenário é a história de um andróide que, por algum defeito em seu cérebro positrônico, torna-se único, singular, diferente de todos os outros da linha de montagem. Ele é ajudado pelo seu proprietário a usar suas potencialidades e ser cada vez mais o que é. O andróide vai se diferenciando, gosta de ouvir música, aprende uma profissão, vende seus produtos, ganha nome e documentos, seu proprietário abre uma conta no banco. Então, ele começa a criar próteses para o próprio corpo, no intuito de se tornar cada vez mais corpo humano, pois se apaixona pela filha da filha de seu proprietário e quer ser correspondido. Depois de tensões e dúvidas da humana que estranhamente se sente amando um andróide, eles resolver ficar juntos. Sofrem todo o tipo de pressão e preconceito. E então, o andróide convoca a ONU e pede para ser considerado humano, já que pensa, sente, trabalha e ama. A ONU lhe nega o direito, porque considera que mesmo sendo tudo o que um humano é, ele continua sem poder morrer, e se não morre, não é humano.

As histórias continuam. Mas é isso o que eu quero contar.

Paradoxas

``o caminho do paradoxo é o caminho da verdade. Para pôr à prova a realidade é preciso vê-la andar na corda bamba.''
Oscar Wilde

Biotecnologia, inteligência artificial, robótica, cibernética, internet. A idéia de que estamos a meio caminho de alguma outra coisa, num devir da espécie, numa hibridação, soa aterrorizante e desafiador. É nesse ponto que nos encontramos, paradoxalmente sem termos resolvido problemas dos mais urgentes, como comida e água potável para todos os humanos. Mas, segundo alguns pensadores contemporâneos, o paradoxo ocupa lugar central na vivência da condição humana.

Ceci nes't pas un object

Sendo assim, vou usar o surgimento destes novos desafios e perplexidades com valência positiva. É que toda essa tecnologia não pode ser divorciada do humano, porque cada objeto técnico inventado é a própria imagem da subjetividade humana projetada, como dizia Simondon. Eles entram, portanto, na invenção de processos de singularização. E também levam a um ponto de indeterminação a antiga dualidade sujeito/objeto. Félix Guattari chama estes objetos tecnológicos/científicos de objetos-sujeito, Michel Serres os chama de quase-objetos. E aí já temos uma mestiçagem reveladora de outro paradigma cognitivo. É o entre-lugar, o interstício que conta aqui, uma abordagem quântica, por assim dizer.

Campos de Imanência

Pierre Lévy levanta a possibilidade de já termos, através do conhecimento que se troca, se armazena, se produz e multiplica via internet, aquilo que ele designa como noosfera e hipercórtex. E ele vai adiante, apresentando os conceitos de democracia cognitiva e tecnodemocracia, que podem acontecer se nos apropriarmos das novas tecnologias da inteligência de maneira inteligente e comungante.

Religare, a antiga palavra latina que dá origem à nossa palavra religião aparece sem capa de transcendência, mas conectando na imanência. Gianni Vattimo, falando na abertura do Compós, dia 03/06/2002, dizia que precisávamos substituir o princípio da racionalidade científica e econômica pelo princípio da misericórdia - pietas. Este princípio deriva das grandes religiões, passando por um processo de secularização. Vattimo afirmou que precisaríamos criar uma comunicação que tivesse o desejo de `tornar comum', de fazer comunidade, e não apenas de informar. E tornar comum é trazer junto com a informação os afetos, as percepções, o contexto subjetivo. Afinal, é a subjetividade que mobiliza o `socius', que tira as pessoas do torpor taustista causado pela mídia e a publicidade.

(Parêntesis - Uma outra comunicação)

Existe um novo ativismo acontecendo, que recupera o espaço público e civil da política e está usando e cada vez melhor todos os equipamentos tecnológicos que a nossa era da informação oferece para aumentar o espectro da democracia - uma democracia não meramente `representativa' (em crise evidente e grave), mas uma democracia participativa. Ele fez acontecer uma coalizão de forças que antes nem se juntavam para conversar. Todos estão querendo mostrar um outro mundo possível, que não este da exclusão global de $\raise.5ex\hbox{$\scriptstyle 3$}\kern-.1em/

\kern-.15em\lower.25ex\hbox{$\scriptstyle 4$} $ da população do mundo dos benefícios da civilização ocidental.

``O que o movimento antiglobalização está demonstrando é que as lutas sociais voltaram à cena internacional como fonte de pressão por mudanças que levem a transformações do modelo civilizatório em curso. Ele foi gerado pelo próprio sistema a que se contrapõe: a globalização capitalista.(...)A novidade no movimento antiglobalização é que ele está unindo, sem apagar as diferenças, num campo de ação comum, grupos políticos e tribos culturais que até então nem sequer se sentavam juntos para dialogar, ou seja, o movimento antiglobalização é, em si, um novo ator sociopolítico''1

Este ativismo é, segundo Antonio Negri e Michael Hardt,

``uma atividade positiva, construtiva e inovadora (...) a resistência está imediatamente ligada a uma participação vital e inevitável no conjunto das estruturas sociais e à formação de aparatos cooperativos de produção e comunidade. Essa militância faz da resistência um contrapoder e da rebelião um projeto de amor.''2

Serres, numa entrevista, afirmou que quando se escreve sobre comunicação é preciso ter coragem de chegar até o fim. E, sem pieguice nem pudor, declarou que a verdadeira comunicação entre os homens é o amor. Grupos como os da luta anti-globalização ou da anti-publicidade inventam um outra comunicação para um outro mundo, visando uma outra globalização. Alguns destes grupos usam o nome de Mídia Tática para as intervenções e ações que realizam com o objetivo de chacoalhar o entorno social e engajar as pessoas na luta por mais democracia, mais participação, mais ética, mais igualdade no mundo.

Com relação a isso, eu digo aos meus alunos que o jornalista é como uma doméstica, a diarista da informação. Ele precisa colocar todo dia a casa das pessoas em ordem. E casa é no grego, oikos. Curiosamente, `oikos' deu origem em nosso português para ecumenismo, economia e ecologia. O jornalista cuida de toda a humanidade (oikoumene) - informando sobre todos os povos para todos os povos. O jornalista analisa as situações mercadológicas e financeiras do capitalismo integrado (oikonomos), buscando suas (des)razões e seus resultados para as pessoas reais. O jornalista cuida da casa de toda humanidade, a Terra, informando sobre as questões ambientais (oikologos) e os seus desdobramentos biopsicossociais. Como diria o nosso professor Fernando Silveira, é uma tarefa hercúlea. Que só é possível realizar a cada dia, vagarosa e cuidadosamente. Como uma boa empregada doméstica. A única diferença é que no jornalismo, para arrumar a casa, às vezes é precisa desarrumá-la completamente, varrer embaixo do tapete, tirar os cadáveres do armário, abrir o sótão e o porão, e deixar entrar a luz. Aí, nem sempre a patroa vai gostar.

Máquina x Homem ?

Voltando à questão dos objetos técnicos, existe um conceito deleuzo-guattariano que pode mostrar como a máquina e o homem não estão tão separados assim.

Deleuze e Guattari (DG) inventaram a expressão maquínico. O maquínico não é o mecânico, não é a máquina tomada em seu mecanicismo, em seu funcionamento automático e previsível. O maquínico é aquilo que produz desterritorialização, que abre novas possibilidades de experiência, de sensações, de afetos.

Por isso, para DG, a subjetividade (que inclui o inconsciente, mas não deriva apenas dele) é uma máquina desejante. Onde o desejo não é nem representação da falta, nem romance familiar, nem pneumática anímica (id/ego/superego), mas produção concreta com as forças e os fluxos. É o trabalho de aumento de potência da vida, criando agenciamentos - formas, atitudes, devires - no encontro dos corpos que são conceitos, perceptos, afetos, pessoas, fatos.

Tentando explicar melhor: na definição de von Foerster, um dos maiores nomes da cibernética, o cérebro é uma máquina não-trivial, sensível à modificação de seus próprios estados internos, dependente do passado e analiticamente imprevisível. Uma máquina que trabalha todos os dados que entram, sempre procurando novos resultados/ respostas. E Carl Sagan reforça essas considerações ao afirmar que o número de estados diferentes de um cérebro humano é (10$^{13 })^{2 }$ dez trilhões de vezes elevado à segunda potência:

``Esses números enormes podem também dar alguma explicação sobre a imprevisibilidade do comportamento humano e sobre aqueles momentos que surpreendemos a nós mesmos pelo que fazemos(...)Todos os estados do cérebro não estão de modo algum ocupados: deve haver um número enorme de configurações mentais que nunca entraram e nem mesmo foram vislumbradas por nenhum ser humano na história da espécie. Deste ponto de vista, cada ser humano é verdadeiramente raro e diferente(...).'' 3

Para DG, a subjetividade está sendo produzida, materialmente, não apenas no cérebro, mas pelo corpo todo e por todos os corpos. Ela habilita a criação de universos biopsicossociais. E é na mistura com as máquinas sociais (instituições, leis) com as máquinas técnicas (avanços tecnológicos, descobertas científicas) e as máquinas estéticas (arte) que a subjetividade humana move seu devir.

As formas-força

Deleuze, no anexo ao seu livro `Foucault', fala sobre o trabalho das forças no homem que, juntamente com outras, determinariam uma certa formação histórica. Ele mostra três formas-força.

A primeira é chamada de formação clássica, e são infinito e perfeição. Estas forças do fora, quando entram em contato com as do homem, que se sabe limitado, não dão origem à forma-homem, mas sim à forma-Deus: que leva as categorias do infinito e perfeição até o paroxismo. Na segunda, chamada formação moderna, as forças do homem se relacionam com a força da finitude. E elas modulam a vida, a linguagem e o trabalho. Esta fase inventa o homem.

Para Deleuze, estamos agora na terceira formação, que talvez invente aquilo que Nietzsche chamava de übbermensch - o além-do-homem. Esta formação trabalha com as forças do homem e as forças do finito-ilimitado. Os melhores exemplos são o DNA, que origina tudo o que o humano é com a combinação de apenas 4 bases de aminoácidos; e o zero e um do espaço digital, que acumulam e transformam quase todo o conhecimento humano na web. Deleuze inclusive fala das relações que podem acontecer entre carbono e silício. Talvez Foucault tenha acertado quando disse que o próximo século seria deleuziano. Porque ao que parece, ele está acertando.

Conclusão (?)

Um novo filme, `Inteligência Artificial', de Spielberg, mostra uma sociedade humana do futuro, onde cria-se um novo modelo de andróide, um robô-criança, com um software revolucionário: permite à maquina amar.

O amor, da fala de Vattimo e de Serres, retorna, aqui. E mesmo este é aquele `love not a goal, but a travelling'. Uma passagem, uma travessia, um devir. Que sempre estimula as imaginações e miscigenações.

Bibliografia



Notas de rodapé

... sociopolítico''1
GOHN, Maria da Glória in Folha de São Paulo, Caderno Mais!, Março/2002
... amor.''2
HARDT, Michael e NEGRI, Toni. Império, Editora Record, Rio de Janeiro, 2001, pg. 437.
... diferente(...).''3
SAGAN, Carl in SANTAELLA, Lucia, Produção de Linguagem e Ideologia, Editora Cortez, São Paulo, 1989