PIERRE BOURDIEU (1930/2002): SOCIÓLOGO CIDADÃO

João Carlos Correia1

Com a morte de Pierre Bourdieu, no passado dia 23 de Janeiro, desapareceu mais uma daquelas figuras que, no período após a II Guerra Mundial, aliaram um pensamento inquieto e impiedoso à intervenção cívica e ao exercício da cidadania. A propósito, Habermas escreveu no Le Monde: ``Ontem, Niklas Luhmann, hoje Pierre Bourdieu(...) Com Pierre Bourdieu, desaparece um dos últimos grandes sociólogos do século XX, indiferente às fronteiras entre as disciplinas." Com 71 anos, Bourdieu era, desde 1964, Director da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, director da Revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales e Catedrático de Sociologia no Collège de France, desde 1981. Apesar do seu percurso militante, tão típico dos intelectuais franceses de Sartre a Foucault, Bourdieu tentou manter, de forma implacavelmente lúcida, os limites que se colocam ao intelectual na sua intervenção cívica. De um lado, persistia o intransigente rigor intelectual e académico aplicado aos diversos mecanismos de dominação que atravessam a sociedade. Num artigo publicado no Nouvel Observateur, Didier Eribon, filósofo e jornalista, relata como nos últimos dias que precederam a morte, após dolorosa doença, Bourdieu discutia com colaboradores e amigos próximos um conjunto de temas que fariam parte do seu último livro, Microcosmos. Na sua nova obra propunha-se aplicar a sua ``teoria dos campos sociais" a diferentes sectores da sociedade já anteriormente abordados: a Igreja, o Patronato, a Banca, a Arte. Ao mesmo tempo, detinha-se em minuciosas observações sobre o futuro da esquerda e aquilo que ele receava da mistura entre liberalismo e conservadorismo que vislumbrava no governo de Lionel Jospin e, de uma forma geral, na chamada terceira via.

Unindo estes dois mundos, esta vertigem dupla pela pesquisa e pela política, Bourdieu fez dos limites sociológicos da intervenção dos intelectuais um dos temas da sua obra, tornando claro que o estatuto do homem de letras não conferia, necessariamente, ao seu portador uma clarividência resplandecente sobre a sociedade e o mundo. Para Bourdieu, a representação carismática do intelectual surge como uma simples tentativa de colocar entre parênteses tudo o que se acha inscrito em relação à sua posição no campo da produção, ocultando as marcas da sua contextualização social. Directamente relacionados com a posição do intelectual, encontram-se, ao longo do seu trabalho, três conceitos fundamentais: poder simbólico, campo e habitus.

O poder simbólico surge como todo o poder que consegue impor significações e impô-Ias como legítimas. Os símbolos afirmam-se, assim, como os instrumentos por excelência de integração social, tornando possível a reprodução da ordem estabelecida. O campo surge como uma configuração de relações socialmente distribuídas. Através da distribuição das diversas formas de capital - no caso da cultura, o capital simbólico - os agentes participantes em cada campo são munidos com as capacidades adequadas ao desempenho das funções e à prática das lutas que o atravessam. As relações existentes no interior de cada campo definem-se objectivamente, independentemente da consciência humana. Na estrutura objectiva do campo (hierarquia de posições, tradições, instituições e história) os indivíduos adquirem um corpo de disposições, que lhes permite agir de acordo com as possibilidades existentes no interior dessa estrutura objectiva: o habitus. Desta forma, o habitus funciona como uma força conservadora no interior da ordem social.

DA FILOSOFIA À SOCIOLOGIA

Estudante de Filosofia, Bourdieu rapidamente ultrapassou a sua vocação inicial, ao fazer na Argélia, para onde fora destacado como professor, os seus primeiros trabalhos sociológicos sobre o desenraizamento verificado entre os trabalhadores argelinos integrados numa economia emergente. Simultaneamente, dedica-se à Etnologia, estudando as estruturas de parentesco de várias comunidades argelinas.

Durante os anos 60 e princípios de 70, Pierre Bourdieu atinge uma notoriedade polêmica com dois livros: Les Héritiers, de 1964 e La Reproduction, escrito em parceria com Jean-Claude Passeron e publicado em 1970. Em 68, Les Héritiers tornar-se-ia um dos livros obrigatórios exibidos por aqueles que contestavam o sistema universitário francês. Dois anos do Maio de 68, depois, Bourdieu denuncia em La Reproduction os mecanismos de dominação simbólica vigentes num sistema escolar de um país que se orgulhava da sua ``escola republicana".

No final dos anos 70, Bourdieu publica a sua obra maior: La Distinction (Minuit, 1979). O livro afirmar-se-ia rapidamente como um dos textos fundamentais da sociologia da cultura. O juízo estético, à revelia de toda a análise kantiana, é dissecado de um modo que só ganha sentido quando inserido numa sociedade caracterizada pela diferenciação e hierarquização social. O interesse pela Arte e pela Cultura e pelas condições sociais da sua produção voltaria noutros momentos da sua obra, designadamente em Les Régles de l' art (Seuil, 1992), na qual trabalha explicitamente a contextualização social da figura do autor, fixando-se no exemplo de Flaubert.

A GLOBALIZAÇÃO E A CRÍTICA DOS MEDIA

Em 1993, com La misère du monde (Seuil, 1993), Bourdieu começa a abordar temas políticos que lhe permitiriam um reconhecimento popular crescente. Estes temas teriam um desenvolvimento particularmente importante com a obra Contre-feux. Propos pour servir à la résistance contre l'invasion néo-libérale, seguida por Les structures sociales de l'économie e Contre-Feux 2. Pour un mouvement social européen. Em qualquer destas obras, em registos diversos é posta em causa a globalização e o neo-liberalismo. Para os recém-chegados ao seu universo, Bourdieu torna-se o sinónimo do intelectual comprometido, uma espécie de mâitre a penser dos críticos da globalização da economia.

Ainda em 1998, publica La domination masculine onde utiliza o conceito de habitus e no qual explicita a tese segundo a qual a reprodução da dominação é conseguida porque as mulheres são instruídas para assimilarem o mundo de acordo com as categorias próprias do pensamento masculino.

Ao longo dos anos 90, Pierre Bourdieu inicia a crítica aos media com um pequeno trabalho designado Sur la télévision (Raisons d'agir, 1997). A obra desencadeia polémicas apaixonadas. Pierre Bourdieu lança a colecção Liber/Raisons d'agir onde são publicados Les nouveaux chiens de garde, de Serge Halimi. A tese principal de Bourdieu diz respeito à mercantilização generalizada da cultura, resultante de uma lógica que coloca em primeiro lugar as audiências transformadas em consumidores passivos. No decurso da polémica, Daniel Schneiderman acusa Bourdieu, em Le Monde Diplomatique, de, no fundo, só conhecer uma única forma de comunicação: a lição magistral no Collége de France. No seu recente artigo publicado em Le Nouvel Observateur, Eribon interroga-se sobre o que fez correr Pierre Bourdieu ao longo destes múltiplos exemplos de exercício de uma implacável sociologia crítica. A resposta para esta fúria de escrita, ao qual corresponde uma urgência idêntica na intervenção cívica, explica-se, na sua perspectiva, pelo conceito de habitus e de campus. Bourdieu toda a sua vida terá tentado responder à pergunta ``o que é um indivíduo?", procurando encontrar as margens de liberdade possível desse indivíduo contra os mecanismos sociais que o fabricam, e, ao mesmo tempo, o encerram.

A ser assim, teremos chegado ao fim da aventura de um sociólogo fascinado por um imenso desejo de liberdade. Porém, tal como outro grande intelectual francês, Michel Foucault, Bourdieu é um mestre da desconfiança, mobilizado na sua escrita, nuns casos, por uma ironia implacável e, noutros, por uma raiva surda que parecem denunciar as imensas negações e decepções com que essa aspiração se confronta.

PRINCIPAIS OBRAS E ARTIGOS DE BOURDIEU

Sociologie de l'Algérie. Paris, P.U.F., 1958, 2e éd., 1961.
Travail et travailleurs en Algérie. Paris-La Haye, Mouton, 1963 (avec A. Darbel, J.-P. Rivet, C. Seibel).
Le déracinement. La crise de l'agriculture traditionnelle en Algérie. Paris, Éd. de Minuit, 1964 (avec A. Sayad).
Les héritiers, les étudiants et la culture. Paris, Éd. de Minuit, 1964, nouv. éd. augm., 1966 (avec J.-C. Passeron).
Un art rnoyen, essai sur les usages sociaux de la photographie. Paris, Éd. de Minuit, 1965, nouv. éd. revue, 1970 (avec L. Boltanski, R. Castel, J.-C. Chamboredon).
Rapport pédagogique et communication. Paris-La Haye, Mouton, Cahiers du Centre de Sociologie Européenne 2, 1965 (avec J.-C. Passeron, M. de Saint-Martin).
L'amour de l'art, les musées d'art européens et leur public. Paris, Éd. de Minuit, 1966, nouv. éd. augm., 1969 (avec A. Darbel, D. Schnapper).
Le métier de sociologue. Paris, Mouton-Bordas, 1968 (avec J.-C. Chamboredon, J.-C. Passeron).
La reproduction. Éléments pour une théorie du système d'enseignement. Paris, Éd. de Minuit, 1970 (avec J.-C. Passeron). (Trad. Portuguesa: A Reprodução. Vega, 1983)
Esquisse d'une théorie de la pratique, précédé de trois études d'ethnologie kabyle. Genève, Droz, 1972.
Algérie 60, structures économiques et structures temporelles. Paris, Éd. de Minuit, 1977.
La distinction, Critique sociale du jugement. Paris, Éd: de Minuit, 1979.
Le sens pratique. Paris, Éd. de Minuit, 1980.
Questions de sociologie. Paris, Éd. de Minuit, 1980.
Ce que parler veut dire. L'économie des échanges linguistiques. Paris, Fayard, 1982. (Trad. Portuguesa: O Que Falar Quer Dizer. Difel, 1998 )·
Homo academicus. Paris, Éd. de Minuit, 1984.
Choses dites. Paris, Éd. de Minuit, 1987.
L 'ontologie politique de Martin Heidegger. Paris, Éd. de Minuit, 1988.
La noblesse d'État. Grandes écoles et esprit de corps. Paris, Éd. de Minuit, 1989.
Langage et Pouvoir Simbolique. Paris, Éd. du Seuil, 1989. (Trad. Portuguesa: O Poder Simbólico. Difel, 1989.)
Réponses. Pour une anthropologie réflexive. Paris, Éd. du Seuil, 1992.
Les règles de l'art. Genèse et structure du champ littéraire. Paris, Éd. du Seuil, 1992. (Trad. Portuguesa: Regras da Arte. Editorial Presença, 1996 )·
La misère du monde. Paris, Éd. du Seuil, 1993.
Libre-échange. Paris, Éd. du Seuil, 1994.
Raisons pratiques. Sur la théorie de l'action, Paris, Éd. du Seuil, 1994. (Trad. Portuguesa: Razões Práticas. Celta, 1997.)
Sur la télévision. Paris, Liber Éditions, 1997. ( Trad. Portuguesa: Sobre a Televisão. Celta, 1997)
Méditations pascaliennes. Paris, Éd. du Seuil, 1997. (Trad. Portuguesa: Meditações Pascalianas. Celta, 1998 )
Les usages sociaux de la science. Paris, INRA, 1997.
Contre-feux. Paris, Éd. Liber Raisons d'agir, 1998. (Trad. Portuguesa: Contrafogos. Celta, 1998 )
La domination masculine. Paris, Éd. du Seuil, 1998. (Trad. Portuguesa: A Dominação Masculina. Celta, 1999.)
Les structures sociales de l'économie. Paris, Seuil, 2000.
Propos sur le champ politique. Paris, PUF, 2000.
Contre-Feux 2. Pour un mouvement social européen. Paris, Raisons d' Agir, 2001. (Trad. Portuguesa: Contrafogos II. Celta,2001)

Notas de rodapé

... Correia1
Universidade da Beira Interior