Luís Carmelo
Universidade Autónoma de Lisboa
Resumo
Neste artigo que, na sua origem, foi um texto de apoio utilizado com fins didácticos em aulas de semiótica, apresentam-se os instrumentos e o quadro do acontecer semiótico e analisam-se, de seguida, as noções de 'modo de ser' e de 'interpretação generativa' (interpretante/conotação). No final, discute-se a noção de comunidade herdada do início da modernidade, tendo em conta um conjunto de factores ligados à rede global do viver contemporâneo. Neste âmbito, a instantaneidade, enquanto hierofania salvífica e móbil de desejo dos sujeitos globais, surge como uma súbita matriz do novo nostrum e, de modo homológico, também a semiose é analisada como um corpo em mutação no seio da actual rede interpretativa, onde o signo é cada vez mais uma mobilidade reversível entre expressões e conteúdos (e os seus diversíssimos duplos e/ou simulacros).
Uma comunidade é um espaço autónomo, embora contingente e volúvel, onde se processam determinadas modalidades estáveis de comunicação e de significação.
O processo de comunicação implica um dado tráfico de signos - contéudos veiculados por expressões variadíssimas - agrupados em mensagens e, por sua vez, condicionados por riscos do próprio circuito que cruzam e por ocorrências distintas que envolvem tensionalmente o difuso universo de emissores e destinatários. As mensagens que intermitentemente se tecem e espalham numa comunidade, intencionais ou não, podem assumir expressões tão díspares como a imagem, o som, a paisagem; simples traços, formas arquitectónicas ou de línguas naturais, constituindo, por sua vez, os conteúdos que estas transmitem - na sua totalidade projectiva - aquilo que se designa por `substância de contéudo' (L.Hjelmslev). Numa comunidade, transaccionam-se, deste modo, os mais diversos conteúdos, seleccionados a partir do potencial da respectiva substância, devidamente organizada em sistemas semânticos e que, por sua vez, as linguagens, no quotidiano, actualizam ou retalham sob a forma de mensagens.
Neste quadro, pode dizer-se que não existem conteúdos transmissíveis sem expressão que os veiculem, como não existe expressão susceptível de ser transmitida que também não veicule conteúdos; por outras palavras, no ser humano não há nada que resista à significação, o que quer dizer que, diante dos nossos olhos, qualquer ramo de árvore ao vento veicula sempre um conteúdo qualquer, assim como, de modo reversível, um conteúdo que habite a mente de alguém só pode, de facto, existir, na medida em que seja veiculado - mostrado, ou dado a ver - por uma expressão, ainda que dificilmente configurável (`imagem mental', `interpretante', `esquema', `bilt', conforme os autores).
Com efeito, o processo de significação só adquire pertinência numa dada comunidade, na medida em que, às mensagens actuais que nela se transaccionam, já pré-exista um certo conjunto de códigos que possibilite, aos membros dessa comunidade, estabelecer a permanente ligação entre expressões veiculadas e conteúdos transmitidos. Ao fim e ao cabo, os códigos, sejam sociais, lógicos, linguísticos, estéticos, ou outros - constituem a forma ideal (embora em contínua metamorfose) com que uma comunidade organiza a totalidade potencial de conteúdos que, no dia a dia, são retalhados a partir do continuum. Na paisagem da significação, sempre contígua à rede comunicacional, qualquer som, imagem, forma natural, arquitectónica ou verbal estará sempre `em vez de qualquer outra coisa'; este pressuposto semiótico clássico - que os escolásticos designavam por aliquid pro aliquo - apenas significa, ao fim e ao cabo, que, a todo o momento da nossa vida, de modo incessante, se desencadeiam e emergem conteúdos que interpretamos a partir do que ouvimos, vemos, saboreamos, inteligimos, lembramos ou tacteamos. Viver é, pois, basicamente um acto contínuo e ilimitado de `ler' e interpretar redes de significados a partir de todas as expressões do mundo circundante, endógeno e cerebral; o processo é tão habitual, transparente e quase instantâneo que não nos proporciona uma fácil distinção entre, por um lado, a imaterialidade da massa de conteúdos interpretados e, por outro lado, a amálgama de expressões ou suportes materiais (seja qual for a sua natureza) que nos possibilitem a aquisição daqueles.
O corpo humano, através da sua múltipla expressão fisiológica, mediada que é pelo código genético (entre outros), actualiza esta operação, milhares e milhares de vezes, segundo a segundo; o nosso desvendar do mundo, procedendo de códigos que orientam a percepção, também não cessa jamais de actualizar este mesmo tipo de operações. No entanto, nestes casos, os signos que integram os aparelhos (circulatório, respiratório, etc) ou, por outro lado, a mácula e o nervo óptico perceptivos limitam-se a seguir fielmente as instruções do código, respondendo àquele de modo sempre adequado, de acordo com instruções genéticas milenarmente adquiridas (no quadro de uma gradual mutação). Em vez de interpretação entre várias hipóteses, nestes casos, há antes monossemia absoluta e, portanto, impossibilidade de discutir o próprio código em presença; caso isso sucedesse, bem se poderia dizer que algo estaria a falhar no organismo, ou que alguma lesão, porventura grave, estaria a danificar as ligações entre o cérebro e os interfaces organismo/objecto. Este tipo de interpretação altamente restritiva aplica-se, igualmente, a todos os artefactos construídos pelo homem à sua própria imagem. Em toda a rede electrónica, por exemplo (computadores, televisões, electrodomésticos, etc.), os processo de significação interna dos aparelhamentos são programados através deste mesmo cálculo de previsibilidades monossémicas.
Contudo, no caso que nos interessa neste momento, isto é, no caso de uma comunidade de seres humanos que comunicam entre si, o processo de significação é um processo sempre aberto, polissémico e, por natureza, dado à discussão do próprio código. Por outras palavras, é um processo flexível e aberto a um mundo de signos que se opõe ao mundo dos sinais constitutivos dos aparelhamentos. Por exemplo, um trovão pode gerar conteúdos distintos em diferentes pessoas, embora o código partilhado, num determinado tempo e lugar, forneça a todos um conjunto (estável, embora fluido) de conteúdos-chave para a sua interpretação; ou, por exemplo, quando duas pessoas falam, ainda que munidas de códigos em princípio comuns, jamais, nessa permuta, serão rigorosamente gerados os mesmos conteúdos, embora a relativa estabilidade dos códigos presentes - linguístico, proxémico, quinésico, etc - garanta níveis necessários e condicionantes de partilha.
Deste modo, o mundo dos signos pressupõe, em cada acto comunicacional, que tudo se significa tendo em conta e em vista um código, embora, por outro lado, o próprio acto comunicacional, paradoxalmente, também se caracterize por uma resistência - a nível das possíveis inferências - face a esse mesmo código (ainda que dentro dos limites do entendimento mútuo e dos `mal-entendidos' tagenciais ou tácitos). É por isso que a significação acaba quase sempre por cooperar no quadro definido pelas possibilidades de comunicação. No entanto, a comunicação - que é geralmente um tráfico dificilmente administrável, porque incessante - nem sempre se dispõe a cooperar com a significação. O exemplo limite desta situação é a que se pode imaginar entre membros de comunidades distintas: para eles, quer o trovão, quer o som de uma frase, quer até uma árvore ao vento podem suscitar, devido à mediação criada por códigos diferentes e que não são partilháveis (no todo, ou em parte), conteúdos dificilmente significáveis. Neste caso, a comunicação expressiva traduz conteúdos não significáveis, originando-se, portanto, a situação mais típica de `mal-entendido'. É o que acontece se falo com um chinês que só fala chinês, se leio equações de física quântica sem conhecer o respectivo código, ou, por fim, se tento navegar na internet sem saber sequer o que é um `site'. São estas especificidades que nos levam a ter que caracterizar uma comunidade como um espaço autónomo, contingente por natureza e onde, seja por que razão for, se processam, de modo mais ou menos estável, e independentemente das auto-imagens existentes, determinadas modalidades de comunicação e de significação, tal como acabámos sucintamente de descrever.
Vimos que um signo não é uma realidade estática. O signo é sobretudo o uso permanente que cada intérprete faz daquilo que o rodeia. O uso é o momento, sempre repetido e vivido, que transforma o acontecer da expressão quotidiana em conteúdos sucessivos e arrumados, ou seja, em estratégia de vida. Neste sentido, um ser humano é fruto da contingência trabalhada deste uso corrente dos signos. Por outras palavras, ainda: o signo não é uma coisa palpável, tangível; é antes assunção momentânea entre uma qualquer expressão (o som do sino captado) e um ou vários possíveis conteúdos denotados (exemplos: `são cinco horas'; `é de tarde de mais'; `que som tão fino!'; `parece a igreja da minha aldeia'; `é sempre o mesmo toque !...', etc). Este instante efémero e reiterado é quase sempre um uso involuntário que nasce de uma expressão circundante - no caso do sino, de uma expressão sonora - transposta, na sua aparente imediaticidade, em conteúdo, mas, sublinhe-se, em conteúdo situado na intercepção de muitos outros; quer isto dizer que um signo interage sempre num contexto pragmático.
Nesta cadeia intermitente da vida interpretativa, os conteúdos podem também, a qualquer momento, gerar outros conteúdos, ou seja, - o conteúdo `são cinco horas' pode subsequentemente reenviar para um outro do tipo `é hora do chá', do mesmo modo que o conteúdo `que som tão fino!' pode reenviar para um outro do tipo - `antigos apitos de polícia sinaleiro'. Isto quer dizer que o conteúdo de uma primeira expressão pode tornar-se na expressão de novos conteúdos; este tipo de conteúdo é conhecido como interpretante, na semiótica de Peirce1, o qual, em princípio, é dotado de uma vida reprodutiva e mentalmente ilimitada.
Se um interpretante é, por natureza própria, um signo auto-reprodutivo, ele constitui também o aprofundamento de um signo anterior, transformando-se sempre numa adição de conhecimento e experiência face a uma situação prévia da existência. A prática do uso de signos é também, portanto, uma forma de verificar, no mundo mental, aquilo que se passa no mundo dos objectos, na realidade externa; ou seja, neste processo de conhecimento secular, onde a `abdução'2 começou por formular (ou conjecturar) hipóteses, para, depois a `indução' as ter experimentado, antes ainda de a `dedução' concluir, de modo necessário, a partir das premissas entretanto estabelecidas (``signs conduce to learning from experience by mediating between reality and our cognitions, and by storing learned material for subsequent interpretations and use''; C.Hookway,1992:127). Diga-se que qualquer comunidade, ao longo do tempo, terá sempre inscrito esta longa experiência na sua própria `substância de conteúdo'.
Na sequência deste processamento, Peirce caracterizou a thirdness como um ``modo de ser'' que institui alguns signos enquanto matriz de todos os outros que ocorrem no dia a dia; por exemplo, o signo mental complexo que corresponde à ideia: `Na proximidade do equinócio de Setembro, os dias vão diminuindo em relação às noites' converte-se numa matriz para os meus passeios diários ao fim da tarde, nos quais reparo, em finais de Agosto, que o sol se põe cada vez mais cedo. Nesta linha de ideias, cada ocorrência particular, tal como o passeio do fim da tarde, integra o ``modo de ser'' da secondness, enquanto que as matrizes de que aquelas são actualização correspondem sempre à thirdness. Ou seja, a nossa interpretação é levada a sustentar-se, muitas vezes, em signos complexos que actualizam, no quotidiano, o modo de ser da thirdness (e que advêm do conhecimento pré-adquirido na comunidade onde nos integramos): ``If you take any ordinary triadic relation'' - objecto ou real, representamen ou expressão, interpretante ou conteúdo mental - ``you will always find a mental element in it. Brute action is secondness, any mentality envolves thirdness'' (C.Peirce,1966:3883): de um lado tempos, portanto, signos complexos que são como matrizes da própria comunidade onde nos inserimos, a thirdness; do outro lado temos as ocorrências particulares que se sucedem, ou seja, o próprio uso corrente e ``bruto'' dos signos, a secondness. Por fim, considere-se ainda o repertório potencial e passivo a que recorremos para comunicar as expressões elementares que actualizamos na secondness (exemplo: todos os sons particulares e possíveis da minha língua-mãe; todos os gestos discretos e potenciais; ou cada cor singular que possa plasmar-se no tecido que envolverá o meu corpo); este repertório latente - potencial - de partículas utilizáveis em futuras mensagens corresponde a um outro ``modo de ser'', designado por firstness.
Munidos destes três modos, somos levados a agir na arena da comunicação e da significação, constituindo a nossa performance uma oscilação vitalícia entre o espaço genérico do código, o acto concreto vivido e a potência que nos permite operar, a cada momento. Contudo, a interpretação sujeita-se sempre a demarcações, a fronteiras, ou a zonas de escuridão semântica. Quer isto dizer que, numa dada comunidade, os signos que traduzem ideias complexas (``crenças'' e interpretantes que terão, com o tempo, enformado uma dada `substância de conteúdo') encontram-se amalgamados sob formas que não coincidem, nem com o ``hábito'', nem com as ``regras gerais'' dominantes doutras comunidades (``the essencial function of a signs is''(...)''to establish a habit or general rule whereby they will act on occasion''-ibid.:3904). Por exemplo, a ideia complexa - `quando o falcão negro surge no deserto é sinal de chuva' funciona matricialmente no sul da Líbia, mas não tem correspondência na secondness dos esquimós; do mesmo modo que a expressão `dar três beijos a outra pessoa' que, na Holanda, está em vez do conteúdo - `saudar pessoa com alguma proximidade' não funciona num país tão próximo geograficamente como é Portugal.
Isto significa que uma comunidade organiza os seus interpretantes e crenças, através de uma sintaxe própria, com eixos de oposição específicos, ao nível expressivo e de conteúdo, de tal modo que apenas os seus membros os podem adequadamente actualizar e relacionar (secondness), de acordo com um pré-conhecimento de certas regras ordenadoras. Deste modo, em cada comunidade particular, os signos acabam sempre por denotar correspondências adequáveis entre expressões e conteúdos que são, por sua vez, determinadas pelo operar dos códigos existentes. A realidade que estes signos denotam ou sugerem - do modo como denotam ou sugerem - decorre sobretudo da intersubjectividade com que a comunidade, no tempo, vai seriando o mundo à sua disposição e não, de qualquer modo, a partir de subjectivismos particulares. Peirce explica5: ``The real is what''(...)''information and reasoning would finally result in, and which is therefore independent of the vagaries of me and you'' (1978-II:185/5.311).
Na tessitura comunicacional e significativa de uma determinada comunidade, desenvolvem-se, no dia a dia, estratégias muito similares às que exemplificámos, a nível individual, através da imagem do `sino que tocava' e da subsequente associação com a `hora do chá', ou seja, - de conteúdos primeiros que, por sua vez, reproduzem novos conteúdos. Esta operação generativa, quase sempre muito sociabilizada, domina muito da produção significativa das comunidades modernas e a sua concepção teórica inicial, da autoria de L.Hjelmslev (1943/1971:144-157) e, posteriormente aprofundada por R.Barthes (1957/1975:247-299), assenta no princípio da ``conotação''. Quer isto dizer que as formas expressivas que nos rodeiam - imagens, segmentos discursivos, objectos urbanos, artefactos electrónicos, ou árvores - produzem conteúdos primeiros e imediatos, mas também impelem os membros da comunidade, de modo irresistível, a representarem outros conteúdos, segundos, terceiros, etc, muitas vezes socialmente previstos no quadro de estratégias de dominação.
Se, por exemplo, como Barthes demonstrou em Mythologies, a capa de um Paris-Match exibe a expressão imagética de `Soldado negro com uma bandeira francesa contígua', é evidente que o conteúdo denotativo é, de imediato - ` Membro do exército no cumprimento do seu dever'. No entanto, a nível conotativo, a mesma forma de expressão criará na mente dos intérpretes um outro signo, cujo novo conteúdo pode ser do género- `Como a França é, de facto, um grande país !'' ou `Querem-nos fazer ver que a França ainda é um país imperial !'. Esta última interpretativa conotativa, irónica, é própria de quem entende o efeito pretendido pelo enunciador, mas a primeira, pelo contrário, muito mais comum, corresponde à estratégia de quem enunciou a mensagem presente na capa da revista. Essa intenção, deliberada segundo Barthes, era a de evocar, através da transparência dissimulada da conotação, a própria grandeza imperial francesa. Dir-se-ia tratar-se de uma conotação calculada, entre um mapa generalizado de muitíssimas outras congéneres que se constituiriam como uma espécie de oculta `fachada actuante do poder'.
Em Mythologies, Barthes pretendeu provar que a maior parte dos nossos usos sociais se alimenta deste tipo ilações conotativas programadas que designou por `mitos'. Por outro lado, a continuidade destes mitos contemporâneos, transversal a grande parte da objectualização social (televisão, cinema, literatura, publicidade, lúdico, culinária, etc), foi, por sua vez, designada, pelo autor, através do lexema `ideologia'. É por isso que Barthes escrevia: ``podem produzir-se despertares provisórios, mas a ideologia comum nunca é posta em causa: uma mesma massa `natural' recobre todas as representações `nacionais''' (ibid.:281). A ideologia de Barthes definiria, portanto, uma linha de conteúdos dominantes e `comuns' que, de qualquer maneira, prevaleceriam sobre outros conteúdos, nomeadamente aqueles que teoricamente adviriam de uma livre interpretação. Pura ilusão, pois, referir a interpretação sígnica corrente como aberta, polissémica e susceptível de discutir o próprio código (os atributos serão correctos, de facto, mas, convenhamos, dentro de contingências e condicionalismos que limitam a nossa própria capacidade de inferir). O que ocorre, na maior parte destes processamentos conotativos, em oposição à derivação hermética, como explica U.Eco, no final de Os Limites da interpretação, é que as
``conotações proliferam de modo canceroso, de modo que a cada degrau posterior o signo anterior é esquecido, obliterado, visto que o prazer da derivação está todo no deslizar de um signo para outro e não há outro objectivo fora do prazer em si pela viagem labiríntica que se efectua entre os signos e as coisas'' (1992:373)
Esta interessante reflexão acerca dos mecanismos conotativos põe em evidência o contraste entre, por um lado, a conotação místico-hermética no seio da qual a repetição do primeiro signo (o nome de Deus, por exemplo) é a base da sociabilidade da comunidade em causa e, por outro lado, uma sociedade aberta no seio da qual as conotações sucessivas espelham sobretudo o esquecimento de pontos de partida. Assim sendo, os leitores do famoso Paris-Match de 1957, mesmo sem porventura o terem lido, teriam esquecido logo, no acto de compra da revista, o teor denotativo da capa, passando a sobrepor-lhe a mensagem conotativa subjacente, isto é, o próprio `mito' veiculado pela `ideologia' dominante (seguindo a terminologia de Barthes).
Esta vasto edifício de esquecimento - e obliteração -, ao nível de uma comunidade no seu todo, seria, portanto, como que sobreposto por uma compulsiva rede de conotações que, qual `oculta fachada de poder', acabaria por condicionar a liberdade interpretativa generalizada (talvez por isso mesmo, B. Bertolucci tenha recentemente definido a televisão como uma sistemática de ``amnésia colectiva''6). Se uma `substância de conteúdo' é a totalidade de conteúdos que uma cultura pode produzir, a partir de formas múltiplas recortadas no quotidiano, devemos, a partir das implicações agora descritas, concluir, quanto ao papel decisivo do código, que passamos a caracterizar como: convenção que estabelece correlações entre os elementos potenciais e mutuamente autónomos de expressão e de conteúdo, incluindo as regras de combinação que asseguram a sua reutilização em novas situações e que respondem ao crónico jogo de intencionalidades significativas (conotação abrangida).
J.-L.Nancy afirmou que a história ``does not belong primarily to time,
nor to succession, nor to causalty, but to community, or to being-in-common''(1993:161)7
Este ser/estar ``em-comum'' que é sinónimo, segundo o autor, da
própria noção de comunidade, põe em causa, na génese que
a autonomiza enquanto noção, o conceber orgânico, continuista e
progressivo da História que a modernidade carregou aos ombros, desde os seus
inícios. Deixamos para outra oportunidade as implicações desta
concepção moderna do Mito de Sísifo auto-flagelado (que trocou
horizontes salvíficos inatingíveis pela voragem sacrificial do
presente) e, reatando realidades já abordadas em ensaios anteriores
(1998/1999) - nomeadamente, o colapso dos grandes-códigos e, por outro
lado, a emergência das áreas de quase imediação - passamos
agora a analisar a noção mesma de `comunidade'.
Como referimos em Sob o rosto da Europa (1998) e em Anjos e Meteoros (1999), o ponto de partida para a presente noção de comunidade pertence a A. Mchoul (1996:47-538), de acordo com a visão de uma história policentrada, livre de estruturas fixas subjacentes, aliada a uma espacialidade igualmente dispersa e, portanto, não centrada territorialmente:
``Communities as any collectivities that assemble (physically or by other means) for relatively common (including dissensual) semiotic activities. A community may be a traditional grouping such as a particular group of religious practitioners who meet regularly for common worship. But it may also be a looser group connected by relatively tenuous affinities, such as the ` Trekkers'- fans of television and movie series''(...)''A community, then, is whoever (collectively) copes - methodically - together with what happens, which may conform to what we think are collective expectations''(ibid.:49/51)
Nesta concepção, os membros da comunidade são sobretudo considerados como ``course of activity recognizable for its directionality'', assente num princípio de afinidade e cooperação, independentemente dos agentes subjectivos que protagonizam a actividade e dos locais onde se encontrem. Os participantes dos `newsgroups' e das práticas colectivas de fluxos (surf, bronze, viagem, consumo, imagem); os participantes da ocorrência bolsista, dos acontecimentos da vida local (festivais de gastronomia, celebrações de efemérides, opinião pública delimitada), ou ainda todos aqueles que participam de condições mínimas de vida em todo o planeta - integram, nesta óptica, diferentes comunidades. Do mesmo modo, os mais distintos sujeitos poderão participar, na área global, convertida em objecto quase-imediato de acção, em diferentes `cursos de actividade' de reconhecida direccionalidade, afinidade e cooperação.
Factores que no início da modernidade foram vitais para a definição de uma noção como a de `cultura', tais como as línguas naturais e a própria tradição, surgem, agora e aqui, reconfiguradas; as primeiras porque sobretudo passaram a modalizar o suporte logotécnico global, a segunda, por ter sido claramente subalternizada pelo domínio do `presente', com a excepção dos necessários impactos que lhe assistem, na vasta e acentrada rede local actual. O pressuposto de A.Mchoul baseia-se no que refere constituir uma ``Heideggerian-Nietzschean version of history'', a qual implica que a arena, o receptáculo ou o ``locus'' da própria história ``happen to be now'' (ibid.: 50), isto é, no cerne quase-imediato do presente.
Se na teoria semiótica clássica, a ``cultura'' foi tradicionalmente vista como a instância surprema, construtora e organizadora de conteúdos, ou ainda como o lugar por excelência da identificação das ``unidades semânticas'' (U.Eco,1981:116), a partir do momento em que a nova era da `quase imediação' se vai instituindo avassaladoramente, em todo o globo, e em que súbitos factores comunicacionais quebram antigas fronteiras e pesadas segmentações de conteúdos, torna-se, de facto, imperioso ponderar acerca de novas concepções e instrumentos fundamentores da semiose. Até porque a semiose, enquanto elementar conexão entre expressão e conteúdo, está cada vez mais a tornar-se num jogo teórico-prático, capaz de envolver `expressões' de virtualidade e ilusão, bem como `conteúdos', por exemplo, de caracter algorítmico ou ``translúcido'' (próprios do ``holograma'' televisivo, para utilizar a expressão de J. Baudrillard). T.Sebeok, no termo de Semiotics in the United States (1991:1189) parece reconhecer o sinal dos tempos:
``I here repeat that semiotics' overriding mission is and will be `to mediate between reality and illusion', to penetrate to the illusion behind reality - these being complementary universes of signs - to decompose it, desmystify it, and, in back of that, unveil yet another reality, of an intenser texture still. For, as Philodemus''(...)'' reporting Stoic arguments against Epicurean semiotics, queried as early as the first century B.C., `Why will the apparent any more be a sign of the non-apparent than vice-versa ?' ``.
A instância que significa os signos - aparentes ou não - terá tendência a tornar-se cada vez mais contingente, dispersa e menos homogénea. Os espaços ditos `culturais' terão também tendência gradual a converterem-se em resíduos de interpenetração ou interface, onde se contaminarão expressões generalizadas e conteúdos ampliados à escala planetária, confrontados com o alicerce das tradições e com as `mitologias' locais. Os fenómenos de hibridez `cultural' das velhas fronteiras são já a semente desse entreposto global que fervilha entre as `communities' ou os `being-in-common' de hoje.
Até porque a `cultura' foi fundada para rumar em direcção a um futuro, ou a um amanhã; enquanto que as actuais `comunidades' ancoraram, de vez, no actual presente da `quase-imediação' e passaram a prefigurar a grande utopia possível e democrática de hoje, ou do `acontecer- já'. No fundo, é a instantaneidade, enquanto hierofania salvífica e móbil de desejo dos sujeitos globais, que se transformou no nostrum (em) que estes habitam, participam e accionam. Assim sendo, também a semiose se transformará numa rede interpretativa, onde o signo passará a ser sobretudo uma mobilidade, ou uma rede, cujo simulacro de instantaneidade fluirá entre expressões e conteúdos, mas como se estes fossem elos quase indistintos e não `versos' e `reversos' saussureaneos de uma primitiva folha de papel10.