Luís Carmelo
Universidade Autónoma de Lisboa
A modernidade estatui-se como recriação de um mundo de actividades. O técnico, o científico, o jurídico, o religioso, o económico e o artístico tornam-se em segmentos diferenciais que já não partilham um mesmo ser fundador; uma mesma substância perene anterior. A modernidade redescobre-se como retomar quase absoluto da invenção do mundo, segunda criação ou, mesmo, reinício total. As manufacturas, a demografia, o trabalho e o novo cultismo técnico-científico impõem-se como actividade-farol; ou, pelo menos, como aquela actividade que preside ao laboratório com que se amplia e transformam as capacidades da natureza. A cultura autonomiza-se da natura; o homem reinventa-se decididamente, enquanto sujeito, e, dentro de cada separada esfera de actividade, processam-se inevitáveis clivagens.
No político, degladiam-se ideias para o poder; no religioso, compartilham-se seitas e dogmas mais tradicionais; no económico, reluz o mercado; no jurídico, enfrentam-se ordens constitucionais distintas; no técnico-científico, conflitualiza-se a pragmática dos inquéritos e teorias; finalmente, no artístico, confrontam-se correntes, vanguardas, voragens e estilos. Aquilo que é a arte - como actividade específica, subitamente autonomizada, cindida de um universo anterior de completude - é, neste momento, tudo o que se quiser, com a certeza, porém, de que é algo de corrosivamente novo que surge na novidade, também ela, moderna.
Naquilo que os modernos passaram a designar por Idade Média, a catedral era ainda a obra. À imagem, aliás, do que sobretudo era a grande obra, ou seja, - toda a natureza criada por Deus e o seu Livro sagrado. A catedral era, portanto, uma obra para além da experiência - para além do mero trânsito da vida humana - e, até porque atravessava várias gerações, na sua construção, ela impunha-se como ícone de intemporalidade. A catedral era, de facto, a majestade ou o vigor ímpar que, na terra, representaria a dimensão incalculável da grandeza, eternidade e incumensurabilidade que era atribuída ao primeiro Ser.
A catedral era a reunião fundamental da paisagem natural com o alicerce essencial, através e a partir do qual o mundo era interpretado. Mas se a catedral era a obra, não era contudo uma obra de arte, entre várias outras; era antes única; era a obra, ou o marco; ou ainda o centro absoluto que, na terra, desvelava Deus. Nesse desvelar estava tudo o que de principal fazia a catedral ser a catedral. A catedral era uma expressão recortada na pedra, nos vidros/vitrais, nas madeiras mais diversas, no metal, nas inscrições porventura mágicas. Mas, os conteúdos emulados ou exalados apenas respiravam o halo da transcendência. O inevitável, incomparável e insubstituível conteúdo possível.
Na modernidade, subitamente, face a um sensus communis rapidamente enformado, a catedral passa a ser, não a obra, mas uma obra de arte. Na modernidade, a pouco e pouco, a catedral passará de obra única a edifício construído por homens, porventura por sobre-humanos, eivados de mistério. Agora a catedral é um objecto-edifício, considerado soberbo, mas em que sobretudo, para além do antigo halo de transcendência, são agora os homens quem se celebra; até porque foram eles que participaram no seu vir a ser. A catedral torna-se, de repente, num logotipo magno da espécie humana. A catedral fascina, é verdade, mas passa a significar uma realidade que é intraduzível e inalienável, para além de querer dizer - homem (o novo e múltiplo deus da modernidade). A catedral deixa, com efeito, de ser vista como a obra, tal como era vista pelo mundo que a criou, para passar a ser equiparada a 'obra de arte de um tempo dado', fruto da sublime criação humana. Da catedral esvai-se, agora, uma ideia de criação quase anterior, fundada na fé, ou seja, fundada na visão de um ens creadum cuja origem superior residia na primordial unidade matéria-forma.
O que se terá passado, no alvor e nos corredores da modernidade, que, tendo também levado na sua torrente significativa a catedral, releva agora do narcisismo do sujeito humano, a sós com o seu génio criador no mundo? O que é e de onde procede esta nova actividade que, ao longo das Luzes, e, no limiar de oitocentos, se começa a traduzir, através de velha palavras (ou raízes verbais), tais como como 'arte' e 'estética'(linguagem e meta-linguagem, respectivamente)?
Baumgarten, em 1750, na primeria parte da sua Esthetica, uniria num único corpo um conjunto de actividades, até então dispersas, e que eram consideradas da ordem prática, ou do 'fazer', por um lado, e da ordem contemplativo-lúdica, ou do 'espírito', por outro lado. Este núcleo de actividades correspondiam, mais concretamente, e em primeiro lugar, à tradição das 'artes' (actividades do legado técnico-mecânico sob a égide do 'fazer', de que são exemplo a escultura, a arquitectura, ou todo o produto oriundo de manufacturação); em segundo lugar, a tradição do 'estranhamento' poético (tal como Aristóteles o caracterizara) e que se pretendia erguer, com autonomia, contra o finalismo prático das novas ciências (o cultismo e conceptismo barrocos são disso exemplo); e, por fim, em terceiro lugar, "de signis pulchre cogitatorum et dispositorum" (o belo concebido, ou raciocinado, e disposto; W.Noth,1995:421), enquanto espécie de racionalidade, cuja finalidade estaria "virada para a livre e gratuita finalidade do belo" (R.Barilli,1992:26).
A 'estética', instituída deste modo, enquanto nova área autónoma e unificadora de vários agires humanos, viria a ser designada por Baumgarten a partir da raíz verbal do Grego 'aisth', ligada sobretudo à ideia do 'sentir', "não com o 'coração' e o sentimento, mas sim com os sentidos, com a rede de percepções físicas" (ibid.:21). O estabelecimento da beleza constituia-se agora como objectivo surpremo deste novo saber, ou julgar, cuja manifestação decorreria de um "acordo de pensamentos" conducente a um único fenómeno que, por sua vez, seria "objecto de sensação" (R.Bayer,1995:180); este acordo interno de "coisas belamente pensadas" teria ainda como base uma adequação interna, de tipo icónico, entre expressão e pensamentos. Uma tal crença na inclinação natural, decerto inata, do homem para "belos pensamentos" tornava-se vital para a própria fundação da nova disciplina.
Na mesma época3, quer em Recherches sur l'origine et la nature du beau de Diderot (1751), quer no Dictionnaire philosophique de Voltaire (1769), o 'belo' foi assumidamente requerido como parâmetro definidor deste novo valor, o estético. No primeiro caso, o belo identificava-se com as grandes obras de génio, mas não com as de mera finalidade técnica; no segundo caso, a diferença que separaria, por exemplo, literato e génio passaria também pela presença do belo neste último. Um tal quadro de referências prova-nos que, no início da segunda metade do século XVIII, estava já desenhada uma moldura de valores que, de modo nenhum, se podiam restringir à esfera técnico-científico, racional ou moral e que impunham novas formas de comunicar e de perceber o mundo. O objecto deste novo julgar, centrado no belo, contudo, rapidamente viria a evoluir para uma metalinguagem da própria arte; actividade e crítica, crítica e actividade viriam, portanto, a formar a nova hermenêutica moderna do círculo reflexivo: arte-estética-arte.
Neste quadro, entretanto, a Crítica da faculdade do juízo faria culminar o período "crítico" de Kant. Foi em finais de Dezembro do ano de 1787 que o seu autor, em carta4, admitiu estar ocupado com uma nova "crítica do gosto" (cit. in A. Marques: 1998:8), justificando a tarefa pela "necessidade de encontrar os princípios que regem aquela parte do ânimo (Gemuet)" (ibid.:8) situada entre as duas faculdades já estudadas em críticas anteriores, nomeadamente, o "conhecimento" (na Crítica da razão pura) e a "apetição" (na Crítica da razão prática; ibid.:8). O "Gefuel der lust un Unlust", ou seja, o "sentimento de prazer e de desprazer" passaria, pois a delimitar o âmbito desta súbita terceira crítica que, na sua 'primeira parte' ('Crítica da faculdade de juízo estética'), se ocupava, em dois livros, respectivamente, da "analítica do belo" (que nos interessa, sobretudo; ibid.:89-136) e da "analítica do sublime" (ibid.:137-272).
Na Analítica do belo, Kant prescreve quatro diferentes momentos do "juízo do gosto". No primeiro, a distinção ou aferição do belo parte de uma representação que se alicerça apenas na "faculdade da imaginação" (ibid.:89). Isto significa que o sujeito sente uma afectação que não provém de uma realidade de "representação empírica" (ou seja, de uma objectividade), mas antes da referência ao puro "sentimento de prazer e desprazer" (ibid.:89). Por outro lado, complementando, o autor define "interesse" como "comprazimento que ligamos à representação da existência de um objecto" (ibid.:91); nesta medida, no caso da determinção do belo, em nada interessa a "existência da coisa, mas sim como a ajuizamos na simples contemplação" (ibid.:91). O objecto que se representa, ou que se pode representar, torna-se, pois, secundário face à satisfação, - o que quer dizer que o sujeito jamais dependerá do objecto para a dedução da sua possível beleza. A imanência deste movimento caracteriza, portanto, a reflexividade ou o ensimesmamento que o sujeito pratica. Desinteressado, por via do comprazimento (ou do seu oposto), o sujeito julga, assim, uma dada representação e é nesse acontecer que define o gosto:
Gosto é a faculdade de julgamento de um objecto ou de um modo de representação mediante um comprazimento ou descomprazimento (independente de todo o interesse). O objecto de tal comprazimento chama-se belo. ("Explicção Do Belo Inferida Do Primeiro Momento-ibid.:98)
T.Adorno viu neste primeiro momento dos 'juízos do gosto' uma "antítese da teoria freudiana da arte5" já que, nele, o comportamento estético está isento de "desejos imediatos", ou seja, - "a ausência de interesse afasta-se do efeito imediato, que a satisfação quer conservar" (1993:22-24). Este "hedonismo castrado" da estética de Kant conduziria, ainda segundo Adorno, à "concepção filistina da obra de arte" entendida como harmonia pacífica e morna de contrários - prenúncio do futuro kitsch -, no seio da qual a liberdade se referiria apenas à "imanência psíquica" (ibid.:23) do sujeito face ao objecto. No segundo momento dos 'juízos do gosto', aquilo que era considerado em Baumgarten como a 'universalidade do conhecimento sensível', associa-se agora à universalidade do prazer desinteressado do belo.
Quer isto dizer que o apuramento do belo, realizado com radical independência face a qualquer interesse, passa a motivar no sujeito kantiano - naquele que julga - uma liberdade apenas "com respeito ao comprazimento que dedica ao objecto" (ibid.:99); esta entrega que, por sua vez, não se funda em conceitos ou em "qualquer inclinação" privada (ibid.:99) do mesmo sujeito, baseia-se no que designaríamos por uma exigência de concordância do outro. Uma tal expectativa significa que, na liberdade do julgamento do belo, o sujeito, "pressupõe" ou "pretende" que um outro juíz ou sujeito, como ele próprio, possa também levar a cabo um "comprazimento semelhante" ao seu. Este 'aprazer-se' que proclama (ou quase exige) a adesão do outro convoca a ideia de universalidade, tal como sucintamente surge caracterizada no "segundo momento do juízo do gosto":
Belo é o que apraz universalmente sem conceito ("Explicção Do Belo Inferida Do Segundo Momento-ibid.:108)
Esta demanda do belo, assente num subjectivismo empreendido através de juízos de gosto, independente de conceitos ou interesses, está ligada a finalidades muito distintas das que estão, por natureza própria, ligadas à vontade. Esta, enquanto "faculdade da apetição" (ibid.:109), determinada, portanto, por conceitos destina-se a agir conformemente a fins práticos a atingir, baseada em efeitos e causalidades (todo o agir humano, e não só, assim procede). Contudo, uma tal "conformidade a fins" (...) "pode ser sem fim", como refere Kant, na medida em que não se encontrem "as causas desta forma numa vontade" (ibid.:109-110); o que acontece, porque os juízos de gosto "repousam sobre fundamentos a priori" (ibid.:111) e, por isso mesmo, torna-se impossível associar quaisquer efeitos ou causas a sentimentos de prazer ou desprazer. Nesta medida - e na sequência da já referida "ars pulcre cogitandi" de Baumgarten ou das Recherches. de Diderot - ainda que a beleza desvendada num objecto possa ser encarada "conforme a fins", a sua presença, todavia, tornar-se-á sempre incompatível com quaisquer finalidades práticas (ou,por outras palavras, com o ciclo de causas e efeitos):
Beleza é forma da conformidade a fins de um objecto, na medida em que ela é percebida nele sem representação de um fim ("Explicção Deduzida Deste terceiro Momento-ibid.:127)
Reiterada a ideia de que a obra de arte não se conforma com fins práticos, no início do quarto momento dos 'juízos de gosto', Kant fará notar que o "agradável" produz, de modo quase imediato, o prazer. No entanto, dada a sua distinta natureza, o belo implicará já uma "referência necessária ao comprazimento" (ibid.:128). Esta necessidade, por sua vez, - prossegue o autor - nem pode ser deduzida de conceitos determinados (dado o facto de o juízo estético não ser um juízo objectivo ou de conhecimento); nem pode ser inferida "da universalidade da experiência" (ibid.:128). Denominada pelo autor como "exemplar", esta necessidade do comprazimento (que pressupõe o belo) acabará por corresponder ao "assentimento de todos a um juízo que é considerado como exemplo de uma regra universal que não se pode indicar" (ibid.:128). Esta universalidade, pregnada de subjectividade, é, ao mesmo tempo, assentimento silencioso de todos os que julgam e, por outro lado, reflexividade anterior, embora não conceptual, de cada um:
Belo é o que é conhecido sem conceito como objecto de um comprazimento necessário ("Explicção Do Belo Inferida Do Quarto Momento-ibid.:132)
Os quatro juízos do gosto fundam-se, assim, de modo articulado, em outras tantas categorias, a saber: a relação (desinteressada); a quantidade (assentimento universal subjectivo); a qualidade (inexistência de fins práticos) e, por fim, a modalidade (ou a relação necessária entre a beleza e a própria satisfação).
Na 'Analítica do sublime', Kant refere o belo (fundado num comprazimento necessário e partilhado por um 'sensus communis' - ibid.:196) como concordante "com o sublime", apenas pelo facto de ambos "aprazerem por si próprios", embora este último traduza sobretudo a ideia de satisfação, proveniente da razão ou do 'destino moral humano'. O 'sublime', neste quadro, referirá tudo "o que é absolutamente grande". Contudo, face, por exemplo, à vastidão, sentida e pressentida na natureza, o sentimento de sublime acabará também por originar um "sentimento de desprazer a partir da inadequação da faculdade da imaginação" para poder avaliar (esteticamente) essa mesma vastidão ou grandeza.
Um tal "respeito", ou consideração, diante do cenário da própria grandeza, levará Kant a considerar a natureza como 'dinamicamente sublime', na medida em que, pelo menos aparentemente, se impõe ao homem com todo o seu "poder" (ibid.:157). Todavia, no reverso deste "poder", Kant considera que a razão se pode sobrepôr à natureza, sobretudo por ser capaz de conceber ou pensar o infinito, do mesmo modo que também a moral humana requer mais perfeitação e rectidão do que o próprio poder natural. Diante desta natureza hiperbolizada, a desafiar a racionalidade e a moralidade do homem, a arte - enquanto emular ou mimesis da natureza primeira - ainda não se prefigura (por trás deste esquema) como uma realidade que se exorbite, que se exceda, ou que tenda, inevitavelmente, para um "sair de si mesma" (T. Adorno:1993:79).
De facto, a modernidade de Kant, no que respeita à caracterização da arte, continua ainda a ser aferida, na 'dedução dos juízos estéticos puros', de acordo com jogo dos atributos do 'belo' (&44/1997:208). Nesta secção, depois de uma referência à arte em geral (na tradição das 'artes liberais' de Baumgarten), Kant definirá 'bela arte' como a dimensão abrangida pela "arte estética" e, portanto, não enquadrável na designada "arte agradável" (onde o autor, curiosamente, inclui o entretenimento da narração, a "conversação franca" ou ainda os jogos "de deixar passar o tempo"). A 'bela arte' acabará por ser considerada pelo autor como "um modo de representação que é por si própria conforme a fins e, embora sem fim, todavia promove a cultura das faculdades do ânimo à comunicação em sociedade" (ibid.:209).
Separando, de seguida, 'bela arte' e 'beleza natural', Kant delimitará a primeira no âmbito da criação, ou seja, do "génio" que caracteriza como "talento (dom natural) que dá regra à arte" e "faculdade produtiva inata do artista". Esta naturalidade inata do artista é ainda definida, com mais rigor, quando o autor afirma: "Génio é a inata disposição do ânimo (ingenium), pela qual a natureza dá a regra à arte" (ibid.:211). Contudo, ressalta nesta definição uma contradição entre, por um lado, a presença de uma "regra", a qual jamais pode determinar o que é, ou não, arte; e, por outro lado, a ausência dessa mesma regra, sem a qual não se poderia considerar artístico o que o é. Para sair deste aparente círculo fechado, Kant atribui ao "Génio" três qualidades essenciais:
(o Génio) - 1) é um talento para produzir aquilo para o qual não se pode fornecer nenhuma regra determinada, e não uma disposição de habilidade para o que possa ser apreendido segundo qualquer regra; consequentemente que a originalidade tem que ser a sua primeira propriedade; (...)- 2) "os seus produtos têm que ser ao mesmo tempo modelos, isto é exemplares; por conseguinte eles próprios não surgiram por imitação e, têm que servir a outros como padrão de medida ou regra de julgamento; 3) que ele próprio não pode descrever ou indicar cientificamente como realiza o seu produto, mas que, como natureza, fornece a regra; e por isso o próprio autor de um produto, que ele deve ao seu génio, não sabe como para isso as ideias se encontram nele e tão pouco tem em seu poder imaginá-las arbitrária ou planeadamente e comunicá-las a outros em tais prescrições, que as põem em condição de produzir produtos homogéneos (182/ibid:212).
O novo sujeito criador de Kant (que emerge deste binómio génio-dom) é um sujeito que encontra na regra com que significa a obra de arte uma não-regra, ou, por outras palavras, - a volubilidade de uma regra indeterminada. Ao mesmo tempo, este novo sujeito criador encontra na (beleza da sua) obra de arte finalidades, mas que não são conforme a fins (movidos por uma necessária ordem de causa-efeito). O novo sujeito criador, auto-reflexivo, desinteressado, autónomo na sua radical subjectividade, é sobretudo povoado por um "dom" da natureza, anterior a ele - o génio - e que determina a originalidade do seu produto, ou mesmo, a crença viva numa autenticidade única. Este novo sujeito criador é, também, e ainda, por via do mistério que o povoa, um portador de ideias e imaginações, ou antes, - um mediador entre, por um lado, o matricial e modelar da obra de arte enformada e, por outro lado, a natureza que lhe conferiu o dom insondável desse mistério.
A obra de arte, nesta óptica, contida ainda em limites ideais, não pode ser sinsígnica, reproductível, ou imitativa; contudo, se conformada com a sua característica lesisígnica, de "padrão", ou de devir original, já pode estender-se - como "medida- ao julgamento comum dos outros, tentando encontrar no "gemeinschaftlichen" (sentido partilhado em comunidade) a concordância e a universalização subjectiva que a pressupõem ("o princípio subjectivo do julgamento do belo é representado como universal-ibid.:2606).
Por fim, todo este insondável mistério (e moralidade) que afecta o novo sujeito criador, definido por Kant - por via de um dom que (já) é 'natural' e não explicitamente divino -, deve ainda incluir-se num terreno que não é o da explicação lógica, científica e, portanto, objectiva. Um tal mistério deverá, de facto, incluir-se no terreno aberto por esta nova faculdade autónoma7 do 'ânimo', caracterizada pela faculdade de julgar a beleza do mundo, independentemente dos seus objectos8, a partir de uma exclusiva imaginação, imanente e universal, do sujeito9.
O idealismo hegeliano10 é necessariamente histórico e, por isso, um seu "ideal da arte" só se poderia supor na medida do "decurso" do "desenvolvimento", ao longo da diacronia temporal. (1972-IV:331). Segundo o autor, repondo no arcaísmo inicial do mundo a fruição e o prazer imediatos da arte (que nunca se encontram em Kant), esta teria sobretudo como missão "tornar presente, de um modo concreto, aquilo que possui um conteúdo rico". É justamente na prospecção deste conteúdo que Hegel, ao longo de uma escalonada continuidade cronológica, justapõe, respectivamente, as três fases do incremento da arte: a arte simbólica, a arte clássica e a arte romântica (1972-IV:167).
Para Hegel, o "início da arte foi caracterizado pela tendência da imaginação para se separar da natureza a fim de se orientar para a espiritualidade". Este ponto de partida revela, desde já, uma tendência dupla e inevitável do ser humano. Por um lado, essa tendência natural prescreve uma dissociação original face à própria natureza; por outro lado, essa mesma tendência define uma via autónoma da imaginação humana que se perspectivaria em direcção à meta que Hegel designou por "espiritualidade". No fundo, é como se uma providência, anterior e algo pré-determinada, já encaminhasse o homem a uma tarefa prévia e irrecusável. Na fase primeira dessa 'tarefa' - a arte simbólica - apenas se tratava ainda -
de uma tentativa do espírito que, por não ter encontrado o verdadeiro conteúdo a dar à arte, era obrigado a contentar-se com revestir as significações naturais de formas exteriores ou as interioridades substanciais de abstracções que não possuem subjectividade, de fazer de tais formas exteriores e de tais abstracções o centro da arte (ibid.:168).
A arte era ainda, portanto, um revestimento, já que o espírito, no seu ampliar-se, ainda não havia descoberto conteúdos adequados à grande 'tarefa' humana. Este processo - que se mantém sempre nos limites do histórico - transpõe, para a segunda fase, a da arte clássica, a própria espiritualidade "como base e princípio do conteúdo" (ibid.:168). A tarefa hegeliana deixa, portanto, de se reduzir ao revestimento para se elevar e, deste modo, a forma, passa ser penetrada pela "espiritualidade" e adquire, em consequência, "perfeição"; por outro lado, a mesma forma tornar-se-á também numa "realidade adequada ao espírito" que é, ao fim e ao cabo, o actor maior desta inevitável 'tarefa' humana, (chegando até a idealizar a natureza, através "dessa bela união entre o fora e o dentro"). A época clássica acabará por ser, portanto, segundo Hegel, a da "representação mais autêntica do ideal" e simultaneamente a própria "implantação do reino da beleza" (ibid.:168).
Contudo, esta totalidade do ideal "sólida e simples" em que o "elemento exterior" imprimia `a realidade sensível uma existência conforme e adequada", iria acabar por se desenvolver enquanto oposição face ao "verdadeiro conceito de espírito". O colapso do clássico, ou a "desagregação do ideal", acabará por residir nesta oposição e traduzir-se-á numa cisão definitiva. De um lado deste divórcio surgirá o ideal subjectivo e, do outro lado, o ideal da manifestação exterior; ou seja, - "assim adquire o espírito a consciência de ter em si mesmo o seu 'outro', a sua existência enquanto espírito e de gozar a sua infinitude e a sua liberdade" (ibid.:169).
O princípio em que se irá fundar a terceira fase da grande tarefa humana - a fase romântica - alicerça-se justamente no âmago desta cisão, onde se descobre o novo horizonte do sujeito autónomo e emergente, assim como "a objectividade que até então tinha sido" apenas procurada "no mundo sensível". Este duplo lance, que consubstancia a "elevação do espírito para si mesmo" consubstancia também o próprio "princípio fundamental da arte romântica" (ibid.:169-170).
A inferência mais importante deste orientar-se histórico do espírito para a perfeição culmina no facto de a beleza, enquanto expressão mais adequada do conteúdo clássico, deixar, agora, na fase romântica, de ser o "fim surpremo" da demanda artística. Como Hegel diz, - "na fase romântica, o espírito sabe que a sua verdade não consiste em mergulhar no corpóreo", encontrando a sua verdade apenas "quando se retira do que é exterior para regressar a si mesmo". De facto, este parâmetro fixo da idealidade clássica, a beleza, passa agora a mero atributo secundário. No entanto, é enquanto refluir para a interioridade que a beleza se agiganta e persiste como uma espécie de elemento decisivo "da subjectividade infinita e espiritual em si mesma"(ibid.:170).
No projecto de Hegel, a arte, efémera mas doada ao absoluto, deve "instalar-se no infinito" e o espírito que ela persegue deverá "erguer-se no sentido do Absoluto, acima da personalidade formal e finita" (ibid.:171). O tema da consciência da infelicidade - no fundo, aquilo que jamais a experiência, por si, poderá traduzir - advém deste aparente paradoxo, entre a transitoriedade vivida e perfectibilidade augurada. T.Adorno referiu, a este propósito, que o "sofrimento, reduzido ao seu conceito, permanece mudo" e, por isso mesmo, a posição hegeliana acabaria por ser de triunfo, em "oposição contra a sua própria condenação da arte" (1993:30). Como que, disputando a eternidade, a arte (e a sua crítica) começa agora a exceder-se e a requerer tentações de impertinência de sentido, de determinação autotélica, de oculta expressão progressiva.
Shelley, na defesa da sua dama maior, a poesia, já o havia avisado:
A poesia imortaliza, assim, tudo quanto há de mais belo e de melhor no mundo; detém as fugazes aparições que assombram os interlúdios da vida e, velando-as, quer com palavras quer com formas, envia-as à humanidade, portadoras de doces novas de alegria afim, àqueles com quem as suas irmãs moram - moram porque a expressão não transita das cavernas do espírito que elas habitam para o universo das coisas. A poesia redime da corrupção as visitações da divindade no homem P.Shelley, Defesa da poesia,1986:77 (cf.n.103)
Em A origem da obra da arte11, Heidegger, no primeiro parágrafo, começa por definir: "Ao que uma coisa é como é chamamos essência". De acordo com essa noção, a origem terá como significado "aquilo a partir do qual e através do qual uma coisa é o que é". O "como é" da essência de uma coisa passa a ter, deste modo, a sua origem naquilo de onde a coisa viria a ser "o que é", ou seja, voltando a citar: "a origem de algo é a proveniência da sua essência".
No entanto, a coisa que é obra de arte não é definível, nem pela "soma de atributos" que a definiriam enquanto tal; nem pela simples "dedução de princípios" que a legitimassem como arte. Segundo Heidegger, há que "circular na coisa que é obra de arte" para entender esse facto aparentemente oculto. Embora não da forma como Hegel se referiu ao outro que a sua fase romântica teria desvelado, ao instituir-se, também em Heidegger se afere existir na coisa que é arte "um outro", acabando esse outro por constituir "o artístico". Na senda de investigar sobre a natureza deste outro, o autor acabará por propor que é no seio do binómio forma-expressão12 ("matéria", no texto de Heidegger) que deve enquadrar-se toda a reflexão "sobre a estética e teoria da arte".
De facto, é este binómio forma-expressão - ou a própria amálgama de que são feitos e significados os objectos - que acaba por "determinar" o ser da coisa (nuvem, pedra ou apetrecho, se entendido enquanto artefacto fabricado pelo homem), para além de constituir a base da "constituição do ente" (no caso, da coisa que é artefacto), para o qual o homem contribuiu no modo como o mesmo "veio ao ser" (na medida em que o fabricou). A ideia de criação reside, para qualquer objecto, mesmo não artístico, nesta contribuição humana de "trazer ao ser"; ou seja, no processo em que acontece o fabrico de um artefacto, visto no seu lado instrumental (cesto, mesa, candeeiro, etc.).
No entanto, a concepção de criação é acompanhada, no ocidente, de cenografias históricas mais complicadas, já que, pelo menos desde o "Tomismo", que se "funda" na "fé", tendo em conta que o "ens creadum'e aí pensado "a partir da unidade-matéria forma" (ibid.:22). Esta subsistência profunda conduz ao facto, segundo Heidegger, de nos limitarmos a chamar `as coisas propriamente ditas meras coisas" (um mero cesto, uma mera mesa, um mero candeeiro-ibid.:22), o que, por sua vez, comprova que o ocidente se limitou a pensar, "até aqui, no ser do ente", - e não no ente, ele mesmo (a mera coisa). Para ilustrar este facto óbvio, o autor apresenta o exemplo dos sapatos da camponesa que vivem com ela, que se calçam nela e que estão, nesse acto quotidiano, no 'aí' da sua função concreta, ou uso, ou instrumentalidade tácita (ibid.:23-4).
No entanto, se, de repente, esses mesmos sapatos (meras coisas) surgirem evocados numa tela de Van Gogh e, portanto, surgirem radicalmente suspensos da sua instrumentalidade, uso e função - logo, nesse preciso momento de desnudação, como que se repõe, "no indefinido", o ser do que eram, até então, esses meros sapatos. A essência, ou "o ser como é" dos sapatos, recoloca-se, emerge e transforma-se, assim, subitamente, naquilo que é. Nesta medida, a representação dos sapatos, no óleo de Van Gogh, "constitui a abertura do que o apetrecho, o par de sapatos da camponesa, na verdade é" (ibid.:27); ou melhor: "na obra, não é da reprodução do ente singular que cada vez está aí presente, que se trata, mas sim da reprodução da essência geral das coisas" (ibid.:28).
Quer isto dizer que o puro despertar da essência das coisas (diga-se, a designação do que uma coisa é como é) traduz a natureza do outro que, ao fim e ao cabo, faz da 'mera coisa' uma 'coisa de arte'. Neste ordem de ideias, como acrescenta Heidegger mais à frente no seu ensaio, a "verdade" que acontece na obra, quando esse outro que nela está se desoculta, torna-se "intemporal e supranatural" (ibid.:29). Um segundo exemplo, o do templo grego, várias vezes evocado na Introdução à metafísica, surge, depois, neste mesmo quadro, para demonstrar como é que o outro das coisas de arte se funda nesta ocultação fundamental que é a aparição da essência da coisa. O autor refere que "o templo grego", no seu sítio, "não imita nada", ao contrário das superfícies indexicais-icónicas de Van Gogh. Contudo, o edifício encerra a "clara forma do deus e nesta ocultação (verbergung) deixa-a assomar através do pórtico para o recinto sagrado. Graças ao templo, o deus advém no templo" (ibid.:32). Este advento de deus 'e em si mesmo o estender-se e o demarcar-se (die Ausbreitung und Ausgrenzung) do recinto como sagrado."(...)"A obra que é templo, ali de pé, abre um mundo e ao mesmo tempo repõe-no sobre a terra"(ibid.:32-33).
O mundo que, neste caso, se abre é tal e qual como o mundo que a camponesa detém, na medida em que as coisas - os entes; os sapatos - que com ela aí convivem também se poderão vir a abrir da mesma maneira (para se transformarem no que 'são'). A desocultação das coisas é, pois, tarefa do próprio ser, ou seja, no caso da obra de arte, o "ser-criado da obra'e o ser "estabelecido da verdade na forma", o que, por sua vez, se traduz no combate ("rasgão") entre a 'expressão' e o vir a ser da 'forma' (e aquilo que estatui a forma/"ge-stell"), - no que Heidegger designa por "juntura de traçado e risco fundamental, de diâmetro e e contorno" (ibid.:51).
Isto significa, por outras palavras, que é na luta com os materiais (no combate; ou no ringue da 'formatividade' como dirá, mais tarde, L. Pareyson) que o ente (a coisa) acaba por ocupar, autonomamente, por si mesmo, "o aberto da verdade", desocultando-se, mostrando o seu outro e criando um mundo. A obra de arte significará, deste modo, a sua própria realidade e, enquanto pura expressão, desocultar-se-á por si própria. Por outras palavras: é a própria obra de arte que impõe e ostenta, ela mesma, o outro, o que já não sucede com todas as outras 'meras' coisas quotidianas, embora, como se viu, devido a uma simples aparência que apenas arreigadas tradições ocidentais explicam.
Seja como for, para Heidegger, a arte procede do ente que, como ente, por si, se abre; ou melhor ainda, - "a arte, enquanto o pôr-em-obra-da-verdade13, é Poesia" (ibid.:60).
Uma coisa é fixar o que é a práxis da arte e, nesse discurso, ou seja, na hermenêutica entre a actividade crítica e o 'fazer-criado', saber delimitar a actividade (é o que se reflecte nas teorias até aqui veiculadas). No entanto, outra coisa é entender o fluido ou a torrente da própria actividade, no momento em que esta inunda já os vales e os observatórios do seu 'escrever-se' e 'propagar-se' na modernidade. A sucessão das vanguardas, ligada à desintegração das linhas de sentido (ou traçados de objectividade empírica) e, portanto, ligada também às rupturas formais e performativas, deixará, de facto, em certo momento da modernidade, de depender de uma estreita codificação, socialmente prescrita e redutoramente analisável. Subitamente, a nova actividade, distanciando-se de si, da tradição, da sua própria origem e pondo em causa essa "proveniência da sua essência" (M.Heidegger,1977:11), passa a traduzir, ou clivagens de intimidade, ou clivagens manifestatárias de grupo (baseadas na recusa, no enaltecimento do absurdo, ou da máquina-raínha e ainda, por fim, no praticar da abstracção, da dissonância e até do culto pela desmitificação do novo culto do corte moderno). Esta novíssima modernidade estala, singra e emerge, com uma rebeldia ímpar, antes e logo após a Primeria Grande Guerra Mundial.
Enquanto única actividade vinculada ao agir íntimo do sujeito, numa cultura progressivamente massificada e desligada já da "serenidade"14 pré-moderna, a arte redescobre-se neste exceder-se em dois grandes campos essenciais. De um lado, a arte formativa, tentando harmonizar as suas figuras com os espelhos sociais da industrialização do mundo (o stijl, o concretismo, o construtivismo, etc), ou, através do fauvismo, do cubismo e do abstraccionismo, tentando sobrepor a sua própria morfologia plástica à radicalidade dos expressionismos. Do outro lado, a arte da negatividade, crítica e catárquica, - capaz de reunir os elos dadaísta, surrealista, informalisma, assim como a variada tradição expressionista (poética, pictórica e conematográfica). É evidente que esta divisão não se quer - de modo nenhum - estatuída como modelo, até porque há correntes que não se integram ou reduzem ao quadro de uma tal dicotomia (os futurismos, da aeropintura à contra-cultura dos manifestos, espalha-se por ambos os campos, acontecendo o mesmo, embora por razões sobretudo simbólicas, por exemplo, com o informalismo matérico de Fautrier).
Esta sangria do corpo moderno, ou este decantar da physis contemporânea - que se ouve em Albenberg e se lê em Breton ou em Pessoa -, mais do que um mero sinal dos tempos considerados sempre-actuais, irá tornar-se num epicentro profundo que dá voz e cenário à mudez da celeridade sentida e, também, à mutilação sempre pressentida no coração maquínico (que bate forte) da modernidade. Como Adorno dirá, a arte não pode nunca deixar de corporizar a negação do mundo presente; entenda-se negação como o corte que ela já é, não proque reflicta necessariamente o tecido social onde emerge, mas porque esse é o seu desígnio próprio, ou seja, o desígnio de uma disenção do sentido.
A questão que, neste momento se pode pôr é a seguinte: Se a arte vive desse desígnio de quase não-ser, por que é que ela se terá tornado, no seio das comunidades, num dos mais obsessivos factores de repulsa/atracção da modernidade? Utilizada (atacada ou defendida) pelas correntes políticas mais diversas; difundida nos aerópagos de classe-contra-classe; associada com a épica moderna das 'grandes-guerras' e das 'massas'; iconizada enquanto 'progresso', 'libertação', 'rebelião', 'máquina', entre outras etiquetas modernas; disputada nas conquistas e enaltecida em manifestos; celebrizada como marco de décadas e de topografias; enfim, desenterrada como alfa e gama, princípio e fim, no horizonte "indefinido" e subrepticiamente crente do homem moderno, pergunta-se: qual é o desígnio, porventura mais intrínseco, que fez da arte, na modernidade, um ponto de morto de 'tudo ou nada'?
Comecemos pelo princípio na nossa explicação. No estádio pré-moderno, o imenso cenário da natureza e a própria sintaxe do acontecer no tempo era discurso de Deus; por outro lado, o Livro sagrado era a parte desse mesmo discurso sob a forma de letra e directa revelação, de acordo com as capacidades comunicacionais humanas. Neste contexto, todas as formas de expressão do mundo remetiam, inelutavelmente, para uma moldura de conteúdo fundamental que, como vimos, através do exemplo da catedral, assentava, e só, na tanscendência.
A arte e o seu metadiscurso, numa hermenêutica que depois se propaga ao exceder-se das vanguardas, despontam, no alvor da modernidade, enquanto formas expressivas elementares sobre as quais se lucubra e discorre (fundamentalmente a partir do 'belo', depois do 'espírito'; depois, ainda, a partir do 'intraduzível' e do 'caótico-desintegrado). Neste surgir de uma nova actividade, entre muitas outras, a arte e o seu metadiscurso delimitarão a sua existência visível e a sua práxis através da evidência destas formas expressivas, ou seja, do mostrar tangível dos suportes, pintados ou esculpidos; das aventuras sonoras, poéticas ou musicais; ou dos lugares, teatralizados ou performativos, projectados etc.
No entanto, estas novas formas de expressão, de algum modo, suspendiam ou simulavam o que de facto eram, por trás do seu "mero" encantamento imediato e visível, - através da ocultação/ desocultação de um outro que no seu interior se albergaria. A interrogação que se terá colocado - pelo menos numa certa juventude da modernidade - foi a de saber qual a natureza deste outro que tornava uma superfície pintada (parede, tela, papel, amianto, metal ou madeira) em arte, ou em não não-arte. A ideia que nos encaminha hoje para o entendimento da arte, enquanto realidade moderna e nascente, faz-nos sobretudo pensar numa espécie do 'reverso da conotação' (chamemos-lhe mesmo desconotação).
Isto significa que é possível interpretar as novas formas expressão artísticas como herdeiras do que, no antigo estádio pré-moderno, haviam sido as formas de conteúdo e expressão dominantes. Segundo esta linha interpretativa, estas últimas teriam doado à nova arte, respectivamente, ou algumas materialidades que já se manufacturavam ainda sem o julgamento de um metadiscurso estético (pintura, escultura, alguma arquitectura, música, etc); ou, as imaterialidades transcendentes que se assim se teriam transferido da teosemiose para atributo intrínseco da nova actividade. Por outras palavras, as formas expressivas da nova arte haviam, deste modo, recebido no seu seio, na sua constituição originária, quer as formas de expressão pré-modernas que lhe conferiam a visibilidade tradicional (dispositio material de palavras, cores, sons, etc), quer as formas de conteúdo pré-modernas que lhe passavam a conferir um halo de transcendência intrínseca (as mesmas que, anteriormente, eram comuns a tudo no mundo e que, agora, no despontar moderno, passavam a ser apenas atributo ou essência da nova actividade artística)
Porque nos referimos, então, a 'reverso da conotação' (chamemos-lhe, mais uma vez, desconotação), neste processo? Diga-se que a explicação é simples, porque é, também, basicamente simétrica. Isto é, se a conotação é a passagem de um signo a um outro, através da transposição de uma forma de expressão do primeiro signo a uma dupla formal de expressão e de conteúdo do segundo signo, neste nosso caso, o processo é inverso, já que é uma nova forma expressiva (a nova forma de expressão artística) que é subitamente modalizada ou constituída, através do legado de uma prévia dupla formal de conteúdo e expressão (pré-modernas).
O outro heideggeriano, o intraductível, ou o mistério que se desoculta como um brilho inefável na obra de arte moderna residiria, portanto, nesse conteúdo intrínseco (recebido da teosemiose) e que a própria expressão, por si, exalaria ou libertaria a cada momento. No entanto, a obra de arte, para além de conter, em si, este resíduo modalizado de conteúdo, procedente de uma transcendência que já fora, não deixa, por outro lado, a partir do uso interpretativo diário (no confronto com a sua exterioridade), de criar, igualmente, a sua realidade própria, autónoma e autotélica, o que implica, ao fim e ao cabo, a presença de um segundo conteúdo que ela - a obra de arte - semioticamente conota.
Neste sentido, a obra de arte torna-se numa forma de expressão que conota semioticamente conteúdos variados (como tudo na vida), mas por outro lado contém, na sua mais recôndita subliminaridade, o halo de uma transcendência que é o seu conteúdo outro - não localizável, intransitivo e ocultável- , a não ser através do que a experiência não pode exprimir. Fruto de uma expressão com conteúdos pares - um intrínseco, outro semiótico - o signo estético seria, neste arrumar conclusivo, como a própria definição nietzscheana de verdade - "Truths are illusions which we have forgotten are illusions; they are metaphors that have"(...)"been drained of sensuous force"15; isto é, existem ilusões, ou nostalgias perdidas, que perduram nestes objectos de arte, do mesmo modo que, neles, sobretudo a partir de metáforas, se pode (sempre) gerar a corrente normal de interpretação.
Esta notação de duplos conteúdos - que passo a traduzir através do substantivo desconotação - é patente, de modo latente e enquanto tentação, nos autores por que passámos revista mais acima, e não só. Em Kant estes duplos conteúdos ressaltam a partir das instâncias que os podem produzir, ou seja, - o lugar da 'imanência desinteressada' e, por outro lado, a 'pressuposição' de uma comunhão com o julgamento dos outros. Em Hegel, esse desdobrar é visível com o advento da fase romântica, no momento em que, segundo o autor, por um lado, a beleza reflui para a "interioridade" e aspira ao absoluto e, por outro lado, no momento em que surge a "objectividade" que, até então, "tinha sido apenas procurada no mundo sensível". Em Heidegger este desdobrar liga, por um lado, o outro que gera os efeitos de conteúdo que permitem reconhecer o artístico e, por outro lado, a interpretação da "mera coisa", justificada pelo autor, como procedendo de um limite civilizacional ocidental que confina o pensamento apenas ao "ser do ente".
Para Shelley, por sua vez, como afirma - "o poeta participa do eterno, do infinito e do uno; não existem, pois, tempo, lugar e número que determinem as suas concepções"; por outro lado, noutro nível de conteúdo, continua o poeta, - "as formas gramaticais, que exprimem modos de tempo"(...)"são convertíveis à surprema poesia"16. Entre o divino explícito e augurado e, por outro lado, a interpretação poético-retórica, o desdobrar de conteúdos continua, também aqui, a reiterar-se. Em Ortega e Gasset parece-se igualmente descobrir o conteúdo intrínseco da nova obra de arte, quando o autor comenta o conceito de Einfuhlung, ou "simpatia", de Teodoro Lipps: "Y aquello que acaso era un montón inerte de pidras, puestas las unas sobre las otras, se levanta ante nosotros como dotado de una vitalid propia"(...)"En realidad somos nosotros mismos quienes gozamos de nuestra actividad, de sentirnos poseedores de poderes vitales triunfantes, pero lo atribuimos al objeto"17; ou seja, mais uma vez, de um lado, surge-nos o labirinto conotativo/ conotativo da curiosidade interpretativa, sobretudo diante do "montón de piedras" nu e cru; no entanto, do outro lado, emerge o reconhecimento quase expressionista de se ter escavado, ou prospectado, um outro conteúdo, cuja génese é da maior intimidade e anterioridade humanas. W.Benjamim (1992:84), embora num contexto em que não refere o factor pré-após (início da) modernidade, insistiu nesta duplicidade, sem, contudo, a mencionar tacitamente enquanto tal: "a recepção da arte verifica-se com diversas tónicas, das quais se destacam duas. Uma assenta no valor de culto, a outra no valor de exposição da obra de arte".
Com efeito, este desdobrar dos conteúdos da arte (tensionalmente geradores do caos dos sentidos) acabaria por ressacralizar uma época em que o sujeito se sentia com evidente carência de ser. Este procedimento, modalizado e lento, levou a arte a transformar-se na nova intimidade, onde soa, na surdina da denegação, essa luta nietzscheana entre Apolo e Dionísio que as antigas catedrais escondiam por trás de uma desocultada completude milenária.
Talvez por isso mesmo, na actualidade, a vida tenda, cada vez mais, a esteticizar-se no seu todo. De repente, sintomaticamente, o mundo logotécnico parece querer inclinar-se, em estado de perfeita simulação, para um novo céu sem forma, como se fosse, todo ele, uma catedral; como se voltasse a querer ser a obra. A única. Votada e voltada para o novo Deus; esse inomeável, cuja invisibilidade residiria, em última análise, na súmula contemporânea dos produtos imateriais da instantaneidade.