Desconstruindo o Moulin Rouge - o espectador por trás das cortinas de veludo

Adriana Amaral1


Índice

Adentrando um antro de perdição

``The story is about love. The woman I love is dead.''

Estas duas sentenças, datilografadas em uma máquina de escrever antiga aparecem na primeira seqüência de Moulin Rouge - um amor em vermelho (Moulin Rouge, Baz Luhrmann, 2001). Assim como, o tradicional Era uma vez remete crianças e adultos às estruturas narrativas das fábulas, ela funciona basicamente como isca para o receptor formalizar o pacto ficcional com o autor modelo, no intuito de adentrar o mundo possível do filme. Da mesma forma, utilizo-me desse elemento (a primeira frase do filme)2 para levantar as questões que perpassam o corpus deste artigo:

Quem é o receptor modelo de um produto cultural tão híbrido e multifacetado quanto Moulin Rouge? Que tipo de inferências são necessárias para que seja estabelecido um pacto de leitura entre o autor e o receptor modelo do filme, a partir de sua leitura verbal, imagética e sonora? Que tipo(s) de referências tornam o jogo semiótico proposto pelo autor mais facilmente reconhecível pelo leitor? Que tipo de inversão ocorre na estrutura técnica/estética do filme em relação a outros filmes do gênero musical? De que maneira pode-se afirmar que Moulin Rouge possui uma estética da desconstrução?

É importante expor que essa trilha pelo bosque da ficção3 de Baz Luhrmann (Austrália, 1962) pode nos levar a um uso ou a uma interpretação do texto, e aí podemos ficar tão confusos e perdidos quanto a personagem Christian (Ewan McGregor) quando chega a Montmartre e, em meio àquela excitação da época no bairro boêmio e é alertado por um padre: ``este é um antro de perdição''.

Conforme a polêmica entre Eco, Culler e Rorty no livro Interpretação e Superinterpretação, a controvérsia entre quais são os limites em que se pode interpretar e quais os que se usa o texto para um proveito idiossincrático, fica em um lugar entre as intenções autorais, intenções textuais e as intenções do leitor, além de apontar na direção dos pós-estruturalistas como os principais ``utilizadores'' de textos.

Para fins metodológicos, esclareço que, na maior parte desta análise, houve uma interpretação, ``respeitando a perspectiva cultural e lingüística do texto'' (Eco, 1995, p. 84), colocando uma lupa semiótica para ampliar as percepções abdutivas e também para tentar confirmá-las ou desconfirmá-las, tirando do nível obtuso as marcas e os indícios inscritos no filme. Em alguns momentos, no entanto, o uso da obra torna-se inevitável, uma vez que, de acordo com Culler (1997, p. 101), ``a desconstrução apela para um princípio lógico mais elevado ou a razão superior, mas usa4 o próprio princípio que desconstrói''.

Um outro fator a ser considerado é o da semiose hermética como método, num nível em que, como afirma Eco (1995) os livros são interpretados como mundos. Essa semiose hermética é um processo que remete a busca do homem pelo conhecimento, pela verdade, que vai dos alquímicos e gnósticos aos filósofos como Nietzsche e Heidegger e também Derrida. Esse caminho é uma procura pela senha5 que dá acesso ao desvelamento, mesmo sabendo que por trás dele virá um novo segredo e assim sucessivamente. Eco (1995) afirma que em algum ponto, o texto permanece secreto por não possuirmos a chave que o decodifica. Um bom exemplo para descrever de forma empírica o que seria o processo de semiose hermética são as babushkas, tradicionais bonecas russas que se encaixam uma dentro da outra, mas para tanto, teríamos que pensá-las num plano infinito, até onde seriam perdidas por nossas vistas.

Experimentando o modelo semiótico em um filme prêt-a-porter

A construção do seguinte modelo6 de análise semiótico em nível teórico e sua aplicação instrumental, muitas vezes, assemelha-se com uma prostituição filosófica, da mesma forma que Satine (Nicole Kidman), a mais bela cortesã do Moulin Rouge, entrega-se aos ávidos clientes do cabaré parisiense. Contudo, além de uma modelização das estratégias de leitura ele é uma tentativa para ler a cultura contemporânea e seus significados, através de um de seus mais híbridos produtos: o cinema. Faz-se necessária uma teorização que tente visualizar as marcas desse sistema complexo de inter-relações, que se manifestam em produtos como a TV, os quadrinhos, a música, o cinema, etc. Assim sendo, torna-se imprescindível uma ferramenta que exponha os sintomas, indícios, as marcas que se encontram no seio dessa cultura.

Esse modelo -- apesar de não ser perfeito como o vestido vermelho estonteante de Satine em uma das seqüências do filme -- pode ser pensado enquanto a procura de um novo sentido à questão da ideologia em meio à anti-representatividade como quer um pragmatista como Rorty (1997, p. 227). ``Mas o modo mais eficiente de expor ou desmistificar uma prática existente parece consistir em sugerir uma prática alternativa, e não em criticar a atual''.

Essa busca por um caminho que não fique atrelado às oposições binárias talvez venha a ser, como define Bhabha (1998), um terceiro espaço. Um entre-lugar, no qual haja uma tradução dos símbolos na efervescência de distintas culturas. O terceiro espaço é o local das negociações, e nele situa-se o efeito da hibridização da cultura sobre os sujeitos.

O pacto da interpretação nunca é simplesmente um ato de comunicação entre o Eu e o Você designados no enunciado. A produção de sentido requer que esses dois lugares sejam mobilizados na passagem por um Terceiro Espaço, que representa tanto as condições gerais da linguagem quanto a implicação específica do enunciado em uma estratégia performativa e institucional da qual ela não pode, em si, ter consciência. O que essa relação inconsciente introduz é uma ambivalência no ato da interpretação. (Bhabha, 1998, p. 66)

No Terceiro Espaço as marcas do discurso do sujeito contemporâneo são percebidas. Ele é produto e produtor de uma cultura própria. Uma vez isoladas as marcas, é possível tirarmos uma amostragem cultural que, mais uma vez, nos remeterá ao sujeito/ receptor do produto cultural. Esse pacto de interpretação do qual nos fala Bhabha (1998), também pode ser relacionado ao que Eco (1989) chama de pacto ficcional, ou seja, um contrato de leitura que prevê a cooperação entre leitor e autor em um mundo possível,

com respeito a esta riqueza de implicitações, promessas argumentativas, pressuposições remotas, o trabalho de interpretação impõe a escolha de limites, a delimitação de rumos interpretativos e, por conseguinte, a projeção de universos de discurso. (Eco, 1989, p. 31)

Nesse interstício, a semiótica, através de um modelo instrumental de análise, pode dar conta de dissecar as marcas repetidas que talvez ancorem7 o próprio sentido do sujeito, principalmente via desconstrução. E é na desconstrução do discurso desse sujeito, em suas mais diversas formas de expressões artísticas, isto é, a partir do que ele(a) lê, do que ela(e) escuta ou assiste possa conter uma estratégia desconstrutiva que gere uma recuperação identitária, ampliando os domínios da semiótica para novos recortes teóricos.

Afinal, como afirma Culler (1997, p. 99) a desconstrução pode apresentar-se de três diferentes modos: uma posição filosófica, uma estratégia política ou intelectual e um modo de leitura. ``A desconstrução investiga o funcionamento de oposições metafísicas em suas argumentações e os modos como figuras textuais e relações (...) produzem uma lógica dupla e aporética'' (Culler, 1997, p. 126).

Nessa intersecção entre a semiose hermética e a desconstrução8 , destaca-se o papel da abdução como mecanismo criador de mundos possíveis9 , abrindo amplas possibilidades de leituras. De acordo com Eco (1995, p. 201), a abdução ``é a adoção provisória de uma inferência explicativa passível de verificação experimental e que visa a encontrar, juntamente com o caso, também a regra''. O que Aristóteles chamou de dedução, Pierce chamou de hipótese ou abdução. Para Eco (1995, p. 200) a abdução necessita ser testada para uma verificação daquela proposição e é ela quem permite explorar ou não as possibilidades interpretativas em um passeio inferencial e dá uma espécie de limite a essa mesma interpretação. O semiólogo italiano afirma que ``as abduções hipocodificadas - para não falarmos das criativas - são mecanismos criadores de mundos'' (1995, p. 210). São essas criações de mundos que impulsionam as inferências, aumentando as possibilidades interpretativas. E, posteriormente, as tornando parte de um outro mundo, o da experiência.

Assim, elas podem funcionar como um tipo de chave para iniciar o desvelamento de alguns segredos de um determinado produto cultural e, ao mesmo tempo, em que apresenta alguma estrutura desconhecida, abre espaço para que essa mesma estrutura possa ser desconstruída não se restringindo a um pensamento lógico binário, que exclui a criatividade das abduções. Isto posto, vejamos o confronto entre modelo e objeto.

Desconstruindo o Moulin Rouge

Manifestação Linear

O filme Moulin Rouge, obra de 2001, é dirigido pelo diretor australiano Baz Luhrmann e está categorizado no gênero musical. A trama apresenta um amor impossível entre o artista e uma cortesã do mais famoso cabaré de Paris no final do século XVIII, embalado por uma trilha sonora com música pop. Christian (Ewan McGregor) é um jovem artista inglês que abandona Londres para tentar a sorte em Paris e acaba conhecendo a troupe do artista Toulouse-Lautrec (John Leguizamo) e se envolve com Satine (Nicole Kidman), a mais famosa cortesã do Moulin Rouge, dirigido por Zidler (Jim Broadbent) que a prometeu como negócio ao poderoso Duque (Richard Roxburg). Por uma ``coincidência'', Christian tem um encontro no quarto de Satine que pensa que ele é o Duque. Todavia, na hora em que seriam descobertos, Satine, Zidler, Christian e a turma de boêmios de Toulouse convencem o duque a financiar a peça musical que Christian irá escrever, Espetacular Espetacular. O Duque aceita patrocinar a estréia da peça e a reforma do cabaré, que será transformado em teatro, mas exige de Zidler a escritura do Moulin Rouge e Satine como sua esposa.

Os ensaios da peça prosseguem juntamente com o caso de Satine e Christian, entretanto, no último dia de ensaio, o duque descobre o romance dos dois e exige que o final da peça seja alterado conforme sua vontade. Satine, no entanto, não sabe que está com tuberculose e que possui pouco tempo de vida. Enquanto isso, Zidler ordena a Satine que ela termine o caso com Christian, senão o Duque irá mandar matá-lo. Na noite de estréia da peça, Christian retorna pela última vez ao Moulin Rouge, alterando o fim da peça e reconquistando o amor de Satine, que ao morrer, logo depois da cena final da peça, pede a Christian que conte a estória dos dois. O filme termina com o escritor sentado à máquina de escrever, com a mesma canção do início. Até a metade do filme, as cenas são editadas em uma velocidade bastante acelerada, existe muita cor, tanto nos figurinos quanto nos cenários. As músicas variam de aceleradas a lentas, de acordo com cada cena.

Circunstâncias de Enunciação

O diretor australiano Baz Luhrmann iniciou sua carreira com Vem dançar comigo (Strictly Ballroom, 1992) um filme sobre um concurso de dança, mas seu début hollywoodiano aconteceu com Romeu + Julieta (Romeo + Juliet, 1996), nova adaptação do clássico de Shakespeare. Seu mais recente projeto é um musical sobre a vida de Alexandre, o Grande. Em diversas entrevistas, Luhrmann declara ter uma preferência pelo gênero musical. Após Romeu + Julieta, Luhrmann saiu em viagem de férias e foi para Índia. Em suas entrevistas e, inclusive no próprio site do filme, afirma ter ficado impressionado com a força do cinema indiano, tanto em relação à estética dos filmes que ele afirma ser uma explosão de cores, quanto em relação às narrativas que variam da tragédia à comédia e, utilizam-se, principalmente de elementos dos musicais. O impacto desses filmes, segundo ele, é ainda mais interessante de ser percebido na própria Índia, aonde eles são exibidos em circuitos ao ar livre para milhares de pessoas. De acordo com o diretor, esse foi um dos eixos que conduziu o roteiro e a direção de Moulin Rouge, pois ele queria um filme colorido, vibrante, que fosse cômico e triste e que tivesse muita música, sendo os filmes indianos sua maior fonte de inspiração.

No retorno de sua viagem, Luhrmann reuniu-se com a equipe de produção e teve a seguinte idéia: e se escrevêssemos os diálogos entre os protagonistas apenas com letras de canções de amor famosas? Um grande brainstorm gerou então o outro eixo de construção do filme, determinando que as músicas a serem utilizadas na trilha sonora fossem músicas já existentes. A partir dessas duas idéias centrais foi desenvolvida a estética e a narrativa do filme.

Circunstância do Enunciado

O filme trata, de uma forma hipercodificada, de uma história de salvação da arte/do artista através da beleza, da liberdade, do amor e da verdade. Esses três conceitos remetem aos ideais das vanguardas modernistas da belle-époque, além de nos levar uma dimensão histórico-ideológica por trás de uma estética aparentemente poluída e acelerada na edição. Essa remissão aos ideais do próprio período abordado pelo filme, estabelece um grau de coerência interna ao mundo possível do Moulin Rouge.

Há todo um jogo intertextual proposto pelo autor para os admiradores do gênero musical. Destaco aqui a cena em que Christian, recém-chegado à Paris, vai ensaiar uma peça com a troupe de Toulouse-Lautrec. A peça tem um cenário de Alpes suíços e ele está vestido de camponês. Toulouse e os outros estão em busca de uma frase para o protagonista, quando Christian canta: ``The hills are alive with the sound of music''. Todos dizem: genial! Essa frase faz parte da canção ``The sound of music'', tema do filme A Noviça Rebelde (The Sound of Music, Robert Wise, 1965). A Noviça Rebelde se passa nos Alpes suíços e é considerado um clássico do gênero. Suas canções são extremamente conhecidas pelos cinéfilos em geral. Essa relação intertextual será mais facilmente reconhecida por aqueles fãs de cinema que, acompanham especificamente, o gênero musical e que, reconhecem um verso de uma de suas importantes canções.

Essa cena apresenta ao mesmo tempo uma espécie de homenagem à A Noviça Rebelde enquanto um grande musical que marcou época, introduzindo uma seleção contextual, e, há também um deboche, através de uma paródia, tanto pelo contexto da cena como um todo (que é extremamente cômica) quanto pelo fato deles desistirem da idéia da peça musical que se passa na Suíça com um camponês, decidindo por uma peça que se passa na Índia, apontando até para uma quebra nas preferências cinematográficas deslocando Hollywood para Bollywood10 . Esse ato, pode ser analisado como um abandono dos padrões do gênero e uma proposta de um novo paradigma de musical, não pela negação do anterior, mas sim pela sua incorporação e pela paródia e ao mesmo tempo reverência, em uma atitude (se é que podemos chamá-la assim) extremamente desconstrucionista. O abandono destes padrões também significa uma aposta do diretor em uma orientalização das estruturas estéticas do cinema, ou seja, uma incorporação de diferentes padrões no chamado cinemão.

Estruturas Discursivas

Podemos dizer que o discurso do filme concentra-se na relação amor/arte. Sendo assim, a isotopia do filme seria: jovem artista se apaixona por prostituta e tenta salvá-la do submundo através de sua arte. Existem vários topics que confirmam e legitimam essa isotopia, tanto em termos de cenas quanto de diálogos e de músicas e que compõem um quadro onde essa idéia está presente.

Selecionei uma cena quase do final do filme, em que Satine terá um encontro com o Duque e, paralelo a isso, Christian começa a se corroer de ciúmes. Entra em cena o personagem Argentino (Jacek Koman) que é da trupe de Toulouse. Ele interpreta (cantando e dançando), para aconselhar Christian, a música El Tango de Roxanne que serve como trilha das seqüências que descrevo a seguir. Esse tango rasgado trata do amor de um jovem por uma prostituta e de seu sofrimento pelo ciúme. El Tango de Roxanne é uma versão em forma de tango de Roxanne, música do The Police, banda de rock dos anos 80. Sting (ex-vocalista e compositor do Police) comenta que a escreveu a canção para uma prostituta pela qual ele foi apaixonado quando adolescente. Esse discurso percorre todo o texto e repete-se de forma sutil e intertextual durante toda a narrativa. As seqüências de Christian imaginando sua amada nos braços do outro é intercalada pelas cenas de dança entre o Argentino, uma das prostitutas do Moulin Rouge e um dos bailarinos da trupe simulando um triângulo amoroso -- em uma remissão explícita a ópera Carmem -- e pelas seqüências de Satine fingindo ser agradável com o Duque, mas com o olhar perdido em direção à janela, onde avista Christian caminhando solitário, explicitando ainda mais o caráter de triângulo amoroso.

Estruturas Narrativas

Além da estrutura narrativa do amor impossível devido ao triângulo amoroso, existe aquela própria do gênero musical: a narrativa nascida da tensão música (incluindo aqui a parte verbal da letra) e imagem. Todavia, há aqui uma aparentemente pequena diferença, mas que transforma a significação e o sentido da película por completo. Na maioria dos musicais tradicionais, a música é composta para ``casar'' com o que a história requer. Em Moulin Rouge, os diálogos foram escritos em função das canções já existentes. Isso possibilita ao receptor-modelo, além de prestar atenção na cena e nos diálogos da música, uma participação cognitiva, por já conhecer previamente a música (claro, isso apenas se confirma em relação ao leitor modelo). Há nesta inversão das condições de produção da obra uma proposta de jogo intertextual e de interação proposto pelo autor.

No nível das fábulas e mitos que constituem a narrativa, pode-se apontar dois que subjazem na leitura do filme (embora esteja enfatizando o segundo). A primeira estrutura é de A Dama das Camélias, romance de Alexandre Dumas Filho. Temos uma estrutura muito semelhante: jovem se apaixona por cortesã e tem dificuldades de lidar com isso.

O segundo é a reedição do mito de Orfeu, o deus grego da música que precisa salvar sua Eurídice do ``submundo''. Orfeu é Christian, Eurídice é Satine, o Duque é Hades e o coro grego está representado pelos modernistas da companhia de teatro. O final é infeliz em ambos, a garota morre e Orfeu/Christian transforma seus tormentos em música/literatura. Em uma entrevista no site oficial do filme11, Baz Luhrmann destaca que seus três filmes são baseados em mitos. Vem dançar comigo estabelece relações com o mito de Davi e Golias, Romeu + Julieta, já um mito por si só e Moulin Rouge traz à tona a questão do mito grego de Orfeu, discutindo a arte e, utilizando como pano de fundo os modernistas para apontar os caminhos do artista no mundo contemporâneo.

Extensões de Parentesco

Uma série de inferências poderia ser feita sobre o texto, pois ele apresenta-se muito rico em referências a mundos possíveis. Escolhi apontar as extensões e referências que estruturam o próprio cinema e, dentro dele, mais especificamente o gênero musical.

Moulin Rouge além de remeter a musicais de estrutura clássica como A Noviça Rebelde e Cabaret,, entre outros, também nos aponta para a estrutura das peças musicais da Broadway (muitas inclusive baseadas em filmes e vice-versa). A televisão é outro mundo presente nessas relações, uma vez que a estrutura do videoclipe em alguns momentos assemelha-se à do musical e a do curta-metragem. Entretanto, o videoclipe também já criou sua linguagem característica que por sua vez ``contamina'' alguns filmes. Essa relação então é uma espécie de espiral aonde as influências vão se somando e entrechocando-se ao mesmo tempo.

Estruturas Ideológicas

Duas instâncias ideológicas parecem entrecruzar-se no texto. A primeira diz respeito a uma tentativa de mudança nos paradigmas do gênero musical através da inversão das relações música/diálogo e música/imagem. Essa inversão atualiza o musical em relação a uma nova geração de espectadores. A segunda instância possui uma relação estreita com a primeira, mas é de ordem mais genérica: seria a constituição de um imaginário calcado pela música pop dos últimos 30 anos, que influencia as relações música/imagem. Esse imaginário é muito similar ao que aparece no filme Alta Fidelidade (High Fidelity, Stephen Frears, 2000) baseado no livro homônimo de Nick Hornby. Ele leva em consideração não a música como uma simples trilha sonora do cotidiano, mas como uma outra linguagem, uma espécie de reflexão acerca das relações, colocando na voz de outrem aquilo que gostaríamos de dizer.

Estruturas de Mundos Possíveis

O Moulin Rouge de Baz Luhrmann não é o típico cabaré francês dos filmes. Ele aposta em uma visão romântica e sombria, que corresponde mais aos clubs de música eletrônica de nosso período do que aos próprios cabarés. Seus ``habitantes'' querem torná-lo um teatro, no intuito de transformar a decadência em arte, para ser uma ``atriz de verdade'', como diz Satine a sua camareira. Um mundo de cores, de fadinhas do absinto, de hotéis sujos e baratos como aquele onde mora Christian, de artistas, de fanáticos religiosos. Um ambiente urbano e efervescente onde Zidler (o dono do MR) faz uma performance cantando Like a Virgin de Madonna remetendo-nos às drag queens que divertem as boates do século XXI.

Essa estrutura de mundo é apresentada na primeira cena que se passa no espaço interno do cabaré Moulin Rouge. Zidler fala para todos os convidados se divertirem e chama as moças do can-can. Em vez do tradicional can-can, elas dançam uma música eletrônica, um tecno do DJ Fatboy Slim, enquanto uma edição acelerada foca diversos clientes da casa com suas cartolas dançando enquanto cantam: ``Here we are now. Entertain us!!!'' (Aqui estamos. Divirtam-nos!), refrão da canção ``Smells like Teen Spirit'' do Nirvana, banda de rock ícone do movimento grunge da década de 90. Através dessa referência percebe-se que o filme diz menos a respeito do passado do século XIX do que da virada do século XX para o século XXI, recontando a própria história da época atual através desse passado estilizado. É um mundo possível e plausível para aqueles que esquecem onde estão e entram nele, prestando atenção na narrativa de amor clássica, ou então, para aqueles que possuem os códigos e os acessos para nele penetrarem, estabelecendo as relações entre músicas, filmes, etc.

Considerações finais - Versão remix

Após esse pequeno experimento do modelo de análise semiótica de Eco ao cinema de Baz Luhrmann, resta fazer algumas considerações, recapitulando algumas questões iniciais que não foram diretamente respondidas, embora estejam delineadas.

Em relação às inferências, necessárias para o contrato de leitura entre autor e receptor-modelo, estas são de várias ordens: musical (identificar o autor da música como em ``Like a Virgin'' ou conhecer a letra como no caso de ``Roxanne''); cinematográfica (referências a musicais como A Noviça Rebelde); literárias (A Dama das Camélias), mitológicas (mito grego de Orfeu) e até culturais/informativas (produção indiana de filmes), etc. Essas remissões, no entanto, não são indispensáveis para a compreensão da obra, pois o leit-motiv amor entre o jovem artista e a cortesã permite ao filme um nível de comunicabilidade mínimo para sua compreensão pelos mais diversos leitores.

No que tange ao reconhecimento do leitor-modelo, os intertextos com músicas extremamente conhecidas do público em geral, tornam o jogo semiótico um momento de fruição para o leitor. Um belo exemplo pode ser visto na cena em que o casal de protagonistas interpreta a canção ``Elephant Love Medley'', fazendo um dueto em cima do Elefante12 do Amor, um dos quartos do Moulin Rouge. Essa cena faz uma citação aos grandes pares românticos dos musicais como Ginger Rogers e Fred Astaire (em diversos filmes) e Olívia Newton John e John Travolta em Grease - Nos tempos da brilhantina (Grease, Randal Kleiser, 1978), apenas para citar dois exemplos. A música é um medley de canções de amor muito famosas de artistas de sucesso como Beatles, David Bowie, U2, Kiss, Elton John, Whitney Houston, Joe Cocker. Algumas estão iguais às suas letras, outras tiveram pequenas adaptações de modo a fazerem sentido no contexto.

Moulin Rouge possui algumas dualidades em suas estruturas narrativas e ideológicas. E, principalmente, propõe uma inversão entre música/imagem dentro do musical. Estes elementos podem ser tomados dentro de uma leitura semiótica e desconstrucionista, embora tenha sido feito um recorte de algumas categorias. A desconstrução, na visão de Culler, não pode ser tratada como método, de modo a não cristalizar o conhecimento. Contudo, enquanto modo de leitura ela traz à tona alguns paradoxos e inversões que constituem determinados textos.

Finalmente, sobre o leitor modelo de Moulin Rouge pode-se dizer que sua competência enciclopédica deve dar conta tanto do mundo possível do filme quanto de suas intenções discursivas, estéticas e técnicas. Com certeza, ele está escondido observando atrás das pesadas cortinas de veludo vermelho que abrem a primeira seqüência do filme, e não na primeira fila de cadeiras como mero espectador. As inferências acerca das relações das músicas (principalmente das letras) com as imagens e a descoberta das referências (musicais, cinematográficas, etc) fazem parte do jogo semiótico proposto pelo autor.

O autor joga esse texto polifônico em um anzol em busca de receptor modelo que possua as referências ``certas'', ou seja, alguém com uma cultura pop tão grande para música quanto Rob Flemming/ Rob Gordon13 e, que, além disso, seja um admirador de musicais -- a probabilidade de acertar aqui é maior, pois em geral, quem é o típico apreciador de musicais certamente irá assistir ao filme, uma vez que a produção de musicais não é muito ampla atualmente em relação a outros gêneros (embora depois de MR outros musicais como Chicago já estejam sendo produzidos).

Dessa forma, faz sentido pensar que o leitor-modelo de Moulin Rouge o seja por uma questão de identificação de forma idiossincrática com a obra, tão híbrida e cheia de intertextos quanto ele próprio. Entretanto, o sujeito não faz parte dos domínios da semiótica e talvez, no caminho pela busca da identidade perdida do leitor-modelo fosse necessário um flerte com alguma outra teoria.

Por outro lado, se analiso um produto cultural como Moulin Rouge já não sou eu mesma apta a ser o leitor-modelo do filme? Se fui apta a perceber as referências a que ele remete durante minha análise não seria o pesquisador também este leitor-modelo? São questões surgidas ao longo desse pequeno ensaio, mas que devem ser levadas em conta em futuras discussões.

Bibliografia

Site Oficial do Filme:

www.clubmoulinrouge.com



Notas de rodapé

... Amaral1
Mestre em Comunicação Social pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil e Doutoranda pelo mesmo programa.
... filme)2
Para Eco (1994, p. 12), ``num texto narrativo, o leitor é obrigado a optar o tempo todo. Na verdade, essa obrigação de optar existe até mesmo no nível da frase individual -- pelo menos sempre que esta contém um verbo transitivo''.
...ao3
``Bosque é uma metáfora para o texto narrativo, não só para o texto dos contos de fadas, mas para qualquer texto narrativo''(Eco, 1994, p. 12)
...usa4
Grifo meu
... senha5
Esta senha também é um mito que está arraigado até nos orientais, basta ver o exemplo da fábula de Ali Baba, aonde o abracadabra abre as portas da caverna e que também podemos transpor para o mundo contemporâneo das senhas do banco, do cartão de crédito, do correio eletrônico, etc.
... modelo6
O modelo de análise semiótico é o de Eco.
... ancorem7
Tomo de empréstimo o conceito de ancoragem para Barthes (1990), para uma tentativa de desconstruí-lo. A ancoragem barthesiana trata de duas linguagens: a verbal e a visual (especificamente a fotográfica), no qual a linguagem verbal (escrita) ancora a visual, tendo como exemplo as legendas das fotografias nos jornais. Uma hipótese é que, da mesma forma, as marcas e/ou indícios e/ou ícones encontrados nos produtos culturais ancorem nossa leitura do sujeito e, conseqüentemente, de sua identidade. Eis aqui uma questão a ser problematizada.
...ao8
Para Carvalho (1992, p.93), não devemos tomar a desconstrução como um conceito, pois isso inverteria sua ordem, mas sim como uma espécie de crítica dos encadeamentos e desencadeamentos do texto. ``Definir desconstrução poderia ser a tentativa de dar conta da atividade múltipla de produzir marcas que se inscrevem por um lado, e por outro, se auto-apagam''.
...iveis9
Para Eco (1989, p. 109), o mundo possível é definido como ``um estado de coisas expresso por um conjunto de proposições onde para cada proposição ou p ou $\sim $p. Como tal, um mundo consiste em um conjunto de indivíduos dotados de propriedades. Visto que alguma dessas propriedades ou predicados são ações, um mundo possível pode ser visto também como um curso de eventos. Dado que este curso de eventos não é real, mas absolutamente possível, ele deve depender dos comportamentos proposicionais de alguém, que o afirma, nele acredita, com ele sonha, deseja-o, o prevê, etc.
... Bollywood10
A fase de ouro dos musicais foi produzida nos estúdios hollywoodianos. Atualmente, Bombaim é a cidade da Índia com maior produção anual de películas, o que lhe rendeu o apelido de Bollywood pelos críticos de cinema.
... filme11
www.clubmoulinrouge.com
... Elefante12
O elefante traz consigo outra referência à Índia, por ser um dos símbolos do país e, o elefante do MR está todo ornamentado de forma que sua imagem seja diretamente relacionada com a Índia.
... Gordon13
personagem fanático por música pop do livro e do filme Alta Fidelidade. Como no filme a ação é transposta de Londres para Chicago a personagem recebeu um sobrenome diferente.