Fernando Teófilo
1998
O que é que um tubérculo, a esquizofrenia, o capitalismo e a Internet têm em comum? A resposta é: dois franceses. Gilles Deleuze e Felix Guattari. São eles os autores de "Mille Plateaux", o segundo, e último, volume da obra "Capitalisme et Schizofrenie". O Trabalho em conjunto desta dupla começou no início da década de setenta com o propósito de elaborarem uma espécie de genealogia do capitalismo. Ironicamente, veremos mais à frente que eles não advogam qualquer tipo de árvore, muito menos genealógica.
Guattari, falecido em 1992, foi um psicanalista, muito crítico de Freud, e também um activista político, nomeadamente no final dos anos sessenta. Deleuze, falecido em 1995, é considerado um dos mais importantes filósofos franceses depois da segunda grande guerra. Talvez não tenha recebido a atenção que mereceram outros contemporâneos, como Foucault e Derrida, porém parece estar agora a recuperar. O seu nome é cada vez mais citado, mesmo em áreas para onde nem o próprio eventualmente sonhava deslocar-se. Este texto é talvez um exemplo disso.
No primeiro volume da genealogia que atrás referimos, que publicaram em 1972 com o nome de "Anti-Édipo", era notória a presença das ideias políticas imanadas dos acontecimentos de Maio de 68 em França. Isso é patente no conceito de Inconsciente que apresentaram. Em vez do freudiano em que o inconsciente anda sempre a brincar com a mamã, Deleuze e Guattari (DG) acham que este jogo pode ter estes dois intervenientes mas também outros como as raças, os continentes, a História, a Geografia, enfim toda a moldura social que o envolve. O inconsciente de DG é também entendido como uma máquina de desejos instalada num mundo capitalista donde só a esquizofrenia pode libertar-nos. A esquizofrenia é aqui encarada, não como patológica, mas como movimento de fuga criadora. Não há dúvida que o esquizofrénico de DG também sofre, mas a sua condição é a de partida para uma nova forma de pensar, criadora e inventora de si próprio.
Oito anos depois, quando é publicado o segundo volume, "Mille Plateaux", DG substituiem este processo esquizofrénico por aquilo a que chamaram de Nomadologia.
É também aqui neste volume que DG introduzem um tubérculo muito especial. Trata-se de um conceito inspirado na botânica, transplantado para a filosofia e com semelhanças no mundo electrónico. A este tubérculo DG chamaram de Rizoma. Antes de ir verificar ao dicionário aqui fica o que se encontra no Lello Universal:
"Substantivo masculino, do Grego Rhizoma, i. e Raíz. Trata-se de um caule subterrâneo cujos rebentos se elevam para fora da terra durante a sua evolução completa. Este caule emite raízes adventícias pela parte inferior"
O Rizoma de DG é diferente mas com pontos em comum: Não existe nenhum centro nem centros, é como um corpo sem orgãos, nada está pré-definido, as ligações fazem-se através de linhas que podem interligar qualquer ponto com qualquer outro ponto, não respeitando nenhuma hierarquia. No Rizoma não há uma unidade central, um eixo que conduza o crescimento de uma forma dicotómica ou genealógica. As suas linhas não são ramificações de uma árvore, são apenas linhas que a qualquer momento podem deixar de existir e dar lugar a outras de natureza diferente. O que encontramos no Rizoma são multiplicidades sem sujeito nem objecto. No Rizoma circulam apenas estados momentâneos sem qualquer controlo ou codificação central de um qualquer General ou autómato. Os pontos não são fixos, existem sem princípio e sem fim, apenas no meio. Estes "meios" são, para DG, "Plateaux". O conceito de Plateau, inspirado em G. Bateson, traduz o "meio" onde toda a multiplicidade é conectável por outros caules subterrâneos que formam e desenvolvem o Rizoma. Agora percebe-se melhor o título de "Mille Plateaux".
Todos os Rizomas de DG regem-se por uma meia dúzia de princípios: Conexão e Heterogeneidade, Multiplicidade, Ruptura Assignificante, Cartografia eDecalcomania.
De uma forma sucinta, os princípios de Conexão e Heterogeneidade caracterizam o Rizoma como sistema não hierárquico, aliás ele é mesmo anti-hierarárquico. Nenhum ponto é mais importante que outro mas todos os pontos devem estar conectados. As conexões são heterogéneas: uma ligação biológica pode conduzir a outra política ou económica, etc.
O princípio da Multiplicidade diz-nos que no Rizoma não há uma unidade, um eixo central, como existe por exemplo na árvore. O que temos são multiplicidades de dimensão e natureza variável.
A Ruptura Assignificante soluciona o problema do rompimento das ligações. Qualquer linha pode quebrar-se que logo outra ocupará o seu lugar com outra dimensão e outra natureza. Da quebra não resulta qualquer significado. Trata-se apenas de um movimento de desterritorialização e territorialização do Rizoma.
O Rizoma não pode ser decalcado de qualquer outra estrutura, da árvore por exemplo. As suas formas e conteúdos não se alteram de um forma pré-estabelecida e quando se alteram fazem sempre diferente. A cartografia parece ser a melhor solução para desenhar o mapa do Rizoma, mas só se aceitarmos que tenha várias entradas e nunca definitivas. Caso contrário estariamos a representar algo que existe definido. O rizoma não existe, está sempre existindo, sempre em construção.
E a Internet o que é que tem a ver com tudo isto?
A Internet concretiza no mundo real o sistema rizomático de DG. Também na Internet encontramos uma estrutura feita de linhas e pontos que se podem ligar a quaisquer outros, e todos estão ligados. Não existe uma hierarquia que nos obrigue a passar por um ponto específico, pelo menos a partir do momento em que estamos ligados. Os conteúdos que trocamos com outros pontos podem ser de natureza diversa ou até podemos não trocar nada. Também na Internet o que existe é uma multiplicidade sem qualquer unidade axial que nos condicione as linhas de contacto ou de fuga. A ruptura não se traduz no fim de uma ligação mas na produção de outra ligação, a procura de um novo endereço. Qualquer tentativa de cartografar a Internet revela-se infrutífera. A sua constante mutação inviabiliza qualquer representação estáctica. O acentralismo do Rizoma é verificável na Internet. Apesar de algumas tentativas recentes, não há ainda nenhum General que comande a estrutura e hierarquize as ligações. Se tal acontecesse estariamos na presença de uma Rizomatoze. A prevenção desta doença que ataca os Rizomas deverá ser feita pela manutenção do nomadismo, preconizado por DG e que o individuo concretiza hoje em dia na Internet.
Todavia não deixa de ser irónico que todas estas semelhanças entre a Internet e o conceito de Rizoma de DG só sejam possíveis através de uma lógica binária de zeros e uns, precisamente a lógica dicotómica, rígida e pré estabelecida que DG combateram. Não deixa de ser também irónico que seja o conservador capitalismo, através das suas necessidades publicitárias, a tornar possível o desenvolvimento de uma estrutura rizomática como a internet.
Ironias á parte, não deixa ser extremamente interessante uma abordagem da Internet através do estudo dos conceitos de Rizoma e Nomadologia de DG.