O poder discursivo na sexualidade
 

A relação de poder e a construção do sujeito nos discursos da idade média /confessionário e da contemporaneidade /chats


Simone Ravazzolli 1




Desde a época clássica, as sociedades e as instituições preocupam-se em traduzir a sexualidade humana através da palavra. Gestos, atitudes, desejos, pensamentos, tudo deve ser transformado em discurso para, desta forma, ser confessado: na Igreja, no divã, na consulta médica.

O ato de confessar, e sua relação de poder, alimenta-se principalmente dos discursos sobre sexo e sexualidade, desde os confessionários, na idade média, às salas de chat da modernidade tecnológica. Em comum, o lugar institucionalizado, aceito, para se falar de sexo, para confessar o inconfessável. A predominância do discurso em primeira pessoa, o interesse nos detalhes, o questionamento. A possibilidade de, através do discurso, ultrapassar a linha divisória do lícito/ilícito. A entrega.

Os discursos do confessionário - pertencentes à formação discursiva religiosa da Igreja Católica - e os discursos nos chats da Internet têm, em comum, a instigante possibilidade de o ser humano trabalhar e se relacionar com o desconhecido, através da metafísica e da virtualidade. E esse, talvez, seja um dos principais motivos para explicar sua força de atração como instância discursiva. Os confessionários mantém-se atuais através dos séculos. Os chats atraem diariamente milhares de internautas em suas salas onde o tema é sexo.
Outro ponto característico é a forte relação de poder existente entre os agentes enunciadores, que se revezam como sujeitos falantes. Não há, nessa relação, a imagem distorcida que alguns autores pregam ao processo de comunicação verbal, com um sujeito na função de locutor e o outro como um ouvinte passivo. Os enunciados sempre refletem a influência do destinatário e de sua resposta. E essa influência é que vai determinar a relação de poder existente entre os dois agentes.
Em ambos espaços discursivos, característicos da entrega, pode-se encontrar a resistência nos momentos de auto-afirmação e medo. Resistência que se apresenta desde a aceitação do jogo pelo anonimato, quando não é possível o outro descobrir quem eu sou sem a minha autorização, ou mesmo nos momentos extremos em que me arrisco a uma ruptura: através de uma mentirinha ou um pequeno detalhe oculto no confessionário, ou o abandono do parceiro na sala de chat.

Apesar da influência dos sujeitos na relação e da resistência que eles possam exercer, esses agentes acabam perpetuando discursos sem personalidade discursiva. Os sujeitos virtuais utilizam-se do discurso pornográfico, sem adereços, preocupados em manter a conversação, o contato. O objetivo é, através da função fática, estimular e prender o outro o maior tempo possível na sala, concordando com o jogo e aceitando os seus comentários.
No confessionário, os discursos perpetuados sobre sexo são os tradicionais discursos católicos, demarcadores das identidades e dos papéis sociais, carregados de intertextualidade. Com a legitimação do discurso parafrástico - pela mistura constante de falas da intertextualidade - a prática discursiva é considerada não criativa.
Nessa instância do religioso, os agentes também não são sujeitos absolutos: falam pela instituição, pelos dogmas, pela bíblia, pela ideologia e por todos os conceitos tradicionais naturalizados. De um lado, o representante de Deus, com todo o poder que existe nessa representação: ele pode punir, perdoar, mensurar e fazer pagar pelos pecados. Ao mesmo tempo, o confessor precisa manter o diálogo, instigar o outro a falar sobre seus deslizes e pensamentos. E assim, a relação de poder se inverte: o fiel decide - apesar da ameaça e da possibilidade de pecado - sobre a faculdade de ocultar, de silenciar.
No discurso virtual sobre sexo, a relação de poder também se alterna constantemente. Um quer tirar do outro os detalhes da intimidade alheia. Ao mesmo tempo, mantê-lo ali, como observador do meu discurso, como espelho e refletor, num jogo de auto-afirmação. Mantê-lo ligado é estar interessante ou fazer-se interessante, tanto faz. Quando o estar não é possível, a mentira entra em jogo para favorecer os agentes. Ela evita a exclusão imediata de interesse, se o sujeito não pertencer a um grupo padrão: ou é velho demais, ou novo demais, ou não atende ao modelo de beleza imposto. Para se fazer ouvir, o sujeito utiliza a mentira como chave à aceitação do parceiro.
Mas essa mentira não é uma característica do discurso virtual. Após a aceitação do parceiro ou grupo, o anonimato favorece os comportamentos autênticos, talvez mais autênticos do que seríamos ao vivo e a cores. Essa nova visão dos discursos de chats foi apresentada no estudo pioneiro de Alvin Cooper, diretor do Centro San José de Sexualidade e Relações Conjugais, nos Estados Unidos. Esse pesquisador americano analisou o comportamento de 9.177 usuários que responderam a um questionário. A conclusão foi que um atrativo fundamental dos chats seria o anonimato, que permite ao usuário a sua autenticidade através da liberação de seus desejos e fantasias. Porém, é fundamental observar que essa autenticidade não representa a libertação total desses sujeitos. O anonimato não chega a atingir o imaginário de seus agentes, como se poderia supor.
Segundo a pesquisa coordenada desde 1996 pelo diretor de pós-graduação da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, professor Sérgio Porto, desenvolvida com alunos de graduação e mestrado da universidade, não é possível essa busca pelo imaginário das pessoas na rede, que só se expressaria através do caminho simbólico. Os pesquisadores concluíram, em uma primeira etapa, que a Internet não teria conseguido vencer essa barreira, e o imaginário da sexualidade estaria resguardado, além do confessionário e da máquina, instâncias policiadas.
 

O ato de confessar e a relação de poder entre os sujeitos

As sociedades ocidentais consideraram, desde a idade média, a confissão como um dos rituais mais significativos na produção da verdade, do dizer, declarar, admitir ou atestar algo sobre si mesmo. Na confissão, o sujeito que fala é o sujeito do enunciado, envolvido em uma relação de poder com o outro. Este avalia, intervém, pune, consola, perdoa.
A instância de dominação se alterna entre os sujeitos: do lado de quem fala/tecla ou do lado de quem pressiona: o que instiga, aguarda e decide. A relação de poder se dá no ato reflexivo dos enunciados, não indiferentes, nem auto-suficientes, mas uma compreensão responsiva do outro, na perspectiva de Mikhail Bakhtin, apresentada em forma de aceitação, rejeição, silêncio. É com base nessa maior ou menor influência que o locutor selecionará todos os seus recursos lingüísticos, nesse jogo pelo poder discursivo e alternância de papéis, onde o que menos importa é a dicotomia verdade x mentira.
Michel Foucault considera os discursos do confessionário como os da verdade, pois, em suas formações discursivas, não haveria espaço à mentira. Para ele, interpretar a confissão é ter o poder. É ter a verdade como na consulta médica ou no discurso científico. Porém, Foucault não analisa o outro agente desses diálogos, como se a força da instituição religiosa fosse definitiva nessa relação, fazendo com que o confessor não escapasse do emaranhado instigante de mistério e poder. A análise valoriza a concentração de força persuasiva da figura do orador católico. Ele tem o argumento de autoridade, e seu discurso é valorizado e largamente aceito.
É como se o peso do divino sobrepusesse um dos lados da relação discursiva, apesar da adoção de uma atitude responsiva ativa por parte do fiel, da sua vontade e de seu querer-dizer - mesmo que institucionalmente determinado e naturalizado em sua prática social. Ou seja, o padre, o médico e o cientista acreditam que têm a verdade, mas seu discurso pode não ser aceito pelo outro ou mesmo ignorado.

Outra característica em comum entre o discurso religioso católico dos confessionários e o discurso virtual das salas de chat é o tratamento exaustivo do sexo e da sexualidade como estimulador das falas. As expressões para denotar a sexualidade são utilizadas nas formações discursivas de forma padronizada ou exagerada, onde a criatividade é quase que inexistente. Em uma instância, o objetivo é o excesso. Na outra, apesar da presença exaustiva, a escassez.

Nos dois casos, a repetição de palavras, enunciados e expressões é constante. No espaço virtual, monossílabos do discurso pornográfico, que estimulam a outra pessoa a permanecer conectada. No religioso, intertextualidades que reorientam os seguidores a permanecerem no caminho correto, o caminho indicado pela Igreja Católica.

Perelman 2 assegura que repetir o já dito, repisar enunciados são formas de fortalecimento da idéia de presença. Para ele, a repetição constitui a técnica mais simples para criar essa presença, fundamental às duas instâncias discursivas diferenciadas. Além desse efeito duplicador e reforçador de que fala Perelman, a constante repetição de palavras e expressões é responsável também por uma certa progressão e alargamento do sentido.
 

O novo olhar

O que se poderia acrescentar nos discursos de confessionário, ao longo de todos esses séculos? Quase nada. O discurso religioso católico nesse espaço de apropriar-se das ações e pensamentos sobre sexo apresenta uma característica bem peculiar, que é a quase inexistência de atualização, de mudanças. Dependendo do momento histórico, pode ser identificado como mais ou menos repressor, mas não apresenta o constante movimento característico das formações discursivas.

Essa "estabilidade" - que revela o seu tradicionalismo e, muitas vezes, o abstém do contexto social do momento - é utilizada ainda como um dos pontos fortes dessa relação de poder. É o reconhecimento da importância da linguagem no aspecto social, e o quanto a mudança nos discursos pode ser fundamental para a reelaboração dos enunciados carregados de carga histórica. A mudança permitiria um novo sentido aos enunciados religiosos, através da desnaturalização dos conceitos tradicionais. Esse novo sentido, esse novo olhar é que não pode ser permitido numa formação discursiva que se mantém justamente por ser uma prática carregada de todo o mistério. Mistério que não pode ser traduzido pelos homens comuns, só pelos representantes da Igreja Católica.

Norman Fairclough, um dos principais nomes da escola inglesa de Análise do Discurso, orienta que a contextualização dos enunciados é fundamental para a prática discursiva, pois as falas precisam fazer parte do contexto/prática social de seus agentes. No discurso virtual, a contextualização está justamente na existência e veracidade dessa prática diferenciada. São as perguntas estimuladoras dos pares, dos amantes, o "onde você está?" "Quem está aí com você?" "O que está fazendo agora?" "De que forma?", que transformam essa virtualidade em uma situação mais real, mais palpável.

Na instância discursiva religiosa, a contextualização dos discursos não é fundamental. Essa formação discursiva dispensa o contexto social no qual o discurso é produzido. As análises, respostas e indicações são pré-concebidas e pouco variáveis. Como se fosse um manual em que, para cada discurso, há uma orientação característica e quase nada novo a acrescentar. Aliás, é uma instância em que o novo não é bem-vindo, que reforça o tradicionalismo como virtude.

Os enunciados dos agentes desses espaços discursivos podem contribuir para a reprodução do status quo ou possibilitar a transformação através das mudanças sociais, numa relação dialética entre as estruturas sociais e o discurso. A possibilidade está na atitude passiva ou não desse sujeito nos momentos que permitem ruptura. Os agentes virtuais e os religiosos mantém uma atitude passiva em seu discurso não criativo, que é resgatado de gêneros tradicionais - pornográfico e religioso. Assim, possibilitam a manutenção dos discursos tradicionais e da reprodução social.

A escola inglesa, com a análise crítica do discurso, trabalha justamente na investigação da identidade desses indivíduos como seres sociais, buscando a posição dos sujeitos nas vozes do texto, procurando criticar as relações naturalizadas, desnaturalizar os processos sociais e desconstruir a relação opressora.

Para Fairclough, os sujeitos são moldados como condição para serem capazes de agir, atuando discursivamente de posições precondicionadas, mas sem a passividade tradicional dos sujeitos característica dos conceitos de Michel Pêcheux, em seu trabalho sobre o assujeitamento 3 . Tanto os sujeitos do discurso do confessionário, quanto dos chats, são moldados pelas formações discursivas e atuam dessas posições precondicionadas, como se não fossem agentes atuantes, mas canais de reprodução desse discurso. Nos chats, os pares aproveitam-se do espaço para falar pela boca da pornografia, fugindo do castramento institucional que o restringe, por exemplo, do ponto de vista semântico. Assim, ele sugere e indica situações que jamais faria em um outro espaço, por não parecer tão natural, naturalidade essa podada pelos discursos de repressão à sexualidade.

Nessa situação, porém, nem tudo é passividade. Podemos identificar atitude ativa própria do sujeito de Fairclough tanto na instância discursiva virtual quanto na religiosa. No discurso dos chats, a capacidade de reação, desconectando-se da rede. A possibilidade de deixar o outro teclando/falando sozinho. No discurso tradicional e conservador da Igreja, a atitude ativa do sujeito é verificada quando os conselhos sobre como não utilizar sua sexualidade - e o que não se deve fazer - acabam sendo ignorados pelos fiéis, longe do olhar observador.
 

A presença feminina

Com relação às instâncias discursivas, um dos pontos de maior diferenciação entre o confessionário e o chat é a possibilidade da presença das mulheres. O confessionário é o espaço naturalizado institucionalmente: o discurso religioso católico é conhecido, através da história, como um demarcador das identidades femininas e de seus papéis sociais. Para isso, a Igreja Católica utiliza-se das conhecidas práticas cotidianas como o próprio confissionário, as pregações, as penitências. Constrói em seu discurso, durante as mais diferentes epocalidades, modelos de identidade feminina "do bem", a serem seguidos (Maria, "Santa-Mãezinha") ou exemplos de como as mulheres não devem se comportar (Eva, prostitutas da Bíblia).

Assim, o feminino têm seu espaço institucionalizado no confessionário, pois as mulheres são fundamentais no trabalho desenvolvido pela Igreja. A sua responsabilidade está justamente na manutenção da prática social, através da disseminação do discurso pregado, cobrindo os espaços e alisando as arestas existentes entre o discurso e a prática do dia a dia dos fiéis. Para isso, desenvolve sua "igreja doméstica" no lar, na base, e também difunde a doutrina religiosa em sua comunidade, trabalho fundamental para a manutenção do discurso tradicional da Igreja Católica.

Nos chats, as mulheres são quase que ausentes. Não porque a dominação das máquinas seja característica dos homens, apesar de as pesquisas na área revelarem o perfil do internauta brasileiro como homem, solteiro, com idade entre 20 e 29 anos e nível médio de escolaridade (o público encontrado nas salas de chat sobre sexo). Mas porque as mulheres - que atualmente representam 29% do universo virtual - familiarizadas com os computadores, utilizam-no mais como uma ferramenta do que propriamente como espaço para diversão.

Outros fatores - mais psicológicos - podem explicar essa quase que ausência do feminino nos chats (muitas vezes camuflada pelos internautas, dispostos a representar essa falta). Uma das razões talvez seja porque o discurso pornográfico esteja naturalizado para os homens e não faça parte do imaginário feminino, não as atraindo à essa instância discursiva. Talvez as mulheres não se satisfaçam nesse mundo masculino de estímulos virtuais e visuais, onde as relações são efêmeras e o calor humano, ausente. Ou talvez, simplesmente, não queiram participar do jogo.
 


REFERÊNCIAS

Bakhtin, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997

Brandão, Helena H. Nagamine. Introdução à Análise do Discurso. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1996

Cooper, Alvin. in Psicologia Profissional: Pesquisa e Prática. EUA: Associação Norte-Americana de Psicologia, 1999

Porto, Sérgio Dayrell (organização). Sexo, Afeto e Era Tecnológica - Um Estudo de Chats na Internet. Brasília: Editora da Universidade de Brasília / EdUnB, 1999
 

Foucault, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Editora Loyola, 1996

_____________. História da Sexualidade - A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1997

Fairclough, Norman. Discourse and social change. Cambridge: Polity Press, 1992

________________. Language and power. London: Longman, 1989

________________. Media discourse. Edward Arnold, 1997

Orlandi, Eni Puccinelli. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez Editora, 1988

_________________. Interpretação - autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. RJ: Vozes, 1996

__________________. Palavra, fé e poder. Campinas, SP: Pontes, 1987

3ª pesquisa Cadê?/Ibope "O perfil do internauta brasileiro", 1999



 
 

1 Simone Ravazzolli é jornalista e mestranda em comunicação na Universidade de Brasília

2 In Orlandi, Eni P. Palavra, fé, poder. Campinas, SP: Pontes, 1987

3 In Orlandi, Eni P. Palavra, fé, poder. Campinas, SP: Pontes, 1987