Kosovo: a voz editorial em El Pais e Público
Cristina Ponte, Universidade Nova de Lisboa
I - Introdução
Expressão
da posição do jornal sobre acontecimentos reportados, existe relativamente ao
editorial como género jornalístico escassez de estudos centrados na sua forma
particular de discurso, ao contrário do que se passa com outros géneros
jornalísticos como a notícia, a reportagem ou a entrevista. Privilegiando o
comentário de temas de actualidade de interesse para os seus leitores, não será
frequente encontrar os mesmos conteúdos em editoriais de jornais de diferentes
países. A situação recente da intervenção da NATO na Jugoslávia proporcionou um
desses momentos em que o tratamento da questão se impôs como conteúdo
comum.
Num quadro de escassez de estudos
comparativos de imprensa, a análise do tratamento editorial desta matéria por
dois jornais ibéricos que privilegiam nos seus conteúdos temas de interesse
público - El Pais (Espanha) e Público (Portugal) - procurou
identificar como integraram o género editorial na cobertura jornalística da
intervenção da NATO e inventariar diferenças e/ou semelhanças nas suas formas
de expressão e de relação pragmática com as audiências. Que conceitos de editorial estiveram
presentes e que ideias sobre o jornalismo contemporâneo convocaram? Constituiram
o início e o final destes textos lugares especialmente significantes? A que
leitores se dirigiram e de que formas o fizeram? Que voz se expressou nos
editoriais, uma voz majestática e distante do leitor ou, pelo contrário,
próxima e quase cúmplice? A que argumentos recorreram os editoriais sobre este
tema eminentemente político e que traços estilísticos próprios do discurso
político estiveram presentes?
II - Os editoriais como género
jornalístico
No panorama norte-americano sobre o
género editorial, e para além das suas referências em inúmeros manuais de
redacção com um caracter eminentemente utilitário, destaca-se a antologia de
Sloan et al (1997) que identifica
três períodos deste género na imprensa norte-americana: 1) a era partidária (1690/1833), pautada pela
separação entre opinião e notícias e forte tomada de posição em assuntos de
natureza política e social relacionados com o processo de independência
nacional; 2) a era popular
(1833/1900), que cobre a penny press,
onde os editoriais se libertam do
exclusivo de temas políticos apresentando também temas de interesse humano,
época essa pautada pela mudança do contexto produtivo que conferia maior
liberdade financeira aos jornais e onde os editoriais surgiam como o coração do jornal naquela que é evocada como a época de ouro do género; 3) a era
profissional, do sec XX, onde, para Sloan et al, à dimensão empresarial dos
jornais norte-americanos se associa uma ideologia profissional que privilegia a
"informação objectiva" que privilegia a reportagem empalidecendo o
lugar do editorial.
Em obras de reflexão sobre as formas
específicas de escrita jornalística e que se constituem como referências na
formação académica e profissional de jornalistas do espaço latino
(Martinez-Albertos, 1974, 1983; Vivaldi, 1990), encontramos breves referências
ao editorial, junto de outras manifestações eminentemente argumentativas de
expressão jornalística, como o artigo ou o comentário. Incluíndo-o no que designa por género jornalístico interpretativo
- caracterizado pelo seu estilo de solicitação de opinião contrariamente ao
estilo informativo - Martinez-Albertos considera o editorial a peça mais
importante do ponto de vista ideológico por lhe competir a apresentação da
opinião do jornal a respeito das notícias que publica. A esta função
corresponderia estilisticamente o recurso a traços algo majestáticos associados
à clareza, concisão e brevidade do estilo informativo (Martinez-Albertos, 1974:
144-145). Por seu lado, Vivaldi distingue o comentário editorial do artigo pela
sua impessoalidade: no editorial comenta-se quase sempre em função de uma
comunidade, uma instituição, uma empresa, é “a voz da razão ao serviço da
verdade e em nome da empresa”, o escrito vale “por si mesmo”, “pelo enfoque
objectivo ao serviço do bem comum”,
enquanto o artigo é um comentário em primeira pessoa, em que “o que se
diz vale tanto como quem o diz” (1990: 376). Na organização estrutural do
editorial, Martinez-Albertos e Vivaldi destacam o início e particularmente o
final da peça como dois lugares marcados e de forte significado. Se o início é
um lugar decisivo de toda a peça jornalística, pela procura de captar o
interesse do leitor, a construção do final será aqui decisiva enquanto
convocadora da adesão e da capacidade evocativa do leitor.
Van Dijk (1995: 178) destaca por seu
lado uma dupla dimensão de audiências: os “leitores comuns”, junto de quem os
editorialistas procuram argumentar e persuadir reproduzindo neles as suas
atitudes e ideologias, e os actores das notícias, as élites a quem se dirigem,
directa ou indirectamente, avaliando as suas acções ou recomendando acções
alternativas: tal explica que “os editoriais não formulem meras opiniões e as
apresentem ao público, mas que ataquem, defendam e aconselhem as autoridades”
(ibidem: 178). Desta perspectiva, van Dijk retira que os editoriais funcionam
politicamente como “movimentos estratégicos para a legitimação do domínio de
uma formação de élite específica ou para manter o equilíbrio de poderes entre
diferentes grupos de élite da sociedade” (ibidem: 205-206).
Estes contributos acentuam assim o
lugar de autoridade do editorial como voz
do jornal - ainda que em mutação, como apontam Sloan et al - e a sua posição enunciativa singular relativamente a outros
géneros. Sugerem também uma dupla
relação enunciativa, distinguindo centros de decisão (élites políticas,
nomeadamente) do conjunto de leitores a que se dirigem. Se na imprensa
contemporânea a voz do jornal pode
ser contrariada nas práticas editoriais que recorrem à assinatura e ao
comprometimento pessoal do seu autor, a problematização sobre diferentes
audiências constitui uma variável a ter presente na análise do tratamento de
uma matéria editorial vincadamente política como o foi a operação da NATO no
Kosovo.
Sendo um género jornalístico
argumentativo particularmente retórico, tomamos como base as observações
modernas da retórica que, como referem Eemeren et al (1997: 215), se situam na qualidade da argumentação e na
importância da orientação para a audiência, que o autor quer convencer através
dos seus argumentos ou cujos argumentos quer refutar. Situamos aqui o argumento
como “molde ou forma de argumentação e não como o conjunto da mensagem”
(Breton, 1996: 45): argumentar é também comunicar, dirigir-se ao outro,
propor-lhe razões para ser convencido a partilhar uma opinião. Na análise da
dinâmica argumentativa, Breton apresenta dois tipos de argumentos: de
enquadramento e de ligação. Os argumentos de enquadramento visam a construção
de um real comum ao orador e ao auditório pela intervenção no contexto de
recepção com vista à sua modificação, a que se seguem os argumentos de ligação,
associando a opinião proposta ao contexto de recepção assim modificado. Nos
argumentos de enquadramento do real encontram-se argumentos de afirmação de
autoridade (do orador, da autoridade externa ou do auditório) apoiados no
reconhecimento ou não de competência, experiência ou testemunho, argumentos de
apelo a pressupostos comuns, como opiniões e valores que sustentam as comunidades
argumentativas ou os seus “lugares”, valores mais abstractos e incertos que
contribuem para construir “um universo de referência que os parceiros de uma
comunicação partilham” (ibidem: 63); argumentos de reenquadramento do real pela
definição, apresentação - descrição narrativa, qualificação, amplificação,
expoliação ou redundância - e
associação-dissociação de elementos pré-existentes. Nos argumentos de
ligação, encontram-se argumentos dedutivos, como os silogismos, e argumentos
analógicos, mais poderosos pelo estabelecimento de uma correspondência entre
duas zonas do real até aí separadas, sendo uma o objecto de acordo prévio e a
outra a opinião proposta, seja pela comparação, pelo exemplo ou pela metáfora.
Porque a intervenção da NATO na
Jugoslávia é uma matéria política, tivemos presente na sua análise linguística
os processos de legitimação e deslegitimação que se manifestam a nível
pragmático, semântico e sintáctico no discurso político (Chilton & Schaffner,
1997), bem como os três pontos do processo crítico de apreciação retórica
apresentados por Gill & Whedbee (1997): 1) as expectativas criadas pelo
contexto, que envolve a problemática coberta, a audiência em vista, o género de
texto, a credibilidade retórica do autor perante a audiência; 2) a
identificação do que o texto apresenta à audiência: figura retórica do autor;
audiência implicada; conhecimentos contextuais; ausências; 3) a identificação
de elementos significantes do texto: estrutura e temporalidade, argumentos,
metáforas e iconicidade destes textos.
Rejeitando a arbitrariedade dos
signos linguísticos em relação aos referentes, Kress (1985: 31) considera que
nomeadamente no discurso político a escolha não arbitrária dos signos lexicais
e o paralelismo da construção sintáctica contribuem para a construção de
climaxes e reforçam as estruturas ideológicas dos textos. A análise sistemática
das características linguísticas dos textos a nível lexical e
sintactico-gramatical é assim sublinhada por Kress para quem a natureza icónica
das formas linguísticas deve ser realçada na medida em que a maioria ou mesmo a
totalidade das formas e processos sintácticos têm uma relação expressiva com os seus referentes.
Para uma compreensão ideológica dos
textos deveremos ter presente o nível contextual e o descritivo do discurso
(van Dijk, 1997). O primeiro orienta-se para a análise das manifestações de
pertença a grupos sociais tendo presentes nomeadamente a polarização
ideológica, as expressões da identidade dos grupos, as representações da sua
posição social e associação com valores, expressas num quadrado ideológico polarizado entre nós e os outros: omissão
ou desvalorização de traços negativos do nós,
ênfase desses traços nos outros;
ênfase nos nossos traços positivos,
omissão ou desvalorização desses traços nos
outros. Por sua vez, o nível da descrição do discurso compreende os
tópicos, a organização esquemática, a
coerência e significados locais, as implicações e pressuposições, a
lexicalização, o estilo, as orientações retóricas. A sobrelexicalização ou a
sublexicalização, a transitividade e
modalidades de sintaxe como a transitividade e a voz passiva são também
destacadas por Fowler (1985) como formas linguísticas que afectam as
manifestações discursivas de poder. Estes aspectos foram particularmente
notórios na forma como editoriais de imprensa norte-americana deram conta de
argumentos internos contra a guerra do Golfo (Hackett & Zhao, 1994), onde
estratégias retóricas e argumentativas se suportaram em metonímias
malevolentes, metáforas desumanizantes, um uso selectivo de metáforas
históricas, a escolha de alvos fáceis e a evocação de motivos demoníacos e
consequências perigosas.
III - Materiais, corpus e métodos de
análise
Os dois jornais aqui analisados surgiram recentemente - El Pais, em 1976, e Público em 1990 - em dois
países que viveram entre a década de 30 e a de 70 contextos político-sociais de
ausência da liberdade de imprensa, com possíveis consequências na cultura
jornalística de profissionais e leitores, no que se refere a formas de
expressão (Chaparro, 1998). O seu aparecimento coincide com contextos
económicos, político-sociais, organizacionais e tecnológicos de transformações
no panorama informativo. A imprensa escrita não foi indiferente aos novos
cenários audio-visuais marcados pela instantaneidade dos “directos” e por novas
formas de cobertura dos eventos, reagindo nomeadamente pelo re-desenho de
práticas de cobertura, de apresentação e de comentário de acontecimentos onde
se inclui o próprio género editorial.
Situando-se no espectro de jornais de referência pela
prioridade que conferem a temas de interesse público, e sendo os mais lidos
pelas élites socio-culturais dos seus países, os dois jornais diferem quanto ao
grafismo e estilo. As diferenças gráficas são particularmente visíveis no
desenho da primeira página: El Pais
apresenta um estilo sóbrio, clássico, sem recurso a cor nem a manchetes, onde
predomina a tonalidade cinza. O Público
organiza a sua primeira página em torno de manchetes (títulos ou fotografias),
com forte recurso a cor (o vermelho é usado no título principal e a curtos
textos de chamada para o interior. A este respeito não serão alheias as
características dos públicos-leitores: enquanto o jornal espanhol lidera a
tiragem no seu país, com valores superiores a 300 mil exemplares diários, na
imprensa portuguesa o Público disputa
a terceira posição com o Diário de
Notícias, com uma tiragem de cerca de 54 mil exemplares[1]. Politicamente, podem
ser considerados jornais progressistas dentro do espectro da imprensa de cada
um dos países. El Pais apresenta na
sua história vínculos com o PSOE (Laitin e Gomez, 1992: 13), o Público tem na sua direcção jornalistas
com passado conhecido de lutas contra a ditadura e os seus profissionais não
rejeitam um jornalismo de causas.
Estudos sobre estilos de escrita apontam características
distintas nos dois jornais. Um estudo comparativo do discurso político entre
jornais editados em língua castelhana e
em catalão, que incluiu o El Pais,
deu conta de um estilo discursivo incisivo, com recurso a ironia,
coloquialismos e sarcasmo, mais notório na imprensa escrita em língua
castelhana do que na imprensa catalã (Laitin e Gomez, 1992). Relativamente à
escrita do Público, Chaparro (1998)
assinala a sua forte componente interpretativa, visível nomeadamente na
titulação: o título interpreta frequentemente o evento e é no antetítulo que se
encontra a informação.
Os Livros de Estilo destes dois jornais são minuciosos quanto a
indicações de escrita profissional mas apresentam sumárias referências ao
género editorial que surge assim como uma forma de expressão jornalística
sobranceira a outros géneros e de acesso condicionado aos elementos da direcção
do jornal. O livro de Estilo do El Pais
contém um manual com 582 orientações das quais apenas cinco se referem ao
editorial, caracterizando a sua autoria e apresentação, bem como traços
gráficos distintivos e a ausência de assinatura. No Livro de Estilo do Público, com dois grandes capítulos
sobre a prática jornalística - Ética e Deontologia e Critérios, Géneros e
Técnicas - a referência ao editorial surge apenas numa alínea relativa aos
espaços de opinião, do segundo capítulo, definindo-o como o género assinado por
um elemento da direcção editorial.
Enquanto o El Pais dispõe de um conjunto de editorialistas e apresenta
diariamente um editorial em local fixo, não assinado e diferenciado
graficamente, mantendo assim um compromisso quotidiano entre esse tipo de texto
e os seus leitores, o Público não
apresenta editoriais diariamente, varia a sua localização e assume a sua
autoria pela assinatura de um membro da sua direcção editorial. José Manuel
Fernandes e Nuno Pacheco, respectivamente director e sub-director do Público e ambos seus fundadores, inserem
esta diferença em relação ao modelo clássico numa linha de um jornalismo mais
personalizado onde não está ausente uma certa ambiguidade nas relações:
consideram que o editorial vincula de certa forma a posição do jornal mas ao
não ser anónima vincula sobretudo a posição do director. Destacam que os editoriais
do Público como textos de intervenção
cívica mais vincada de todo o jornal,
tiveram características originais desde o início: a assinatura por um
elemento da direcção do jornal, então não comum e que não obriga a que o jornal
partilhe essa opinião; a recusa de um local fixo e a decisão de vir ao lado de
artigos informativos sobre um tema polémico de uma qualquer secção do jornal; a
decisão de não ser diário para combater a sua banalização.
O corpus deste trabalho foi composto por editoriais publicados entre
o início da intervenção da NATO, a 24 de Março e a primeira reunião do G8 (sete
países mais industrializados e Rússia), a 7 de Maio: 14 do El Pais e 6 do Público.
A análise comparativa dos conteúdos
dos editoriais processou-se em três eixos:
1. Integração do editorial dentro do
contexto do jornal e do respectivo país; apreciação da cobertura jornalística
oferecida por cada jornal sobre o acontecimento, pela inventariação das peças
publicadas, quantificação de textos de
opinião e - quando possível - apreciação da sua tonalidade, positiva ou negativa, face à intervenção da NATO
(Morin, 1961).
2. Análise semântica e pragmática
dos primeiros editoriais publicados por cada um dos jornais sobre os
acontecimentos do Kosovo (El ataque, a
25 de Março e Ir até ao fim, a 31
desse mês), por se considerar que esses textos constituiriam um lugar de
enquadramento e de compromisso relativamente aos editoriais seguintes, hipótese
que se procurou verificar.
3. Identificação e hierarquização de
tópicos, ou seja macro-proposições semânticas retiradas dos conteúdos de cada
parágrafo dos editoriais, realizada pela inventariação da sua frequência,
intensidade da sua presença e localização em lugares estratégicos como o início
ou o final do texto.
IV - Análise dos dados
4.1 - A cobertura dos jornais sobre o
acontecimento
Tomando como base as expectativas
criadas pela problemática coberta e a audiência, podemos considerar que os
contextos político-sociais em que operaram os dois jornais apresentaram
diferenças significativas. Se ambos os países pertencem à NATO, a sua
visibilidade apareceu diferenciada nesta situação. A Espanha tinha quadros
políticos no cenário das operações, como Javier Solana e Filipe Gonzalez, que
lhe conferiam algum protagonismo internacional e que poderão ter afectado a
opinião pública espanhola, mais favorável à intervenção que a opinião pública
portuguesa, que desde o início se apresentou como uma das mais negativas na
apreciação da operação[2].
Em ambos os jornais foi exaustiva a
cobertura jornalística do evento e nela tiveram particular relevo os artigos de
opinião (Quadro I).
Quadro I - Total de peças publicadas,
artigos de opinião, editoriais
Jor/cobertura |
Total |
Art. opin. |
Editorial |
El Pais |
578 |
76 |
13 |
Público |
471 |
99 |
6 |
No El Pais, foram contabilizadas 578 peças sobre a intervenção da NATO
nas Balcãs na listagem do site sobre o Kosovo, das quais 76 (13%) eram artigos
de opinião, número cinco vezes superior ao dos editoriais escritos sobre o tema
no mesmo período. Enquanto os artigos de opinião tiveram uma presença
praticamente diária nas páginas do jornal, a escolha do tema para editorial
ocorreu de forma concentrada, tendo 11 dos 13 editoriais sido publicados entre
os dias 5 e 18 de Abril. No mesmo período foram contabilizadas 471 peças nas
edições do Público, sendo 99 artigos
de opinião (21%): 27 textos de colunistas, 22 artigos de personalidades
externas, 32 cartas e e-mails de
leitores, 13 cartoons e 4 comentários de jornalistas - na sua maioria de pendor
crítico relativamente à operação da NATO -, para um conjunto de 6 editoriais
publicados sobre o assunto, igualmente com concentração nos primeiros dias de
Abril (3 editoriais publicados entre 1 e 5 de Abril), após o primeiro
editorial, de 31 de Março[3].
4.2 - Primeiros editoriais sobre o
acontecimento
El
Pais, 25 de Março - El
ataque
1. COMO
EN una tragedia griega en la que los
personajes tienen um único destino, la OTAN inició anoche un masivo ataque
contra unidades serbias con el objectivo de evitar una tragedia humanitaria en
Kosovo, una desestabilización política de toda la zona y, aunque tardíamente,
el contagio de esa lacra que se conoce como limpieza étnica. Milosevic, que
ayer se arropó en la bandera de la resistencia, no sólo ha rechazado un acuerdo
tras marear la perdiz durante más de un año, sino que en las últimas semanas,
aprovechando el proceso negociador, ha lanzado violentas acciones contra los
albanokozovares, en clara violación de los acuerdos del pasado 25 de octubre.
Este
longo lead inicia-se com a analogia com a tragédia grega que pressupõe o
conhecimento, pelos leitores, das regras deste género teatral. A
tragédia-ficção é evocada para justificar a operação da NATO no quadro de uma
tragédia real, sendo de salientar a nível simbólico a proximidade entre o
contexto geográfico da ocorrência - as Balcãs - e o berço do género dramático
na cultura ocidental, a antiga Grécia, como que sugerindo uma leitura da
fatalidade do destino da região. A este classicismo literário do início do
primeiro editorial opõe-se o uso de formas populares de referência a Milosevic,
personificado por expressões icónicas de desvalorização política sedimentadas
na cultura popular espanhola. O lead propõe um re-enquadramento do real à sua
audiência, que pressupõe culta pelos inúmeros pressupostos de conhecimento:
regras da tragédia grega, situação política na região e protagonistas,
conteúdos do acordo de 25 de Outubro.
2. A la OTAN le ampara, pues, una
legitimidad moral. Pero no se puede olvidar que
se trata de su primeira operación ofensiva contra um país soberano y que no
cuenta com la legitimidad legal que hubiera supuesto una resolución expresa del
Consejo de Seguridad de las Naciones Unidas. Entramos en un territorio
desconocido cuya salida es imposible de anticipar. Aunque sólo sea por falta de
antecedente.
Em ligação com o parágrafo anterior,
de que apresenta a conclusão, este parágrafo enuncia o primeiro dos dois
tópicos deste editorial: a natureza dissociada da legitimidade da operação
militar, entre uma legitimidade moral
presente e uma legitimidade legal ausente.
Os responsáveis políticos da NATO são indirectamente convocados como audiência,
através da personalização da instituição. Por seu lado, as consequências desta
situação sem antecedentes são apresentadas agregando um nós colectivo (entramos)
que posiciona o jornal e todos os seus leitores nesse lugar plural.
3. Por mucho
que se intente, no hay acción militar limpia. En la operación de la OTAN pueden
morir, además de militares profesionales de una u otra parte, muchos inocentes:
niños, mujeres, hombres e incluso soldados serbios que hubieran preferido no
estar allí. Si perdiese el sentido de la proporción, la OTAN podría minar la razón
moral que la ampara. Además, aunque estamos ante un caso concreto, podría
sentar precedentes para otros países que pretendam actuar por libre, entre
ellos los que bloquean el Consejo de Seguridad al tiempo que piden um debate:
China y Russia. Las relationes de la OTAN con Rusia, una arquitectura que en
buena parte se debe a la labor de Janier Solana, pueden salir dañadas de esta
operación. Pero si Rusia está irritada
com Occidente - cuya ayuda necesita -, también debe estarlo com Milosevic, que
le ha toreado una y otra vez. Por
último, el ataque podría tensar aún más la situación en Bosnia.
Os
responsáveis políticos e militares do Ocidente são interpelados indirectamente
com um argumento de experiência que nega a metáfora da limpeza das actuais acções militares. O discurso é racionalizante
mas não isento de iconicidade, traçando cenários de consequências que enfatizam
a fragilidade da legitimidade invocada, quer no terreno quer no plano da
complexidade das relações internacionais a nível do Conselho de Segurança da
ONU. Explicitam-se particularmente a complexidade das relações com a
Rússia pela metáfora da arquitectura e salienta-se de passagem o
protagonismo de um dirigente espanhol. Os dirigentes políticos russos são apresentados metonimicamente pelo país
(estratégia diversa da usada para com Milosevic), apresentado como sujeito cujos
sentimentos emocionais de irritação
para com Milosevic - sustentados por uma linguagem de novo popular - desqualificam a sua possível oposição à
intervenção militar ocidental.
4. En las
negociaciones de París, los albanokosovares habían renunciado, de modo
temporal, a la independencia, a favor de una autonomía dentro de Serbia, y
habián aceptado el desarme del Ejército de Liberación de Kosovo (ELK). El
rechazo de Milosevic a un despligue de fuerzas extranjeras de pacificación en
Kosovo y a cualquier fórmula de autonomía para la provincia echó por tierra
toda posibilidad diplomatica.
Prosseguem os argumentos de
enquadramento aqui sustentados num relato informativo com uma selecção
tendenciosa quanto à apresentação de posições em confronto nas conversações de
Paris[4]. Os
intervenientes são apresentados por contraste, entre as aberturas negociais dos
albanokosovares - sujeito colectivo - e
negatividade das posições de Milosevic, sujeito individual.
5.
El ataque, cuya primera fase lanzó ayer la OTAN, tiene varios fines:
quebrar la voluntad de Milosevic para que acepte el acuerdo de París, disminuir
su capacidad militar para lanzar nuevas represalias contra los albanokosovares,
o provocar una reacción de los militares o civiles serbios contra su presidencia.
La OTAN parece tener todo previsto, menos la possibilidad de que su estrategia
no dé resultados: que Milosevic se refuerce o que salga con una nueva finta. Entonces:
qué?
As finalidades da operação são
apresentadas de forma exaustiva, no primeiro período, mas, logo no início da operação da NATO, o jornal
alerta os responsáveis políticos e militares ocidentais para situações não
previstas decorrentes da resposta do outro,
interrogando-os de forma impositiva com uma pergunta directa.
6. La
credibilidad de la OTAN es importante para la estabilidad futura de Europa, que
no se puede permitir que los Balcanes vuelvan a convertirse en un brasero. Pero la
credibilidad no se agota en unos bombardeos. Si la estrategia no da resultados,
la OTAN ha de ser consciente de que su
situación volverá a cuestionar-se, esta vez em términos de responsabilidad.
O tópico da natureza dissociada da
legitimação, entre a moral e a legal,
está de novo subjacente, anunciando de forma indirecta às elites
dirigentes da operaçãoo os custos possíveis de uma ausência de resultados em
termos de opinião pública - expressa indirectamente - que lhe exigirão
responsabilidades políticas.
7. La
operación nos concierne, primero, porque tres aviones españoles participaron en
la operación y también porque un español, Javier Solana, ocupa hoy la
Secretaria general de la Alianza Atlántica. Por eso destaca doblemente que
ningún miembro del Gobierno haya comparecido en el Parlamento para explicar la
operación. La salud democrática exige, como ha ocurrido en otros países, un
debate parlamentario en profundidad o al menos una comparencia de Aznar ante la
ciudadanía. No basta una declaración a posteriori desde Berlín para anunciar
que el martes irá el Congreso. España no se implica todos los días en una
acción que si se denominase como lo que realmente es, de guerra, exigiría la
aprobación previa de las Cortes.
No parágrafo final, a crítica ao
silêncio do governo espanhol constitui-se como segundo tópico. Inicia-se com um
argumento de apelo a pressupostos comuns, neste caso de valores - evocação do
colectivo do país (nos concierne)
e dois factos relevantes (participação
de aviões espanhóis e liderança de um espanhol na organização envolvida) -,
prossegue com argumentos de ligação causal, acentuando duplamente o silêncio do
governo, e encerra-se com um fortíssimo argumento de autoridade do jornal
expressa pela competência de uma vigilância crítica aos dirigentes políticos
tanto mais forte quanto ao longo de todo o texto a palavra guerra foi constantemente substituída metonímica e eufemisticamente
por massivo ataque, operacion defensiva,
acción militar, bombardeos ou simplesmente operación ou ataque.
Duas audiências de élite estão assim
presentes no texto, os responsáveis políticos e militares da NATO e o governo
espanhol. A primeira é interpelada primeiro implicitamente e depois de forma
directa e afirmativa, apresentando-a como alvo de uma opinião pública implícita
como actuante. A segunda audiência interpelada, o governo espanhol, ocupa o
lugar final do editorial e é alvo de uma dura crítica pelo seu silêncio junto
da opinião pública espanhola onde o jornal se inclui.
Público, 31 de Março - Ir até ao fim
1. A vida de
Shpresa, ontem contada nestas páginas pelo repórter Paulo Moura, é apenas uma
entre centenas de milhares de outras. Talvez meio milhão. É uma vida
desapossada de tudo, uma vida violada pelas tensões étnicas, uma vida atirada
pelos soldados de um tirano para o desespero de uma fuga sem fim. A sua vida, a
sua história, é apenas um exemplo do horror indizível que se vive no Kosovo. Um
Kosovo aonde, por estes dias, regressou a lógica implacável da limpeza étnica,
os raides sangrentos de esquadrões da morte, o esforço determinado e
sistemático de um exército poderoso para espalhar o terror, incendiar aldeias,
expulsar aldeões, perseguir refugiados, executar os resistentes, destruir um
povo.
Publicado
uma semana após o início da intervenção da NATO, o primeiro editorial do
Público sobre o Kosovo recorre como enquadramento a um argumento de autoridade,
o testemunho do repórter no local dos acontecimentos que apresenta um retrato
humano. Há uma gradação retórica na organização do lead: o crescendo dramático
está presente nos números e na sua forma sintáctica: (uma [vida] entre centenas de
milhares. Talvez meio milhão.), na sobrelexicalização dos atributos que
qualificam essa vida (dessapossada,
violada, atirada para uma fuga sem fim) e se estendem ao Kosovo. A situação
é apresenta binariamente entre o drama dos refugiados albanokosovares e “os
outros” apresentados monoliticamente (soldados
de um tirano, esquadrão da morte, exército poderoso).
2. Por estes
dias, quem quer que tivesse dúvidas sobre a natureza do regime de Milosevic - e
não esteja de má fé - perdeu-as. Após os acontecimentos destes dias, tornou-se
ainda mais claro que o carniceiro de Belgrado não recua perante nada para
atingir os seus objectivos. E neste momento apenas temos uma imagem superficial
de um horror que pode vir a tomar as proporções de genocídio. Perante estes
acontecimentos, a responsabilidade da NATO e dos países que a integram aumenta.
Eles tornam claro que, por mais dúvidas que se tivesse sobre a estratégia
seguida pela organização, não é possível hesitar mais sobre o lado em que nos
devemos colocar - até porque é natural que venham aí tempos mais duros e um
maior envolvimento militar.
A
distância temporal (uma semana) em relação ao início da intervenção -
assinalada no presente de por estes dias -
e os acontecimentos narrados pelos jornalistas no local surgem como argumentos
determinantes do arquétipo da clarificação
de posições e da eliminação de possíveis reservas (dúvidas) em relação à operação, a menos que se esteja de má-fé, desqualificação da manutenção
dessas reservas. O autor enuncia-se como um elemento de um nós, numa
aproximação aos leitores (apenas temos
uma imagem superficial...). O “outro” é aqui nomeado de forma
particularmente icónica e negativa como carniceiro
de Belgrado.
3. Já exprimi algumas reservas
sobre a estratégia seguida pelos negociadores ocidentais em Rambouillet e sobre
as suas consequências, mas, uma vez desencadeada a guerra aérea, é necessário
que a NATO seja capaz de ir até ao fim. E ir até ao fim pode implicar uma
intervenção dos exércitos terrestres.
A
enunciação em primeira pessoa assume-se como argumento de autoridade: o autor
tem particular autoridade sobre a posição
de apoio à intervenção que agora toma por ter sido crítico no passado em
relação aos políticos ocidentais. A expressão ir até ao fim - repetida de forma redundante e que dá o título ao
editorial - permanece ambígua pela sua não especificação. Pressupõe-se que os
leitores tenham presentes a estratégia dos negociadores ocidentais em
Rambouillet e que conheçam os
objectivos enunciados da operação.
4. A hipótese
de, após a guerra aérea, enviar soldados para o terreno começou por ser
afastada pelos estados-maiores e é temida pelos políticos. Nos Estados Unidos
desenvolveu-se mesmo a doutrina de que estas guerras não devem ter mortos, o
que decorre do chamado síndroma do Vietname”: o receio de envolvimento num
conflito de desfecho incerto e de muitas baixas virarem a opinião pública
contra o Governo.
5. Ora, em situações como a que
agora vivemos, a guerra asséptica e sem baixas, levada a cabo por aviões
sofisticados e por pilotos “top-gun”, revela-se insuficiente. Até porque se
alguma coisa estes dias provaram foi a ineficácia desse tipo de acção para
barrar a acção dos grupos militares sérvios no Kosovo e pôr um fim à barbárie. Mais:
provaram que não se pode fazer a guerra pela metade, que, uma vez desencadeadas
as hostilidades, é necessário assumir as consequências. Pelo que, se alguém
pensou, ou planeou, uma guerra apenas aérea, esse alguém cometeu um terrível
erro de cálculo.
Nestes
dois parágrafos, o autor interpela agora os responsáveis políticos. Enquadrada
a leitura e as reservas por parte de dirigentes ocidentais (4), segue-se uma
avaliação profundamente reservada e negativa dessa postura, ainda que sob a
forma indefinida do pronome alguém
(5). Essa avaliação é feita por argumentos de autoridade baseados na
experiência, usando imagens metafóricas
(guerra pela metade, guerra asséptica) próximas das usadas pelo El Pais e que se tornarão
interpretativas da intervenção militar.
6. Paddy
Ashdown, líder do Partido Liberal Democrático da Grã-Bretanha, lembrava ontem,
num artigo publicado no diário espanhol “El Mundo”, as justificações que
Chamberlain, primeiro-ministro britânico da época, dava para não reagir no
momento em que a Alemanha hitleriana anexou a Checoslováquia. Tratar-se-ia “de
uma disputa num país longínquo entre gente de que não sabemos nada”. As
consequências dessa inacção são conhecidas - e era bom que certos erros não
voltassem a ser cometidos.
7. No Kosovo, o pior que podia acontecer seria, depois dos
bombardeamentos, Milosevic herdar uma terra de ninguém etnicamente limpa. Por
isso, no Kosovo o envolvimento ocidental só pode aumentar.
8. É bom que estejamos preparados
para isso.
Uma figura política é introduzida
como enquadramento de autoridade, citando-se a sua comparação histórica dos
acontecimentos actuais com atitudes de não-intervenção de responsáveis
políticos de então que antecederam a segunda guerra mundial (6). A
conclusão é introduzida de forma polida
(Blum-Kulka, 1997: 51) - era bom que...
- contrastante com a expressão semelhante mas mais imperativa usada no final - é bom que estejamos preparados para isso -,
na qual o autor se envolve, se dirige
directamente aos leitores e onde se implicita alguma resistência (8). A
recomendação final, curta e incisiva, apresenta assim elevado dramatismo.
O autor constrói-se neste texto como
uma figura nominal e de pertença a um grupo - o grupo dos que não se posicionam
acriticamente perante o poder político mas que na conjuntura escolhe deliberadamente
um dos lados do conflito, quer em nome da experiência histórica quer pelos
acontecimentos recentes, e está disposto a assumir as consequências mais
radicais dessa posição, criticando quem não as assume. Privilegia esse grupo
como seus interlocutores, ainda que contemple também os decisores políticos.
4.2 - A topicalização editorial nos
dois jornais
A inventariação dos tópicos dos
editoriais publicados até 7 de Maio permite observar semelhanças e diferenças
na forma como os editoriais comentaram estes acontecimentos e mostra como
muitos foram comuns a ambos os jornais. Assim, foram identificados 12 tópicos
no El Pais dos quais oito estiveram
presentes também no Público:
- Apresentação e comentários sobre condições políticas para negociar;
- Referências
ao passado, presente e futuro da Europa;
- Referências
críticas a acções da NATO;
- Legitimidades e objectivos da acção da NATO;
- Relações do
ocidente com a Rússia; envolvimento do país na operação;
- Referências
a críticas à intervenção da NATO;
- Iniciativas
de Milosevic e possível extensão do conflito;
- Siituação
dos refugiados; cimeira da NATO e novo conceito estratégico;
-
Divergências internas da NATO; consequências para a NATO em caso de falhanço da
operação
Os
tópicos foram hierarquizados tendo em conta a sua
frequência, intensidade e posição no texto, considerados o início e o final
destes textos como lugares especialmente marcados. Assim foram valorizados
respectivamente a presença do tópico no editorial, o número de parágrafos em que
surge, a sua referência no primeiro e no último parágrafo. Os resultados desta
hierarquização apresentam-se nos Quadros I e II, e acompanham o direccionamento
para as duas audiências que detectámos
na análise dos primeiros editoriais: a interpelação das élites políticas, no El Pais, e dos leitores do jornal, no Público.
Quadro I -
Topicalização temática no El Pais
Tópicos |
Nº de refª |
Freq. parag. |
No início |
No final |
Total |
Europa, passado e futuro |
9 |
20 |
3 |
2 |
34 |
Condições para negociar |
8 |
17 |
2 |
5 |
32 |
Refª críticas à NATO |
10 |
16 |
0 |
2 |
28 |
Obj. e legit. da intervenção |
7 |
11 |
3 |
2 |
23 |
Relações com Rússia |
4 |
12 |
1 |
2 |
19 |
Espanha na operação |
4 |
8 |
1 |
2 |
15 |
Refugiados |
3 |
7 |
3 |
1 |
14 |
Refº a críticas à operação |
4 |
7 |
0 |
1 |
12 |
Iniciativas de Milosevic |
4 |
5 |
1 |
1 |
11 |
Novo conceito da NATO |
1 |
6 |
1 |
0 |
8 |
Problemas internos NATO |
1 |
2 |
1 |
0 |
4 |
Consequências para NATO |
1 |
1 |
0 |
0 |
2 |
A situação da Europa, evocando-se momentos
e atitudes de dirigentes no passado recente como analogias à presente situação
(I e II Guerra Mundial, Guerra Civil espanhola), surge como o tópico mais
referenciado, em 9 editoriais. Este
tópico político-estratégico abre três editoriais e está presente em dois
finais, estando ainda contida no conteúdo de 20 parágrafos. Seguem-se de perto
dois outros tópicos direccionados para as élites decisoras. A indicação de condições para resolução da crise, em
segundo lugar, lidera no lugar estratégico da argumentação que é o final do
texto (cinco presenças), As observações
críticas ou de reserva relativas ao desenrolar da operação, em terceiro
lugar, que nunca abrem o texto, são apresentadas sobretudo no interior do texto
e de forma mitigada - erros (error de cálculo; indicación errónea;
trágicos errores, errores no pequenos...).
Os três tópicos seguintes enfatizam
essa orientação estratégica para a intervenção política, com a presença forte
de argumentos de apresentação dos objectivos
e natureza da legitimidade da operação da NATO (quarto lugar), a
necessidade de não ignorar nem marginalizar a Rússia (quinto lugar) -
evocando-se por analogia a humilhação alemã nos acordos de Versalhes, que se
pressupõe presente nos leitores - e a avaliação da postura do governo espanhol
(sexto lugar). O tópico das referências a críticas à operação aparece diluído
na oitava posição, sem particular destaque e atrás das referências aos dramas
dos refugiados.
Quadro II -
Topicalização editorial no Público
Tópicos |
Presença |
Freq. parag. |
No início |
No final |
Total |
Refº a críticas à operação |
5 |
20 |
0 |
4 |
29 |
Obj. e legit. da intervenção |
7 |
11 |
3 |
2 |
23 |
Refª críticas à NATO |
5 |
10 |
0 |
1 |
16 |
Condições para negociar |
2 |
7 |
2 |
1 |
12 |
Portugal na operação |
2 |
8 |
1 |
1 |
12 |
Europa, passado e futuro |
3 |
5 |
1 |
1 |
10 |
Refugiados |
2 |
2 |
1 |
0 |
5 |
Novo conceito NATO |
1 |
2 |
1 |
0 |
4 |
No Público e em continuidade com o tópico principal do seu primeiro
editorial, lideram as referências a
posições contrárias à operação, presentes em cinco dos sete editoriais
deste período, com uma frequência em parágrafos que quase duplica a do segundo
tópico e que é a mais presente no final do texto. As referências são feitas no
tom desvalorizante referido no primeiro editorial: má fé, lamentos, autoflagelação, [posições de] cínicos encartados, hipócritas consumados, entre outras
formulações de desqualificação. A alguma distância, o tópico sobre os objectivos e legitimidade da intervenção,
que pode ser lido em complementariedade com o anterior, faz aqui o pleno da
presença nos editoriais, abrindo três dos editoriais e encerrando dois. Sucedem-se
a razoável distância quanto à sua valorização, a interpelação a decisores
políticos: críticas às acções da NATO, sobretudo no interior do texto, quase
ausentes nos lugares mais marcados; cenários e condições para negocia;
interpelação crítica do governo português,
aqui com maior visibilidade nos lugares mais marcados das entradas e finais do
texto. A dimensão europeia, que liderava no El
Pais, surge aqui apenas em sexta posição e o governo russo está ausente
como parceiro político. Confirma-se assim a orientação mais interna para os
leitores do jornal identificada no primeiro editorial.
5. Conclusões
Será
importante integrar a presença dos editoriais no contexto dos próprios jornais
e da maneira como cobriram estes acontecimentos. Em ambos os jornais, como
referimos, pudemos ler grande quantidade e diversidade de opiniões críticas
expressas em artigos de opinião, que ofereceram riqueza argumentativa com
posições divergentes, provenientes de vozes externas, bem como reportagens e crónicas
de enviados especiais aos locais da intervenção e que mostraram também o outro lado da guerra, as vítimas do lado sérvio, que deram voz a
posições divergentes. Os leitores destes jornais tiveram assim acesso a uma
pluralidade de argumentos e de perspectivas, a uma apreciação multifacetada da
problemática que frequentemente levantou mais questões do que deu respostas.
Numa perspectiva de análise
jornalística comparada, será de referir como dois jornais relativamente
próximos quanto à sua génese, filosofia de informação e áreas de intervenção
apresentaram nos seus editoriais estratégias e orientações pragmáticas
diferenciadas. A situação específica analisada e a própria escassez do corpus
não permite extrapolações, pelo que referimos apenas que no contexto deste
evento, o jornal espanhol privilegiou o espaço editorial com uma orientação
para um público-alvo de élite e decisão, enquanto o jornal português o terá
orientado para o público dos seus leitores comuns. Factores como a intervenção
dos dois jornais nas respectivas sociedades,
a própria dimensão da recepção - em escalas muito diferentes - ou a
cultura jornalística que postulam quanto ao género editorial - sua função e relação pragmática com os
leitores - evidenciaram-se nestas diferenças.
Os primeiros editoriais publicados
em cada jornal evidenciaram o seu lugar de enquadramento em relação aos
seguintes. Como género editorial, os textos do El Pais enquadram-se na perspectiva clássica de texto de autoridade comentando acontecimentos recentes,
dirigindo-se particularmente a élites decisoras num discurso de vigilância e de
aconselhamento, definindo margens sociais de intervenção e de consenso
políticos. Parco nas referências a vozes externas críticas, talvez porque num
registo de superioridade, desqualifica-as política e moralmente ou utiliza-as
como argumento de enquadramento para interpelações a responsáveis políticos.
Os editoriais do Público rompem com o classicismo do
género, pela afirmação da voz pessoal do seu director, reiterada pelo recurso à
primeira pessoa. Elementos do contexto de produção e de recepção poderão ter
afectado a intensidade da manifestação dos tópicos com que comentou a
intervenção da NATO. Os editoriais sobre os acontecimentos do Kosovo ficaram
marcados pela posições de legitimação contra
corrente comparativamente ao tom crítico da maioria dos artigos de opinião
dos colunistas do jornal, de figuras
públicas e leitores. A construção negociada de um nós que constituisse um vínculo entre as posições do director do
jornal e os seus leitores fez-se acompanhar pela desvalorização de vozes
críticas.
Encontramos contudo também semelhanças
entre o tom editorial do El Pais e do
Público particularmente a nível da
postura ideológica e linguagem. Em ambos os editoriais foi subscrito o consenso
político das élites dirigentes ocidentais sobre o direito de ingerência num
país soberano à margem do quadro das Nações Unidas. Alinharam com argumentos de
ordem moral ou mesmo civilizacional na interpretação de um conflito, como se,
como comenta Ignacio Ramonet (1999), a
história, a cultura e a política se tivessem tornado subitamente obsoletas. Sustentaram
a desqualificação das posições de outros
por atributos emotivo-morais,
exacerbando dimensões negativas e transpondo responsabilidades de
políticos para um povo diabolizado. A sobrelexicalização da desqualificação
personalizada do outro foi feita por
contraste com a economia verbal na descrição do nós, numa retórica de oposição entre uma linguagem elaborada,
morfologicamente complexa e de cultura erudita aplicada a um dos lados, o da
pertença, e uma linguagem redutora tocando o brejeiro da cultura popular, usada
para o outro lado. O recurso a metáforas simplificadoras e a
imagens de slogan caracterizaram
representações do evento no espaço consensualmente reconhecido como de maior
implicação do jornal.
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Livros
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El
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Ediciones El Pais, 1994 (10ª ed)
Livro
de Estilo do Público. Lisboa: Edições Público, 1998;
http://www.publico.pt/nos/livro_estilo
[1] Note-se ainda que em 1996 Portugal apresentava um dos
mais baixos valores europeus de leitura de jornais: 47 jornais para cada 1000
habitantes, enquanto em Espanha esse valor era de 104 jornais, situação que não
se terá alterado significativamente (World Statistics Pocketbook, ONU, 1997).
[2] Uma sondagem à população publicada a 1 de Abril pelo Público e que mereceu manchete de
primeira página dava conta da oposição à guerra de dois terços dos inquiridos,
sendo as respostas negativas maioritariamente de sectores mais velhos (mais de
35 anos) e femininos. Outro indicador, um inquérito dirigido aos leitores on-line do jornal, desde o início das
operações até 4 de Maio, apresentava igualmente a oposição ao ataque da
NATOcomo dominante, em 58,9% das respostas.
[3] Não se pode comparar quantitativamente estes valores, já
que foram recolhidos por processos diferentes, estando excluídos no El Pais cartoons e cartas de leitores, e
sendo os artigos deste jornal de menor dimensão e mais “desdobrados” do que no Público.
[4] Para uma visão mais completa das exigências desta
cimeira, veja-se por exemplo o artigo de Paul Marie de la Gorge, Négociations en trompe-d óeil (Le Monde Diplomatique, Junho 1999, 4).