I. A história humana é, desde tempos longínquos e em quase todas as civilizações, um desfilar ininterrupto e continuamente renovado de ícones e idolos, figuras às quais a sociedade reservou um espaço e um poder simbólicos e alegóricos capazes de sintetizar ideias e anseios que, fora dessas imagens idealizadas, dificilmente conseguiriam convocar uma tão elevada capacidade de persuasão, modelização e conceptualização.
Essas imagens, singularmente expressivas, serviam (e servem), desse modo, propósitos bastante claros: através desses repertórios figurativos, desse arquivo vivo de mitos e heróis, de seres excluídos ou saturados da fraqueza (física ou moral) comum, as múltiplas sociedades sempre foram capazes de sedimentar e referenciar uma ideia dos seus próprios valores e anseios, criando uma imagem própria estabilizadora (em reflexo), solidificando e clarificando a fundamentação da sua existência e da sua estrutura ética.
Sobre a praxis social pairam, em todas as épocas e nas mais amplas coordenadas civilizacionais, os exemplos (com todo o seu manancial de significados e usos) de seres heróicos e bestiais (emanações e expressões do Bem e do Mal, das permissões e interdições) que constituem uma espécie de memória ética primordial, dispositivos visuais e conceptuais apaziguadores, temerários, proibitivos ou salvíficos.
Individual ou colectivamente procedeu-se, desde sempre, a uma espécie de identificação subjectiva (por vezes emanação e consequência de rígidas normas de conduta impostas a partir de instituições reguladoras) entre uma imagem e as finalidades que lhe são inerentes — tal é o processo de mitificação que quase sempre é (e, sobretudo, era-o no passado, num tempo de insuficiência crítica e maior rigidez dos quadros mentais) também um modo de mistificação.
No contexto da sociedade de massas, de uma cultura tendencialmente planetária e cujo poder de sedução e persuasão são enormes, esse processo não só parece ter sido objecto de um retorno estrutural natural como de uma intensificação e diversificação incomensuráveis. Os exemplos existem nas suas mais diversas formas, com uma proveniência ontológica e material de diversa ordem, pois em todas as artes e formas de expressão é possível vislumbrar um desejo (ou uma necessidade, mercantil ou cultural) de, por um lado, criar e assinalar novos seres (entidades, signos) ainda pertencentes à ordem das coisas humanas mas já habitantes desse limiar entre a humanidade e o endeusamento (as estrelas, ídolos e vedetas que compõem as diversas parcelas do "star system"), e, por outro, imaginar seres completamente excluídos da ordem do humano, meramente ficcionais, mas delineados em função dos valores morais e requisitos narrativos mais diversos (as personagens arquetípicas e os super-heróis, duas categorias que em muitos aspectos se recobrem).
II. Os super-heróis, objecto principal deste pequeno estudo, e em particular aquela que é a sua figura de mais amplas ressonâncias míticas, o Super Homem, estão à cabeça desse processo de reactualização e remitificação ocorrido: os seus atributos morais, a sua fisionomia e a sua nomenclatura são em muito coincidentes com esses seres que habitam os primórdios da memória da cultura ocidental (e de outras culturas), quando não recuperam (reavivam) mesmo muitas das suas características num processo de inspiração directa que é prolificamente exemplificado nas diversas criações/criaturas que este século viu surgir no campo dos comics.
Em grande parte essa multiplicidade de criaturas míticas (por caracterização narrativa e por atributo público) deve-se ao facto de a sociedade de massas que caracteriza este final de milénio, e a divulgação de ideias e valores culturais que leva a cabo, obedecer a uma estrutura intrínseca assente na produção e no consumo acelerados de bens: a relação entre a oferta e a procura tem de ver os seus requisitos continuamente satisfeitos, o que leva a que as próprias narrativas sejam fortemente condicionadas por essa determinante económica — qualquer herói que consiga atingir um razoável grau de popularidade no contexto da indústria dos comics é objecto do lançamento de revistas semanais, o que obriga a que, frequentemente e perante a necessidade de haver uma variação considerável de enredos (ainda que essa variação não seja, na maior parte dos casos, mais que uma aparência), sejam inventados novos personagens, complexificadas as relações entre as entidades existentes ou reinventadas (e recontadas) histórias e factos.
Mas o que é um super herói, a que necessidades responde? Antes de mais ele é uma ficção ideal, súmula dos atributos mais elevados e dos poderes mais intangíveis que o comum cidadão nunca irá possuir. É um ser capaz, seja pelas suas invulgares capacidades intelectuais, pelas suas imbatíveis faculdades físicas, pelos poderes de origem sobrenatural ou pelas suas virtudes mais elevadas (bondade, coragem, compaixão), de superar obstáculos aparentemente inultrapassáveis ou perigos supostamente irremediáveis, restituindo a ordem, exterminando medos e reorganizando o caos.
Na esmagadora maioria das vezes é também um personagem galante, belo, humilde e bom. E, sobretudo, deve possuir uma disponibilidade total: em qualquer situação, por mais imprevisível ou aflitiva que seja, ele deve estar apto a dar uma resposta, aprestar auxílio, a ser um salvador ubíquo. Também por isso (porque é generoso e solidário) ele está sempre do lado dos fracos, da ordem e da segurança, é um agente do bem social, valor com o qual se compromete sem desvio. Ao mesmo tempo cumpre um papel quase divino de protecção, tarefa semelhante à desempenhada pelo soberano (e nesta categoria inclui-se tanto o monarca como o Estado), ou aos compromissos com que a mafia se impõe na sociedade (com outros objectivos, mas obedecendo a uma mesma lógica de protecção versus obediência), ou ainda ao papel que, a um nível mais quotidiano, a polícia empreende — da qual, e das forças de defesa e segurança em geral , é um substituto, ou melhor, um complemento para a ineficácia que elas demonstram. Por isso ele é um objecto de adoração, identificação e culto quase religioso, no interior da narrativas mas também pelos leitores, apto a eliminar os males do mundo e reconduzir a humanidade aos trilhos da paz, e de denegar todos os presságios de destruição — por vezes à custa da incredulidade dos seus feitos e à força da sua suposta imortalidade, ou seja, da vida que está sempre disposto a dar, porque, no fundo, todos o sabemos, ele não a pode perder.
O Super Homem, o expoente máximo de um vasto universo de seres super poderosos, obedece a todos estes critérios. E como Batman, por exemplo, talvez o seu mais directo rival em termos de popularidade, trata-se de um personagem duplo: sob a capa do "homem de aço" esconde-se um alter-ego, um reflexo em negativo que serve uma função narrativa bem específica: aproximar o herói do comum cidadão, dar-lhe uma credibilidade sem a qual seria difícil ao leitor ou ao espectador vulgar fazer a ponte entre a realidade e a ficção, entre o reino da aventura, das forças míticas e milagrosas e o quotidiano de fraquezas e incertezas. Por isso, Clark Kent é tímido, desajeitado, medroso; ou Bruce Wayne, a verdadeira identidade de Batman, é um ser traumatizado, infeliz e, episodicamente, incapaz de se entregar ao seu verdadeiro "eu" (mesmo não se sabendo qual deles é na realidade).
III. Se é certo que a história está repleta de figuras míticas, como já foi dito anteriormente, é importante notar, como o faz Umberto Eco, que existe uma diferença fundamental entre os super heróis e as figuras que constituíram o imaginário de outras eras: se estas eram seres cuja história já aconteceu, cuja imagem e natureza permanecem, por norma, imutáveis para toda a eternidade, e cuja narração não excede os parâmetros de um percurso já ocorrido que basta reavivar, os heróis da banda desenhada são um produto da civilização do romance, uma época e uma concepção narrativa cujos valores fundamentais são a imprevisibilidade dos acontecimentos descritos. A acção é a partir daí enquadrada num enredo e cria-se a categoria do suspense, tanto mais necessária quanto se sabe que o espectador moderno tem horror da monotonia e da tautologia narrativas. Deste modo, o engenho dos argumentistas e o inesperado dos enredos substituem as categorias tradicionais da récita, do conto e da indecidível — porque o ethos do narrador é sempre um modo de recriar — mas fundamental fidelidade.
A personagem da banda desenhada permanece, apesar desse devir incalculável, um arquétipo, uma entidade com a qual é possível uma identificação permanente, um ser de contornos mais ou menos precisos, com um valor fundador. O que não invalida, contudo, que haja uma redifinição frequente e um reajustamento assíduo das características da personagem, sobretudo em função dos anseios do público que, naturalmente, são uma consequência das mutações culturais, políticas e estéticas que se operam ao nível da sociedade em geral (é conhecido o peso da opinião directa dos leitores, para além das indicações estatísticas, dada através de cartas, sobre o destino de histórias e heróis). Daí que os temas abordados (crime, guerra, injustiças sociais, terrorismo, manipulação técnica, científica e informativa, entre outros), os modos de agir e as armas utilizadas, os inimigos e a caracterização das suas ameaças (e do potencial destrutivo destas), ou a própria indumentária, sejam objecto de uma acção constante de rejuvenescimento ou reciclagem. O Super Homem pode ser imortal (ainda que uma morte temporária obrigada por um decréscimo de popularidade, ou seja, por uma estratégia económica da DC Comics, empresa proprietária dos direitos da personagem, tenha ocorrido) mas as pequenas alterações a que é submetido provam que não é imutável. Desde que surgiu, em 1937, a obediência ao gosto popular levou à criação de quase um Super Homem diferente por década.
IV. Sendo os super heróis seres posicionados fora da comum realidade, entidades policiárias quase fantasmáticas, é natural que, por norma, as suas origens sejam objecto de uma mistificação não só útil quanto indispensável; o estado de orfandade é um sintoma recorrente disso mesmo: Super Homem é oriundo do Planeta Cripton, o seu verdadeiro nome é Kal-L, filho de um cientista daquele planeta imaginário que o enviou em criança para a Terra para o salvar dos catastróficos terramotos que faziam perigar a existência no seu lugar de origem; Batman (Bruce Wayne) é um órfão criado pelo mordomo, aos cuidados do qual vai proceder ao aperfeiçoamento intelectual e ao desenvolvimento das suas aptidões através das artes marciais e do estudo em colégios de grande renome, depois de os pais terem sido assassinados por um criminoso de rua. Os X-Men, uma equipa de mutantes poderosíssimos (alguns deles tendencialmente criminosos no início) são seres com capacidades inatas invulgares depuradas no Instituto do Professor Xavier, um patrono imensamente respeitado. Mas, dos heróis mais conhecidos, talvez aquele cujas origens e intenções são mais ambíguas seja Spawn, uma personagem relativamente recente (anos 90), criada por Todd MacFarlane, um agente governamental morto em acção e cujos poderes lhe são dados pelo próprio Diabo aquando da sua viagem ao Purgatório em troca do regresso à Terra.
Esse momento primordial e absoluto de perda que os separa da normalidade, quebrando os laços com um quotidiano profano para os sacralizar, é usualmente o elemento que faz despoletar a ideia de missão comum a muitos dos heróis, ou seja, génese da vontade de pôr os poderes e toda a energia ao serviço da Humanidade e do Bem. Vingança, crença, missão e idealismo são tópicos comuns ao seu modus operandi.
Se as origens biológicas dos super heróis são frequentemente de natureza invulgar e mesmo algo desvalorizadas em termos narrativos (as origens de Super Homem só alguns anos depois do seu surgimento foram reveladas e foram por várias vezes alteradas ao longo da existência do personagem), as origens dos seus poderes são ainda mais enigmáticas e extra-naturais. Não é raro esses poderes provirem de um limbo entre a Natureza e a Cultura, entre a Magia e a Tecnologia — o espaço de abertura a todas as especulações e delírios, à adulteração e desafio das leis da física e do senso comum. O Super Homem, por exemplo, apesar das variadas explicações adiantadas para os seus poderes invencíveis (a simples proveniência de Kripton, "planeta distante habitado por seres extremamente evoluídos, o pico mais elevado do desenvolvimento da raça humana, a perfeição", numa das versões, ou a exposição aos raios solares, a diferença de gravidade entre a Terra e o seu planeta de origem, noutras) é um ser que adquiriu as suas faculdades fora das leis da natureza, quase de uma forma milagrosa, numa mistura tão frequente na banda desenhada entre religiosidade e secularismo. Dare Devil, por seu lado, é um homem cego que foi capaz de desenvolver os outros sentidos a um ponto tão extremo que consegue orientar-se em grandes metrópoles e combater inimigos com um domínio que a sua deficiência parecia vedar-lhe (um dos exemplos mais prementes e, de certa forma, lírico de como a adversidade se torna um trunfo). O Homem Aranha é o produto de um cruzamento com um aracnídeo, o qual mimetiza quer no seu modo de locomoção quer ao nível da utilização dos instintos, que funcionam como uma espécie de alarme contra o perigo. Batman adoptou uma entidade em parte humana em parte animal, move-se nas trevas de Gotham como os morcegos que emulou, e socorre-se da mais alta tecnologia para derrotar os seus inimigos, desenvolvida, à semelhança do que as espécies animais fazem, através dos processos de evolução natural: novas capacidades para melhor se adaptar e solucionar obstáculos de complexidade crescente.
V. O resultado destas metamorfoses só podia ser naturalmente a génese de entidades capazes de enfrentar os mais temíveis desafios (catástrofes, exércitos, bestas ferozes, bombas e todo um alargado conjunto de ameaças) sem sucumbir. Daí que, por exemplo, o Super Homem só possa ser enfraquecido e vulgarizado pela kryptonite (mineral proveniente do seu planeta de origem, ou seja, alienígena) e só uma criatura sem vida, vinda das profundezas telúricas e denominada Apocalipse, possuidora de uma potência destruidora incomparável, o possa ter subjugado e derrotado, matando-o, ainda que apenas temporariamente — ressurreição que se obedece antes de tudo a uma lógica mercantil, é sintoma também do ténue limiar que separa estes seres das figuras divinas, tomando aqui Cristo como elemento comparativo.
Por vezes, essa enormidade de poderes constitui um problema narrativo pois enfraquece a tensão dos conflitos inventados (ainda que seja um válido índice do sonho que a humanidade desde sempre acalentou de conquistar a omnipotência e atingir a imortalidade): ao longo da sua história, por mais que uma vez, foram "retirados" poderes ao Super Homem, de modo a torná-lo uma personagem mais interessante e crível, e a equilibrar o seu poder com o dos seus inimigos. Isto porque, todos o sabemos, só existe verdadeiro êxtase numa batalha travada por partes de potência extremamente equiparada.
Aspecto sem dúvida relevante e incontestavelmente constitutivo do universo dos comics, tanto enquanto cenário de inesgotáveis possibilidades estéticas como enquanto necessidade resultante do contexto histórico em que surgem os super heróis, é o facto de todos estes personagens serem habitantes de grandes metrópoles (aliás, é sintomático o facto de a cidade onde o Super Homem vive se chamar precisamente Metropolis); a sua acção desenvolve-se no espaço difuso e carente de uma cartografia social exacta (só assim podia ser, pois o perigo deve poder dissimular-se por detrás das paredes de um arranha-céus, nos seus subterrâneos ou nos mais insuspeitos recantos, exponenciando a ideia de ameaça iminente e imprevisível, ou seja, de desconhecido e mistério indispensáveis a uma boa aventura), onde, do interior da mole humana de seres anónimos podem, a qualquer momento e aparentemente sem explicação, emergir as figuras letais (os vilões, rivais tão arquetípicos quanto os heróis a que se opõem), de poder (quase) tão volumoso quanto o dos vigilantes da cidade (e por vezes do mundo). O crime urbano e a delinquência social são um dos alvos fundamentais do combate empreendido pelos super protectores e uma das mais ferozes ameaças à tranquilidade e à paz citadina quotidiana. Esta ferocidade irredutível dos inimigos obriga a uma escalada crescente nos patamares de confronto, e não é raro que um conjunto (nunca mensurável) de vítimas inocentes sucumbam como inevitabilidade da batalha entre titãs, à qual se sucede tantas vezes um cenário de destruição perturbante.
VI. È pertinente notar ainda que, nos últimos anos, facto que pode ser muito linear e irrefutavelmente lido como reflexo do predomínio da tecnologia em todo o tecido social (das armas convencionais ao armamento químico e biológico, da política à informação, do trabalho ao entretenimento), são elucidativos e múltiplos os exemplos de heróis e vilões cuja existência tem origem na robótica e na cibernética, pondo ao serviço do Bem e do Mal as conquistas do saber e da ciência (pesadelo ético que acompanha a reflexão sobre o destino da Humanidade e o uso da técnica talvez desde a sua génese, e com especial preponderância neste século de terrores apocalípticos insanáveis).
Pode ler-se também esta viragem para a técnica enquanto novo motivo dramático como o sinal de um esgotamento: os elementos da natureza (o ar, a terra, o fogo, o vento que tantas vezes forneceram nomes e atributos a diversos heróis: Ice Man, Swamp Thing, Iron Man, Fire, Storm, etc.), as virtudes clássicas, a magia, a mitologia e a religião (Angel, Dare Devil, Cyclops, Beast, Phoenix, etc.) parecem já não ser um arquivo suficiente de ideias para um público que se habituou, através dos media, a conviver com a iminência de uma destruição global já não atribuída exclusivamente aos desígnios e à potência divina ou às imponderáveis forças da natureza, mas que sabe que a Humanidade se encontra, sobretudo, num estado de vulnarabilidade perante si própria. Deste modo, pode inferir-se, numa outra perspectiva, que o Homem se colocou perante uma problemática civilizacional e ontológica capaz de suscitar as mais amplas discussões antropológicas e filosóficas: ele sabe agora que o seu maior inimigo está no seu meio, no interior de uma comunidade de iguais que no limite é, sobretudo, uma comunidade de rivais. Esse predomínio, benéfico e ameaçador, da técnica no tecido social é o resultado de um processo que parece encaminhar-se para as suas consequências últimas e que não mais fez que excluir o homem do domínio da natureza, remetendo para um nível ínfimo, ainda que nunca irradiado, a sua dimensão biológica.
Esse esgotamento tem ainda uma outra explicação: percorridas que foram todas as escalas de perigos e guerras, e enunciados os mais abrangentes inimigos (monstros, catástrofes, meteoritos, criminosos, corruptos e corruptores, andróides, aliens, ladrões, ditadores, etc.), distendidos entre a dimensão galáctica e a mais íntima familiaridade, entre o nível planetário e o perímetro urbano, oscilando entre a ameaça do sobrenatural e a tensão ética da vontade política, as narrativas redentoras ou iniciáticas vêem-se obrigadas a vislumbrar novas esferas de confronto e adversidade.
VII. Retomando a análise que Umberto Eco levou a cabo sobre o mito do Super Homem, não deixa de ser determinante para se compreender a sua longevidade enunciar o paradoxo narrativo em que se desenvolve a sua acção: por um lado, ao agir, os super heróis, dirigem-se inexoravelmente para a morte, actualizam a sua finitude, numa coincidência inevitável com o ciclo da existência; mas, por outro lado, eles não podem consumir-se, submeter-se à lei da obsolescência ou da velhice, porque são mitos e enquanto tal, por intrínseca natureza, imortais, incorruptíveis.
Como solucionar esta contingência? É necessário retirar os heróis do plano da sucessividade temporal, da linearidade incontornável do ciclo que vai do nascimento até à morte e colocá-los numa estrutura espacio-temporal mais indefinida e permutável. Desse modo eles passam a actuar num espaço onírico, espaço onde as narrativas se podem interligar e até mesmo eliminar mutuamente, avançar anos, séculos, milénios, recuar para tempos imemoriais e autenticamente oníricos (os poderes do Super homem, por exemplo, permitem-lhe ultrapassar a velocidade da luz e viajar para outras dimensões, o que lhe dá a possibilidade de conhecer a origem da kryptonite e a sua própria origem), mover histórias para espaços ancestrais ou futuristas mas, estranha e delirantemente, contíguos à realidade. Não são também, de todo, inéditos os exemplos de mecanismos — autênticas máquinas do tempo — que permitem a passagem entre universos paralelos vários, cruzando histórias e heróis (este cruzamento de entidades surgidas em contextos separados constitui mesmo um dos mais prolíferos géneros dentro dos comics nos últimos anos), numa similaridade nítida com a ficção científica, cuja influência tem sido decisiva e notória.
Há também um interessante trabalho sobre as narrativas que permite que episódios já acontecidos sejam recontados sob novos ou diversos pontos de vista, que se proceda à criação de histórias meramente imaginadas ou até sonhadas pelos protagonistas, que sejam reexplicados certos acontecimentos ou que outros, aparentemente distantes e indiferentes, sejam explicados quando nada o fazia prever, que situações hipotéticas ganhem foros de realidade, criando novas acções que se vêm entroncar e expandir a linearidade da vida dos heróis. Ou seja, todo um conjunto de dispositivos retóricos e estilísticos que permitem a multiplicação das coordenadas espacio-temporais, tão necessárias a uma indústria que não pode esgotar a marca da novidade dos seus produtos sob risco de desaparecer. Mas se as histórias deambulam pelas mais díspares cronologias e geografias, e isto é um requisito óbvio de racionalidade narrativa e de inteligibilidade, não deixam nunca de se ancorar num presente sólido e inesgotável. Este desnível espacio-temporal não tem nada de novo, pois já nos mitos antigos de diversas proveniências, a origem do ser fundador se situava num tempo sem demarcação cronológica e sem geografia assinalável.
Ora, o que acontece na realidade sob esta aparência de multiplicidade e distinção? As histórias de banda desenhada, como em todos os campos da sociedade de massas, são, maioritariamente, um compêndio de lugares comuns: esquematicamente, os enredos, a caracterização de personagens e descrição de circunstâncias repetem-se, tornando de algum modo a narrativa num jogo, num entretenimento, sustentado por uma estrutura fixa que deve ser preenchida; à semelhança do próprio jogo, mantêm-se os elementos (regras, tácticas, acções, funções) como uma potência que deve ser actualizada a cada nova partida. Trata-se de uma articulação, de um saber, que põe em confronto e complementaridade a redundância nada ingénua e dissimulada (instrumento de trabalho dos criadores) e a infinidade de detalhes variáveis com que aqueles criadores realimenatam o espírito dos leitores e dos espectadores. Obras de génio sem dúvida que existem. Mas não só constituem a excepção, como é possível determinar a sua génese no interior desse quadro de lugares comuns, os quais são reinventados e reclassificados.
VIII. O leitor é, por norma, preguiçoso, previsível, mas não ingénuo. Há dois níveis que asseguram o seu conforto e a sua necessidade de segurança e de imprevisibilidade expectáveis, situados ao nível das relações afectivas estabelecidas pelas personagens no interior da narrativa: por um lado temos o exemplo do protegido, ou do iniciado, presumível futuro herói, mas sobretudo ajudante e, ainda mais, empecilho (é ele que salva, frequentemente, o herói de um destino praticamente fatal de aniquilação, no último instante, quando já nada o parecia poder resgatar da certeza da morte, mas é ele também que, por ímpeto, inexperiência ou excessivo voluntarismo, coloca em risco toda a missão). Uma figura exemplar deste género de personagens é Robin, companheiro de Batman.
De certa forma com uma função narrativa semelhante encontramos, invariavelmente, a presença de um ser feminino esbelto, mais ou menos emancipado, a femme fatal que cruza o destino do herói, de forma intensamente erótica mas nunca plenamente consumada e, muitas vezes, apenas de modo efémero. Ela é primeiro fugidia e impertinente, depois cooperante e terna, e finalmente despojada perante o encanto do herói — reminiscências do cavalheirismo que tem alimentado a história da afectividade romântica ocidental. Esta figura constitui, naturalmente, ao mesmo tempo, um reservatório de sentimento amoroso e luxúria que o grande público não dispensa. Ela é também, tal como o protegido, um dispensário de apoio moral, um factor anímico imprescindível e, evidentemente, causa dos mais indesejáveis perigos.
O conjunto destas três personagens (herói, amada, protegido) recria, desse modo, o núcleo familiar e afectivo normal, enaltecendo a amizade, a paternidade e a pulsão sexual (ainda que sublimada), exemplarmente unido na adversidade. Deste modo, é fácil ao público estabelecer laços empáticos com o contexto e o sentido da acção, de forma ainda mais pertinente e inevitável quanto se reconhece que a vida comum do espectador parece não se afastar muito de um estado de crise constante estruturalmente similar, com os seus obstáculos a transpor. Este cenário de crise serviu, aliás, de conjuntura histórica e facto impulsionador do surgimento da figura quase messiânica (outro dos atributos mais fortemente vincados na caracterização destas personagens e mesmo na mensagem deste tipo de narrativas, quantas vezes épicas e sempre hiperbólicas) do super herói.