A NOVA ERA DO RÁDIO: O
DISCURSO DO RADIOJORNALISMO ENQUANTO PRODUTO INTELECTUAL ELETRÔNICO
Eduardo Meditsch,
Professor da UFSC
1997
Oralidade Virtual e
Cultura Letrada
Em
países semi-periféricos do mundo ocidental, como no caso do Brasil, parcelas
significativas da população têm passado da pré-modernidade à pós-modernidade
sem que tenham transitado pela modernidade tal como foi vivida nos centros
hegemônicos europeus ou anglo-saxões. Milhares de camponeses analfabetos, que
há uma década não conheciam a eletricidade, hoje consomem rádio, TV e
vídeo-filmes e inscrevem seus filhos em cursos de computação.
Num
contexto de tal complexibilidade é grande a dificuldade de isolar e distinguir
uma oralidade primária que possa ter sobrevivido de formas combinadas com a
tradição escrita e as técnicas mais recentes de registro da linguagem e do
pensamento, desenvolvidas pela eletrônica.
A partir de Adorno, Horkheimer e Benjamin, para quem o olho representava
a forma da sensibilidade moderna enquanto o ouvido representava a arcaica,
OLIVEN (1993:63) observa que "há uma tendência de considerar a oralidade
como se fosse uma sobrevivência cultural que nos foi legada pelos primórdios da
humanidade e a ser superada com o progresso da ciência e principalmente com a
universalização da alfabetização."
Refletindo a cultura em
que estão imersos, intelectuais de formação erudita, e até mesmo jornalistas
formados nos meios impressos desprezam o rádio (e a TV) como veículos a priori incompatíveis com o pensamento
autêntico. Em parte, este preconceito parece ter prevalecido nas concepções
sobre o potencial do rádio como meio de comunicação: concebido como veículo de
comunicação ideal para alcançar os analfabetos, e tendo a sua morte
repetidamente anunciada (como participante do mesmo atraso identificado na
oralidade de seu presumido público), ele, no entanto, sobrevive e,
surpreendentemente, representa hoje um meio de informação preferencial para os
setores mais letrados da população (SCHULBERG, 1989).
Esta
evolução, no sentido inverso do esperado, coloca em questão a qualificação
vigente no senso comum, e mesmo nos meios profissional e acadêmico, que
posicionam o rádio como um meio de expressão identificado com a oralidade. A
hipótese colocada por este trabalho é de que essa oralidade é virtual,
aparente, e só se realiza num processo de produção estruturado com base na
escrita e em formas de registro eletrônico.
O fato
do rádio aparentar uma oralidade dificulta a sua diferenciação desta forma
cronologicamente anterior de expressão pela simples observação de seu discurso.
A estratégia pedagógica vigente na maior parte dos cursos de rádio em escolas
de jornalismo, que procura enfatizar esta aparência de oralidade como diferença
da linguagem do veículo em relação à escrita, embora justificada por uma
hegemonia dos conceitos do jornalismo impresso observável nestes cursos, acaba
por contribuir para esta dificuldade de distinção. O discurso da rádio e o
discurso oral têm muitas semelhanças e pontos de contato. As diferenças entre
os dois discursos não são evidentes ao observador desatento e teoricamente
desarmado.
O
rádio e as tecnologias intelectuais
A questão das tecnologias
intelectuais tem sido ressaltada por uma corrente de estudos que investiga a
mediação das técnicas na estruturação e comunicação do pensamento e, em
consequência, da construção social da realidade na práxis humana. Esta corrente teve um marco fundamental na obra de
Jack GOODY (1977), que demonstrou como a alteração da forma de enunciação
verbal, com o advento da escrita, possibilitou a domesticação do
"pensamento selvagem", descrito por LÉVI-STRAUSS, na origem da
civilização. Na mesma linha, Walter ONG (1982) investigou as diferenças - na
produção e distribuição de conhecimento - entre sociedades com base tecnológica
oral e escrita, e a partir disso definiu características específicas da nova
forma de oralidade criada pela tecnologia eletrônica. O impacto da eletrônica
enquanto tecnologia da inteligência, expressa no complexo
informático-mediático, é a questão central na investigação de Pierre LÉVY
(1990). O trabalho destes três autores estabelece a base teórica a partir da
qual definimos o discurso do rádio como produto intelectual eletrônico, que se
distingue tanto da oralidade quanto da escrita.
Como observou SCHIFFER
(1991), o rádio foi o primeiro artefato eletrônico a penetrar no espaço
doméstico. Esta condição eletrônica que está na sua origem muitas vezes é
obscurecida quando se contrapõe uma “era do rádio” que pertenceria ao passado a
uma outra “era da imagem” que definiria o presente e apontaria para o futuro.
Como parece evidente, o rádio não terminou com o fim do que seria a “sua era”.
A melhor maneira de explicar isto é compreender que não foi nem o som nem a
imagem que estabeleceram novas eras, mas sim a tecnologia eletrônica: tanto o
rádio como a TV pertencem à era da informação, e o rádio foi a manifestação
mais precoce da era eletrônica na comunicação de massa.
Uma pista desta
precocidade pode ser encontrada na primeira utilização que o público fez do
rádio. Na década de 90, com a explosão da Internet e a popularização do uso dos
controles remotos, surge o conceito de “navegação” para dar conta do que seria
uma nova forma de fruição dos produtos culturais, caracterizada pela
interatividade e marcada pelo zapping
permanente entre uma oferta infindável de enunciados. Pode-se dizer até que
essa nova forma de fruição da cultura é uma característica da era eletrônica. O
que pouca gente sabe é que ela surgiu há mais de setenta anos, de uma forma
natural, com as primeiras emissoras de rádio.
SCHIFFER
(1991:60), que estudou o rádio na perspectiva do arqueólogo, registra que essa
era a forma dominante de ouví-lo, na década de 20, nos Estados Unidos. Como
ocorre hoje com as páginas da Internet, naquela época ninguém pensaria em se
deter por muito tempo numa única emissora. A sensação provocada pelo novo meio
era justamente a de ser capaz de captar as emissões mais variadas possíveis,
originadas nos mais longínquos locais. Diversas revistas norte-americanas da
época fizeram sucesso promovendo concursos entre rádio-ouvintes, em que eram
premiados os que comprovavam ter captado o maior número de emissoras. Para os
adeptos do hobby, os programas das primeiras emissoras de rádio, independente
do conteúdo, soavam como extremamente tediosos. O que importava a eles era
ouvir o quanto antes a identificação da emissora, para partir para outra sem
demora.
Essa forma espontânea de
utilizar o meio não pôde ser compreendida naquele tempo como uma possibilidade,
apenas como uma limitação. O rádio nascia eletrônico, mas suas perspectivas
eram avaliadas por uma cultura letrada. Para dominar o veículo, esta cultura precisou
retalhar o seu fluxo eletrônico sem começo nem fim, e que só pôde ser
compreendido como possibilidade nos últimos vinte anos. A lógica do compromisso
com hora marcada tanto para começar quanto para terminar, importada do mundo
dos espetáculos, inventou os programas, organizou os conteúdos e acabou por se
impor, disciplinando o público.
O princípio da obra
fechada, que orientou a lógica dos programas,
representou uma conquista da tecnologia da escrita em relação às
anteriores culturas orais. Como destaca SEMPRINI (1994), “por longo tempo, ao
menos por toda a idade clássica e moderna, a produção estética é construída em
torno da noção de obra, seja ela texto (no sentido escritural do termo),
quadro, composição musical, plástica, teatral, cinematográfica. Nesta cultura
estética geral, cada obra possui uma forte individualidade e um caráter
próprio. Ela é considerada como um elemento discreto, claramente separado, em
termos conteudísticos e sobretudo formais, de outras obras, por mais afinidades
que tenham entre si.” Para o autor, tal noção de obra é dominante na doxa cultural e científica até uma data
muito recente, e retardou a aceitação da programação de rádio em fluxo
contínuo, em oposição à rádio de programas, que se impõe atualmente como uma
tendência, e representaria assim, mais do que uma evolução, um destino,
inerente à natureza eletrônica que já estava na origem do rádio.
Além
da metáfora da obra, a cultura letrada impôs ao rádio a hegemonia do texto na
composição de sua linguagem. A palavra é um fenômeno sonoro que a escrita, em
princípio, apenas imita. No entanto, no estágio atual de desenvolvimento de
nossa civilização, a escrita enquanto tecnologia da palavra se autonomizou,
criando seus próprios caminhos e distanciando-se do oral. Esta autonomização,
intensificada pela tipografia, é que permitiu o surgimento de novas formas de
pensar e de dizer a realidade, tal como a ciência moderna ou o jornalismo (ONG,
1982).
A dificuldade que
acompanha o discurso do rádio informativo desde a sua origem é encontrar uma
maneira de expressar de forma sonora um conteúdo que tomou forma originalmente
na tecnologia da imprensa. O jornalismo impresso operava com a palavra, porém
com a palavra estática, "congelada" em forma de escrita. Ao se
aventurar pela primeira vez no terreno da palavra elástica, "em estado
líquido", o gênero se defrontou com uma série de situações inteiramente
novas.
No
início, "o radiojornal procura em tudo e por tudo reproduzir as
características da imprensa". Os hábitos e convenções da página impressa
são transferidos para o novo meio da maneira mais literal possível, "indo
assim ao encontro com os costumes dos leitores de jornal" (GONÇALVES,
1956:36-44). Títulos quase gritados, com os artigos suprimidos, e a ideia de
uma "paginação" rígida com seções fixas e "espaços"
limitados por assunto, originam-se neste esforço de transposição fiel da
experiência gráfica através do "jornal falado".
Desta
maneira, a linguagem do radiojornalismo foi pensada naturalmente como uma nova
forma de apresentação da mesma mensagem escrita. Tudo o que era dito ao
microfone deveria ter sido escrito antes, tanto como modo de controle do
conteúdo quanto como garantia de correção. A BBC de Londres chegou a produzir
até scripted discussion, debates em
que as participações eram previamente gravadas, transcritas no papel,
"corrigidas" e só então levadas ao microfone da emissora pelos mesmos
participantes, que liam suas próprias palavras anteriores tentando
"reproduzir a naturalidade" original (HORSTMANN, 1988:11). O condicionamento
dos profissionais pela máquina de escrever era tão forte que muitos se
confessaram "inseguros" e "perdidos" com o surgimento de
programas que aboliam a etapa textual da produção, utilizando a fala de
repórteres pelo telefone.
A
preocupação com o conteúdo mais do que com a forma, as dificuldades de
comunicação deste conteúdo pelo meio invisível e os condicionamentos
organizacionais de seu modo de produção contribuiram para moldar a linguagem
inicialmente adotada pelo radiojornalismo por um esforço extremo de
simplificação. A "lei da economia" aplicada à linguagem do
radiojornalismo fez com que inicialmente ela fosse pensada exclusivamente
enquanto texto. Tal postura tinha como contrapartida o locutor absolutamente
neutro, despessoalizado, mero "instrumento de estúdio".
O
padrão de "sobriedade de locução" que vigorou então, e que ainda hoje
é tido como o ideal em muitas emissoras voltadas para um público de elite, foi
buscado, significativamente, como relata FORD (1969:110), na forma contida
adotada pelos jornalistas na cobertura de cerimônias fúnebres. No entanto, a
contenção ensaiada nunca foi suficiente para dotar a voz humana de uma
neutralidade que é, de fato, impossível. BARTHES (1973:116) distingue em toda a
fala um grão da voz.
Além
de um componente psicológico inseparável, BARTHES também localiza na fala a
explicitação de uma variável sócio-linguística, “os falares diferem de grupo
para grupo, e cada homem é prisioneiro de sua linguagem: fora da sua classe, a
primeira palavra marca-o, situa-o inteiramente e expõe-o com toda a sua
história. O homem é oferecido, entregue pela sua linguagem, traído por uma
verdade formal que escapa às suas mentiras interesseiras ou generosas (BARTHES,
1964:67)."
Assim,
se a contenção da voz pode disfarçar sua expressividade mímica, é completamente
inócua para ocultar sua fisionomia (na analogia teatral de ARNHEIM, 1936). E a
fisionomia da voz que se queria "neutra" no jornalismo deveria
conotar a confiança, a autoridade, a correção, a elegância e a superioridade
cultural da classe social que controlava a emissão. A BBC, que ditava padrões
internacionais de "radiogenia", exigia de seus locutores que lessem
as notícias vestidos a rigor, com roupas de grife (LEWIS & BOOTH, 1989:96).
O
grão da voz é tanto mais importante na medida em que se considere as diversas
funções semióticas que desempenha na comunicação radiofônica. No
radiojornalismo, a voz do locutor informa não apenas o conteúdo das notícias,
mas funciona igualmente como signo indexical que informa o programa e a
emissora em que o ouvinte está sintonizado. A presença humana inerente à
vocalização torna-se desta forma inseparável da presença institucional, ao
mesmo tempo em que a presença institucional se manifesta apenas através da
mediação humana. Tal ambiguidade dissolve convenções estabelecidas no
jornalismo impresso para separar informação de opinião, e obriga as emissoras a
conterem tanto a própria subjetividade quanto a de seus profissionais, como
única forma de resguardar cada uma delas de uma identificação indesejada.
A
identificação da voz pelo ouvinte estabelece também o contexto comunicativo,
sinalizando os diferentes momentos da programação: distingue o que deve ser
acreditado enquanto informação jornalística do que deve ser percebido como propaganda
ou assumido como pura brincadeira para fins de entretenimento. A necessidade de
demarcar fronteiras entre os diversos gêneros faz com que as emissoras procurem
distinguir as vozes que aparecem em diferentes momentos da programação.
Na
informação jornalística, o jogo de vozes não serve apenas para estabelecer um
ritmo que ajude a manter a atenção do ouvinte, embora esta seja a sua intenção
principal. A intercalação também sinaliza mudanças de assunto e de procedência
das notícias, os diversos timbres e situações acústicas informam sobre a
identidade e o contexto dos falantes. A qualidade de som estabelece também uma
hierarquia de vozes: na base o entrevistado, com postura amadora; acima dele o
repórter, treinado com o microfone; no ápice o apresentador no estúdio, com as
melhores condições de emissão. O estúdio insonorizado cria distanciamento em
relação aos acontecimentos noticiados, enfatizando o controle sobre os
conteúdos que deve ser exercido pelo apresentador (CRISELL, 1986:90).
A
função mediadora que o jornalismo assume - entre os diversos discursos
produzidos na sociedade e o seu público - faz com que processe e absorva em seu
conteúdo os atos de fala de diferentes atores sociais. O gênero jornalístico é
fortemente marcado pela intertextualidade e seus enunciados caracterizados
quase sempre por um sentido polifônico: raramente é apenas o jornalista que
fala, normalmente mescla sua fala com discursos de outrem que reproduz
(FAIRCLOUGH, 1995:89). No rádio, a intertextualidade polifônica do discurso
jornalístico encontrou a sua forma atual de expressão numa segunda fase da
história do meio, com a universalização do uso do telefone e da gravação
magnética.
Os
novos meios tecnológicos provocaram uma abertura da programação para uma larga
gama de vozes e de discursos, expondo, por contraste, a artificialidade da
anterior fala amarrada ao texto. Em consequência, o conceito excludente de
radiogenia será necessariamente revisto e até certo ponto superado por um novo
contexto comunicativo.
Com a substituição das vozes, a
palavra dominante no rádio também foi aos poucos mudando de natureza: "o falado-escrito cedeu seu posto a uma
versão mais decisivamente informal, o falado-falado
" (SIMONE, cit. in MENDUNI, 1994:43). A fala no rádio assume um
aspecto mais natural. No entanto, a análise do modo de produção desta nova fala
desfaz o equívoco bastante comum de equipará-la com uma fala natural.
Utilizando
a metodologia de análise da conversação, GOFFMAN (1981:227) distingue três
bases de produção da fala numa sociedade letrada: a recitação (de um texto
memorizado), a leitura em voz alta (de texto ou de números não memorizados) e a
fala de improviso ou instantânea (que seria "a composição e codificação
simultânea do texto sob a exigência de resposta imediata à audiência numa
situação corrente"). A fala no rádio resulta de uma combinação destas três
bases de produção.
GOFFMAN
observa que cada base de produção da fala exige um determinado tipo de
competência adquirida. A competência exigida de um profissional de rádio exige
não somente a capacidade de manejo da fala nas diversas bases apontadas, mas
também na sua combinação, de forma a que o produto final torne-se fluente,
ocultando o esforço de produção por uma aparência de espontaneidade. A
espontaneidade da fala ao microfone do rádio distingue-se assim por ser
espontaneidade planejada. Conforme Walter ONG, "a oralidade eletrônica é
essencialmente uma oralidade mais deliberada e autoconsciente. (...) Prepara as
coisas cuidadosamente para ter a certeza de que saem verdadeiramente
espontâneas" (cit. in THORINGTON, 1993:179).
A
diferença entre a espontaneidade produzida na fala natural e a espontaneidade
autoconsciente produzida no rádio deixa clara a distância que existe entre o
enunciado radiofônico e uma possível "naturalidade". A noção de
naturalidade, porém, é empregada na literatura técnica como antítese em relação
à fala de base exclusivamente escrita que caracterizou o período histórico do
locutor impessoal. Na falta de instrumentos teóricos mais adequados, a noção de
naturalidade serve também para dar conta de uma fala que se tornou mais
complexa e passou a admitir maior variação, ao considerar a existência de um
segundo nível de significação representado pelos componentes analógicos da fala.
WATZLAWICK,
BEAVIN & JACKSON (1967:57), definem comunicação analógica como toda a
comunicação não-verbal, abrangendo nesta classificação uma série de variáveis
observadas na fala, como inflexão da voz, sequência, ritmo e cadência das
palavras, "assim como as pistas comunicacionais infalivelmente presentes
em qualquer contexto em que uma interação ocorra". A comunicação
analógica, ligada a impulsos do inconsciente que remontam às origens ancestrais
da espécie humana, não seria passível de um completo domínio racional, por seus
aspectos necessariamente ambíguos e contraditórios. Daí a dificuldade de
controlar tecnicamente este segundo nível de significação da fala radiofônica,
e o apelo à "naturalidade" como sugestão de que pode mais facilmente
ser apreendido na prática, da mesma forma como se apreende a língua materna.
Em
consequência, os padrões de emissão sonora do discurso jornalístico quase
sempre fazem parte de um repertório de conhecimentos profissionais incorporados
de forma inconsciente, por mimetismo cultural (BEHLAU & ZIEMER, cit. in
NUNES, 1993:149). Quando muito, tal informação técnica é tratada no ambiente de
trabalho de um modo tipicamente oral, na solução de problemas pontuais
eventualmente detectados com base na sensibilidade e na experiência, mas sem
uma apropriação consciente que permita uma utilização mais produtiva de seus
recursos.
No
entanto, o fato dos padrões de enunciação vocal do radiojornalismo não serem
conscientizados não implica em que não existam ou que possam ser comparados à
fala natural. Como observa mais uma vez BARTHES, a fala não é "por si só,
fresca, natural, espontânea, verídica, expressiva de uma espécie de
interioridade pura; bem pelo contrário, a nossa palavra (sobretudo em público),
é imediatamente teatral, vai buscar as inflexões (no sentido estilístico e
lúdico do termo) a todo um conjunto de códigos culturais e oratórios: a palavra
é sempre tática" (BARTHES, 1981:9-10). No mesmo sentido, GUIRAUD (1993:48)
propõe que no código prosódico da fala "indícios de origem natural estão de
fato altamente socializados e convencionados, como o mostra a dicção dos
atores".
De
fato, o teatro desenvolveu inclusive um termo técnico para dar conta deste
nível suplementar de significação da palavra falada: o subtexto (STANISLAVISKI, cit. in BALSEBRE, 1994:57). Nas artes
cênicas, o subtexto pertence mais ao campo de atuação dos diretores do que ao
dos roteiristas, e define a modulação das palavras do texto na interpretação
dos atores, de modo a compor o seu significado em função dos objetivos de cada
fala no conjunto da obra. No rádio, o subtexto se expressa unicamente através
do uso da voz, que substitui a mímica visual. A curva melódica, o ritmo e as
ênfases tônicas utilizadas repetidamente constituem códigos que permitem aos
ouvintes situar imediatamente o texto da fala.
A
maneira espontânea como estes códigos são aprendidos e internalizados é o que
dificulta a compreensão de sua especificidade radiofônica e a sua diferenciação
em relação a uma linguagem "natural". Mas a naturalidade que passou a ser perseguida como um valor pelos
profissionais do rádio só pode ser comparada com aquela pretendida
anteriormente pelo cinema, para distinguir a sua forma de representação dos
modos exagerados da atuação teatral desenvolvidos nos palcos. Além do
"planejamento da fala espontânea", e do subtexto socializado, a
comunicação radiofônica tem em comum com o audiovisual outra situação
artificial: a presença de um espectador desconhecido, um terceiro não participante das interações construídas, e que é para
quem está efetivamente direcionada toda a fala produzida. A intencionalidade de
audiência da fala é que justifica a situação comunicativa e, em função dela, a
fala segue padrões convencionais, em grande parte compartilhados com esta
audiência.
A superação da escrita
pelo jornalismo eletrônico do rádio passou primeiro pela reafirmação dos
padrões estabelecidos pelo jornalismo escrito. Mas a nova forma adotada pelo
jornalismo sonoro, com a agregação ao texto de um subtexto (presente na arcaica
comunicação oral e remodelado por um novo contexto comunicativo) e dos demais
elementos da linguagem sonora (música, ruídos, silêncio) evoluiu num novo
gênero de discurso, que se expressa pela composição de um supertexto,
impossível de ser produzido apenas com os recursos da escrita e impensável numa
cultura oral.
A lógica da cultura
letrada passou então a ver o discurso do rádio como algo mais do que apenas
texto, mas ainda assim como uma forma de escrita. Por esta lógica, em todos os
manuais a linguagem do rádio é apresentada então como uma composição de palavra
falada, música, ruídos e silêncios. Na verdade, esta composição não descreve
exatamente a linguagem do rádio, descreve antes a linguagem fonográfica. O supertexto radiofônico se caracteriza não
apenas pela agregação de um subtexto ao texto propriamente dito, mas também
pela sua enunciação em tempo real.
O século XIX assistiu ao
alvorecer de uma nova concepção de escritura. A fotografia, o cinema e o
fonógrafo, propunham uma nova forma de registro das manifestações da natureza e
das culturas humanas, capazes de captar de maneira simultânea e automática uma
grande variedade de nuances e tons (de luz ou de som). No plano da linguagem,
estas formas de registro mecânico (depois aperfeiçoadas pela eletrônica)
permitiram conservar e reproduzir em qualquer tempo e lugar os componentes
analógicos que anteriormente eram prisioneiros da situação da enunciação. Repetia-se
assim, agora com as linguagens analógicas, o salto que anteriormente a escrita
possibilitara ao modificar a enunciação dos componentes digitais da fala.
Mas o discurso do rádio
não se limita a uma nova escritura feita pela composição de sons. O discurso do
rádio é isso e algo mais, e este algo mais é dado por sua enunciação em tempo
real. A radiodifusão distingue-se da imprensa por sua condição ao vivo, e é percebida como tal, o que
provoca um forte efeito de realidade e, através dele, a empatia do público. Porém,
a simultaneidade a que esta condição
idealmente se refere, no caso do radiojornalismo, ocupa apenas uma parcela do
tempo do fluxo. Esta parcela é geralmente menor do que aparenta, uma vez que a
condição fonográfica de um enunciado
raramente é explicitada, enquanto os momentos de transmissão direta tem sempre esta condição enfatizada e, não
raramente, simulada.
Por
outro lado, a característica viva do discurso do rádio não é mera simulação. Como
destaca SCANNEL (1991:1), "Rádio e televisão são meios ao vivo. Como o telefone, a fala que
eles produzem existe em tempo real: o momento de sua pronúncia e o momento de
sua audição são o mesmo momento. Nos primeiros dias tanto do rádio como da TV
todas as transmissões eram ao vivo. Em
ambos os casos, o desenvolvimento de tecnologias para gravar a fala chegou
consideravelmente depois e, embora hoje muitos programas sejam pré-gravados,
isso é feito de forma a preservar o efeito do ao vivo. (...) O caráter vivo da radiodifusão, o seu senso de existência
em tempo real - o tempo do programa correspondendo ao tempo de sua recepção - é
um efeito intrínseco ao meio. A fala que sai do rádio e da televisão é
reconhecida como produzida em instituições com existência atual, intencionada e
dirigida para membros do público com existência atual, que a recebem nas
circunstâncias do mundo real".
A
observação do papel predominante do fonográfico no discurso do radiojornalismo,
por um lado, e do caráter efetivamente vivo
do enunciado radiofônico, por outro, conduz a um paradoxo: o rádio faz ao vivo um discurso predominantemente
fonográfico. O significado deste vivo,
porém, requer uma maior elucidação para que a ambiguidade possa ser superada.
A
condição ao vivo só é total e permanente no fluxo do rádio no
que diz respeito a uma única simultaneidade: entre enunciação e recepção. A
dissecação do conceito permite isolar esse primeiro nível em que o vivo
se dá. O vivo em primeiro grau está presente no rádio desde a sua origem e
é uma condição da qual não pode se separar. A simultaneidade
enunciação/recepção presente no vivo em
primeiro grau não implica
necessariamente a simultaneidade entre o tempo de produção do enunciado e sua
enunciação. Pelo contrário, o enunciado pode ter sido produzido
antecipadamente, como no caso de um programa gravado.
O vivo em primeiro grau refere-se assim ao paralelismo do tempo do
enunciado com o tempo da vida real (o tempo do relógio), paralelismo este que
atinge a sua expressão máxima no fluxo contínuo. Funcionando 24 horas por dia, o rádio atinge a isocronia absoluta com o tempo da vida
real, provocando a torsão na linha do tempo de programação que passa a ser
representada visualmente por uma espiral infinita.
O
vivo que caracteriza o rádio torna-se mais intenso conforme a forma de produção
do enunciado. Um texto escrito, memorizado ou planejado antecipadamente para
ser interpretado no rádio, embora não caracterize ainda a dupla simultaneidade
da transmissão direta, agrega à primeira simultaneidade do discurso mais um
elemento vivo - a interpretação do locutor. Por isso, o
discurso produzido pela apresentação de um texto ao microfone, embora mantenha
as características de um conteúdo produzido antecipadamente, pode ser
considerado um vivo em segundo grau.
Em termos da composição do discurso do rádio
informativo, a incorporação da fonografia na rotina de produção das emissoras,
num segundo momento de sua existência, trouxe mudanças consideráveis. Todas as
conquistas representadas pela escrita, enquanto tecnologia intelectual, no
campo do processamento linguístico, tornaram-se acessíveis no campo da
expressão sonora: a objetivação, o transporte, a conservação, o distanciamento,
a montagem a posteriori, o fechamento
- enfim, o a enunciação diferida em sua potencialidade plena, tal qual havia se
desenvolvido em suporte espacial, era agora viável também numa linguagem
temporal.
O
diferido libertou a expressão sonora da tirania do presente extratextual,
permitindo ao discurso do radiojornalismo reassumir totalmente o domínio sobre
a definição dos limites da atualidade. No entanto, não alterou a primeira
simultaneidade deste discurso, entre enunciação e recepção, que caracteriza o
seu caráter vivo em primeiro grau. A
forma sistemática e intensa como o elemento fonográfico foi incorporado no
discurso do rádio, e o fato da produção de uma coisa e outra se confundirem na
rotina das emissoras, tem dificultado a possibilidade de discernir entre elas. Acrescida
a limitação teórica da maior parte dos estudos linguísticos que, para dissecar
uma língua, como o corpo de um animal, quase sempre precisam matá-la,
compreende-se porque as tentativas de descrição e definição da linguagem do
rádio não fazem esta distinção.
A
linguagem do rádio, uma vez morta, uma vez considerada como linguagem dada, não se distingue em nada da
linguagem fonográfica. O que a distingue é que ela não existe na realidade
enquanto dada, existe apenas dando-se no discurso. Seja transmitindo em direto, seja transmitindo em
diferido um produto fonográfico que assim atualiza, ou ainda combinando estes
dois elementos, como normalmente o faz, o rádio transmite sempre no presente
individual de seu ouvinte e no presente social em que está inserido, ou seja,
num contexto temporal compartilhado entre emissor e receptor: o tempo real. Ao
contrário, na fonografia, como no cinema, emissor e receptor estão separados no
tempo e o contexto temporal não é compartilhado por eles.
Quando
um enunciado diferido é incluído no macrotexto do fluxo radiofônico (uma
declaração, uma reportagem, uma música), sofre uma mudança qualitativa. Cumpre
função comunicativa diversa pela mudança do contexto. De enunciado autônomo,
passa a fazer parte de um enunciado maior (um programa, uma programação) que
tem outro autor, outra intenção, outra leitura, outra relação com a realidade. O
objeto inanimado funciona então como prótese de um corpo vivo.
O vivo do rádio apresenta ainda outros níveis além do
primeiro e segundo graus já descritos. Um terceiro, ainda intermediário, seria
aquele em que não apenas a intepretação viva é agregada a um conteúdo diferido,
mas a própria elaboração do conteúdo é realizada simultaneamente à enunciação,
com a utilização predominante do improviso sem planejamento prévio. Embora
tenha campo de utilização mais restrita no rádio informativo do que em outros
gêneros radiofônicos, este vivo em
terceiro grau aparece no fluxo em inúmeros momentos e situações,
especialmente naqueles de interação verbal em tempo real ou quando um
acontecimento inesperado exige uma resposta pronta, obrigando a emissora a uma
postura tática.
O vivo em terceiro grau costuma ser apresentado ao público como
transmissão direta, embora ainda não
a caracterize no sentido estrito da
expressão. Para que este seja caracterizado, é necessária a simultaneidade
também do acontecimento relatado, completando a isocronia entre quatro tempos:
o do acontecimento, o da produção do relato, o da enunciação e o da recepção. A
conjunção desses quatro tempos é que distingue a transmissão direta no sentido
pleno da palavra e que caracteriza, no fluxo do rádio informativo, o vivo em quarto grau, ou o seu mais alto
grau possível.
A transmissão ao vivo possibilitada
pela tecnologia eletrônica incluiu o momento presente no campo da
noticiabilidade. O conhecimento do absolutamente efêmero, até então desprezado
por uma tradição letrada que possuia como principal parâmetro de validação a
posteridade, revela-se cada vez mais fundamental para a sobrevivência numa
sociedade que se move em velocidade crescente. O rádio foi o primeiro meio de
comunicação de massa a operar em tempo real, e esta característica estritamente
eletrônica de combinar a transmissão direta com a diferida é que distingue a
sua linguagem em relação à da fonografia.
Uma outra tentativa de enquadrar a linguagem do rádio
na lógica da cultura letrada foi de explicá-la a partir dos parâmetros do
cinema. O cinema é mais velho do que o rádio como meio de comunicação, e quando
o rádio surgiu, já havia desenvolvido a sua sintaxe plano-sequência. Desde o
início do rádio, foram feitas várias tentativas de adaptar esta sintaxe para o
novo meio, produzindo filmes sonoros.
Embora até hoje existam teóricos defendendo esta perspectiva , ela apresenta dois problemas
insuperáveis: primeiro, não existe filme em tempo real. O filme sonoro seria
então um produto fonográfico, mais do que radiofônico, a partir do momento em
que se fez a distinção entre uma coisa e outra. Segundo, a ausência de
parâmetros espaciais fixos na linguagem sonora invisível do rádio impede a
distinção entre os planos e as sequências (FUZELIER, 1966). O plano só pode ser
definido sobre uma imagem, precisa parâmetros espaciais fixos. A linguagem do
rádio é estritamente temporal.
Isso
não significa que o rádio não possa criar imagens, conduzindo a imaginação do
ouvinte. A diferença é que essas imagens interiores, produzidas na mente, não
podem ser confundidas com as imagens que se vê numa tela. São imagens muito
mais ricas - podem comportar três dimensões, e também incluir sensações táteis,
olfativas, auditivas - e também muito mais econômicas: muitas vezes são
dispensadas sem que isso prejudique a comunicação. Ao se ouvir um noticiário,
por exemplo, ninguém fica imaginando o rosto do locutor ou o estúdio de onde
fala, porque isso não é importante para a mensagem. Como destacou ARNHEIM, já
em 1936, a seletividade e a versatilidade proporcionadas pela sua condição
invisível que garantem a eficiência do discurso do rádio.
Para
distinguir a linguagem do rádio tanto da fonografia como do cinema (estas
concebidas na era mecânica, embora aperfeiçoadas depois pela eletrônica), é
preciso definí-la como uma composição sonora invisível de palavra, música, ruído
e silêncio, enunciada em tempo real. Esta definição comporta não apenas o rádio
tradicional, difundido por diversar faixas de ondas de rádio-frequência (AM,
FM, OC, etc.), mas também as possibilidades que estão sendo abertas para a difusão do rádio no presente e no futuro
próximo, como no caso da transmissão por cabo, por satélite, ou pela Internet.
A identidade do rádio na era eletrônica não se localiza mais na forma como é
difundido, mas na especificidade de seu discurso sonoro, invisível, enunciado
por diversos meios em tempo real.
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