INTERPRETAÇÃO DE PRODUTOS CULTURAIS.
Contributos de uma
abordagem etnometodológica aos
estudos da comunicação
Francisca Ester Sá Marques,
Universidade Federal do Maranhão
1 –
Considerações Iniciais
A tentativa de construção de uma etnometodologia voltada para a comunicação ainda é um projeto em construção e, como tal, carece de autores consagrados, teorias absolutas, objetos previamente definidos e teses prontas. Extensão conceitual da etnografia[1] isto é, o método de registro preferencial do trabalho de campo da antropologia, a etnometodologia[2] mantém as bases epistemológicas iniciais da etnografia estruturalista, mas amplia a perspectiva de análise para contemplar um ponto de vista mais abrangente e permitir uma leitura interpretativa da realidade.
Nessa ampliação, buscou conceitos na fenomenologia de Edmund Husserl, de Martin Heidegger, de Alfred Schütz ou de Hans-Georg Gadamer, na filosofia analítica de Ludwig Wittgenstein, na filosofia social de Paul Ricoeur ou de Jürgen Habermas, na sociologia da cultura de Max Weber, Jameson, Burke, Michel Foucault, na antropologia cultural de Claude Lévi-Strauss, Marcel Mauss, Malinowski, Gilbert Ryle e na semiótica de Charles Sanders Peirce, para compor quadros de referências significativas sobre os saberes locais. Deste modo, a primeira diferença entre a etnometodologia e a etnografia tradicional tem a ver com o tipo de descrição feita dos fatos observados.
Assim, enquanto para a etnografia estruturalista[3] de Lévi-Strauss, os fatos são oriundos de uma natureza específica, com leis, causas e efeitos, portanto, com estruturas formais de identificação, percepção e entendimento - capazes de explicar ou justificar uma dada realidade, para a etnometodologia os fatos são oriundos não só da natureza, mas construídos conforme a dinâmica cultural e o contexto social.
Enquanto a primeira privilegia o método dedutivo para generalizar através da diversidade dos fatos e produzir uma estrutura ordenadora da sociedade, por meio das regularidades constantes, a segunda prefere o método indutivo para generalizar dentro dos casos e particularizar o objeto, em função da especificidade de suas diferenças em relação aos demais objetos. Para a antropologia estrutural é o todo que possibilita a relação entre as partes e, por isso, a significação é o produto das relações dos termos entre si num sistema, cujo acesso é feito por um código regulador. Para a antropologia interpretativa[4] é na parte e não no todo que reside o caráter diferenciador da análise, já o interesse não está na relação dos termos, nem no sistema, mas no próprio termo enquanto individualidade.
Estas perspectivas levam a uma segunda diferença: para a antropologia estrutural o sentido é estrutural porque a ação social guarda já em si mesma uma racionalidade que produz sentido, na mesma perspectiva pensada por Max Weber. Neste caso, o que vale observar é a infra-estrutura de significação de uma realidade subjacente ao sentido propriamente dito.
No entanto, para a antropologia interpretativa a ação tem um sentido e é isso o que a faz racional. Na etnometodologia o sentido é sempre um sentido para e, compreendê-lo significa compreender para quem o sentido se faz, isto é, o intérprete precisa compreender já dentro do universo significativo do outro. A interpretação não está acima da interpretação do seu interpretado, mas concorre com ela. Influencia e é influenciada, e é este complexo jogo de interpretações e contra-interpretações que produz a compreensão cultural. É o sentido que proporciona um entendimento sobre o mundo e a racionalidade é apenas uma expressão desse entendimento.
Em função desta especificidade, a etnometodologia exige uma perspectiva analítica que os antrópologos chamam do entendimento do entendimento, ou seja, uma ciência social interpretativa, fundamentada numa hermenêutica cultural e organizada por estruturas locais de saber, inseparáveis de seus invólucros e dos seus instrumentos. Para a etnometodologia, há um sentido muito aguçado de que aquilo que se vê depende do lugar em que foi visto e das outras coisas que são vistas ao mesmo tempo. É assim porque a cultura é vista como um contexto, algo dentro do qual os acontecimentos, os comportamentos e os processos podem ser descritos com densidade.
Deste modo, a descrição amplia-se para além da explicação, exigindo a avaliação compreensiva, na qual os relatos obtidos sobre a maneira como qualquer grupo interpreta suas experiências, sejam depois utilizados pela etnometodologia para tirar conclusões acerca de outros relatos sobre expressões de identidade, poder, cultura ou expressão, entre outras.
Por isso, em vez de trabalhar com o conceito de explicação, a antropologia cultural prefere trabalhar com o conceito de tradução, isto é, o delineamento da maneira pela qual a nossa compreensão de nós mesmos e dos outros – de nós mesmos entre os outros - é influenciada não só pelo intercâmbio com nossas próprias formas culturais, mas também, e de maneira bastante significativa, pela caracterização que outros teóricos fazem das formas culturais que nos são alheias, transformando-as, depois de retrabalhadas, em secundariamente nossas.
Para a etnometodologia, o conceito de tradução não significa simplesmente remoldar a forma como outras pessoas se expressam, em termos de nossas próprias expressões, mas de mostrar a lógica das formas das expressões do grupo, com a nossa fraseologia. Isto porque a nossa consciência é moldada em doses iguais pela impressão que os outros têm das coisas e pela maneira como estas coisas se nos apresentam aqui e agora, onde estamos. Numa linguagem comum, quer dizer que não é o que eu penso sobre o grupo que me interessa estudar, mas o que o grupo pensa sobre si mesmo, a forma como interpreta estes pensamentos, e como os relaciona com os demais pensamentos existentes na realidade.
2 – A
etnografia do pensamento de Clifford Geertz
Dentre as várias correntes que perfomatizam o que é hoje denominada de etnometodologia opto, neste trabalho, por situar Clifford Geertz (pseudônimo de Harold F. Linder, professor de Ciências Sociais no Institute for Advanced Study, Princeton, New Jersey), cuja principal característica é propor para a etnometodologia uma epistemologia prática ou do senso comum, a partir de uma antropologia interpretativa, tendo a descrição densa[5] como ponto de partida.
Em sua obra, o autor propõe uma refiguração do pensamento social deslocando a análise dos produtos culturais de leis e instâncias para casos e interpretações ao trabalhar com o que denomina uma etnografia do pensamento, isto é, como as estruturas do pensamento mudam; como as províncias do pensamento são demarcadas; como as normas de pensamento são mantidas; como os modelos de pensamento são adquiridos e como o trabalho do pensamento é dividido para compor o que ele denomina do processo da intersubjetividade dos sujeitos da ação.
Assim como para Dilthey o texto fixa, como o inscrito, a tradição histórica dentro do qual foi produzido e, desta forma, cristaliza e exprime as possibilidades de um encontro dos horizontes do intérprete e do interpretado, para Geertz, a escrita fixa o significado do acontecimento: «um pedaço da interpretação antropológica consiste em traçar a curva do discurso social; fixá-lo numa forma analisável».
Geertz[6] parte de Max Weber e de sua concepção de cultura não codificável mas interpenetrável, para dizer que o homem é um animal suspenso em teias de significados que ele mesmo tece ao longo de sua existência social e histórica. São essas teias que definem a cultura e sua análise não deve se constituir numa ciência experimental em busca de leis, mas numa ciência interpretativa em busca de significados para os sujeitos da ação.
«não como complexo de padrões concretos de comportamentos - costumes, usos, tradições, feixes de hábitos -, mas como um conjunto de mecanismos de controle - planos, receitas, regras, instruções, programas e pré-programas - para governar o comportamento. O homem é precisamente o animal mais dependente de tais mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele, de tais programas culturais, para ordenar seu comportamento».
A seu ver, a cultura engloba, no interior da prática cultural, todo um conjunto de códigos e convenções simbólicas onde as mediações são feitas, fundamentando relações de sentidos explícitos e implícitos, segundo os significados dados em cada momento. É em função disso que a cultura pressupõe que um campo semântico seja partilhado para que possa ser lida e seus sentidos interpretados, mesmo numa leitura de segunda mão, por sobre os ombros, isto é a leitura de uma leitura.
Para o autor interessa perguntar não qual o status ontológico de um fenômeno, mas o que foi transmitido com a ocorrência de cada teia dentro do sistema simbólico. Onde e para quem cada teia diz o que, em que momento, com qual intenção? Neste caso, a cultura[7] - a totalidade acumulada de padrões culturais - em vez de ser acrescentada a um animal acabado, é um ingrediente essencial na produção desse mesmo animal. A cultura fornece o vínculo entre o que os homens são intrinsecamente capazes de se tornar e o que cada um efetivamente se torna.
«Tornar-se humano é tornar-se individual, e nós nos tornamos individuais sob a direção dos padrões culturais, sistemas de significação criados historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas. (...) Assim como a cultura nos modelou como espécie única - e sem dúvida ainda nos está modelando - assim também ela nos modela como indíviduos separados. É isso o que temos realmente em comum - nem um ser subcultural imutável, nem um consenso de cruzamento cultural estabelecido.» (GEERTZ,l989,p.64)
Por isso, a cultura é vista pelo autor como um
sistema simbólico, oriundo da
concepção simbólica da linguagem, por considerar que a presença do homem no
mundo não é imediata, mas mediatizada pela linguagem. Nesse sistema, a
linguagem desempenha funções de significação que estão na origem das
elaborações dos sentidos do homem no mundo ao expressar as diferentes maneiras
de sua relação com uma mesma realidade, e ao expressar de uma mesma maneira a
sua relação com realidades diferentes. Ao falar, o homem não se limita a
designar e a significar a sua relação com um mundo preexistente; constrói
também sentidos novos já que as palavras não são etiquetas coladas a uma
realidade singular, mas construções culturais destinadas a mediatizar a relação
do homem com o mundo.
E é na elaboração e construção desse mundo que a mediação com a realidade é feita sob os auspícios de uma epistemologia do senso comum, visto por Geertz como um sistema cultural, construído historicamente e, portanto, sujeito a padrões de juízo também historicamente definidos e validados pela convicção de quem o possui. Uma epistemologia oriunda filosoficamente do que Husserl, Schütz e Merleau-Ponty denominam de uma fenomenologia do cotidiano, trabalhada sob as bases da experiência comum.
Segundo Geertz, o argumento do senso comum não se baseia em coisa alguma, a não ser na vida como um todo. Nesse caso, trabalha com a sabedoria coloquial que julga e avalia a realidade com bom senso, ou seja, lida com os problemas cotidianos com critério, inteligência, discernimento e reflexão prévia. O senso comum é, dessa forma, um modo de ver o mundo, através da aceitação desse mundo, dos seus objetos e dos seus processos exatamente como se apresentam, como parecem ser. Há também um desejo de atuar sobre esse mundo de forma a dirigi-lo para propósitos práticos, dominá-lo ou ajustar-se a ele. Neste universo, nem totalmente material nem puramente simbólico, ora fasto ora nefasto, cada coisa tem seu peso, seu lugar, seu significado, sua qualidade, seu sentido.
O bom senso, assim, é uma capacidade que o sujeito possui de captar as realidades básicas através da experiência e de chegar a conclusões sensatas, sem fazer distinções entre a ordem natural, o domínio da linguagem, o mundo da cultura e a esfera da consciência individual. Não há diferenciação brusca e racional entre um universo material e um universo simbólico[8], visto que as necessidades orgânicas e as morais confundem-se no cotidiano da vida grupal, dando-lhe um realismo prático, um senso vivo dos limites e das possibilidades de ação que convergem para uma sabedoria cotidiana.
Como uma estrutura de pensamento, o bom senso é uma forma de explicar os fatos da vida, afirmando ter o poder de chegar ao âmago desses fatos e é, por isso, tão autoritário quanto qualquer outro pensamento, porque tem a pretensão de ir além da ilusão para chegar à verdade ou chegar às coisas como realmente são. É preciso ver nos tons ou no tipo de som que um grupo expressa, na visão de mundo que suas conclusões refletem a diferença do bom senso, seus elementos estilísticos, suas marcas de atitude.
Estas marcas de atitude, por sua vez, refletem as quase-qualidades que constituem uma epistemologia do senso comum, isto é, a naturalidade, a praticabilidade, a leveza, a não-metodicidade e a acessibilidade. A naturalidade, por exemplo, dá ao bom senso um caráter de sentido óbvio. «O bom senso seleciona temas, alguns temas e não outros, como sendo o que são porque esta é a natureza das coisas. Os temas são retratados como inerentes à situação, como aspectos intrínsecos à realidade, um tipo de é “assim que as coisas funcionam”.» Desta forma, a naturalidade do mundo cotidiano é uma expressão direta, uma resultante da parte do ser a qual se atribui um conjunto bastante diversificado de quase-qualidades como seriedade, grandiosidade, mistério, diversidade etc. Ex. o problema do hemafroditismo.
A segunda característica, a praticabilidade não tem a ver necessariamente com utilidade, no sentido pragmático do termo, mas com sagacidade. Por exemplo, quando dizemos que um indivíduo, uma ação ou um projeto demonstram falta de bom senso, significam que não são práticos. Ora, quando o bom senso orienta alguém a ser sensato significa que este alguém deve se tornar mais vivo, mais prudente, mais equilibrado, não perder a bola de vista. Ser prático, neste caso, não significa obter resultados materiais das situações, mas apreender estas situações como demandas do intelecto, como resultados de um esforço da razão para construção de uma consciência prática das coisas; para que o sujeito saiba exatamente o que é quê, quem é quem em cada contexto.
Outra característica do bom senso, a leveza, poderia também ser definida como simplicidade ou literalidade. Trata-se, segundo Geertz, daquela vocação que o bom senso tem para ver e apresentar este ou aquele assunto como se fossem exatamente o que parecem ser, sem mais, nem menos.«O mundo é aquilo que uma pessoa bem disperta e sem muitas complicações acha que é. Sobriedade, e não sutileza, realismo e não imaginação, são as chaves para a sabedoria. Os fatos que realmente importam na vida estão espalhados pela superfície e não dissimulados nas profundezas». As coisas só são evidentes aos olhos dos que as estão vendo.
A não-metodicidade é outra das características e é definida por um saber ostensivamente ad hoc, isto é, aparece sempre na forma de epigramas, narrativas míticas, provérbios, piadas, relatos. Seja lá qual for a forma como se apresentem, não é a sua consistência interna que os torna recomendáveis, mas exatamente o contrário, pois como sentenças sobre o mundo estes saberes captam a enorme diversidade de tipos de vida que existem no mundo, definindo algo como: a sabedoria sai de um morro de formigas.
A acessibilidade completa o conjunto da quase-qualidades da epistemologia do bom senso e, surge na sequência lógica das outras à medida em que estas são reconhecidas. A acessibilidade é assim a presunção, a insistência de que qualquer pessoa, com suas faculdades razoavelmente intactas, pode captar as conclusões do bom senso e até mesmo adotá-las. Sendo comum, o bom senso está aberto para todos; é propriedade geral dos cidadãos estáveis, pelo menos e, assim, seu tom é antiespecialista e até antiintelectual porque não exige talentos específicos a não ser o que é perspectivado como experiência e maturidade.
O bom senso representa o mundo como um mundo familiar que todos podem e devem reconhecer e onde todos deveriam ou poderiam ser independentes. É, em conclusão, um sistema cultural que resta quando todos os demais sistemas simbólicos esgotam suas tarefas de sistematização de conteúdos. Ora, sendo assim, como a epistemologia do senso comum pode ser desenvolvida pelas ciências sociais?
Através de conceitos como o de inscrição ou descrição densa, por exemplo, desenvolvido por Ricoeur como a fixação do significado. Para Ricoeur, a fala, o que dizemos deve ser registrado (inscrito) para que o seu significado (o que foi dito) e não o dizer permaneça até certo porto e por algum tempo.«Quando falamos, o que dizemos flutua a nossa volta na forma de eventos, como qualquer outro tipo de comportamento, a menos que seja inscrito ou registrado».
A grande virtude da extensão da noção de texto para além das coisas escritas no papel e que esse processo treina a atenção para este fenômeno, isto é, revela como a inscrição da ação foi feita:
«Não o acontecimento de falar, mas o que foi dito, onde compreendemos, pelo que foi dito, no falar, essa exteriorização intencional constitutiva do objetivo do discurso graças ao qual o sagen – o dito, torna-se o aus-sage – a enunciação, o enunciado. Resumindo, o que escrevemos é o noema (pensamento, conteúdo, substância) do falar. É o significado do acontecimento de falar, não o acontecimento como acontecimento»
Geertz parte da transição de texto escrito como discurso para a ação como discurso para dizer que este tipo de analogia[9] exige um novo tipo de especialista em relações contextuais (uma nova filologia), em que o que foi dito possa ser recuperado do dizer e que leve em consideração a coerência, a intextualidade, a intenção e a referência da relação: a relação das várias partes entre si; a relação do texto com outros culturalmente ou historicamente semelhantes; a relação com aqueles que, de alguma forma, o constroem e sua relação com realidades externas a ele.
O que o etnógrafo faz é inscrever o discurso social, anotando-o. Ao fazê-lo, ele o transforma de acontecimento passado – que existe apenas em seu próprio momento de ocorrência-, em um relato que existe em sua inscrição e que pode ser consultado novamente. O que o etnógrafo inscreve não é o discurso social bruto, ao qual não tem acesso direto a não ser marginalmente, mas apenas àquela pequena parte (fatos pequenos, mas densamente entrelaçados) que o leva a compreender e tirar grandes conclusões.
Mas, ao inscrever o discurso social o máximo que o etnógrafo consegue fazer é uma leitura de segundo grau (a de primeiro grau é específica do nativo) que possibilita, no entanto, um encontro de horizontes[10] entre a inscrição feita, as personagens da inscrição e as interpretações das inscrições, numa espécie de círculo hermenêutico que privilegia tanto a análise da totalidade do fenômeno, como a pesquisa microscópica e fragmentária; tanto os detalhes particulares da inscrição, como sua caractegorização genérica.
Assim é que para estruturar esta inscrição, Geertz utiliza conceitos como o de sentido, visto aqui como o pressuposto da enunciação, do ato de falar e dizer alguma coisa. Enquanto a significação funciona como a regra da organização das unidades linguísticas do discurso, o valor constituinte da linguagem que introduz o indivíduo na ordem coletiva do sistema de signos, o sentido tem como condição primeira constituir os próprios sistemas de significações e de valores sociais, culturais e políticos de uma dada sociedade.
A constituição desses sistemas depende, por um lado, das regras que estabelecem relações de oposição e de combinação dos elementos formadores de uma linguagem, e, por outro lado, de relações de reciprocidade entre sujeitos, no decurso dos processos comunicacionais. É a tensão entre estas duas perspectivas que constitui a natureza simbólica do sentido[11] dos objectos culturais, delimitando a identidade e marcando as diferenças, tornando assim possível a mediação social, ou seja, a reciprocidade da troca e a reversibilidade dos lugares de fala.
O lugar de fala[12] é entendido aqui como fonte de sentidos tanto do ponto de vista de quem fala, como do ponto de vista de quem se fala. Ora, a fala consiste em um enunciado, segundo Bakthin, cujos sentidos estabelecem relações inter e extra-discursivas com outros enunciados.[13] A sua locução prevê portanto a participação de outros sujeitos falantes que não são indiferentes ao conteúdo deste enunciado e que, por isso, refletem na sua recepção uma atitude responsiva ativa.
No momento em que o ouvinte recebe e compreende a fala, parte da idéia implícita de que todo enunciado já é em si uma resposta a uma circunstância verbalizada ou verbalizável. Assim, o que foi ouvido e compreendido de modo ativo encontrará um eco no discurso ou no comportamento subsequente do ouvinte. Cada sujeito falante possui, deste modo, um querer-dizer, um intuito discursivo que determina a formulação do enunciado, suas fronteiras e o seu tratamento de modo a torná-lo acessível.
Portanto, um enunciado na sua formulação está
ligado não só a elos que o precedem, mas também a outros que lhe sucedem na
cadeia da comunicação verbal. O enunciado está voltado não só para o seu objeto
(a fala), mas também para o discurso do outro acerca desse objeto. A mais leve
alusão ao enunciado do outro confere à fala um aspecto dialógico que nenhum
tema constituído puramente pelo objeto poderia conferir-lhe.
São os enunciados concretizados na realidade interlocutiva que dão existência à fala e que estabelecem o seu sentido como ato histórico, específico, narrável e, portanto, social, tendo em conta o lugar da significação construído na alternância dos sujeitos falantes e o estabelecimento de uma relação dialógica entre seus inter-textos. A fala, deste ponto de vista, sempre tem um sentido - «por mais absurdo, contraditório ou equivocado que nos pareça - em algum lugar, segundo uma determinada ótica, relacionado a uma inserção específica em uma situação concreta, historicamente dada.» (BRAGA,l996,p.3)
Daí que optar pelo conceito lugar de fala, dentro do contexto cultural, equivale a procurar a coerência e a pertinência da lógica que estrutura a fala numa dada situação, isto é, equivale a procurar em que lugar a fala faz sentido. O lugar de fala pode ser definido, não pela sua inserção em uma estrutura mais ampla que a compreende e explica - como uma visão de mundo, por exemplo - mas pelas relações instáveis, próximas, semelhantes ou diferentes - de cooperação e conflito que mantém com outros lugares de fala vizinhos.[14]
A fala, portanto, se dá num espaço de atuação
- como proposta e ação numa interpretação interessada de uma situação-problema.
Não propõe simplesmente uma tomada de posição em um espaço visto como neutro ou
assumido como real, mas implicita o modo de ver a realidade na qual a posição é
tomada. Em síntese, uma fala produz uma resposta e o lugar em que esta resposta
faz sentido.
Estes conceitos são retomados por Geertz com outros autores como Ryle para explicar e justificar a sua epistemologia prática numa tentativa, muitas vezes oblíqua, de conseguir relatos significantes da realidade. Uma realidade que é traduzida pela hermenêutica cultural através de um sistema de persistência, no qual símbolos, significados, concepções, formas e textos constituem uma estrutura imaginativa da sociedade. Em conclusão, o estudo interpretativo da cultura representa um esforço para aceitar a diversidade entre as várias maneiras que seres humanos tem de construir suas vidas, no processo de vivê-las.
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[1]Praticar a etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever ou traduzir textos, levantar procedências ou genealogias, mapear campos, manter diários e assim por diante. A etnografia é uma prática localizada entre a descrição superficial e a descrição densa, e que aparece como uma hierarquia estratificada de estruturas significantes. Na antropologia tradicional, isto significa isolar os elementos de um sistema simbólico, especificando as relações internas entre esses elementos e depois caracterizar todo o sistema de uma forma geral.
[2]A etnometodologia, por sua vez, trabalha com a descrição densa e o que ela interpreta é o fluxo do discurso social. A interpretação consiste em tentar salvar o dito no discurso e fixá-lo em formas pesquisáveis, através de relatos microscópicos. Analisar etnograficamente significa escolher as estruturas de significação, socialmente estabelecidas para determinar a sua base social e sua importância, dentre a multiplicidade de estruturas conceituais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras.
[3]A antropologia estrutural de Lévi-strauss se baseia fundamentalmente na Teoria do significado ou semiologia proposta por Ferdinand de Sausurre e na diferença entre língua e fala. Strauss utiliza o par cognição/método para modelizar e analisar o objeto, através da sintaxe do texto que, por sua vez, prioriza o caráter objetivista da explicação como capaz de codificar e decodificar as leis regulares da cultura. A antropologia estrutural decifra o texto, a partir de suas estruturas internas, independente do sujeito, do objeto e do contexto.
[4]A antropologia interpretativa que eu trabalho neste texto é de Clifford Geertz que se fundamenta na semiótica de Charles Peirce para estudar a semântica do texto, numa perspectiva próxima à de Ricoeur. Geertz utiliza o par intuição/emoção para analisar os sentidos produzidos pelo texto, já que na sua opinião o sentido é sobredeterminado, ou seja, se constitui na proporção de um acréscimo de significado àquele definido pelo código. Ele se diferencia da descrição quando propõe a totalização do significado, em que os sentidos ganham uma dimensão ontológica e geneticamente humana, pois generalizam sobre a experiência da vida dos homens.
[5]Geertz se apropria do conceito de círculo hermenêutico de Dilthey que relaciona a parte à totalidade e vice-versa, produzindo a compreensão de uma pela relação que mantém com a outra, num vai-vém em que as definições são uma contrapartida da outra. Assim, a palavra se define por sua relação com a totalidade da mensagem, sua inserção no texto. Há uma descrição das formas simbólicas particulares e a contextualização intersubjetiva dessas formas nas estruturas de significado. Para Geertz, a intersubjetividade é um traço objetivo, na medida em que não é mais subjetividade do autor do texto, nem tampouco, apenas a subjetividade do leitor, mas uma espécie de linguagem mediada dessas subjetividades. O caráter objetivo da intersubjetividade, portanto, vem do fato de ela ser uma mediação necessária entre objetividade e subjetividade, quando da situação de interpretação.
[6]O autor trabalha na direção de uma antropologia interpretativa e propõe uma definição de cultura, a partir da noção de homem, numa tentativa de resolver o paradoxo entre a idéia de uma imensa variedade cultural em contraste com a idéia de uma espécie humana única. Para isto, refuta tanto a idéia de uma forma ideal e essencial de homem natural, dotado de habilidades inatas, proposta pelo iluminismo, quanto a idéia de um homem consensual (e, como consequência, a noção de consensus gentium), relacionada ao comportamento real, proposta pela antropologia clássica.
[7]Para o autor “duas abordagens, dois tipos de conhecimentos devem convergir se se trata de interpretar a cultura: uma descrição das formas simbólicas particulares(ritual, gestual, uma estátua) como expressões definidas; e uma contextualização de tais formas dentro da estrutura total de significação da qual elas são uma parte e, em termos do qual elas tomam suas definições.”
[8]O universo simbólico é um quadro de referência global, dotado de
sentido, que legitima a ordem institucional e a biografia individual,
explicando-as e justificando-as. Por conseguinte, legitima as experiências
humanas cotidianas e marginais (sonhos e fantasias), e os papéis sociais,
conferindo exatidão à identidade subjetiva do indivíduo; ordenando os
diferentes modos de ser; localizando o presente, o passado e o futuro;
estabelecendo uma memória e um quadro de referência comum. Concebido como a
matriz de todos os significados socialmente objetivados e subjetivamente reais,
o universo simbólico possui um caráter nômico ou ordenador da realidade,
integrando as experiências pertencentes as diferentes esferas num todo
coerente. (BERGER,
LUCKMAN,l985, p.131-l42)
[9]A analogia perspectiva a sociedade como um jogo sério, um drama de rua ou um texto sobre comportamentos. No primeiro caso, na analogia com jogos a intenção é comparar um comportamento social com este ou aquele tipo de jogo. Assim, os seres humanos são mais induzidos por forças que submissos a regras; que as regras são do tipo que permitem estratégias; que a estratégias são do tipo que inspiram ações e que as ações são do tipo que compensam por si mesmas. Assim, para Wittgenstein os modos de vida são jogos de linguagem, em que atos intencionais seguem regras. Para Erving Goffman, a vida é um jogo de expressão, um carnaval de enganos, uma tijela de estratégias ou um labirinto de estruturas e que só aqueles que estão dispostos a dissimular prosperam. No segundo caso, a analogia entre o drama e a vida social, duas perspectivas são observadas: a teoria ritual que utiliza as afinidades entre o teatro e a religião (o drama como comunhão, o templo como palco) tendo como expoentes T.S. Eliot; Artaud e Jane Morrison e a teoria da ação simbólica que trabalha o drama (social) como persuasão, o teatro como retórica e a plataforma do discursante como um palco e tem como nomes fortes Foucault, Victor Turner e Ernest Cassirer. O terceiro caso, a analogia com textos é a que está sendo utilizado neste trabalho.
[10]Segundo Gadamer, a fusão de horizontes deve seu caráter objetivo à possibilidade de uma interpetração intersubjetiva ao levar em consideração os horizontes do intérprete e do interpretado - que pode ser o texto - fazendo dessa fusão algo objetivo. Ricoeur em Interpretação e Ideologias, observa que: «trata-se de um conceito dialético procedendo de uma dupla recusa, a do objetivismo, segundo o qual a objetivação do outro se faz no esquecimento do próprio; e a do saber absoluto, segundo o qual a história universal é suscetível de articular-se num único horizonte. Não existimos nem em horizontes fechados, pois podemos nos transportar para um outro ponto de vista, uma outra cultura; nem num único horizonte, pois a tensão entre o próprio e o outro é irreversível.» Para tanto ver (AZZAN JUNIOR,l993,p.89-l33).
[11]O símbolo é um objeto que vai para além da significação; depende da interpretação, e esta, duma certa predisposição que é o sentido. Em outras palavras, determinar a significação de um enunciado não é só ser capaz de apreender aquilo para que remete a sua expressão, em função de uma língua comum; é também compreender o seu sentido, isto é, as razões da sua enunciação, ou seja, equivale à capacidade de o enquadrar numa situação interlocutiva concreta e singular, pertinente, plausível e relevante.
[12]É a posição relativa que o enunciador ocupa numa ordem institucional que o habilita a dizer determinadas coisas, de determinada maneira e que lhe interdita de falar de outras. O lugar de fala é o lugar que o locutor ocupa numa cena, sob o fundo da qual locutor e alocutário estabelecem uma espécie de contrato implícito de trocas simbólicas de enunciados.
[13]Bakhtin confere à relação estabelecida na comunicação verbal um caráter
dialógico, daí porque diz que o enunciado - a unidade da comunicação verbal -
constitui a ponte entre a idéia e a fala, e forma o espaço alternante dos
sujeitos falantes, permitindo o acabamento específico do enunciado. O locutor
diz tudo o que quer dizer num momento e em condição apropriada, dando a
possibilidade de resposta a um destinatário que, como ouvinte, recebe e
compreende (compreensão prenhe de respostas) a significação, tornando-se, nesse
momento, também locutor. Na alternância dos sujeitos falantes, o enunciado tem
suas fronteiras delimitadas, comportando tanto um começo absoluto, prescrito pelos enunciados anteriores, quanto um fim absoluto, prescrito pelos
enunciados-resposta. (BAKTHIN,
l992, p.289-326).
[14]Todo fato humano se insere num número de estruturas significativas, o que permite conhecer sua natureza e significação. Entretanto, para chegar aos fatos que compõem a estrutura significativa é necessário separar o essêncial do acidental, inserindo-os numa estrutura mais ampla que os abarca. (GOLDMAN,l970,p.101) É daí que BRAGA (l996,p.5-6) observa que, em vez de estruturas significativas amplas contendo visões de mundo, situações gerais da realidade social que pretendem justificar o mundo, a sua procura é pela fala inserida no interior de estruturas significativas imediatas que se referem a situações locais, específicas, articulações práticas para resolver problemas locais.