(* texto apresentado no I Curso
Pós-Graduado sobre “Comunicação na Clínica, na Educação, na Investigação e no
Ensino”, da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa)
A prática clínica, a investigação científica e a educação
podem ser singularmente esclarecidas pela sua abordagem como práticas da
comunicação.
A comunicação é concerteza a dimensão
nuclear do social e o facto de ter acedido a objecto teórico interpelante, ou
seja, o facto de a comunicação constituir problema implica uma revisão de
alguns dos postulados e perspectivas anteriores.
Regredir
relativamente às evidências, problematizando-as e fazendo emergir o que
aparentemente, ao nível do senso comum, lá não está é a motivação primeira do
trabalho científico. Também relativamente à comunicação, importa proceder a
esse trabalho de suspeita sobre o saber suposto.
A dimensão comunicacional acentua a
natureza inacabada, aberta, anti-positivista das ciências humanas. Impõe uma
abordagem dinâmica preocupada em acompanhar, por um lado, as modificações
teóricas e práticas e, por outro lado, o diferimento insolúvel na relação do
homem-sujeito com o homem-objecto.
O sentido não se pode identificar com a
verdade, ou seja, não é mais possível enunciar o sentido no singular. O sentido
tem sempre um carácter processual, é sempre uma produção dos interlocutores e a
verdade resulta sempre de uma interpretação, é sempre uma perspectiva obtida,
como dizia Nietzsche, a partir do canto onde nos colocamos. Identificar sentido
e verdade é esquecer que existem outros cantos para o olhar donde a
visibilidade será necessariamente outra.
É neste labirinto de olhares, de
sentidos, de verdades que a pragmática da comunicação se autonomiza como
domínio próprio, ele também atravessado por diferentes linhagens teóricas. Não
existe um modelo único de pragmática, mas uma pluralidade de abordagens. Dessa
pluralidade, retenhamos, por agora, alguns pontos, numa exposição que ambiciona
tanto quanto possível uma coerência formal relativamente aos conteúdos
enunciados: ter em conta o auditório a quem se dirige (médicos), mostrando a
aplicabilidade de certas noções teóricas à análise de situações enquadráveis no
intitulado destas sessões de trabalho.
Temas/Problemas:
1. Performatividade da linguagem
2. Lógica da relação
3. Heterogeneidades do sentido
4. Semiose ilimitada
1. A pragmática preocupa-se com os efeitos
práticos no uso da linguagem, partindo do princípio que falar é agir.
Há na linguagem enunciados que no momento mesmo da sua enunciação produzem a
acção enunciada.
Exemplo: Um médico que afirma a um
doente: "Nós vamos tratar disso" consegue de imediato um
efeito terapêutico que antecipa o efeito do tratamento que, por sua vez, é
potenciado pela escrita de uma receita. Mas se numa situação diversa da relação
médico-doente, alguém afirmar: "Nós tratamos-lhe da saúde" não
provoca os mesmos efeitos pragmáticos. Trata-se, neste caso, de um enunciado
que não diz o que diz, que diz mesmo o contrário do que diz.
A diferença de resultados decorre, em
termos pragmáticos, das circunstâncias da enunciação. No primeiro caso, o
consultório ou hospital, o ritual (de gestos, olhares e palavras) da observação
clínica e, sobretudo, a competência e legitimidade que o doente reconhece na
figura do médico investem o enunciado "Nós vamos tratar disso" de
uma certeza garantida pela modalidade da enunciação e pela modalidade do
próprio enunciado - dizer "Nós vamos" e não simplesmente "Eu
vou" designa o médico mais a medicina mais a pessoa do doente que,
desse modo, é convocado a colaborar no seu próprio tratamento. "Nós
vamos tratar disso" permite ainda objectivar a doença, dominando-a
pela palavra. Para além desses efeitos, a prescrição de uma terapêutica, a
escrita de uma receita de medicamentos em papel timbrado com a assinatura do
médico faz parte dos processos de legitimação do acto clínico e apazigua a
ansiedade natural do paciente.
Outro exemplo: Um professor que valoriza
um trabalho ou que, pelo contrário, emite sobre ele uma crítica negativa obterá
resultados diversos em função da competência que, naquelas circunstâncias, o
aluno lhe reconhecer.
Teoricamente, trata-se da dimensão
performativa da linguagem que põe em relevo a importância do contexto e das
circunstâncias da enunciação na afirmação de legitimidade dos enunciados.
Aliás a capacidade performativa da
linguagem poderá ser uma das explicações para o recurso a práticas não médicas
baseadas em rituais de palavras e gestos com uma possível eficácia terapêutica.
Poder que por vezes a difícil e inacessível linguagem técnica da ciência médica
já terá perdido.
Este aspecto é tanto mais importante
quanto as relações médico-doente e professor-aluno se alicerçam numa assimetria
incontornável. Profissionalmente e institucionalmente, o médico e o professor
situam-se num plano de saber e também de poder (eles são sujeitos-supostos-saber
, como diz a psicanálise a propósito do analista) que os investe de uma
legitimidade pragmática e de uma responsabilidade ética próprias ao exercício e
preenchimento das suas funções.
Falar
é agir, fazemos coisas quando falamos, a linguagem influencia a relação entre
os interlocutores, cria e modifica expectativas, crenças, desejos,... A performatividade
decorre do facto da linguagem não ter uma função essencialmente representativa
da realidade - a linguagem não funciona por mimesis, ela age sobre
aquilo que fala e age sobre quem fala. As relações humanas são trabalhadas pela
linguagem - verbal, gestual, pela linguagem do silêncio (que pode ser
silenciamento imposto, coagido ou,
apenas, ausência de palavras). A nossa relação com o mundo nunca é directamente
imediata, mas sempre mediada pela linguagem, pelo simbólico.
2. A pragmática recusa princípios imanentes, recusa
absolutos. Não exalta o sujeito, não lhe reconhece soberania sobre o dito, mas
também não o humilha submetendo-o a uma ordem transcendente. A consciência não
é imediata, toda a consciência imediata é falsa consciência e, por isso,
suspeita. Em termos hermenêuticos, a consciência resulta de uma tarefa - o
conhecimento que cada um tem de si próprio é um espelho dos seus objectos, das
suas obras ou actos. A reflexão sobre si é mediada pelas expressões nas quais a
vida se objectiva, pelos signos do acto de existir.
A reflexão faz-se por retorno de uma
decifração aplicada aos documentos da vida, aos actos e obras que testemunham
em cada um o esforço e o desejo de existir. Ou dito de outro modo, a
consciência emerge de uma lógica da relação com as coisas e,
essencialmente, com os outros. A subjectividade é atravessada pela alteridade,
ela resulta de um processo de diferenciação. As diferenças de cada um não são
prévias, não são absolutas, mas são tarefas de diferenciação.
Pensar é pensar com. Ninguém
pensa nada sozinho. Não há originalidade absoluta nem repetição absoluta. O
dialogismo não deve ser mera mise-en-scène, não deve ser apenas formal -
agora falo eu, agora falas tu - mas é condição de possibilidade da comunicação,
é instituinte do pensamento e da linguagem.
Exemplo: O médico não fala para o doente,
ele fala com o doente. É com o doente que ele enuncia um
diagnóstico e prescreve uma terapêutica. Médico e doente são co-enunciadores,
os dois co-significam os sintomas, os dois produzem uma hermenêutica,
uma interpretação dos sintomas. Sintomatologia e semiologia não
são termos equivalentes. Há entre eles um diferimento decorrente dos processos
de significância, decorrentes eles também da mediação pragmática, relacional
dos interlocutores em situação.
A superação do esquema canónico EMISSOR
-> RECEPTOR, unilateral e redutor do fenómeno comunicativo, deve no caso da
relação clínica dar lugar a uma valorização da autonomia do doente.
Outro exemlo: A nível da investigação
científica, a historicidade das controvérsias meta-teóricas cristaliza numa
determinada relação interlocutiva entre especialistas da mesma área ou áreas
próximas. A lógica dessas controvérsias não escapa às determinantes que
possibilitam qualquer outra troca comunicacional. Trata-se de questionar campos
de pertinência e, apesar das especificidades de grau e de exigência, é, ainda,
a relação interlocutiva que configura os enunciados.
A dimensão pragmática condiciona, pois, o
desenvolvimento científico - a sintaxe e a semântica da argumentação e da
demonstração são enquadradas pela historicidade dos saberes e por esse diálogo
entre cientistas, entre perspectivas e ou campos disciplinares diferentes. A
ênfase neste ou naquele detalhe, o encadeamento das dúvidas ou das hipóteses, a
organização metodológica, os pré-conceitos e pré-suposições, o contexto
político e cultural, as perspectivas de aplicação da teoria, as possibilidades
e domínio da técnica, ...- não constituem apenas o cenário exterior da
investigação, mas constituem e instituem o próprio trabalho científico.
3. A pragmática da comunicação é o lugar das heterogeneidades.
O carácter processual do sentido resulta numa multiplicidade heterogénea. A
significação não está previamente no código, é o uso que operacionaliza e
recria o valor dos signos. Os jogos de linguagem reenviam-nos para uma lógica
do possível não limitada por uma significação já dada a priori .
A significação é constrangida pela
compreensão. A relação interlocutiva impõe uma bi-codificação e uma
bi-contextualização: dois códigos e dois contextos entram em confronto e
determinam a produção do sentido e das referências.
Em situações marcadamente assimétricas
como médico-paciente, educador-educando, o nível de compreensão, de empatia, a
dimensão relacional são decisivos para o sucesso ou insucesso dos actos
pedagógicos e médicos. Um educador deve procurar compreender os desejos das
crianças e ajudá-las a trazê-los à linguagem, ou seja, ajudar as crianças a
atribuir sentido a esses desejos escondidos. Permitir que esses desejos acedam
ao simbólico é contribuir para um nível de satisfação bem mais essencial do que
a sua redução a uma necessidade imediatamente saciável e por isso rapidamente
morta. O desejo pede para ser vivido na linguagem e, desse modo, permanecer
vivo.
Um médico deve prestar atenção ao
paciente, olhando-o no rosto, lembrando-se que não é só a linguagem verbal que
comunica, mas que todo o comportamento é comunicação. O tempo da consulta, a
disponibilidade do olhar, o tom das palavras, a forma de ouvir são algumas das
estratégias de comunicação que atribuem um lugar ao outro, que lhe reconhecem
ou não o papel de interlocutor, que o valorizam ou não enquanto sujeito de
facto e de direito. Vemos o outro como vemos o
mundo: significando-o, imaginando-o, figurando-o. E a figuração humana
está submetida a juízos éticos de transfiguração (figuração positiva) ou
desfiguração (figuração negativa). A ética e a deontologia da educação e da
medicina recordam-nos a responsabilidade de transfigurar o mundo, o mundo das
coisas, mas também o mundo das relações humanas.
A massificação do ensino, por uma lado,
com a consequente abertura do curso de medicina a diferentes classes sociais e,
por outro lado, o alargamento da prestação de cuidados de saúde a quase toda a
população, a diversidade de opções de vida e a diversidade do nível intelectual
dos doentes são factores que vêm acentuar a necessidade pragmática e ética de
abertura à heterogeneidade dos sentidos.
Nada pior numa relação que a indiferença
do interlocutor próximo. Ser indiferente é não constituir diferença, é não
permitir que o outro aceda ao lugar de sujeito. É o eu de um anular o eu do
outro. É, enfim, tornar fraudulenta toda a produção de sentido e fazer da
educação ou da consulta médica uma prepotência ilegítima.
4. O uso dos signos é um permanente
trabalho de interpretação. Um signo reenvia sempre para um outro signo
seu interpretante. Teoricamente, falamos em semiose ilimitada. Não há
signos primeiros nem últimos, eles encadeiam-se, impelindo o sujeito a uma
substituição incessante de um signo por um outro e fazendo da comunicação uma
insubstituível atenção ao outro.
Existem vários processos semióticos e são
vários os tipos de signos resultantes do jogo entre as categorias que o
constituem. Partilhamos com os outros animais a possibilidade de percepcionar o
mundo através das suas manifestações sensíveis, mas possuímos, para além dessa, uma outra faculdade
essencialmente humana: a de inscrevermos na linguagem verbal a significação
dessas percepções. O mundo humano adquire, assim, um estatuto verdadeiramente
semiótico.
Falamos do que vemos, do que ouvimos,
falamos dos cheiros, dos sabores, falamos dos toques da pele, falamos das
sensações orgânicas, dos prazeres, das dores, falamos do que falamos, falamos
do modo como falamos.
A necessidade de verbalizar a doença, de
atribuir uma designação aos sintomas, de discorrer sobre o que se sente, sobre
as possibilidades de cura revelam a importância da linguagem na manipulação do
próprio estado de saúde. Uma doença sem nome ou com um nome nunca ouvido é
motivo de preocupação acrescida, é absurda.
A especialização dos saberes e dos
discursos e a articulação do saber médico com outros saberes colocam o problema
do acesso do doente à compreensão do diagnóstico e da terapêutica. É um
problema de tradução, um problema de comensurabilidade dos discursos. Problema
que não é apenas semântico, mas, sobretudo, pragmático. O jogo da
interpretância sendo decisivo para o desenvolvimento de qualquer prática
comunicativa fica dependente dessa possibilidade de tradução dum discurso com
um regime científico e técnico desejavelmente rigoroso para um outro discurso
que, independentemente dos conhecimentos teóricos que o paciente possua, será
inevitavelmente envolvido pelas emoções decorrentes da situação paciente. Tanto mais que hoje as questões de
saúde estão muitas vezes associadas a questões éticas dramáticas.
Resumindo,
poder-se-à dizer que os quatro pontos aqui abordados - performatividade da
linguagem, heterogeneidades do sentido, lógica da relação e interpretância -
têm em comum o facto de pressuporem a irredutibilidade da interacção. O jogo
interlocutivo é o verdadeiro sujeito
das práticas comunicativas o que sendo uma realidade pragmática é ainda
uma exigência ética.