PÚBLICOS, PALCOS E AMIGOS: OLHARES SOBRE A RECEPÇÃO CULTURAL
Por João Teixeira Lopes, Universidade do
Porto
A Activista Cultural
O passo
decidido não acerta com o cismar do
palácio
O ouvido não ouve a flauta da penumbra
Nem
reconhece o silêncio
O
pensamento nada sabe dos labirintos do tempo
O olhar
toma nota e não vê
Sophia de
Mello Breyner Andresen in O Búzio de Cós
e Outros Poemas
O trabalho que aqui
se apresenta resulta de uma investigação mais vasta, levada a cabo durante três
anos com o intuito de analisar as novas modalidades de relação entre públicos
urbanos e criação cultural, recomposição social e processos de construção do
gosto[1].
Optámos por abordar nesta publicação, na sequência de artigos anteriores, uma
série de questões relacionadas com os actos e contextos da recepção cultural.
A
referida pesquisa resulta de um estudo de casos comparativo efectuado em três
espaços culturais do Grande Porto: o teatro municipal Rivoli, o bar de jazz B
Flat e a esplanada da Praia da Luz. Adoptámos um conjunto multifacetado de
estratégias de pesquisa, recorrendo quer ao inquérito por questionário aos
públicos desses espaços, quer a um conjunto de entrevistas semi-directivas,
quer ainda a uma sequência estruturada de "incursões etnográficas".
1. A
recepção, o corpo e os seus contextos.
As
formas de ocupação dos cenários de interacção pelos agentes sociais e as
posturas corporais que lhes estão associadas traduzem uma determinada atitude
receptiva face ao ambiente social circundante. A análise das expressões
transmitidas mas sobretudos emitidas (“de
tipo mais teatral e contextual, de tipo preferencialmente não verbal e
aparentemente não intencional”[2], como Goffman
sublinha) fornece importantes indícios de como os indivíduos percepcionam, a um
nível nem sempre consciente, por vezes mesmo quase inconsciente[3], as linguagens dos
espectáculos que presenciam. Trata‑se, por assim dizer, de um espectáculo dentro do espectáculo,
uma representação de segunda ordem a que o investigador acede pela sua grelha
de análise. Como refere Serge Collet, “o
espectador é «actor» no seu corpo no próprio lugar do espectáculo”[4].
Muitos
desses indícios (que são efectivamente formas
de comunicação) conseguem ser captados pelos produtores e programadores
culturais mais atentos às reacções e performances
dos públicos:
“P‑ Através de que
indicadores é que captas a adesão dos públicos?
R‑
Normalmente através das reacções que se observam nos intervalos ou no final dos
espectáculos. Em alguns casos só mesmo por observação, porque não conheço as
pessoas e elas não se dirigem a mim. Noutros casos conheço as pessoas e falo
com elas e há ainda outras que vêm ter comigo porque percebem que estou ligada
ao teatro e gostam de expor a sua opinião” (programadora cultural do
Rivoli).
Podemos seguir os modelos interaccionistas e afirmar que
grande parte dos significados não verbais captados pelo investigador no decurso
de um processo de observação directa fazem parte de uma intenção mais vasta de desempenho, por forma a alcançar, face
aos interlocutores e à audiência, um consenso
operacional sobre a situação de interacção[5]. No entanto,
assistir a um espectáculo cultural constitui uma ocasião de relativa fuga à
rotina, considerando não só a raridade relativa das saídas culturais, como o
grau de ritualização e poder simbólico que exprimem, em particular em locais
como os que se encontram em estudo. Nesse sentido, a incorporação e hierarquias
e sistemas de classificação, ou, pelo contrário, a sua transgressão mais ou
menos intencional, traduzem o processo mais vasto de socialização das posturas
e performances corporais. Assim,
apropriarmo‑nos analiticamente da apropriação social presente na
corporalidade, conduz‑nos à multiplicidade de actos perceptivos em
contextos de recepção cultural. Tal démarche,
por sua vez, obriga‑nos à abdicação de qualquer ponto de vista soberano,
patente nas versões mais etnocêntricas e logocênticas de um objectivismo que “constitui o mundo social como um
espectáculo que se oferece a um observador que adopta «um ponto de vista» sobre
a acção, retirando‑se para a observar”[6]. É dessa visão “quase‑corporal” do mundo, “que não supõe nenhuma representação nem do
corpo nem do mundo”[7] que nos propomos em
seguida falar, assumindo as posturas corporais e sensitivas como plenas
práticas culturais. No entanto, ao considerarmos a corporalidade como conceito
integrante do habitus, não
pretendemos reduzi‑la a uma mera representação interna de um mundo social
exterior. Ou seja, se é verdade que o “corpo
socialmente informado” não escapa “à
acção estruturante dos determinismos sociais”[8] não é menos verdade
que ele transcende a mera exteriorização das aprendizagens sociais e das
estruturas simbólicas. Dito de outra forma, o corpo não será o produto de uma
simples domesticação social; ao tornar‑se, também ele, fonte e veículo
dos vínculos relacionais, intersubjectivos, produz e experimenta continuamente
o mundo. Ora, se não analisamos apenas as representações mentais e cognitivas;
se não nos quedamos somente pelos conceitos que os agentes produzem enquanto lay sociologists; se não nos contentamos
com o estudo da verbalidade e da escrita (as “práticas de inscrição”[9]) somos obrigados
não só a relacionar o corpo com o corpo
social (lugar de memória social permanentemente actualizada) mas igualmente
a entendê‑lo como disposição afectiva. Como refere Vale de Almeida: “A experiência corporizada não pode ser
entendida só pelo cognitivismo e pelo modelo de significação linguística,
reduzindo o corpo ao estatuto de símbolo. O significado não pode ser reduzido a
um símbolo que existe num nível separado, exterior às acções do corpo (...) ao
cultivarmos o hábito é o nosso corpo que compreende”[10]. Além do mais, a
emoção é também um estado cognitivo, uma forma de conhecimento e de mobilização
de atitudes[11].
Pretendemos em seguida, de acordo com vários exemplos
extraídos das nossas incursões etnográficas, problematizar e ilustrar o que
anteriormente defendemos.
1.1. As palmas ou a ambivalência dos comportamentos.
“Bernard Dort escreveu um dia que os aplausos são o fim de tudo. É, igualmente, o último momento do confronto entre actores e público, o fim do seu diálogo silencioso”.
Cláudia de Oliveira, A Vida em Silêncios Comunicantes[12]
Algumas das
situações que presenciámos traduzem com acutilância a ligação das posturas
corporais ao conjunto de convenções interiorizadas de forma socialmente
diferenciada de acordo com os meios sociais dos agentes. O bater de palmas
fornece‑nos, a esse respeito, interessantes pistas.
De
facto, bater palmas em diferentes momentos de um espectáculo é considerado uma
das formas mais visíveis (audíveis...) e socialmente reconhecidas de demonstrar
o (des)gosto e o grau de apreço pelo desempenho dos artistas. Ao mesmo tempo,
torna‑se um indicador precioso do carácter efémero, único e irrepetível,
de cada concerto, peça de teatro ou performance,
evidenciando a base instável e evanescente de transmissão de significados das
artes vivas.
Assistimos
a um momento em que convenções sócio‑culturais estabelecidas e
sedimentadas (institucionalizadas) foram subvertidas, não sem ambivalência, por
fracções significativas do público que assistia a um concerto em que Maria João
Pires interpretava Schubert, intercalada pela leitura de Eunice Muñoz de
fragmentos de O Viajante Magnífico.
Ora, ao sentarem‑se nos seus lugares, os espectadores eram confrontados
com um folheto onde se pedia expressamente para apenas se aplaudir no final do
concerto‑récita, excluindo‑se mesmo o momento de interrupção para
intervalo. No entanto, ao contrário de tal solicitação, as palmas irromperam
não só no final da primeira tarde, como depois da leitura particularmente
expressiva de alguns textos ou ainda posteriormente a cada andamento. Tal
comportamento suscitou interpretações ambivalentes por parte dos próprios
espectadores. Houve quem assumisse uma atitude iconoclasta de afronta a um
pedido tido como impertinente ou quase ofensivo (qualificando o folheto de “ridículo” e “desnecessário”. Weber e Bourdieu certamente que não deixariam de
descobrir aqui um efeito de “defesa de honra” que caracteriza certos grupos de
status. O autor francês quiçá iria mais longe e aventaria a hipótese de uma
reacção ao ultraje dos pergaminhos culturais de certas classes sociais. Afinal,
ensina‑se o padre‑nosso a quem tão bem sabe rezar e se movimenta
com sobejo à‑vontade nas liturgias culturais... Outras pessoas com quem
conversámos salientaram, pelo contrário, a incompetência cultural de boa parte
do público, pouco familiarizado, apesar da presença de várias figuras ilustres
do mundo da política e dos negócios, com os rituais e competências deste tipo
de espectáculo. Aliás, uma senhora não deixou escapar uma crítica implícita ao aggiornamento da etiqueta da “cultura
nobre”: “Aquelas pessoas que batem palmas
antes do tempo... Eu também fazia isso quando era criança e envergonhava muito
o meu pai”.
Alguns
registos de observação abonam a favor desta hipótese interpretativa que
enfatiza a relativa disjunção entre capital económico e cultural. Com efeito, o
cenário da ocasião afigurava‑se diferente das habituais soirées do Rivoli. Casacos de peles,
penteados cuidados, gravatas e laços surgiam com profusão, confirmando a
aparência sofisticada das formas de apresentação em cena. No espaço de entrada,
multiplicavam‑se os sinais de inter‑reconhecimento, como que a
confirmar o carácter restrito de um círculo social relativamente homogéneo,
onde destoavam fortemente alguns grupos minoritários de jovens com traje
informal ou “pormenores” provocadores (cabelos multicoloridos). As conversas
que conseguimos captar e registar remetiam para universos exteriores à cultura
cultivada, reenviando‑nos para um pequeno mundo mundano: os brinquedos
que o filho recebeu no Natal; a situação económica de uma determinada empresa,
o falar de alguém ausente que ainda no dia anterior foi reconhecido na missa.
Um comentário dissonante ficou ainda registado no diário de campo : “Hoje cheira muito a naftalina”.
Moral da
história: as palmas podem ter vários significados. No caso presente, oscilaram
entre a incompetência cultural de uma burguesia incapaz de converter
eficazmente o seu capital económico em capital cultural (o que mais uma vez nos
alerta para a heterogeneidade dos comportamentos das classes dominantes), pouco
socializada em saídas culturais frequentes e atraída pelo valor simbólico do
“nome” de Maria João Pires e Eunice Muñoz e a subversão momentânea das regras
por quem se sentiu ofendido pelo implícito questionamento da sua competência
cultural.
Um outro
caso relacionado com a exteriorização do gosto através do bater de palmas
ocorreu com a representação da peça de teatro Hotel Orpheu de Gabriel Gbadamosi. No final, e perante o pequeno
auditório dividido entre um grupo de jovens oriundo de escolas secundárias e um
outro de idosos, provenientes de instituições públicas, era nítido o agrado dos
primeiros, traduzido em palmas, e o embaraço dos segundos, denunciado pelo
silêncio. De facto, se tivermos em conta o realismo cru da peça, e em
particular de determinadas passagens, compreenderemos melhor esta recepção
diferencial. De facto, só para mencionar o exemplo talvez mais elucidativo, a
um dado momento, numa atmosfera algo claustrofóbica de um pequeno quarto de uma
pensão lisboeta, assiste‑se à preparação de uma dose injectável de
estupefacientes, com todos os utensílios que lhe estão associados: a colher, o
isqueiro, a seringa. Nada, como fazia notar uma das programadoras do Rivoli que
entrevistámos, que não caiba no universo de possíveis do jovem público. No
entanto, um quadro suficientemente afastado das categorias cognitivas dos
idosos para lhes causar estranheza, perplexidade, eventualmente repulsa. Dito
de outra forma, os códigos (sistemas de signos) transmitidos não se integravam
no seu “modo habitual de percepção”[13].
Um
último exemplo. Numa espectáculo de jazz “experimental”,
com um forte grau de improvisação, a desatenção selectiva do público
generalizava‑se a grande parte da sala. Apenas uma minoria activa, situada
em frente ao palco (se é que se pode ainda falar de palco quando existe, como é
o caso do B Flat, uma total continuidade com a sala) aplaudia no fim de cada
“melodia”, trocando sorrisos cúmplices com os artistas durante as actuações e
escutando muitas as vezes a música de olhos fechados, em estado de aparente
sintonia receptiva. Se fizéssemos um travelling
etnográfico pelo resto do espaço, depararíamos com muita gente de pé, perto
do balcão, a beber e a conversar, em especial homens, totalmente abstraídos do
espectáculo, sem sequer bater palmas. Numa mesa um grupo de homens fala de
negócios que envolvem “para cima de 700
contos”. Noutra mesa, um casal disserta igualmente sobre dinheiro: “Para que queres o dinheiro? Para gastar em
coisas que te digam alguma coisa. Se calhar, noutra altura da tua vida, tens
filhos, uma casa. Agora não!”[14]. Não deixa de ser
curioso constatar que, de facto, a maior parte dos presentes, naquela actuação
marcada “pela improvisação colectiva”,
pelo “risco e a urgência”, conforme
consta do folheto que publicita o espectáculo, não se encontra sintonizado e
sincronizado com os tempos da mesma. Enquanto que a “selectividade perceptiva” da minoria de espectadores
familiarizados com as regras sem regra da improvisação jazzística os leva a
evidenciar sinais corporais de atenção, distensão e prazer, a maioria da
clientela exibe desconhecimento, desinteresse, fuga (para locais distantes do
palco ou para temas de conversa totalmente dissonantes com a actuação). Não se
trata sequer da falta de inteligibilidade dos “melómanos profanos”, que os conduz a atitudes de desorientação e
perplexidade perceptiva, nem tão pouco de sentimentos de “agressão auditiva” de que nos fala Pierre‑Michel Menger[15] e que Robert
Francès também regista em situações em que se rompe o equilíbrio entre os
códigos habituais da oferta e as competências treinadas do público homólogo[16]. O que observámos
foram indícios de uma completa desatenção perceptiva, uma forma de recepção
pela não‑recepção, possível em espaços informais e conviviais como o B
Flat e a Praia da Luz, mas incompatível com a “rigidez” do teatro municipal.
1.2. Theatrum
mundi ou o palco do público.
Cláudia
de Oliveira retoma Bernard Dort para defender a ideia de uma delimitação de
fronteiras entre espaços de representação distintos: o dos artistas e o dos
espectadores: “De facto, verificamos que
os espectadores têm no foyer o espaço de representação para um público
imaginário. Se a sala os “bane” da cena, eles encontram nesse recanto do teatro
a sua própria cena, onde se “representa” a peça do público (...) através das
observações desenvolvidas, tornou‑se explícito que o intervalo retirava
ao público o anonimato da sala, devolvendo‑lhe a possibilidade de usar o
seu corpo e a palavra”[17]. Não poderíamos
estar mais de acordo, com excepção de um aspecto fundamental: o público‑alvo
desta representação “secundária” não é meramente imaginário. É um público real,
visível, quase palpável e sujeito a uma avaliação pragmática no contexto de
interacção. Os actores que são também o público do seu próprio espectáculo,
accionam uma panóplia de rituais e de competências avaliativas, assentes em
convenções culturais de apresentação em cena, que lhes permitem, mediante a
utilização desses sistemas codificados (linguísticos, gestuais, corporais no
sentido mais vasto), fazer referência a signos e valores ausentes da percepção
imediata (carácter simbólico da interacção)[18], que remetem para
diferentes posições nos processos de construção social da realidade. Por isso,
sem deixar de compartilhar com a representação “primeira” qualidades “lúdicas, ficcionais e ilusórias” o jogo
social acarreta, igualmente, consequências reais e objectivas.
As
regras de cortesia tradicionais atingem nos intervalos de determinados
espectáculos do Rivoli que se realizam no grande auditório (em especial na
música e bailado clássicos) a sua expressão mais visível. Nos restantes espaços
do teatro municipal, na Praia da Luz e no B Flat a informalidade reinante
(embora por vezes estudada) permite a interacção entre artistas e público,
aliás muito próximos fisicamente. Há espectáculos no B Flat, em especial quando
se toca um tipo de jazz dançável, que
levam o público a uma grande exuberância de sinais, batendo palmas
sincopadamente com o ritmo. Esta constitui uma forma frequente de recepção
activa, apesar de não se manifestar verbalmente, de forma intelectual ou
analítica, modalidade frequente através dos comentários e das conversas em
comum, em que se desconstrói a pluralidade de conteúdos e de mensagens do espectáculo
a que se assistiu, de forma a integrá‑las, depois de “trabalhadas” de
acordo com o horizonte de expectativa
de cada agente, em modos de percepção estabelecidos
que são, eles próprios, objectos de uma acumulação de repertórios e de capital
informacional sujeitos a uma constante reprodução
interpretativa[19], de acordo com as
novas apropriações perceptivas. De facto, não há mimesis na recepção das obras, tão pouco mera interiorização
indiferenciada e mecânica dos seus significados. Tudo depende, a nosso ver, de
uma tríade fundamental: a estrutura da obra, o sistema de referências e o
projecto cultural do receptor (ou a sua ausência) e o cenário de interacção
onde se desenrola a apreensão da mesma. Frequentemente, esta cadeia de
interrelações e negociações, traduz‑se corporalmente em estados
receptivos exteriorizados e captados pelas grelhas analíticas do investigador.
Um cantor de um grupo de blues que
salta repentinamente para uma mesa, contaminando a assistência com a sua
espontaneidade (calculada?), quebrando e desmistificando (ainda que para a
reforçar...) a fronteira que divide artistas e audiência, teria grande
probabilidade de ser recebido com entusiasmo no B Flat, como de facto
aconteceu, ou no café concerto do Rivoli, mas encontraria barreiras físicas e
cognitivas no grande auditório do teatro municipal, onde o próprio conforto
reinante convida a uma agradável posição de espectador calmo e corporalmente
menos activo.
Esta
questão leva‑nos a exprimir uma discordância face às teses
ultrapessimistas da teoria crítica de Richard Sennett sobre os comportamentos
na esfera pública e semi‑pública. De acordo com este autor, a sociedade
íntima destruiu a expressividade na arena pública, já que a moral da
autenticidade desenvolve uma relação hostil com a teatralidade dos papéis
sociais. Dito de outra forma, as máscaras, as convenções e as regras de
relacionamento são consideradas obstáculos ao processo mútuo de auto‑ desvendamento de que nos fala Giddens[20]. Perde‑se,
ainda segundo Sennett, a criatividade existente na distância que existia entre
a representação e o self, outrora
mais resguardado. Sennett interpreta toda a teoria da interacção desenvolvida
por Goffman como um sinal de que os papéis sociais se tornaram meramente
acomodativos face à situação[21]. Todavia, todo o
nosso trabalho de observação directa metódica e sistemática permitiu‑nos
registar uma grande variedade comportamental associada à componente contextual
da representação de papéis em que se mantêm distâncias significativas entre a
apresentação em cena e os domínios recônditos do self, bem como uma diversidade assinalável de reacções face à
definição da situação.
Serge
Collet defende que o espectador é ainda um actor “no momento de circulação das impressões e de julgamentos, de um
espectador a outro, de um espectador a um futuro espectador”[22]. Reencontramos,
nesta afirmação, a ênfase que DiMaggio coloca na cultura como motivação para a
mobilização grupal e para a interacção colectiva, mesmo que tal se faça com
sacrifício dos seus significados intencionais. De facto, registamos centenas de
pequenas conversas que ocorriam no intervalo das actuações, ou após o seu fim,
transmitindo uma sensação que a nosso ver se aproxima do significado que Eco
pretendia com o conceito de “obra aberta”.
No entanto, as conversas direccionadas para o
debate e apreciação do espectáculo são apenas maioritárias no pequeno e grande
auditório do Rivoli, reenviando‑nos para um tipo de recepção mais
analítica e reflexiva, em que o receptor integra e relaciona várias dimensões,
desenvolvendo mesmo a competência de pensar sobre a sua própria percepção[23]. Geralmente são os
espectadores mais familiarizados com o género artístico em questão, que
conhecem o percurso dos artistas e que acumulam informação de várias fontes, em
particular através da crítica especializada[24]. No outro oposto do
continuum, temos a recepção feita corpo, ao nível da consciência prática e dos
juízos estéticos implícitos e não formulados discursivamente: “o espectador está preso ao que percepciona (...)
estabelece uma relação mais sentida que conceptualizada entre os diferentes
significantes do espectáculo e os seus significados”[25]. De certa maneira
fora deste eixo está a não‑recepção que é, paradoxalmente, um tipo
específico de recepção (constitui um registo cognitivo, uma atitude) e que
encontra expressão adequada nas várias dezenas de registos de situações de
interacção em que os temas de conversa se desviavam totalmente do campo
semântico da representação, versando desde as insinuações sexuais mais ou menos
subtis (público adolescente da Praia da Luz); os comentários cosmopolitas e
mundanos sobre destinos de viagens (jovens adultos quer do B Flat, quer da
Praia da Luz[26]); futebol (Praia da
Luz, adolescentes); percursos escolares (estudantes universitários, comum aos
três espaços); gastronomia requintada (adultos, B Flat); avaliações do grau de
diversão da noite anterior (Praia da Luz, adolescentes e jovens adultos);
apreciações sobre pessoas ausentes (comum aos três espaços e a todas as faixas
etárias); etc.
Em suma,
nos “palcos” em que os espectadores se tornam actores, antes mesmo de analisar
o tipo de recepção em eixos que podem ir da percepção imediata/espontânea, à
percepção analítica ou percepção do “esteta”
ou do “sábio” à da “gente comum”[27], ou ainda da
percepção intelectual à percepção corporal/sensual[28], importa considerar
o projecto cultural dos agentes em questão. Dito de outra forma, urge conhecer
a constelação e hierarquia de motivos que os levam a estar presentes num
determinado local para assistir a um determinado espectáculo: razões
intrínsecas ao mesmo (qualidade, curiosidade, familiarização preexistente,
etc.)?; impulso convivial, no quadro de uma ética de diversão?; desejo de
distinção e reconhecimento social?; vontade de “aprender” com o contacto com a
obra e os artistas, compensando um défice de formação cultural?; querer estar
na moda e manter‑se actualizado?; atracção pelo cenário onde decorre o
espectáculo; combinações entre estes e outros possíveis motivos?
O Quadro I fornece‑nos algumas
pistas a esse respeito. Com efeito, a escolha de um dos três locais em análise,
como se pode constatar, obedece, antes de mais (22.2%, se não contarmos com os inquiridos que assinalam vários
elementos) a factores extrínsecos ao próprio lugar e que têm a ver com as redes
de sociabilidade, o que confirma pistas interpretativas lançadas em capítulos
anteriores. Seguem‑se as dimensões intrínsecas ao espaço em questão e
apenas em terceiro lugar as motivações ligadas à aprendizagem e fruição
culturais. Ou seja, muitas das pessoas que frequentam os locais de espectáculo
fazem‑no também por outras razões que não as directamente ligadas à sua
vocação principal (com excepção da Praia da Luz, onde as apresentações
culturais aparecem como reforço da função principal de
bar/restaurante/esplanada). Podemos mesmo considerar que o peso relativo dos
“activistas culturais” é reduzido e minoritário. Por outras palavras, os usos
dos locais de cultura não se cingem às utilizações culturais no seu sentido
mais estrito e denunciam, igualmente, uma recomposição profunda do campo
cultural e das suas práticas.
Quadro I - Factores predominantes para a presença no local por capital
escolar de ego
Capital Escolar de Ego |
|||
Factores Predominantes para a presença no local |
Baixo N=24 (5,4%) |
Médio N=99 (22,5%) |
Alto N=318 (72,1%) |
Factores Intrínsecos N=82 (18,6%) |
8,3 |
15,2 |
20,4 |
Factores Extrínsecos de Sociabilidade N=98 (22,2%) |
12,5 |
38,4 |
17,9 |
Factores Extrínsecos de Cultura de Saídas N=57 (12,9%) |
25,0 |
13,1 |
11,9 |
Factores Extrínsecos de Aprendizagem e Fruição Cultural N=69 (15,6%) |
29,2 |
12,1 |
15,7 |
Factores Vários N=135 (30,6%) |
25,0 |
21,2 |
34,0 |
2. Recepção cultural e horizonte de expectativa.
Se
analisarmos o Quadro II constatamos
que o espectáculo a que os inquiridos acabaram de assistir apenas frustrou as
expectativas para uma minoria. Para a maior parte dos indivíduos que possuem um
médio ou alto capital escolar, as expectativas foram correspondidas e para um
número significativo, ainda que menor, a exibição excedeu as expectativas.
Aliás, o mesmo aconteceu para a maioria dos inquiridos com um baixo capital
escolar.
Algumas
ilações podem ser retiradas a partir destes resultados. Por um lado, a relativa
adequação mútua entre o espectáculo e as expectativas criadas a seu respeito.
Tal poderá indicar um grau elevado de familiarização com o género em questão,
os códigos utilizados, a interpretação dos artistas ou o seu percurso. Não há
grande margem de manobra para surpresas, sejam elas agradáveis ou
decepcionantes. A recepção actua no horizonte de uma certa previsibilidade.
Quadro II - Opinião sobre o espectáculo por capital escolar de ego
Capital Escolar de Ego |
|||
Opinião sobre o Espectáculo |
Baixo N=20 (5,1%) |
Médio N=84 (21,4%) |
Alto N=289 (73,5%) |
Excedeu Expectativas N=139 (35,4%) |
70,0 |
35,7 |
32,9 |
Correspondeu às Expectativas N=199 (50,6%) |
25,0 |
47,6 |
53,3 |
Frustrou as Expectativas N=40 (10,2%) |
5,0 |
15,5 |
9,0 |
Outra Resposta N=15 (3,8%) |
|
1,2 |
4,8 |
Como o
próprio Jauss refere, a recepção está em boa parte inscrita na própria obra e
na relação que o receptor estabelece com as obras antecedentes. Starobinski
acentua este aspecto, ao sublinhar que “que
uma obra (...) não se apresenta como uma novidade absoluta surgindo num deserto
de informação (...) o novo texto evoca para o leitor (ou auditor) o horizonte
de expectativas e de regras do jogo com o qual os textos anteriores o
familiarizaram”[29]. Esta, no entanto, não esgota o campo de possíveis
da recepção. Repare‑se que, para a maior parte dos inquiridos com baixo
capital escolar, as expectativas foram ultrapassadas pela positiva.
Provavelmente estes inquiridos “usufruem” de uma maior liberdade e indeterminação
interpretativas na medida em que foram menos colonizados e socializados pelas
regras legítimas do jogo receptivo. Estas hipóteses compreensivas não
invalidam, bem entendido, que no conjunto dos que não foram “surpreendidos”
pela representação não coexistam atitudes receptivas heterogéneas. O julgamento
estético e a apropriação activa da obra, mesmo actuando num sistema de
referências ou guião preestabelecidos relativamente rígido, não são isentos de
novidade e modificação.
Conhece‑se
a este respeito o critério de qualidade estabelecido por Jauss. Sempre que a
obra confirma um determinado horizonte de
expectativa, ela aproxima‑se da “arte
culinária”, que preenche essencialmente funções de “simples divertimento”[30]. Pelo contrário,
existindo um desvio ou hiato entre o horizonte
de expectativa do receptor e a obra, abre‑se o espaço à inovação e à “mudança de horizonte”, característica
seminal do artístico.
Ora,
seguindo à letra estes critérios, poderíamos um tanto ou quanto apressadamente
pensar que a maior parte dos inquiridos com médio e alto capital escolar se
confronta com um tipo de arte que cumpre perfeitamente “a expectativa suscitada pelas orientações do gosto dominante, satisfaz
o desejo de ver o belo reproduzido sob formas familiares, confirma a
sensibilidade nos seus hábitos”[31]. E no entanto Jauss
pensa fundamentalmente na sociedade do espectáculo, aquela que “serve o «sensacional» sob a forma de
experiências estranhas à vida quotidiana (...) ou então levanta problemas
morais — mas apenas para os «resolver» no sentido mais edificante”[32].
Se aqui
levantamos este paradoxo foi com a intenção de colocarmos em evidência algumas
das ambiguidades que a proposta de Jauss acarreta. Não só a dicotomia “arte culinária”/”verdadeira arte”[33] se revela reducionista
como, para fazer sentido, deve ser aplicada às formas de recepção competente da
“arte legítima”, por parte de “públicos legítimos”. Por outras palavras, se
estes vêem mais ou menos confortavelmente (re)confirmado o seu “horizonte de expectativa”, então
estamos em presença de uma atitude receptiva que aponta para a presença de uma “arte culinária”, mesmo que se trate de
uma obra que joga com as disposições cultivadas (herdadas e/ou adquiridas em
diferentes níveis de aprendizagem e socialização) de determinadas audiências.
Neste mesmo sentido, os inquiridos que são surpreendidos pelo espectáculo (e
que são maioritários, convém não esquecê‑lo, entre os que possuem apenas
um baixo capital escolar) constituem supostamente o núcleo que experimentou
novas experiências estéticas, reconfigurando o seu sistema de referências.
A grande
vantagem da teoria da recepção de Jauss reside, a nosso ver, na síntese que
efectua entre as correntes que defendem a irredutibilidade do estético a
qualquer coordenada político‑ideológica ou histórico‑social
(defendendo que as questões estéticas essenciais são de todos os tempos e
espaços) e as que recusam a existência do valor estético em absoluto, apoiando‑se
no relativismo cultural e sociológico. De facto, o conceito de horizonte de expectativa reconcilia a
história da arte com as histórias de vida dos agentes sociais mas, ao mesmo
tempo, postula um critério de validade artística, ao distanciar a Arte “com
maiúscula” da frugal e banal “arte
culinária”. E se é verdade que as apreciações estéticas (do especialista ou
do leigo mais ou menos “competente”) são histórica e culturalmente contigentes,
não podemos expulsar o problema do valor do campo da discussão (voltaremos a
esta questão no último capítulo).
De
qualquer forma, em termos de eficácia da pesquisa científica, somos levados a
concordar com Nathalie Heinich quando a autora refere que a questão crucial em
termos de análise da percepção estética é: “O
que vê quem? O que vêem aqueles que vão ver, e em que condições o que eles vêem
(o que entendem, ou sentem, ou tocam) é por eles apreendido em termos de beleza
ou ausência de beleza?”[34]. Neste âmbito,
nesta aproximação à percepção estética da gente comum, não pode haver qualquer
cedência a critérios ou julgamentos de valor sobre a qualidade das obras. Tão
pouco podemos aferir da qualidade das obras pela qualidade dos públicos e vice‑versa.
3. Representações sociais da recepção.
Atente‑se
no Quadro III. Aparentemente ao contrário
do que anteriormente constatámos, a esmagadora maioria dos inquiridos declara
que as principais ideias e impressões que lhes foram transmitidas pelo
espectáculo a que assistiram se relacionam com características intrínsecas ao
espectáculo[35], próprias de uma
apreciação mais cuidada, intelectual e analítica, ao contrário da primeira
categoria que se associa claramente a uma dimensão emocional e vivida.
Como
explicar tal disparidade? A nosso ver, ela pode residir numa definição
“defensiva” de identidade face ao objecto “legítimo” de recolha de informação
que é o inquérito por questionário. Ou seja, tendo subjacente ou presente a
imagem ideal de si projectada pelas suas representações sobre o espectáculo,
poderá ter havido uma crença amplamente partilhada, ainda que a níveis pouco
conscientes da acção, de que a revelação de estados emotivos totalmente
subjectivos (“fez‑me sentir bem”;
“causou‑me incómodo e terror”,
etc.) seria um “atestado” de incompetência receptiva que a si mesmos passariam;
por outras palavras, constituiria uma confissão involuntária de actos
receptivos pouco elaborados, ingénuos, rudes. E se a incompetência cultural
destes públicos, como anteriormente registámos, é, em termos dos códigos e
referências da “cultura legítima”, relativamente baixa, nada nos garante que
ignorem o seu nível de ignorância. Ou seja, enquanto frequentadores de espaços
de fruição de cultura, inseridos em redes vastas de sociabilidade, é‑lhes
exigido o domínio de um mínimo
denominador comum cultural que sustente repertórios suficientemente ágeis,
ainda que superficiais.
Quadro III - Ideias e impressões do espectáculo por capital escolar de
ego
Capital Escolar de Ego |
|||
Ideias/Impressões do Espectáculo |
Baixo N=13 (5,1%) |
Médio N=46 (18,0%) |
Alto N=197 (76,9%) |
Apropriação Pessoal do Espectáculo N=63 (24,6%) |
7,7 |
6,5 |
29,9 |
Características Intrínsecas ao Espectáculo N=193 (75,4%) |
92,3 |
95,5 |
70,1 |
Estaremos
assim eventualmente em presença de processos sócio‑cognitivos de auto‑categorização
social em que o domínio, ainda que aparente, de competências culturais se
revela central na reflexividade associada à definição de uma identidade real
e/ou imaginária. Como sustenta Jorge Vala, “a
identidade social pode ser concebida como decorrendo da resposta que os
indivíduos se dão à interrogação seguinte: «Quem sou eu?» (...) é provável que
uma parte da resposta a esta questão provenha de uma associação entre o eu e
diversas categorias sociais. Este processo de associação do eu a uma categoria
social (...) e a identidade que dele decorre são determinados tanto por
factores sócio‑estruturais como por fenómenos de comunicação, de
aprendizagem e de reflexividade”[36].
É certo
que, para alguns, um público não chega a ser um grupo social[37], mas em “situação de comunicação” falam uma “linguagem comum” e é essa linguagem que
faz dele “uma estrutura social, ainda que
muito amorfa”[38]. Veja‑se o Quadro IV.
Quadro IV - Razões de sustentação
da opinião sobre o espectáculo por capital escolar de ego
Capital Escolar de Ego |
|||
Razões de sustentação da opinião sobre o espectáculo |
Baixo N=15 (5,6%) |
Médio N=54 (20,1%) |
Alto N=200 (74,3%) |
Conhecimento pessoal da obra/género N=59 (21,9%) |
20,0 |
22,2 |
22,0 |
Qualidade do Espectáculo N=124 (46,1%) |
66,7 |
53,7 |
42,5 |
Qualidade da Interpretação/Execução N=82 (30,5%) |
13,3 |
24,1 |
33,5 |
Apropriação Pessoal do Espectáculo e da Interpretação N=4 (1,5%) |
|
|
2,0 |
Uma vez mais
os inquiridos respondem maioritariamente (e com um peso relativo que se torna
mais elevado em razão inversa ao capital escolar) que o essencial para
justificarem o grau de adequação do espectáculo a que assistiram face às suas
expectativas é a qualidade intrínseca do próprio espectáculo. As razões
relativas à qualidade da interpretação e execução da obra (uma dimensão
particular da qualidade global da representação) aparecem a seguir. A
apropriação pessoal do espectáculo tem um valor insignificante. Ou seja, somos
levados a pensar que a apropriação dominante é de tipo estético, embora
possamos falar desta categoria em sentido amplo. Com efeito, como refere
Russell Belk, opondo a recepção estética à recepção propriamente artística, “a apreciação estética de um obra não requer
nem o conhecimento do seu contexto histórico, nem informações sobre outras
obras, enquanto que uma apreciação artística ou própria da história de arte se
funda sobre um tal saber, em vez de se referir unicamente às características físicas,
intrínsecas da obra”[39]. Esta concepção
permite‑nos, uma vez mais, aproximar a análise das atitudes perceptivas
“leigas”, rejeitando qualquer tipo de etnocentrismo epistemológico. O que nos
causa perplexidade, no entanto, levando‑nos a falar de um efeito de construção de imagem com intuitos
comunicativos é a tão fraca ênfase colocada nos estilos cognitivos, ou seja, nas capacidades individuais de
tratamento da informação[40], em favor de uma
aparente descodificação da estrutura da obra, o que, para além de se desligar
de uma componente afectiva, nos remete para processos de familiarização com a
educação artística. O que, aliás, surge contraditoriamente face a outras
respostas, em que as motivações ligadas à sociabilidade apareciam, com excepção
de um segmento minoritário, como a dimensão mais significativa de organização
das saídas culturais.
As teses
de DiMaggio podem, de novo, fornecer‑nos esclarecimentos adicionais. Se o
interesse pela “alta cultura”, enquanto tema de conversa, favorece as
interacções em grupos de status privilegiados, canalizando, inclusivamente,
aspirações de mobilidade social, uma vez mais a construção de uma fachada relativamente frágil de adesão a
essas expressões culturais se coaduna com tais expectativas.
Em suma,
a aproximação a um conjunto de representações sociais da recepção contribui
para a elaboração reflexiva de um conceito de self (simultaneamente real, ideal e social[41]), ao mesmo tempo
orientado para si (auto‑identificação) e para os outros (componente
relacional). Os usos da recepção não são por isso neutros, obedecem ao valor de
signo dos consumos culturais e aos interesses do e no jogo social. O
mais curioso nestas representações consiste no afastamento face aos
estereótipos da doxa pós‑moderna de um consumo socialmente descentrado e
desinteressado, puramente hedonista, fragmentado, por vezes esquizofrénico,
assente numa desordem de significantes e sustentado pela emoção e afectividade
efémeras de quem pretende unir arte e vida. A recepção dominante revela, pelo
contrário, um entendimento surpreendentemente “estável” e coerente das
produções culturais, tomando‑as como objectos analisados intrinsecamente
e não a partir de estados flutuantes de espírito.
4. Televisão
e fast thinking.
Vários correntes
e autores têm vindo a alertar para a necessidade de não analisarmos a exposição
aos mass media e em particular à
televisão sem considerar o efeito de filtragem de instâncias mediadoras, como a
família, os amigos e outros círculos sociais. A própria noção de horizonte de expectativa pode ser
aplicada a este domínio, de forma a realçar a importância do património
cultural, vivencial e cognitivo dos receptores como variáveis activamente
implicadas nos processos de recepção e descodificação da mensagem televisiva.
Esta perspectiva contraria a visão largamente difundida que atribui aos mass media um impacto directo sobre a
forma como as pessoas fabricam e imaginam o mundo social. Pierre Bourdieu
resvala para esta posição dramático‑fatalista ao considerar, por exemplo,
que “a televisão tem uma espécie de
monopólio de facto sobre a formação dos cérebros de uma parte muito importante
da população”[42], acentuando o seu
potencial de “opressão simbólica” que
preenche “o tempo raro com vazio, com
nada ou quase‑nada”[43], Bourdieu sugere a
universos orwellianos “em que o mundo
social é descrito‑prescrito pela televisão, em que esta se transforma no
árbitro do acesso à existência social e política”[44].
Observemos, no entanto, o Quadro
V.
Quadro V - Comenta programas de TV por capital escolar de ego
Capital
Escolar de Ego |
||||
Comenta Programas de TV com Colegas ou Amigos? |
Baixo N=29 (5,8%) |
Médio N=105 (21,1%) |
Alto N=364 (73,1%) |
|
Sim N=452 (90,8%) |
96,6 |
93,3 |
89,6 |
|
Não N=46 (9,2%) |
3,4 |
6,7 |
10,4 |
|
A esmagadora maioria dos inquiridos comenta
habitualmente os programas televisivos com colegas ou amigos, independentemente
do nível de capital escolar que possui. Quais as razões que justificam, segundo
os inquiridos, este comportamento tão claramente registado? De acordo com o Quadro VI, a resposta reside na
capacidade de criticar os conteúdos da programação, sujeita igualmente a debate
e troca de impressões.
Quadro VI - Razões por que comenta programas de TV por capital escolar
de ego
Capital Escolar de Ego |
||||
Razões da Resposta à questão: Comenta Programas de TV com Colegas ou Amigos? |
Baixo N=6 (2,2%) |
Médio N=56 (20,9%) |
Alto N=206 (76,9%) |
|
Troca de Impressões Sobre Programas N=14 (5,2%) |
16,7 |
3,6 |
5,3 |
|
Atenção à Vida Política e Económica N=4 (1,5%) |
|
|
1,9 |
|
Crítica dos Programas N=66 (24,6%) |
|
26,8 |
24,8 |
|
Dialogar/Trocar Opiniões N=31 (11,6%) |
|
14,3 |
11,2 |
|
Não Sabe/Não Responde N=104 (38,8%) |
83,3 |
41,1 |
36,9 |
|
Outras Respostas N=49 (18,3%) |
|
14,3 |
19,9 |
|
O ofício de recepção prolonga‑se,
assim, para além do momento imediato de apropriação, (re)trabalhando a mensagem
inicial, corrigindo‑a, acrescentando‑lhe novos contornos,
assimilando selectivamente conteúdos. Certamente que a hipótese de uma
reprodução acrítica e passiva não pode ser posta de lado, em particular se
pensarmos nos mais desapossados de capital cultural e socialmente isolados. A
nossa amostra, convém uma vez mais referi‑lo, é extremamente singular,
contendo uma notória sobrerepresentação das camadas sociais mais favorecidas.
Contudo, não podemos negligenciar os mecanismos micro‑sociais de
influência, de índole intragrupal, em particular quando as mensagens não são
unívocas, transmitindo vários significados possíveis. Como refere Robert
Francès, “a passagem a uma situação de
grupo acarreta pouco a pouco um aumento importante do número de respostas dos
indivíduos, suscitando interpretações que superam a banalidade”[45]. O mesmo autor
acrescenta, mostrando a importância das redes de sociabilidade que “a influência micro‑social sobre a
percepção é mais intensa quando a vida em grupo é feita de trocas e de
interacções entre os seus membros”[46]. Aliás, ao
verificarmos, com mais pormenor, o significado das categorias contidas no
quadro anterior, deparamos com respostas como “crítica à programação”, “crítica
à falta de qualidade”, “debate/troca
de ideias/discussão/comentários”, “atenção
à vida política e económica”, etc., sugerindo uma atitude activa de
negociação de significados.
Claro
que isto não significa que sejamos ingénuos ao ponto de negarmos um efectivo
poder de manipulação e “opressão
simbólica”, através de um trabalho técnico‑político de bastidores que selecciona conteúdos (implicando
mecanismos mais ou menos voluntários de censura) e constrói realidades
fictícias e fantasiosas. Diana Crane, por exemplo, fala de uma subrepresentação
dos trabalhadores manuais nos programas televisivos e de uma sobrerepresentação
das profissões liberais e empresariais, a par de uma forte tendência para a
produção de conteúdos reconfortantes e uma fraca inclinação à promoção do risco
e da novidade[47]. No entanto, a
mesma autora salienta as diferentes formas de “ver” televisão, ao mesmo tempo
que sublinha as dificuldades das grandes sistemas organizacionais ligados à
comunicação de massas em percepcionar correctamente as suas audiências, factor
que os leva frequentemente a errar o “alvo” quanto ao perfil‑tipo dos
potenciais destinatários. Além do mais, contrariamente à visão extremamente
negativa que Bourdieu revela sobre os novos intermediários culturais, em
particular sobre os profissionais da comunicação, importa reintroduzir uma
perspectiva conflitual que exprima os conflitos de interesses e a ambivalência
do campo mediático (e as diferenças internas às novas classes), onde se confrontam e cruzam lógicas diferentes, não
se podendo erradicar, a priori a
possibilidade de expressão de mundividências emancipadoras.
O grande
contributo do estudo dos usos da cultura e das formas da recepção é,
precisamente, o de restituir a um objecto a sua multiplicidade, o seu cariz
plurívoco e conflitual, a sua íntima associação às novas formas mediadoras de
pensar e dizer o social.
[1] Tal investigação teve como motivo impulsionador a preparação de uma Dissertação de Doutoramento em Sociologia da Cultura, orientada pelo Professor José Madureira Pinto, e que recebeu o título de A Cidade e a Cultura. Um Estudo sobre Práticas Culturais Urbanas.
[2] Vd. Erving Goffman, A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias, Lisboa, Relógio d 'Água, 1993, p. 15.
[3] Goffman refere três vários tipos de atitudes possíveis: “por vezes o indivíduo agirá de modo inteiramente calculado (...) Por vezes o indivíduo continuará a calcular os seus actos mas permanecendo relativamente inconsciente de o estar a fazer. Por vezes expressar‑se‑á intencional e conscientemente de um modo determinado, mas fazendo‑o sobretudo porque a tradição do seu grupo ou categoria social exigem esse tipo de expressão (...) Por vezes as tradições ligadas ao papel de um indivíduo levá‑lo‑ão a causar uma impressão perfeitamente deliberada de um tipo particular e, apesar disso, ele pode não estar nem consciente nem inconscientemente decidido a causar o tipo de impressão correspondente”, Idem, ibidem, p. 17.
[4] Vd. Serge Collet in AAVV, Théâtre Public. Le Rôle du Spectateur, nº 55, 1984, p. 13.
[5] Os conceitos em itálico são da autoria de Goffman, vd. op. cit., p. 21 e p. 27.
[6] Vd. Pierre Bourdieu, “Le sens pratique” in Actes de La Recherche en Sciences Sociales, nº 1, 1976, p. 43.
[7] Idem, ibidem.
[8] Idem, ibidem, p. 60.
[9] Designação de Paul Connerton comentada por Miguel Vale de Almeida Vd. “Antropologia do corpo e da incorporação” in Miguel Vale de Almeida (org.), Corpo Presente, Oeiras, Celta Editora, 1996, p. 15.
[10] Idem, ibidem, p. 16.
[11] Vd. Jorge Vala, “Representações sociais e percepções intergrupais” in Análise Social, nº 140, 1997, p. 11.
[12] Vd. Cláudia Marisa Silva de Oliveira, A Vida em Silêncios Comunicantes. Análise Sociológica da Criação e da Recepção de um Espectáculo Teatral, Porto, Faculdade de Letras, 1997, p. 298.
[13] Vd. Robert Francès, La Perception, Paris, Presses Universitaires de France, 1992, p. 117.
[14] Registo de diário de campo.
[15] Vd. Pierre‑Michel Menger, “L'oreille
spéculative. Consommation et perception de la musique contemporaine” in Revue Française de Sociologie, XXVII,
1986, pp. 473‑475.
[16] Vd. Robert Francès, op. cit., pp. 117‑118.
[17] Vd. Cláudia Marisa de Oliveira, op. cit., pp. 193‑194.
[18] Cf., a propósito dos rituais e da sua eficácia simbólica, Jean Maisonneuve, Les Rituels, Paris, Presses Universitaires de France, 1988.
[19] Conceito proposto, na linha teórica de
Giddens, por William A. Corsaro, “Discussion, debate, and friendship processes:
peer discourse in U.S. and Italian nursery schools” in Sociology of Education, vol. 67, 1994, p. 2.
[20] Vd. Anthony Giddens, As Consequências da Modernidade, Oeiras, Celta Editora, 1992, p. 94: “As relações são laços baseados na confiança, uma confiança que não é pré‑determinada mas construída, e em que a construção envolvida significa um processo mútuo de auto‑desvendamento”.
[21] Vd. Richard Sennett, The Fall of Public Man, New York, Norton, 1992, pp. 33‑38.
[22] Vd. Serge Collet in AAVV, op. cit., p. 13.
[23] Vd. Anne‑Marie Gourdon, “Le public de
théâtre et sa perception” in AAVV, op.
cit., p. 9.
[24] Registamos uma conversa entre vários homens, na casa dos 50 anos, que conversavam animadamente sobre o festival de jazz do Rivoli. Um deles era unanimemente reconhecido pelos outros como “o especialista”. Não só tinha comprado bilhetes para todos os espectáculos, como possuía vasta informação sobre o programa, que lhes ia fornecendo.
[25] Vd. Anne‑Marie Gourdon, art. cit., p. 9.
[26] No B Flat registamos, entre outros, este excerto de conversa, entre um homem que aparentava ter cerca de 30 anos e uma rapariga mais nova: “Em Nova York havia uma discoteca muito estranha...de homossexuais... estava lá um tipo vestido de cabedal, com um chicote e começou a olhar para o meu amigo. Ele entrou em pânico! Eu, por precaução, andava sempre encostado à parede. Aquilo estava cheio, era uma loucura. Lá as pessoas são super‑radicais!”. De igual modo, captámos na Praia da Luz conversas sobre destinos de viagens mais ou menos exóticos, como Manaus ou Singapura: “Em Singapura, mesmo no aeroporto, tu não vês uma migalha no chão”. De certa forma, esta exteriorização de “cosmopolitismo” pode ser enquadrada em estratégias de distinção social.
[27] Vd. Nathalie Heinich, “Du jugement de goût à la perception esthetique” in Idalina Conde (coord.), Percepção Estética e Públicos da Cultura, Lisboa, Acarte/Fundação Calouste Gulbenkian, 1992, pp. 16‑17.
[28] Não sendo impossível fazer a síntese. François Aubral fala, por
exemplo, da “comoção estética” como
fruição activa, capaz de “tocar” no criador virtual que existe em cada agente,
vd. AAVV, op. cit., p. 31.
[29] Vd. Prefácio de Jean Starobinski à obra de Hans Robert Jauss, Pour une Esthétique de la Réception, Paris, Gallimard, 1978, p. 13.
[30] Hans Robert Jauss, op. cit., p. 53.
[31] Idem, ibidem.
[32] Idem, ibidem.
[33] Esta última expressão é da nossa autoria. Jauss nunca fala na “verdadeira arte”, mas não anda longe, ao referir‑se às qualidades do que é artístico, como a “mudança de horizonte”.
[34] Vd. Nathalie Heinich, art. cit., p. 11.
[35] Esta categoria resulta da agregação das seguintes respostas: “boa música/bom espectáculo” (Praia da Luz); “boa qualidade da música”, “desilusão pelo espectáculo” (B Flat) e “gostar de ouvir música tocada ao vivo”, “boa qualidade do som”, “lembranças da cultura alemã”, “o realismo do cinema português”, “os textos contundentes e provocatórios” (Rivoli). Por seu lado, a categoria “ideias/impressões associadas a uma apropriação pessoal do espectáculo” foi construída com base nos ítems “monotonia”, “ruído”, “ambiente invulgar” (Praia da Luz), “comunicação”, “monotonia”, “harmonia/calma/bem‑estar/prazer”, “alegria/ritmo/animação”, “interrupção da rotina e das preocupações” (B Flat) e ainda “Paz/bem‑estar/relaxamento”, “energia/alegria/simpatia”, “emoção”, “ajuda a viver”, “revolta face à sociedade”, “escuridão/morte”, “caos”, “moderno/criativo/variado/original”, “depressão/mundo cruel” (Rivoli).
[36] Vd. Jorge Vala, art. cit., p. 10.
[37] Vd. Read Bain citado por Jacques Leenhardt, “Recepção da obra de arte” in Mikel Dufrenne (org.), A estética e as Ciências da Arte, Amadora, Bertrand, 1982, p. 73.
[38] Idem, ibidem.
[39] Vd. Russell W. Belk, “La consommation symbolique d'art et de culture” in AAVV, Économie et Culture, Paris, La Documentation Française, 1987, p. 136.
[40] “A mesma obra de arte pode provocar múltiplas respostas num mesmo indivíduo”, vd. Idem, ibidem.
[41] Vd. Yves Evrard, “Les déterminants des consommations culturelles” in AAVV, Économie et Culture, ed. cit.
[42] Vd. Pierre Bourdieu, Sobre a Televisão, Oeiras, Celta Editora, 1997, p. 10.
[43] Idem, ibidem.
[44] Idem, ibidem, p. 15.
[45] Vd. Robert Francès, op. cit., p. 122.
[46] Idem, ibidem, p. 124.
[47] Vd. Diana Crane, The Production of Culture. Media and the Urban Arts, Newbary Park,
Sage, 1992.