Tenho perfeita consciência de quando e onde
nasceu o meu interesse pela fotografia, melhor dizendo pelo processo fotográfico.
Tinha 12 anos e acabara de fazer, como aluno externo, o exame do 2º
ano no liceu D. João III em Coimbra. Tendo apanhado uma boa nota
na disciplina de matemática, o meu professor, um jesuíta
que, para além da docência, era fotógrafo amador, para
premiar o feito ofereceu-me uma tarde de Sábado na câmara
escura onde pude descobrir os "segredos" da revelação, da
fixação e da impressão.
Dezassete anos mais tarde, em 1980, conheci em Maputo
o grande fotógrafo Ricardo Rangel, presidente da Associação
Moçambicana de Fotografia de que tenho a honra de ser sócio
fundador. É ele o autor da fotografia cuja imagem reproduzo neste
trabalho. Com Ricardo Rangel, Moira Forjaz, Jorge Almeida, Kok Nham, Camilo
dos Santos, e outros fotógrafos moçambicanos, comecei a perceber
a necessidade de educar o olhar para perceber a luz.
Em Agosto de 1839, quando o Estado francês,
por proposta do deputado François Arago, líder da oposição
democrática, compra a patente do daguerreótipo e a coloca
gratuita e democraticamente à disposição do público,
a sociedade ocidental desenvolvia um processo de grande mudança
económica, política, cultural e social que designamos por
modernidade.
Na invenção do processo de fabricação
mecânica das imagens, a que Sir John Herschel chamou fotografia,
é possível desvendar algumas marcas características
dessa modernidade. Marcas latentes, disponíveis para o trabalho
de revelação que está para além da leitura
imediata do registo impresso das imagens de inegável valor documental,
parte do enorme acervo de conserva cultural da humanidade que a fotografia
alimentou desde o dia da sua descoberta.
De há muito que eram conhecidos os princípios
da física óptica e da química que explicam a fotografia.
Muitos conhecimentos e experiências já feitas apontavam para
a grande descoberta em devir, seria apenas uma questão de tempo.
A invenção da fotografia é aqui
apresentada num enfoque que nos permite estudá-la como algo que
encontrou no espírito da modernidade o impulso decisivo para fazer
a sua aparição pública.
A "Camera Obscura" e as lentes são conhecidas
desde a Antiguidade e trazem consigo o carácter mágico e
polémico da representação da visibilidade das coisas
(mágico por disputar aos deuses a capacidade criadora e polémico
pelas implicações de verdade). Nem um nem outro impediram
a sua difusão pela Europa ao ponto de, para além da sua aplicação
nos estudos astronómicos, ser vulgar a sua utilização
como auxiliares no desenho e na pintura, pelo menos a partir de Leonardo
da Vinci.
Do mesmo modo era conhecido o processo químico
de escurecimento dos cloretos e nitratos de prata, atribuído inicialmente
à acção do ar e a partir do século XVI, como
noticia Angelo Sala, à acção directa da luz. No início
do século XIX, Thomas Wedgwood realizou experiências e conseguiu
registar silhuetas fugazes que rapidamente perdiam a definição
e se esvaneciam na escuridão total. Faltava apenas o conhecimento
necessário para "aprisionar" a imagem num suporte físico.
O "milagre" de Niépce e Daguerre, traduzido na
condenação da imagem mecânica à pena de prisão
perpétua, poderia ter sido adiado por muito mais tempo ainda, não
fora a necessidade premente que a nova sociedade burguesa sentia de dar
visibilidade à sua ascensão económica e social. É
este desejo que melhor justifica a oportunidade histórica da fotografia
e explica o enorme sucesso do invento.
O gosto da nobreza determinara o aparecimento do retrato
miniatura pintado nos mais diversos suportes. À redução
das dimensões teve como consequência uma redução
dos custos e uma baixa nos preços. Em breve, mandar pintar o retrato
deixará de ser um privilégio da aristocracia. E aquilo que
era o gosto da nobreza veio afinal servir para dar expressão às
tendências democráticas da revolução francesa
de 1789.
A jovem burguesia ascendente vê no retrato miniatura
"um meio de dar expressão ao seu culto do indivíduo", como
refere Gisèle Freund,(1)
mas também e por isso mesmo de rivalizar com a aristocracia. Estas
práticas igualitárias funcionam neste caso como a "rasoira
social" que têm pelo menos a virtude de apagar os traços de
distinção de uma classe. O nobre deixa de ser o único
a poder fazer-se representar e a ostentar esse símbolo de representação.
É claro que isto vai trazer profundas modificações
para o próprio artista. Como refere Habermas,(2)os
artistas vêem-se constrangidos a trabalhar para um mercado. O mercado,
por sua vez, encontra-se igualmente numa fase de profunda mudança,
em termos de uma facilitação económica e psicológica
de que vai resultar, por um lado, uma maior disseminação
dos bens culturais e por outro, uma lógica de rentabilidade segundo
a qual os bens culturais passam a ser produzidos para o mercado.
Assiste-se a um crescimento na procura dos retratos miniatura
e esta procura vai estar na origem do retrato-silhueta, um invento técnico
que permite uma maior simplificação e rapidez na feitura
dos retratos. A ascensão do público, já não
se trata simplesmente de uma tendência democrática mas de
uma conquista política, continua a justificar uma procura crescente
deste tipo de retrato. Novo estrangulamento se verifica e uma nova invenção
tecnológica surge para lhe dar resposta, desta vez é o fisionotraço
inventado em 1786 por Gilles-Louis Chrétien. Baseado no princípio
do pantógrafo, o novo invento combinava as técnicas da silhueta
e da gravura e até ao aparecimento da fotografia os estúdios
dos fisionotracistas, nos grandes centros urbanos onde se instalaram, afirmaram-se
como um verdadeiro sucesso comercial.
Desde que a imagem se democratiza que vamos assistir
ao seu crescimento endémico e imparável. Este movimento não
se inicia com a fotografia, vem desde a xilogravura, recebe um grande implemento
através da democatização da escrita com a invenção
da imprensa, marco decisivo na história da cultura humana, conhece
novas possibilidades de reprodução com a heliogravura e a
litografia mas vai ser a fotografia, a partir da descoberta do negativo
em vidro, que vai permitir a sua reprodução ilimitada.
Na viragem do século XVIII para o século
XIX, devido às características da democratização
e de um novo espaço urbano, os três tipos de retratos (miniatura,
silhueta e fisionotraço) não conseguem ainda dar uma resposta
satisfatória à procura crescente dos públicos. Já
é possível ver aqui uma corrida ao consumo e com ela a metamorfose
do público em massa, fenómeno directamente relacionado com
a crescente ascensão das massas e do seu protagonismo político
e social.
É também possível ver nestes três
produtos características típicas associadas ao fenómeno
do consumismo. Resultando desta procura, o retrato-silhueta e o fisionotraço
podem ser consideradas como degenerescências do retrato miniatura.
Também aqui, ao ganho na quantidade corresponde uma perda na qualidade.
De facto, o fisionotraço resultava numa produção em
série de retratos muito parecidos entre si, apesar das naturais
e evidentas diferenças entre cada um dos modelos, há uma
uniformidade de estilo imposta pelo próprio meio a que era impossível
escapar.
Resumindo, numa perspectiva do mercado da imagem, é
esta a situação quando é inventada a fotografia:
- assiste-se a um estrangulamento na capacidade de produção
de retratos de modo a responder à crescente procura do público;
- a qualidade dos retratos vai decrescendo com a introdução
de novas técnicas que visam aumentar a produtividade;
- o mercado do retrato estava limitado ao espaço
urbano.
Apesar do surto de migração dos campos
para os centros urbanos que se verifica com a revolução industrial
em curso, a grande massa do povo vivia ainda na província e vai
ter que esperar que a fotografia venha ao seu encontro para, também
o povo, através do retrato perpetuar no tempo a sua imagem, reconhecendo-lhe
assim a igualdade de oportunidade.
Mesmo que na esfera pública plebeia, para usar
a terminologia de Habermas, não se tenha sentido e exprimido aquela
necessidade que motivou o aparecimento da fotografia e que é característico
do modelo liberal da esfera pública burguesa, isto diz da particularidade
do invento que desde o seu aparecimento mostrou uma estreita ligação
às massas.
Certo porém é que o invento deu à
plebe a oportunidade de imitar a burguesia como o retrato miniatura dera
à burguesia a oportunidade de imitar a aristocracia e nesta precisa
medida exibe os traços da democratização que caracteriza
a modernidade.
A esfera pública burguesa é sem dúvida
o motor, o elemento dinâmico neste amplo processo de mudança
global da sociedade. O público burguês era até à
data do aparecimento do retrato fotográfico o público por
excelência do retrato miniatura e vai continuar a sê-lo até
por volta de 1850, altura em que a profissão de pintor de retratos
deixou de ser sustentável precisamente pela concorrência do
retrato fotográfico que, graças à utilização
do negativo em plástico chega a preços que "arrasam" toda
a concorrência. Mas o público burguês não é
um "target" no sentido actual deste termo. De facto, nesta altura ainda
é o público quem domina o mercado. É a partir dos
anos 50 através da reprodução massiva e em série,
que caracterizará também o mercado da fotografia, que o produto
se imporá ao consumidor.
A necessidade do público burguês mandar
fazer o seu retrato é o elemento comum entre o fisionotraço
e a fotografia, é neste sentido que podemos ver no fisionotraço
o precursor ideológico da fotografia, como diz Gisèle Freund.(3)
Os aspectos técnicos do novo invento nada têm
a ver com as técnicas de pintura ou desenho dos retratos. A fotografia
surge com as experiências químicas para revelar e fixar as
imagens e o seu "parente" mais próximo encontra-se na litografia
que terá inspirado Niépce nas suas descobertas. Isto reforça
a ideia de que, tratando-se a fotografia de algo verdadeiramente inovador,
não é um fenómeno de geração espontânea,
desligado do seu contexto. Atente-se então no contexto geral em
que o invento fotográfico se deve inserir. Desde logo no contexto
económico a fotografia surge como uma verdadeira revolução
tecnológica pois constitui uma resposta inovadora a uma situação
em que a procura de aumento de produtividade encontrara um estrangulamento.
Há ainda um outro aspecto verdadeiramente revolucionário
no processo fotográfico. É que, para além de responder
cabalmente à procura, com o retrato fotográfico vai-se verificar
uma inversão surpreendente na tendência crescente para a perda
de qualidade, característica dos retratos obtidos pela silhueta
e pelo fisionotraço e neste campo situamo-nos num aspecto particular
do contexto estético.
No contexto sócio-político podemos dizer,
com Gisèle Freund que acompanhamos de perto neste trabalho, que
" o retrato fotográfico corresponde a um estado particular da evolução
socialista: a ascensão de amplas camadas sociais em direcção
a um maior significado político e social." (4)
Como, finalmente, não podemos
deixar de olhar este fenómeno que qualificamos de revolucionário,
dentro de uma outra revolução certamente mais vasta e que
se encontrava em curso: a revolução industrial.
A "nova descoberta" vai ser oferecida a um público
que, embora reclamando-a com insistência, ainda não educou
o olhar para a racionalidade. O público reage à novidade
da fotografia traduzindo o seu natural espanto em expressões arcaicas
dos modelos de pensar, esquemas mentais e referências culturais das
antigas formas de poder, que a própria modernidade apostava em relegar
para um plano secundário.
O jornal londrino "The Times" de 24 de Março de
1841, ao fazer uma reportagem sobre a inauguração do primeiro
estúdio profissional de retrato em Inglaterra, situado nas águas
furtadas do Instituto Politécnico, hoje Universidade de Westminster,
inicia o artigo nestes termos: "O apartamento apropriado para o processo
mágico, se assim lhe podemos chamar..."(5)
O autor da reportagem poderia ter encontrado termos técnicos mais
de acordo com a realidade do processo fotográfico e consentâneo
com o espírito positivista da época, mas a fórmula
utilizada terá sido a mais adequada para atingir o público
a quem se dirigia e aquela que melhor traduzirá o relacionamento
do público com a fotografia. Nestas reminiscências de um passado
próximo há, sem dúvida, um obscurantismo cúmplice,
naturalmente baseado tanto numa economia de explicações como
numa poupança de esforço mental.
Nadar estabelecia um paralelismo entre a noite onde reinava
o Príncipe das Trevas e a câmara escura onde se desenvolvia
o processo fotográfico. Muitos fotógrafos alimentavam também
esse ambiente de misterioso secretismo que rodeava a sua actividade, com
uma série de rituais que talvez mais não pretendessem que
preservar a "alma do negócio".
O lendário gato de Rejlander, usado como um primitivo
fotómetro, era colocado no local destinado a quem iria posar. Examinando
a íris dos olhos do gato, extremamente sensíveis às
variações de luz, Rejlander decidia se as condições
eram adequadas para fotografar. Com a íris fechada tínhamos
fotografia, caso contrário mandava o cliente para casa à
espera de melhores dias! Para esta prática engenhosa o público
não procura a explicação racional, o que passa para
a memória colectiva é o insólito da situação
imediatamente associada às práticas de feitiçaria
onde era vulgar a presença deste felino.
John Szarkowski em 1975 refere num artigo publicado no
New York Times que " há uma geração, a fotografia
era ainda considerada pela maior parte das pessoas como uma especialidade
esotérica, praticada por indivíduos estreitamente relacionados
com os alquimistas".(6)
Mas, se um século de iluminismo ainda se mostrava
insuficiente para esclarecer as mentes e apagar estes tiques de linguagem,
pelo menos os fotógrafos já não corriam o risco de
ser lançados à fogueira.
Há sem dúvida algo de surpreendente no
momento em que a fotografia faz a sua aparição e há
uma compreensível excitação em torno deste invento
que pode ajudar a compreender esta atitude em relação à
fotografia. A maior surpresa era constatar que não era a mão
humana a responsável pela produção das imagens. Até
ao aparecimento da fotografia, a única imagem não feita pela
mão do homem, era a imagem de Cristo de que está impregnado
o Sudário de Turim.
"Imago lucis opera expressa", deixar a luz operar deve
ser o objectivo da presença discreta do fotógrafo que faz
da luz o artífice mágico das imagens que se fazem sózinhas.(7)
É a luz quem produz as imagens. A luz, matéria-prima de que
a fotografia vive, encontra a sua fonte primeira no astro rei, é
matéria divina criada pelos deuses que o homem ousa agora recriar.
Fazer fotografia era visto pelo público como lidar com forças
ocultas e nestes termos a fotografia é um desafio, uma provocação,
como refere Pedro Miguel Frade.(8)
Esta "archeiropoiética" da luz não deixa porém de
glorificar a capacidade criadora do homem que disputa aos deuses o protagonismo
na obra da criação. Deus disse: - Faça-se a luz! e
o homem disse à luz: - Faz as imagens!
É esta provocação que o Leipzig
City Advertiser não suporta e ataca nestes termos o anúncio
do prodigioso invento: "O desejo de capturar os reflexos evanescentes não
só é impossível, mas o mero desejo em si, a vontade
de assim o fazer, é uma blasfémia. Deus criou o Homem à
sua imagem, e nenhuma máquina feita pela mão humana pode
fixar a imagem de Deus. Será possível que Deus tenha abandonado
os Seus eternos princípios, e permita que um francês dê
ao mundo uma invenção do diabo?"(9)
Por ironia do destino será na Alemanha, durante a república
liberal de Weimar, que irão surgir os primeiros jornais ilustrados
dando assim início ao jornalismo fotográfico ou fotojornalismo.
Independentemente do teor do texto da notícia que nos diz da ideologia
que dominava o jornal, importa referir o papel da imprensa que em 1839
já se consolidara como um novo espaço público que
cria e garante contactos e comunicações permanentes.
Mas o invento não despertava apenas evocações
da magia e da feitiçaria. O francês Jean Claudet (1797-1867),
um dos primeiros comerciantes da fotografia e o primeiro a utilizar a luz
vermelha no laboratório (câmara escura), em 1851 mudou o seu
negócio para Londres onde abriu uma casa comercial a que pomposamente
chamou " Templo à Fotografia ". Este último exemplo, para
além das várias leituras optimistas onde se pode ver um claro
ascendente da actividade fotográfica (1851 é um ano chave
pois foi a partir desta data que se passou a utilizar o negativo em vidro
que permitia uma mais rápida e económica duplicação
das cópias), poderá revelar ainda pretensões a que
a nova técnica de produção mecânica de imagens
se afirmasse ela própria como valor de culto. Ora, para que algo
de tão insólito pudesse acontecer, era preciso viver-se uma
situação de crise e descrétito em relação
às próprias instituições religiosas. Claudet
candidatava-se a grande sacerdote da nova religião sabendo de antemão
que os fregueses estavam do seu lado.
Em relação ao poder político a atitude
de contestação é mais explícita e frontal.
A nova burguesia tinha já ganho a batalha política. É
elucidativa a história do parisiense que em 28 de Julho de 1831
expôs o seu retrato ao mesmo tempo que o de Luís Philippe,
fazendo-o acompanhar pela seguinte legenda: "Não existe qualquer
distância entre Philippe e eu; ele é rei-cidadão, eu
sou cidadão-rei."(10)
Num caso como no outro há uma crise de autoridade
evidente. Religião e aristocracia perdem o fervor, a dedicação
e a devoção dos seus fregueses. Estão criadas as condições
para o triunfo da ideologia burguesa.
Para além dos aspectos que atentam às relações
da fotografia com os públicos, tanto produtores como fruidores,
podemos ver nas características do próprio processo técnico,
marcas do passado que transitam para as novas formas de expressão,
latentes é certo, com o estigma da ameaça de desvanecimento,
algo condenado a desaparecer, registos fugazes e transitórios de
memória que podem ou não vir a ser revelados. Nesta procura
e decifração das marcas consiste o trabalho difícil
da arqueologia fotográfica (mas enfim, também só em
1840 Fox Talbot descobriu o fenómeno da imagem latente e diz-se
que acidentalmente).
Assim, nas primeiras fotografias, os daguerreótipos,
é possível detectar a presença da marca da peça
única e autêntica, característica fundamental na pintura.
De facto, o daguerreótipo registava na parte posterior da "camera
obscura" uma imagem em positivo, por um processo que podemos chamar de
positivo directo, sem a intervenção do negativo, inventado
mais tarde por Talbot. Muito embora fosse possível, tal como na
pintura, fazer imitações e fotografar o mesmo motivo por
várias vezes ou com múltiplas máquinas fotográficas,
em qualquer dos casos haveria sempre uma primeira, a autêntica, a
cada acto fotográfico corresponderia apenas um único exemplar
revelado e fixado. A descoberta do negativo é que constitui a chave
para a explicação da reprodução em série
da fotografia. Começa por ser em papel, depois em vidro, a seguir
em acetato e agora digital. Em qualquer dos casos, a lógica deste
aperfeiçoamento técnico obedeceu sempre às exigências
do mercado.
O relacionamento dos sujeitos com as obras de arte ou
com os bens culturais no período que vai de meados do século
XVII a meados do século XVIII também se vai alterar radicalmente,
em relação aos séculos que o antecederam. Mas, por
mais revolucionárias que possam ter sido as inovações
introduzidas pelas novas técnicas mecânicas de expressão
visual, há marcas mesmo nos novos dispositivos técnicos que
deixam prepassar a ideia de uma evolução eterna e harmoniosa.
O dispositivo de enquadramento, que já era importante na pintura,
é um bom exemplo desta marca profunda da evolução
na continuidade.
Philippe Dubois distingue com clareza entre o corte fotográfico
(découpe) e o enquadramento pictural (cadre). Assim, na pintura
o espaço já existe e o pintor introduz nele o assunto. Há
uma adjunção num espaço em que os limites já
estão previamente dados. O enquadramento pictural é um universo
encerrado. No corte fotográfico o enquadramento corresponde à
escolha de um assunto que já existe num espaço mais vasto
donde é retirado. O fotógrafo não adiciona, subtrai.
As diferenças são evidentes mas também
é óbvio que não pode deixar de se ver o mecanismo
ou dispositivo de enquadramento que persiste e lhes é comum, quer
ele condicione ou escolha, quer ele remeta para o interior, quer para o
exterior.
Metafóricamente, os limites traçados pelo
enquadramento são o elemento reorganizador da estabilidade eterna,
que perdura para além das convulsões, das derrocadas e de
todo o tipo de mudanças, precisamente porque são símbolo
de ordem e harmonia.
As formas geométricas só por si serão
insignificantes, mas não deixam por isso de ser reveladoras. Os
formatos da fotografia começam por ser quadrangulares e o que há
de mais estável e regular que um quadrado? Depois, procurando um
equilíbrio com o campo visual, adopta-se a proporção
do rectângulo dourado que é a figura continente de maior equilíbrio
e harmonia possível.
É impossível escapar a estes limites? Não
consigo responder categoricamente à questão (e isso também
pouco importa agora), mas acontece que nos géneros mais recentes
das formas de expressão visual, como é o caso das imagens
holográficas em que natureza do próprio suporte da imagem
parece não ter limites, não se vislumbra qualquer traço
de enquadramento.
Em resumo, é impossível olhar a fotografia,
invento revolucionário sem dúvida, como um processo que representa
um corte radical com as formas culturais que lhe são anteriores.
Além disso, o relacionamento do público com a fotografia
não implica uma mudança radical nas formas de pensar e nas
formas linguísticas que dão expressão ao pensamento.
A persistência da fotografia, a sua presença constante e crescente
na sociedade moderna, acabarão por ser um factor importante na mudança
da visão que o público tem de si próprio, dos outros,
das coisas e da vida.
A fotografia revelar-se-á como um importante meio
de educação do olhar para a modernidade. A fotografia olha
o público na sua modernidade e dá-lhe a possibilidade de
nela se rever, numa tomada de consciência, revelação
das marcas latentes de racionalidade que o público paulatinamente
vai trabalhando.
"You press the button, we do the rest". Com este slogan
publicitário Eastman introduziu no mercado, em 1888, a máquina
fotográfica Kodak, portátil, barata e com um rolo flexível
incorporado com capacidade para registar cem imagens que devia ser devolvido
com a máquina para posterior revelação. A fotografia
torna-se acessível a todos e o acto fotográfico da captura
das imagens fica assim ao alcance das massas.
A partir dos anos 70 entram em cena as grandes empresas
fotográficas. A Eastman na América e os laboratórios
dos irmãos Lumière em França. Com George Eastman (1854-1932),
assiste-se a uma estandartização dos materiais e equipamentos
fotográficos e com a introdução do chamado processo
seco, isto é, com a descoberta da emulsão de prata em gelatina
seca como matéria sensível aplicada no negativo de plástico
transparente, a duplicação das cópias torna-se ilimitada,
rápida e a muito baixos preços. Estamos perante um processo
de simplificação e de baixos custos característico
da produção em série dos bens de consumo. A revolução
industrial chega também à fotografia.
Walter Benjamin (13)
considera o primeiro decénio da fotografia, precisamente o que vai
desde o seu aparecimento até a esta industrialização
do processo, como o seu período de apogeu, em que se situam personalidades
como Nadar e em que, no seu entender, a fotografia conservava ainda a aura
característica da obra de arte antes da sua reprodutibilidade técnica.
À unicidade e durabilidade dos clichés de Daguerre contrapõe
a transitoriedade e a reprodutibilidade que surgem com a utilização
do negativo e a consequente industrialização da fotografia.
É a partir de 1850 que esta aura se perde e a fotografia adquire
a grande capacidade de reprodução tornando acessível
a todos mesmo aquilo que se encontra mais distante. A fotografia é
uma forma de apropriação tipicamente burguesa. Com a industrialização,
com a reprodutibilidade técnica da fotografia, novas formas de sociabilidade
se vão gerar. Benjamim encontra nesta industrialização
a noção de massa mas, ao olhá-la como uma forma sensível
como as pessoas se encontram e se aproximam, como uma forma de sociabilidade,
descobre nela ainda potencialidades criativas de emancipação
e resistência.
Mais radical é a posição de Adorno
que afirma que o indivíduo é ilusório (14)
e que falar de necessidade não é mais que uma desculpa esfarrapada
pois a indústria cultural produz, dirige e disciplina e suspende
inclusivé as necessidades dos consumidores.(15)A
indústria cultural é afinal o estilo do liberalismo.(16)
Adorno não vê associada à ideia de
cultura de massa qualquer ideia de democraticidade. A massa é uma
produção, surge como um produto da própria cultura
liberal burguesa. Refuta igualmente a tese da democraticidade do consumo,
da cultura acessível a todos, com o argumento de que o próprio
público é gerado pela indústria de cultura. Esta ideia
de público corresponde às audiências formatadas pela
uniformização da cultura de massa em que a diversidade é
apenas aparente e também ela programada e incutida artificialmente
na obra cultural, funcionando apenas como uma espécie de armadilha
para "apanhar" consumidores.
Resumindo, Benjamin reconhece na fotografia um período
pré-industrial em que ainda é possível encontrar traços
de modernidade. Adorno vê apenas indústria cultural mesmo
ainda na necessidade que no entender de Gisèle Freund justificara
o invento técnico.
Com este ensaio pretendi aflorar os meandros da teoria
da fotografia, realizar as primeiras provas de contacto com um tema que
permite várias abordagens. Para terminar vou socorrer-me ainda de
um trecho da apresentação de Arago que ao traçar as
previsões para o futuro do invento fotográfico o faz nestes
termos: "...de resto, quando os observadores aplicam um novo instrumento
ao estudo da natureza, aquilo que eles disso esperam é sempre pouca
coisa relativamente à sucessão de descobertas de que o instrumento
se torna origem. Neste género, é com o imprevisto que devemos
contar particularmente".
De facto, a fotografia é um momento chave da comunicação
de massa. Está na base do cinema e da televisão e é
quase omnipresente na "imensa panóplia de tecnologia do visível."(17)O
que aconteceu com a fotografia foi um extraordinário progresso,
não apenas no sentido das inovações tecnológicas
mas na "consubstanciação dos ideais de emancipação
e progresso que caracterizaram o iluminismo e libertaram a humanidade do
jugo tutelar dos preceitos da autoridade e dos preconceitos da tradição".(18)
É verdade que a partir de 1850 a fotografia se
afirma como uma indústria, sendo as "carte de visite" de Disderi
o exemplo que melhor ilustra este período. Mas é demasiado
redutor ver apenas aí o percurso da fotografia. Há aspectos
da relação da fotografia com o público que escapam
aos modelos de indústria. Se inicialmente a fotografia pode ser
vista como um contributo para o reforço da subjectividade, para
a descoberta do eu, a partir de 1850 ela parte para a descoberta dos outros.
Surge o fotojornalismo, a utilização da fotografia com propósitos
de denúncia das situações de miséria social,
surgem as reportagens de viagem contribuindo deste modo para a descoberta
do meio e para uma visão global do mundo. É verdade que estes
trajectos da fotografia foram sempre aproveitados por aquilo que Adorno
chama de indústria da cultura e que aparece sempre como o buraco
negro em que a humanidade mergulhou, directamente do obscurantismo da Idade
Média para o embrutecimento do consumismo.
Mas não será possível escapar a
esta fatalidade? Wynham Lewis ao exaltar a moderna tecnologia,(19)
naquilo que ficou conhecido por vorticismo, sugeriu aos fotógrafos
um olhar diferente para a complexidade da civilização industrial.
E ela parece demasiado complexa para se poder resumir à visão
redutora do modelo proposto pela escola crítica de Adorno. Neste
sentido, também a fotografia poderá ajudar a encontrar os
focos bruxuleantes de esperança em que Benjamin acreditava, que
resistem na sociedade industrial e se localizam na sua dimensão
humana.
Nos longos momentos em que o fotógrafo amador,
por puro prazer, lança um olhar mais atento em torno do que o rodeia,
procura um assunto e utiliza a máquina fotográfica (sempre
em modo manual e chamem-lhe embora prótese ocular); quando se "refugia"
na câmara escura, prepara os banhos químicos e, sempre por
puro prazer, faz reproduções que não procuram circuitos
comerciais para rentabilizar investimentos, mas antes um puro prazer estético
partilhado com um público muito restrito que, se quizer, pode alargar
ilimitadamente pondo gratuitamente à disposição de
todo o mundo, num circuito (ainda) democraticamente subversivo dos modelos
de mercado e monopólio, como é a World Wide Web; então
este sujeito é vítima ou resistente?
E se apenas é compreensível a linguagem
do mercado, direi ainda que os ganhos do indivíduo parecem, também
neste caso, incomparavelmente superiores aos da indústria, precisamente
porque são incomensuráveis.
O que é interessante na indústria da cultura
é ainda esta constante fricção entre o indivíduo
e os materiais que se traduz numa exploração das potencialidades
(não se trata da exploração capitalista) até
ao extremo das capacidades dos materiais e dos equipamentos e do próprio
indivíduo. O homem e as suas próteses são a forma
mutante gerada pela sociedade industrial, mas não deixam de ser
interessantes precisamente pelo seu carácter mutante. Mãos
de tesoura, olhos mecânicos... A sociedade produtora de formas aberrantes
pode ainda glorificar o homem.