armazéns de papel x armazéns digitais: a rede da NEO Interativa
Mirela Hoeltz *, Universidade de Santa Cruz do Sul
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Palavras-chave: revistas, multimídia, hipermídia.
Resumo: As ferramentas digitais têm facilitado imensamente o emprego de estratégias de design gráfico desenvolvidas para impressos sobre papel. Enquanto alguns designers buscam, no passado, ‘fórmulas’ que possam ser repetidamente aplicadas, outros procuram adaptar as práticas consolidadas às necessidades e possibilidades dos novos meios digitais. Emerge, assim, uma nova linguagem gráfica, que o presente trabalho procura identificar e discutir a partir de um estudo de caso de design para hipermídia – a revista Neo Interativa, editada em CD-ROM, no Brasil, entre os anos de 1994 e 1998.
Apresentação - A revista NEO Interativa, que se anunciava como “a primeira revista interativa brasileira”, foi lançada no outono de 1994. À venda apenas em lojas especializadas em artigos para informática, certamente era dirigida a um público bastante específico. A necessidade de computador multimídia [1] para acessar o conteúdo da revista restringia ainda mais, naquela época, o grupo de possíveis leitores. Em outubro de 1995, de posse de um microcomputador adequado, adquiri a edição de primeiro aniversário da revista.
A primeira novidade em relação às revistas impressas que constatei na NEO foi a abertura em áudio, na voz de um locutor que informava o que poderia ser encontrado naquela edição e as possibilidades de navegação. O que mais chamou minha atenção foi justamente o caráter dinâmico da publicação digital, a possibilidade de passar de uma tela para outra com simples toques em alguns símbolos que, conduzindo a novos documentos e logo a outros mais, me levaram a percorrer rapidamente boa parte da revista. Posteriormente, no entanto, constatei que eu não era capaz de recordar absolutamente nada do que havia lido. No início, achei que esse esquecimento poderia ser decorrente de minha falta de experiência com publicações eletrônicas. Propus-me, então, a recomeçar a ler a NEO Interativa.
Na segunda leitura, percebi algumas características da estrutura da revista e, sobretudo, a forma como ela própria me ‘conduzia’. As navegações sugeridas pelo áudio, por exemplo, induziam-me a ‘seguir as instruções’ do locutor. Enfatizando a função do navegador, que é de fato um elemento fundamental, o áudio me incentivava a folhear a revista sem me deter em textos específicos, ou muito menos seguir os links [2] internos de cada texto.
Percebi, ainda durante a segunda leitura, a amplitude do conjunto de áudio, texto e imagens que compunha a NEO Interativa. Ambientada, por razões profissionais, com o processo produtivo de jornais e revistas impressos, não pude deixar de me impressionar com a imensidão da tarefa de produção da NEO. Conhecimento tecnológico e habilidade técnica não seriam suficientes para a produção de uma publicação tão extensa. A quantidade de chamadas para editorias, o cuidado na seleção e edição de imagens, a variedade de textos que compõem cada edição resultavam, claramente, de muitas horas de dedicação e de trabalho em equipe.
Nesse ínterim, eu havia encontrado ainda outras questões perturbadoras a respeito da revista digital. A primeira e a mais intrigante dessas questões poderia ser resumida à seguinte formulação – o que faz com que uma revista, mesmo sem papel, continue sendo uma revista? Nascia assim a questão fundamental que norteou o desenvolvimento do presente trabalho, que pretende justamente identificar, a partir do caso da NEO Interativa, alguns indicadores desse processo.
Armazéns de papel - A palavra inglesa magazine, é derivada da francesa magasin, com a qual compartilha a origem árabe de armazém, que se refere à disponibilidade de mercadorias variadas em um único ponto de vendas. (Magazine Design, 1999, p.7) No Brasil, magazine designa as publicações periódicas, geralmente ilustradas e de conteúdo diversificado, e equivale, portanto, ao que chamamos de ‘revista’.
O projeto de um produto midiático leva em consideração uma série de elementos que ultrapassam as questões relativas aos assuntos ou temáticas. No caso de um veículo impresso é necessário, por exemplo, proceder à escolha do papel, decidir a introdução ou não de cores, definir (segundo critérios viáveis) o valor comercial dos espaços publicitários. A concepção de qualquer produto editorial que necessite manter uma periodicidade determina a adoção de alguns ordenamentos de conteúdo e de design que orienta a reutilização de algumas configurações. Significa, em outras palavras, que a utilização de recursos visuais e materiais - no caso da mídia impressa - confere a um projeto uma organização tal que, da primeira edição à última, é possível encontrar elementos que caracterizam uma dada publicação. Em suma,
quando um leitor olha o logotipo de uma revista, ele a identifica de longe na banca. Sabe que vai abrir Nova e encontrar uma estrutura visual diferente da que vê em Isto É ou Época. Essa identificação garante a fidelidade do público e torna mais reconhecível a publicação pela qual, seletivamente, ele optou como prazer de leitura. (A Revista no Brasil, 2000, p. 136)
Apesar de suas especificidades textuais e estéticas, no entanto, é possível dizer que os veículos impressos não diferem muito entre si. Os mais diversos jornais, por exemplo, organizam seus textos em colunas. Na grande maioria dos casos, a qualidade de impressão das revistas é superior à dos jornais – não apenas dos jornais diários, mas também daqueles que são semanais ou mesmo mensais. Esta organização da mídia impressa faz com que possamos tipificar os veículos, sem grande dificuldade, inclusive pelo seu suporte. Também é facilmente perceptível que os jornais brasileiros não diferem muito, em formato e design, dos jornais norte-americanos, argentinos ou portugueses. Considerando-se apenas sua apresentação, ou seja, em termos estritamente visuais, todos se ‘parecem’.
O progresso da indústria gráfica foi fundamental para o aprimoramento das revistas. A criação de publicações com abundância de gravuras, ilustrações e fotografias ajudou a construir a associação entre esse tipo de veículo e o lazer e a agregar um certo ‘luxo’ à idéia do que viria a ser uma revista no século XX. Hoje, as revistas mais conhecidas tendem a ser produtos de uma estrutura empresarial de porte significativo. Papel caro, impressão sofisticada, diagramação cuidadosa e grande utilização de cores requerem boa sustentação financeira. A revista é uma ‘janela’, geralmente colorida, que ajuda a compor um mundo diferente daquele que se visualiza nas páginas dos jornais. Por essa razão, há autores que afirmam que
a leitura de uma revista parece mais gostosa que a de um jornal, seja pelo conteúdo ou até pela forma como é lida. Não se lêem revistas somente para informação; muitas vezes, o ato de folheá-las já é um prazer.(Buitoni, 1986, p.18)
Na esteira dos avanços tecnológicos que
permitem a impressão de revistas cada vez mais sofisticadas, o advento dos recursos
digitais de edição implicou também o surgimento de meios mais potentes e velozes
de armazenar e recuperar informação do que o suporte material, predominante
desde pelo menos o início da escrita. Um único CD-ROM, por exemplo, pode conter
o conjunto completo dos textos publicados em um determinado jornal na última
década, sua capacidade de armazenamento equivale a 300.000 folhas escritas à
máquina, 7.000 imagens, várias horas de som e/ou a combinação de dados codificados
em diferentes formatos. (Bettetini, 1995, p.200) Mesmo no atual e incipiente
estágio de utilização dos mídias digitais, já é possível identificar impactos
que ultrapassam as questões meramente quantitativas, pois o advento dos suportes
eletrônicos vem afetando tanto o processo de
produção quanto a forma e o conteúdo das publicações. A profusão de enciclopédias
multimídia e dicionários com versão eletrônica disponíveis no mercado, bem como
o significativo número de revistas impressas que exibem na capa um CD-ROM que
funciona cada vez menos como um anexo e cada vez mais como o elemento central
da publicação, são indicadores de mudanças no suporte preferencial de produtos
que até recentemente só eram comercializados em versões impressas sobre papel.
Armazéns digitais - Portadores de mensagens sob forma de linguagens híbridas, os aplicativos em CD-ROMs e as páginas da World Wide Web inauguram um novo espaço midiático: a hipermídia. A hipermídia se caracteriza pela oferta de produtos em que o computador é usado para criar e manter conexões persistentes (chamadas links) entre seleções (chamadas âncoras) localizadas em partes específicas da mensagem (trechos de texto, áreas de imagem). O usuário/leitor pode navegar através das informações selecionando e seguindo esses links. Assim, o receptor (usuário, leitor) da hipermídia interage com um conjunto de configurações alternativas que compõem o produto midiático, o qual emerge como uma fonte aparentemente infinita de informações.
A hipermídia, identificada por Lévy como “a informática de comunicação naquilo que ela tem de mais original em relação às outras mídias” (Lévy, 1993, p. 19) é a inovação que mais claramente demonstra que o impacto da digitalização sobre a mídia impressa vai além das alterações no processo produtivo ou do suporte das publicações. Com o desenvolvimento dos suportes digitais, a própria caracterização do texto verbal pelo conjunto de parágrafos sucessivos, reunidos em artigos ou capítulos, impressos em papel e que se lêem habitualmente do início ao fim, vem sendo confrontada com as possibilidades do hipertexto [3] . As publicações hipermídia reúnem dados repartidos em unidades estruturais que George Landow, apropriando uma expressão da linguística, denomina lexias (Landow, 1997, p.73). As lexias hipertextuais não estão ligadas seqüencialmente, como ‘contas em um colar’, mas unidas por elos semânticos (os links), normalmente ancorados em uma palavra ou grafismo, que permitem passar de uma lexia a outra. Assim, enquanto o texto impresso propõe ao leitor um percurso fixo, o hipertexto permite eleger uma seqüência de leitura dentre as várias disponibilizadas pelo sistema. Ao percorrer as lexias, lendo os textos, visualizando as imagens e ouvindo os sons numa seqüência específica, o leitor constitui sua versão pessoal do hipertexto.
De todo modo, é preciso salientar que
o hipertexto pode apresentar-se como uma obra única, que tanto pode ser uma trama escrita para ser lida linha por linha como uma adaptação de uma obra impressa, às vezes tão ampliada para converter-se em um híbrido; uma trama também pode assumir a forma de agrupações de subconjuntos parecidos. Estas distinções surgem das limitações da atual tecnologia de armazenamento, que favorece a configuração de conjuntos de lexias em tramas discretas ou livros eletrônicos. (Landow, 1997, p.32)
Para alguns autores, utilizados separadamente, os recursos da hipermídia não são suficientes para caracterizar uma obra ou sistema como hipertextual (Laufer e Scavetta, s.d., p. 70-71). Ao desenvolver sua proposição nesse sentido, Roger Laufer e Domenico Scavetta sugerem que imaginemos um hipertexto ideal e elaboram para tanto uma lista do que seriam suas características:
- a base de dados é uma rede de nós textuais (e/ou gráficos) que pode ser pensado como um hiperdocumento ou um conjunto complexo de documentos;
- as ligações entre os nós são geradas pelo computador e vários nós podem ser ligados a um só. Estas ligações não se limitam a simples ligações hierárquicas;
- as janelas abertas na tela correspondem, de forma unívoca, aos nós no interior da base de dados e cada uma delas fixa o nome ou o título do elemento informação que contém. Só um número pequeno de nós, no entanto, está simultaneamente aberto na tela, sob a forma de janelas;
- as janelas podem conter vários ícones de ligação que apontam para outros nós presentes na base de dados. O ícone de ligação contém, num campo, um texto curto, que sugere o conteúdo do nó para o qual o ícone aponta. Pressionar com o mouse num ícone de ligação provoca a procura e a visualização, numa nova janela, do nó que se relaciona a ela;
- o leitor pode facilmente criar nós e novas ligações, seja para inserir novos nós (de anotações, de comentários, etc) seja para associar nós já existentes.(Laufer e Scavetta, s.d., p.71)
Note-se que os sistemas hipertextuais que acessamos atualmente não reúnem todas as características acima. Principalmente, as hiperconexões dos sistemas atuais estão pré-determinadas, não havendo, de modo geral, possibilidade de o leitor estabelecer novos links ou incorporar novos dados ao sistema. Permanece, assim, apesar dos discursos sobre a equalização dos papéis do autor e leitor de hipertexto, o predomínio das intenções da produção determinando e restringindo as possibilidades de recepção.
É preciso atentar também para o fato
de que a multilinearidade, apesar de apontada como uma exclusividade dos sistemas
de hipertexto, pode ser considerada presente na fragmentação dos textos em páginas
impressas. De fato, comparada à estrutura em colunas e à combinação de texto
e imagem característica das publicações impressas contemporâneas, é possível
dizer que a inovação da hipermídia reside, sobretudo, em seu suporte imaterial.
Esta diferença implica que
comparado com o texto tal como existe na tecnologia impressa, o hipertexto emprega diversas combinações de atomização e dispersão. À diferença da inalterabilidade espacial do texto reproduzido com a tecnologia do livro, o texto eletrônico sempre apresenta variantes, já que nenhum estado ou versão é definitivo; sempre pode ser alterado. Comparada com o texto impresso, a forma eletrônica parece relativamente dinâmica, já que sempre permite a correção, a atualização e outras modificações similares. (Landow, 1995. p.73)
Também decorre da imaterialidade do suporte da hipermídia a impressão de infinitas possibilidades combinatórias que configura a experiência de leitura de uma obra hipertextual. Ainda que não houvesse limites para a capacidade de armazenamento das unidades, a própria lógica do processo produtivo se encarregaria de limitar a extensão das obras hipermídia. Claramente delimitada pela necessidade de controlar custos e definir prazos, a aparente infinitude da hipermídia se resume à imaterialidade de seu ‘espaço de escritura’.
Toda tecnologia de escrita estabelece um ‘espaço de escritura’, mesmo porque os signos verbais apenas podem ser vistos e compreendidos quando estendidos em um espaço de pelo menos duas dimensões. Cada tecnologia nos dá um espaço diferente. Nos escritos mais antigos, o espaço era a superfície interna de um rolo contínuo, que o escritor dividia em colunas. Para a escrita manual do período medieval como para a impressão moderna, o espaço é a superfície branca da página, particularmente num volume encadernado. Para a escrita eletrônica, o espaço é a tela do computador onde o texto é visualizado e também a memória eletrônica em que o texto é armazenado. (Bolter, 1991, p. 11).
É nessa zona imaterial, da tela e da memória do computador, que o texto verbal e a imagem podem integrar-se efetivamente ao som e ao movimento, compondo uma nova linguagem, a chamada ‘multimídia’. A esse respeito é interessante lembrar que, assim como já foi dito em relação a multilinearidade, todo produto midiático pode ser encarado como multimídia. Afinal, formas híbridas de linguagem se encontram também nos jornais, na televisão, no cinema etc. De modo geral, os produtos midiáticos “nascem da conjugação simultânea de diversas linguagens . . . suas mensagens são compostas na mistura de códigos e processos sígnicos com estatutos semióticos diferenciais”. (Santaella, 1992, p. 24)
Quando afirmamos que todas as mídias já têm um caráter intermídia que implica no acoplamento de vários códigos de linguagens, basta pensarmos no jornal para que essa afirmação se torne patente. O jornal compõe-se da interação e simultaneidade da linguagem verbal escrita, da linguagem fotográfica e da linguagem gráfica, evidente esta na variação do tamanho e posição dos tipos gráficos no espaço da página como aspecto substantivo da mensagem. (Santaella, 1992, p. 27)
Rede de Redes - “Cada
mídia, devido à sua natureza, apresenta potenciais e limites que lhe são próprios”
(Santaella, 1992, p.20) e que nunca serão os mesmos de uma mídia para outra...
o que pode ser imediatamente observado, a partir disso, são as várias facetas da informação que um só receptor vai adquirindo na medida em que passa de uma mídia a outra: de ouvinte a espectador, de espectador a leitor, enquanto vai gradualmente formando sua opinião acerca de realidade a partir de uma multiplicidade de fontes. (Santaella, 1992, p.20)
As mídias se articulam em redes nas quais cada mídia em particular tem uma função específica. Por isso, o advento de uma nova mídia causa tensões que, gradativamente, vão se diluindo à medida que são redefinidas as prioridades e consolidadas as especificidades da nova mídia e da rede de mídias como um todo.
Nenhuma mídia parece poder funcionar independentemente, estabelecendo seu espaço cultural em separado das demais. . . . Nossa cultura concebe cada mídia, ou constelação midiática, segundo as formas como responde a, reorganiza, compete com e reforma outras mídias. (Bolter e Grusin, 1999, p.55)
Para que se entenda melhor o processo de articulação das mídias, Jay David Bolter e Richard Grusin (1999) propõem o conceito de ‘remediação’, a partir do qual pretendem avaliar as estratégias utilizadas pelos meios digitais para se constituírem enquanto mídia. A proposta traz em seu bojo duas outras lógicas que consolidam a sua base teórica: as acepções culturais da imediação e da hipermediação.
A lógica da imediação se traduz na intenção de fazer com que o meio propriamente dito ‘desapareça’ no processo de comunicação, criando uma sensação de presença do objeto representado. Em busca de resultados cada vez mais realistas e objetivos, a imediação procura apagar a intervenção autoral e aproximar os receptores.
Embora a lógica da imediação tenha predominado
na produção midiática desde o período renascentista até os dias de hoje, sua
história é marcada por um significativo paradoxo. No sucesso de uma estratégia
de imediação reside uma ironia – a de que é preciso
muito talento e trabalho para fazer a superfície desaparecer. Deste modo, e de fato, o sucesso do artista ao fazer desaparecer esse processo e, portanto, a si mesmo, tornou-se para os observadores treinados uma marca de seu talento e de sua presença. (Bolter e Grusin, 1999, p.24)
A tecnologia digital é expressa pela variedade de elementos representados em um mesmo plano. Ou seja, essa tecnologia clama pela lógica múltipla daquilo que Bolter e Grusin denominam hipermediação a qual, ao contrário da imediação, valoriza o processo, as ferramentas e o suporte midiático. Rompendo com a ilusão de representação realista, a hipermediação se traduz na multiplicação dos sinais de mediação, no destaque para a presença do meio e para a intervenção do designer.
Na hipermediação
o criador se esforça para que o receptor reconheça o meio como meio e se delicie nesse reconhecimento. Para tanto, procede uma multiplicação de espaços e meios, que repetidamente redefine as relações visuais e conceituais entre os espaços mediados, relações estas que podem variar da simples justaposição à completa absorção. (Bolter e Grusin, 1999, p.41-42)
Embora não tenha sido predominante nos últimos cinco séculos, como a imediação, a produção midiática nunca deixou de abrigar algumas manifestações da lógica da hipermediação. Desde o século XIX, sua presença vem se tornando cada vez mais freqüente em diferentes formatos e veículos. A colagem e a fotomontagem, que são exemplos inquestionáveis de uma estética associada ao modernismo do século XX, incorporam imagens fotográficas em reorganizações que definitivamente não buscam o realismo. O artista define a disposição e a interação das formas, retirando-as do contexto original e recombinando-as. A colagem e a fotomontagem são, sob esse ponto de vista, técnicas predecessoras da hipermídia, cuja estrutura implica antes de tudo um constante re-arranjo dos elementos existentes.
O processo de remediação se caracteriza pela utilização de conteúdos e especificidades estéticas e outros elementos desenvolvidos por e para um mídia por outra mídia. Diversos autores [4] identificam esse tipo de apropriação por parte de novas mídias mas, diferentemente de Bolter e Grusin, compreendem a remediação como uma característica do desenvolvimento inicial de um novo mídia que vai sendo abandonada à medida em que este meio encontra suas próprias formas de construção de significado e sua estética.
Em relação às mídias digitais, não são poucas as expectativas de que as práticas de remediação se encerrarão após um período inicial ou de transição. Para tanto, espera-se que o novo meio consiga definir formas de expressão inteiramente novas que passem a identificá-lo independentemente de eventuais referências a outros produtos midiáticos e veículos. Lúcia Santaella complementa afirmando que
com isso, o que essas novas mídias estão indicando, em primeiro lugar, é que elas se proliferam através do reaproveitamento das mídias já existentes, provocando um desvio produtivo no uso das tradicionais mídias de massa. (Santaella, 1992, p.29)
Para Bolter e Grusin, no entanto, é inadequado
pensar a remediação sob a ótica da progressão linear, em que uma mídia é substituída
ou incorporada por outra mídia. O conceito de remediação, conforme proposto
por Bolter e Grusin, não se refere simplesmente a uma apropriação de especificidades
de um meio por outro meio, mas diz respeito à contínua e permanente reorganização
dos vários meios, que vão se modificando sem que qualquer um deles necessariamente
desapareça. Mais provavelmente não existem rupturas quando surgem novos mídias,
o que ocorre são afiliações em que tanto a mídia nova é remediada pela antiga
quanto a mídia antiga pode vir a ser remediada pela nova.
Exemplos do processo de remediação são facilmente localizáveis na hipermídia [5] . Ainda que a história do hipertexto remonte, para muitos, no máximo à proposta do Memex, por Vannevar Bush em 1945 ou à cunhagem do termo ‘hipertexto’ por Ted Nelson nos anos 1960 (Laufer e Scavetta, s.d., p.52), seus fundamentos se encontra nos vários métodos e sistemas de indexação desenvolvidos ao longo da história da comunicação escrita. Sistemas de ‘linkagem’ similares aos propostos pelo hipertexto seriam, por exemplo, as enciclopédias, as taxon omias e mesmo as bibliotecas.
George Landow apresenta algumas formas de conversões de livros impressos para hipertexto que constituem exemplos bastante claros de práticas de remediação. Segundo ele, a primeira forma de conversão, e a menos interessante no seu ponto de vista, seria colocar o texto do volume impresso no ambiente informatizado. A segunda seria uma alteração da apresentação do texto adequando-o ao formato do monitor e, portanto, já subdividindo o texto em lexias e estabelecendo atalhos para as notas de rodapé. Ou ainda, o recurso de conversão que Landow sugere como o mais interessante, seria incluir materiais como comentários críticos, referências e outros elementos que surjam resgatando a concepção não-linear de hipertexto e aproveitando sua organização em rede.(Landow, 1997, p 32-33). Essas propostas relacionam-se diretamente às categorias de remediação propostos por Bolter e Grusin. Assim, no primeiro caso, trata-se de uma remediação do tipo ‘transparente’, em que o meio antigo é simplesmente transplantado para dentro do novo, sem qualquer ironia ou comentário aparente. No segundo caso, trata-se de uma remediação ‘translúcida’, em que a intenção é enfatizar a diferença entre o meio antigo e o novo, apresentando o novo meio como uma ‘melhoria’ em relação ao meio anterior. No último caso, a proposta é de uma remediação ‘remodeladora’, em que o mídia anterior é incorporado ao novo enfatizando-se as características de cada um sem aparente intenção valorativa. (Bolter e Grusin, 1999, p. 45-49).
Fechamento - As observações que descrevemos até aqui confirmam a hipótese fundamental deste trabalho, ou seja, que a NEO Interativa, que se anunciou como a primeira revista multimídia do Brasil, apresenta um conjunto de especificidades que permitem adotá-la como exemplo representativo das publicações hipermídia em geral. Cada uma das dezoito edições da NEO Interativa foi publicada exclusivamente em suporte digital (CD-ROM), apresenta estrutura hipertextual e faz uso de material codificado em várias linguagens (visual, verbal, escrita, sonora).
O projeto editorial e gráfico da NEO, apesar de audacioso para a época, revelou-se, profundamente influenciado pela lógica produtiva dos impressos. Observando os planos que compõem e mantêm a estrutura de uma publicação, encontramos uma consonância com o planejamento comercial. Alguns elementos que permitem afirmar esta identificação seriam, por exemplo: o fato de que a revista apresenta uma quantidade significativa de matérias com o aprofundamento característico das revistas impressas e uma estrutura gráfica própria de publicações com periodicidades mais extensas. Destaca-se, nesta estrutura gráfica, como uma característica inerente ao meio hipertextual, o fato de que os anúncios não disputam o espaço editorial nas telas das matérias de cada número, mas comparecem como hiperconexões disponibilizadas nas páginas fundamentais da publicação. É interessante notar também que a inclusão de aplicativos shareware em algumas edições tem paralelos com a distribuição de ‘brindes’ por revistas impressas. Tratam-se, no entanto, no caso da NEO Interativa, de brindes que contribuem para a própria fruição da revista como a criação de um índice de vídeos e fotos e a inclusão de tutoriais.
De fato não surpreende que, pelo menos neste momento inicial das tecnologias digitais, a lógica produtiva dos hipermídias não difira daquela já praticada nas publicações impressas. O processo produtivo dos produtos midiáticos segue padrões culturais, alicerçados em práticas consolidadas e que refletem especificidades das mídias antigas nas novas mídias. O que não se pode perder de vista é que “[os] manuscritos medievais apresentavam uma espécie de combinação hipertextual de tamanhos de letras, margens, ilustrações e outros adornos de texto, como a caligrafia e outras adições pictóricas” (Landow, 1995, p.72), o que de certa forma sugere a adequação de um movimento de ‘retorno’, da recuperação de determinados elementos.
O principal elemento que diferencia a NEO Interativa de suas contrapartidas impressas é a imaterialidade do suporte digital. Nos dias atuais, no entanto, o papel parece ainda ser o suporte adotado como referência para os meios eletrônicos. A folha de papel tem uma limitação espacial em que o plano contínuo e neutro permite (e até induz a) certas configurações. Todo material impresso em papel ocupa um espaço físico que, não preenchido, configura um vazio, compreendido, na sociedade industrial como na pós-industrial, um desperdício de material e trabalho. Uma vez que as variáveis econômicas que determinam o modo de apropriação do espaço na mídia impressa, as tecnologias de impressão e o mercado da publicidade são também alterados pela configuração desmaterializada da sociedade pós-industrial, é possível que estejamos no limiar de uma guinada nas diretrizes do projeto gráfico para impressos digitais.
Os condicionantes que o meio digital impõem ao design gráfico são muitos, iniciando pelo formato dos monitores cujas telas, apesar das previsões mais otimistas dos entusiastas da realidade virtual e da computação ubíqüa, parecem destinadas a permanecer padrão para as estações pessoais ainda por algumas décadas. Os impressos em papel podem ser produzidos em uma variedade de formatos o que, ainda que restrito aos melhores cortes para ótima utilização das folhas e bobinas, possibilita uma significativa diversidade de desenhos. A visualização em tela, no entanto, ainda que permita a inclusão de uma variedade de usos e aproveitamentos do espaço, implica sempre um ‘emolduramento’ no formato e proporção do monitor disponível. Deste modo, mesmo uma publicação projetada para formato redondo, por exemplo, será percebida circunscrita à moldura retangular, quando vista na tela de um monitor típico de microcomputador pessoal dos dias atuais.
As duas características fundamentais que identificam a hipermídia são o estabelecimento de hiperconexões e a plena integração do texto verbal e imagem com o som e o movimento, compondo a nova linguagem a que se convencionou chamar ‘multimídia’. Ambas as possibilidades decorrem diretamente da imaterialidade do suporte digital, que abrange tanto os bits e bytes os quais compõem a memória da máquina e dos discos quanto os pontos de luz visualizados na tela do computador.
Ainda que ‘amarrada’ às bordas da tela e à capacidade de memória dos dispositivos de arquivamento, a imaterialidade dos hipermeios confere uma sensação de infinito ao espaço da publicação. Como foi visto, enquanto uma revista impressa, livro ou jornal podem ser compreendidos e visualizados como o conjunto composto por todas as páginas, as unidades estruturais de uma publicação hipermídia só se revelam como telas (ou simbolicamente páginas) acessáveis consecutivamente. É impossível visualizar o conjunto das janelas que compõem uma edição de uma revista hipermídia como a NEO Interativa.
A mobilidade e a diversidade de navegações possibilitadas pela estruturação em links também são diretamente responsáveis pela sensação de infinitude que acomete o leitor de uma obra como a revista NEO Interativa. Decorre justamente do caráter fundamental da navegação para a fruição da revista que elementos como o navegador e as setas de movimentação entre páginas tenham sido posicionados nas principais zonas de visualização da área de projeto gráfico. É preciso notar, no entanto, que é justamente a ênfase nos instrumentos de navegação, que de qualquer modo seriam essenciais em uma obra hipermídia, que parece reduzir a intensidade da atenção ao conteúdo das matérias, convidando o leitor a uma navegação mais rápida e superficial pelo conteúdo da revista.
Para o leitor, as possibilidades combinatórias da NEO Interativa parecem, a princípio, infinitas. Ainda que não houvesse limite para a capacidade de armazenamento dos CD-ROMs, a própria lógica do processo produtivo necessariamente limita a extensão das edições da revista. É preciso notar ainda que, se o espaço da hipermídia é essencialmente complexo (Fragoso, 2000, s.p.), na NEO Interativa, a exemplo da maioria dos hipertextos atualmente disponíveis, as hiperconexões já estão pré-determinadas: o leitor não pode estabelecer novos links ou mesmo adicionar novos dados ao CD de uma edição da revista. A NEO Interativa contradiz, assim, os discursos sobre a equalização dos papéis do autor e do leitor de uma revista hipermídia - as hiperconexões expressam a vontade e limitação da produção. O leitor utiliza os links sugeridos pela produção e não encontrará nada mais do que a produção conseguiu finalizar para aquela edição. Desse modo, a revista hipermídia NEO Interativa remete muito mais diretamente às lógicas de produção e apreensão do texto impresso que às concepções anunciadas por aqueles autores mais otimistas em relação ao caráter libertador da digitalização dos mídias.
Assim como a mobilidade garantida pelas hiperconexões, a diversidade de mídias encontradas no caminho percorrido pelo leitor favorece a impressão de infinitude da obra hipermídia. Ao longo dos anos de publicação da NEO Interativa a utilização da integração de linguagens (verbal, visual, sonora) e hiperconexões parecem ter se aperfeiçoado. Na décima edição, por exemplo, ocorre um aumento considerável no número de telas e de imagens em movimento, isso fez com que fossem criados recursos não apenas de zoom, como na primeira edição, mas como a pausa e o retrocesso. A melhor integração das linguagens e os usos mais elaborados dos links indicam tanto um aprendizado por parte dos designers da NEO quanto um convite mais bem formulado para que o leitor efetivamente utilize os recursos próprios dos meios digitais.
Todos os recursos utilizados na revista NEO Interativa apresentam-se como apropriações de um mídia anterior. O principal recurso valorativo específico do meio digital, e da estrutura hipermídia, diz respeito aos links. É interessante reafirmar que esta constatação, assim como outras enunciadas ao longo do presente estudo não invalida ou desmerece o pioneirismo da NEO Interativa, ou mesmo seu estatuto como representante competente e fecundo do publicação hipermídia. A adoção, para a realização deste trabalho, do conceito de remediação implica fundamentalmente uma discordância daqueles autores que acreditam que a utilização de conteúdos e especificidades estéticas desenvolvidas por e para um tipo de mídia por qualquer outro caracteriza um momento inicial, de ‘amadurecimento’, que tende a ser abandonado à medida que o novo mídia encontra suas formas próprias de construção de significado e sua própria estética.
A remediação, como fazem questão de lembrar os próprios autores de sua formulação, constitui um processo natural e permanente da produção midiática. Nenhum mídia independe dos demais, funcionando todos em constante e permanente relação dialética com seus precursores, contemporâneos e predecessores.
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* Professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC/RS.
[1] Multimídia qualifica, aqui, um equipamento capaz de utilizar recursos de texto, imagens, sons e animação. A expressão ‘computador multimídia’ é geralmente associada à disponibilidade de um drive para acesso a informações gravadas em CD-ROMs (Compact Discs Read-Only Memory)
[2] O termo inglês link é traduzível como ‘ligação’. Seu significado específico em relação a hipermídia será discutido posteriormente.
[3] A expressão hipertexto, que aqui é utilizada como sinônimo de hipermídia, originalmente diz respeito a textos exclusivamente verbais estruturados em torno de links.
[4] Por exemplo Holzmann e McLuhan, referidos em Bolter e Grusin, 1999, p. 49.
[5] É importante perceber que, apesar de compartilharem o prefixo ‘hiper’, hipermídia e hipermediação são conceitos diferentes – o que não invalida a constatação de que a lógica da hipermediação é bastante freqüente na hipermídia.