Anabela Gradim, Universidade da Beira Interior
I. Vida e Obra de João de São Tomás
Aquele que ficou conhecido como Ioannis a Sancto Thoma, João
de São Tomás, nasceu a nove de Abril de 1589, em Lisboa,
sob o nome de João Poinsot. O seu pai, Pedro Poinsot, austríaco,
provavelmente de ascendência francesa, era secretário do arquiduque
Alberto da Áustria, e sua mãe, Maria Garcez,
de quem pouco se sabe, era uma fidalga portuguesa.
Ainda muito novo, João, também conhecido enquanto
estudante como Ponçote ou Peixoto, este último apelido um
aportuguesamento de Poinsot, inscreveu-se na Faculdade de Artes da Universidade
de Coimbra, e em 11 de Março de 1605 fez exame para bacharel, ficando
aprovado nemine discrepante.
Trindade Salgueiro (1940: 16), citando Quètif e alguns
biógrafos diz que recebeu o grau de laurea artium; outros, e, entre
eles, Maritain, dizem-no mestre em Artes. O que recebeu de certeza, segundo
os documentos do Arquivo da Universidade de Coimbra, foi, com a idade de
16 anos, o grau de bacharel.
Nesse mesmo ano, a 16 de Outubro, matriculou-se na Faculdade
de Teologia, frequentando as aulas até finais do ano seguinte. Após
1606, nada mais consta nos arquivos universitários referente
a João Poinsot, ao contrário do que sucedeu com o seu irmão,
Luis Poinsot, que também frequentou a universidade coimbrã.
O irmão mais velho de João, Luís, nunca
chegaria a sair de Portugal. Formou-se bacharel em artes e prestou
provas no mesmo dia que o seu irmão. Nesse mesmo ano, a 14 de Outubro,
no arquivo da universidade faz-se referência à sua matrícula
como ouvinte de Instituta. No primeiro dia do mês de Outubro de 1610,
torna a fazer-se referência ao seu nome, quando se matricula na Faculdade
de Teologia, agora já como religioso da Ordem da Santíssima
Trindade. Luís formou-se em 27 de Outubro de 1618, vindo, alguns
anos mais tarde, a ser nomeado professor da mesma faculdade onde estudara,
em 1637.
Voltando à vida do outro irmão Poinsot, e ao comentar
as razões que o levaram a sair da universidade coimbrã e
até a deixar o País, Trindade Salgueiro (1940: 17), seguindo
os passos de outros autores como Lavaud, Maritain e Quètif, supõe
que João
"[...] só em 1608 partiu para a Bélgica, chamado por seu pai, que para ali havia acompanhado o arquiduque Alberto, nomeado em 1598 governador dos Países Baixos, depois de casar com a infanta D. Isabel, filha de Filipe II".
Apanharemos de novo o rasto de João Poinsot num autêntico
barril de pólvora chamado Lovaina. Nessa cidade belga, considerada,
como nos diz António Manuel Gonçalves (1971: 672-673), "[...um]
centro teológico-filosófico que projectava a escolástica
hispânica o ensino de Jacques Janson, discípulo de Baio,
criou uma atmosfera de revolta contra as simultâneas decisões
condenatórias das doutrinas da graça, ditas de inspiração
agostiniana; decisões provocadas, diziam, sob a influência
dos que pretendiam justificar o seu molinismo. Foi neste ambiente de luta
que João Poinsot e Cornélio Jansénio cursaram Teologia
na universidade lovaniense".
João não terá sido indiferente a estas polémicas
e acabará mesmo por seguir um caminho oposto ao seu colega de curso.
Na qualidade de candidato ao bacharelato bíblico, que acabaria por
completar em 12 de Fevereiro de 1608, João fazia na Universidade
de Lovaina um primeiro exame sobre o tema De concursu liberi arbitrii.
Pouco tempo depois, naquela cidade belga, João Poinsot
vem a conhecer um homem que o influenciará decisivamente no caminho
que escolhe trilhar de futuro. Tratava-se de um mestre célebre no
seu tempo, o padre Tomás de Torres, um dominicano espanhol, antigo
aluno do convento de Santa Maria de Atocha, em Madrid. João, ligado
por fortes laços de amizade ao dominicano, resolveu, certamente
por sua influência, entrar na Ordem dos Pregadores.
Por pouco tempo, pois, esteve Poinsot em Lovaina depois de ter
concluído o seu bacharelato bíblico, já que o vamos
encontrar em 17 de Julho de 1609 a tomar o hábito dominicano em
Santa Maria de Atocha, escolhendo o nome com que para sempre irá
ser conhecido - Frei João de São Tomás. Passado um
ano, fazia a sua profissão religiosa.
O lisbonense prossegue os seus estudos em Atocha e passado pouco
tempo foi nomeado, segundo Trindade Salgueiro (1940:19) "leitor de artes,
mestre de estudantes de Atocha". João de São Tomás
iniciava a sua vida de magistério a ensinar Teologia, carreira que
por um breve período prosseguiu em Placência, sendo chamado
novamente para Atocha, sempre como professor das lições teológicas.
Os seus dotes intelectuais acabaram por não passar despercebidos
aos demais durante muito tempo e em 1625 foi mandado para Alcalá
de Henares, em cujo convento ensinou por longo tempo, primeiro Filosofia
e mais tarde Teologia.
Em 1630, Pedro de Tapia deixou a cadeira de Véspera para
passar à de Prima, e para o seu lugar foi convidado o dominicano
português. Durante onze anos regeu João de São Tomás
essa cadeira, passando em 1641 para a cadeira de Prima, mudança
essa provocada pela promoção de Pedro de Tapia a bispo de
Segóvia.
A fama da profundidade e subtileza do dominicano cresce e João
vai conhecer um novo papel o de inquisidor. Desta sua faceta, quase desconhecida
e nunca estudada, pouco se sabe, dando dela conta Frei Ignácio Menéndez
Reigada (1944: 632):
"[...] a fama de frei João de São Tomás corria por toda a Espanha, e de todas as partes a ele se dirigiam para o consultar e lhe confiar os assuntos mais delicados. Foi nomeado Qualificador do Conselho Supremo da Inquisição espanhola, ao mesmo tempo que outros teólogos eminentes, cometendo-lhe a elaboração do novo Índice dos Livros Proibidos".
Não é de surpreender, de resto, que lhe fosse acometida tal tarefa pois a Ordem dos Dominicanos concentrava quase o monopólio do exercício do braço armado da Igreja. Da actuação de João de São Tomás neste período da sua carreira, dá também conta Pinharanda Gomes (1985: 29):
"Embora fosse português, Filipe IV nomeou-o Inquisidor de Castela e Aragão. 'Nesse gravíssimo trabalho houve-se como era de esperar da sua grande sabedoria e zelo apostólico', tendo elaborado um Índex de Livros Proibidos. Fora também nomeado Qualificador e Censor do Santo Ofício de Coimbra".
Não é possível traçar o rasto de João nestas actividades, mas uma coisa pelo menos é certa: queimava livros, e não pessoas. Ao que tudo indica, a principal tarefa de João terá sido a colaboração prestada na elaboração daquele que ficou conhecido como o Grande Índice Expurgatório de 1624. Note-se que as referências que a história guardará em relação a este trabalho não são muito abonatórias. Raúl Rego (1982: 95) considera-o
"[...] um monumento repressivo, como outro não conhecemos, o
índice censório e expurgatório de 1624. Pelo seu volume
e formato, pelo esplendor da sua portada, pretensão do título,
mas sobretudo pela maneira como esquematizou quanto diga respeito a livros
suspeitos na fé e bons costumes, como catou todas as páginas
e sentenças, como juntou aos Índices da Igreja Universal
o que a Portugal diz respeito, o calhamaço constitui pedra básica
na evolução da censura eclesiástica em Portugal e
no mundo".
Elaborado pelo jesuíta Manuel Baltasar Álvares, cum relique Censorum Collegio, do qual apenas podemos supor que João de São Tomás terá feito parte, Raúl Rego defenderá, noutro trabalho (1989: 34) que
"[...] quem produziu um verdadeiro monumento de proibições, cortes expurgações, emendas e excomunhões foi o jesuíta padre Manuel Álvares, do grupo chamado dos Conimbricenses [...] A fúria desses censores é incrível. Não nos atenhamos aos grandes e pequenos heresiarcas, nem tão pouco a Erasmo, crivado de facadas, como Dante, Leão Hebreu, Jorge de Montemor, Camões e Cervantes, mas o arcebispo de Lisboa, D. Rodrigo da Cunha lá tem uma emenda qualquer, como a tem Clenardo, de Tomás Moro lá está a Utopia, e o piedoso frei Tomé de Jesus lá tem navalhadas nos seus Trabalhos de Jesus [...] Mas os mestres censores também são censurados!".
Deixando agora o trabalho censório, de que se desconhece
a extensão, do mestre lisbonense, mais certo na sua vida é
que em meados de 1643, os traços de personalidade de João
de São Tomás concorreram, definitivamente, para a decisão
de Filipe IV em escolhê-lo para seu confessor particular.
João tentou tudo para evitar que se cumprisse esta decisão
régia, chegando mesmo a alegar que, por ser português, não
era personagem indicada para o cargo. Debalde tentou evitar a honra, pois
acabaria por ter de submeter-se à disciplina religiosa, nada mais
lhe restando senão abandonar a quietude dos claustros e acompanhar
o rei à sua corte.
Reza a lenda, citada por Reiser referindo-se à biografia
elaborada por Ramirez, confrade e contemporâneo de João de
São Tomás, que desesperado, quando recebe guia de marcha
definitiva para a corte, terá exclamado: "Actum est, patres, de
vita mea. Mortuus sum. Orate pro me". Estas palavras premonitórias
levaram mesmo alguns biógrafos posteriores a supor que João
tivesse sido assassinado por envenenamento, todavia parecem não
subsistir quaisquer fundamentos para esta suspeita.
Ao que tudo indica, e de acordo com a narrativa de Ramirez, João
de São Tomás só se irritou, verdadeiramente, duas
vezes em toda a sua vida. Quando os padres capitulares da Atocha o elegeram
por duas vezes prior. De ambas recusou veementemente, pois, gostava demasiado
de Alcalá e do ensino para que os trocasse pelo governo das comunidades
religiosas. Como tal, não é de espantar a sua perplexidade
quando soube do interesse do rei em nomeá-lo para um cargo de tanta
responsabilidade e a que estava acometido muito poder.
De resto a época de tais sucessos era conturbada e o reino
atravessava uma verdadeira convulsão. A independência de Portugal,
em 1640, a revolta separatista da Catalunha, que teve o apoio de Richelieu,
o inevitável afastamento do conde duque de Olivares, que dirigiu
com mão de ferro os negócios do Estado como primeiro ministro,
caído em desgraça, marcavam a turbulenta conjuntura que se
vivia então.
Sem dúvida que João de São Tomás,
que nunca tinha demonstrado qualquer interesse pela vida fora da quietude
dos claustros, sofreu um grande desgosto quando foi sondado em 1643 pelo
ministro Luis de Haro para vir a ocupar o cargo de confessor régio.
Ao ministro, João respondera que havia um assunto prévio
a resolver, a saber: se o rei estava disposto a ouvir a verdade e a segui-la.
Filipe IV parece não se ter ofendido com tal exigência e deixou
o dominicano regressar a Alcalá para recomeçar as aulas,
mas com a ordem expressa de se apresentar em Madrid no Domingo de Ramos.
A vida dedicada ao ensino tinha terminado e o frade português
viu-se num ápice a participar numa vida pública de que sempre
fez questão de se alhear. Dois pedidos ao rei iniciam esta travessia:
primeiro, que jamais se lembre de lhe conceder qualquer dignidade; e em
segundo lugar que lhe seja diminuído o seu vencimento anual, reduzindo-o
ao estritamente indispensável. O resto do dinheiro, o rei mandá-lo-ia
dar aos pobres. Este total desprendimento perante os bens terrenos terá
impressionado o soberano, que o acolheu de bom grado.
O homem especulativo, chamado à política, passa
à acção e da sua pena saem em catadupa textos onde
emerge, segundo Quétif, citado por António Manuel Gonçalves
(1971: 673), o desprezo
"pela ambiguidade das questões fúteis e curiosas e a vaidade de disputas inúteis".
Seguindo os passos de António Manuel Gonçalves (1940: 677), sabe-se que João, neste período,
"[...] escreve para Filipe IV o Breve Tratado, y muy Importante que
por mandado de su Majestad escriviò el Reverendísimo Padre
Fray Juan de Santo Toma, para saber hacer una confesión general
- em plena guerra armada, consequente da peleja panfletária - sintetizando
doutrinação densa e incontroversa extraída dos acontecimentos.
Examina os 'Pecados en orden à la Iglesia, y al Papa'; precisa a
concepção da guerra justa ao dissertar 'Acerca de guerras
con otros Reys'; e critica judiciosamente a administração
pública em geral, escrevendo 'Acerca de los Ministros, Consejos
y Juntas', 'Acerca de los Vassalos, y su gravamen'.
Frei João de São Tomás aconselhava o soberano
a esclarecer o seu espírito com as virtualidades inerentes à
função régia, incitando-o a exercer tranquilamente
o paternalismo monárquico, sem tirania e sem 'poner en otro el poder
que Dios les ha dado', isto é, sem trespassar a governança
a um poderoso primeiro ministro",
prática que tão maus resultados dera com o episódio
do conde duque de Olivares.
Por pouco tempo foi João confessor do rei. A 20 de Maio
de 1643 recebera em Alcalá a missiva régia nomeando-o confessor
de Filipe IV, com ordem de apresentar-se na capital nesse mesmo dia.
Os dados estavam lançados e dali a um ano, João de São
Tomás viria a sucumbir em Fraga, acometido de altas febres. Conta
Ramirez que faleceu na plenitude da sua crença e fé inabaláveis
e que, pressentindo a chegada da hora fatídica, ocupou os seus últimos
momentos orando e preparando-se para entregar a alma e já lha
dera em vida ao seu Criador.
No que toca à obra de João de São Tomás, ela é fundamentalmente constituída pelos monumentais cursos Filosófico e Teológico, mas o autor perfilhou ainda pequenos estudos de menor fôlego, casos de Explicacion de la Doctrina Cristiana, que conheceu várias edições1, nomeadamente Valência (1644), Alcalá (1645), Saragoça (1645), Antuérpia (1651) e Roma (1633). Esta obra teve ainda uma tradução latina, Compendium Doctrinae Christianae, editada em Bruxelas em 1658; e uma versão portuguesa que recebeu o título Explicaçam de Doutrina Christãa, publicado em Lisboa em 1654. Segue-se o Pratica y Consideración para Ayudar a Bien Morir, editado em Saragoça em 1645, que conheceu ainda uma edição italiana, publicada em Florença e datada de 1674, Pratica e Considerationi per Ajutare e per Disporsi a Ben Morire. O último destes pequenos tratados João publica-o já na qualidade de confessor do rei. Trata-se do Breve tratado y muy importante, que por mandado de su Magestad escrevio el reverendissimo Padre Fray Juan de Santo Tomas, para saber hacer confession general. O trabalho de Estudos que temos vindo a acompanhar refere ainda que,
"Escreveu uma carta ao Padre Geral a defender-se e a explicar-se sobre
as afirmações que fizera no Cursus Theologicus sobre a Doutrina
da Imaculada Conceição, assunto sobre que tinha sido denunciado
na cúria generalícia. João fora acusado de ensinar
uma doutrina contrária à de São Tomás".
O Curso Teológico é considerado a obra principal
de João de São Tomás tendo sido parcialmente, três
dos oito volumes que o constituem, editado em vida do autor. Este trabalho,
à semelhança do Curso Filosófico, conheceu várias
edições de conjunto, das quais a Estudos destaca a de Lion,
em 1663, em 7 volumes; a de Colónia, publicada em 1711 em 8 Volumes;
e uma publicada em Paris, conhecida como edição de Vivés,
publicada em 10 volumes entre 1883-1886. Finalmente surgiu, em 1933, a
cuidada edição dos Beneditinos de Solesmes que, à
semelhança do trabalho de Reiser para o Curso Filosófico,
considera-se que preserva o texto clássico da obra do dominicano.
Quanto ao Curso Filosófico, ele constitui a primeira obra
de João de São Tomás, tendo sido inicialmente publicado
em volumes separados, e conhecendo depois várias edições
gerais. Os melhores trabalhos do autor, e porventura os mais acessíveis,
datam dos anos 30 e são compostos quer pela cuidada edição
de Reiser do Curso Filosófico, quer pelo trabalho dos Beneditinos
de Solesmes na preparação de uma edição geral
do Curso Teológico, que se faz acompanhar por copiosos estudos sobre
o João de São Tomás.
No que toca às traduções, elas abundam fundamentalmente
a respeito do Curso Teológico. Além da versão francesa
do tratado "Os dons do Espírito Santo", pertencente ao tomo V do
Curso e surgida em Paris em 1930, tradução essa cuidadosamente
elaborada por Raissa Maritain, Deely (1985: 397) dá ainda nota de
uma edição parcial, francesa, do I volume, surgida em Paris
em 1928. Em 1948 aparece em Madrid uma edição parcial do
tomo V, em espanhol; e em 1951 é editado em Nova Iorque uma versão
americana do mesmo tomo do Curso Teológico.
Já as traduções do Curso Filosófico
são menos abundantes e parecem circunscrever-se, exclusivamente,
ao trabalho de autores americanos. Deely e Herculano de Carvalho dão
nota de uma versão americana, parcial, da primeira parte da Lógica,
surgida em Milwaukee em 1962; antecedida por uma outra tradução,
também parcial, da segunda parte da Lógica, que foi publicada
em Chicago em 1955. À segunda parte da Lógica pertence também
o De Signis, tradução americana de parte da obra do dominicano,
da autoria de John Deely, surgida em Berkeley em 1985 e que constitui,
tanto quanto se sabe, a última edição de um trabalho
de João de São Tomás.
Segue-se um breve quadro sinóptico com a totalidade das
Edições do Curso Filosófico, elaborado com base nos
trabalhos de António Manuel Gonçalves (1985) e John Deely
(1985):
?
Para além das sucessivas reedições das suas
obras, são incontáveis os estudos publicados sobre João
de São Tomás, sendo que a grande maioria se prende com o
Curso Teológico, objecto de estudo persistente junto das escolas
dominicanas.
São considerados trabalhos fundamentais sobre mestre lisbonense
os prefácios de Reiser e dos Beneditinos de Solesmes às respectivas
edições por que foram responsáveis.
Para o estudo da vida do dominicano, costuma ser utilizada, como
fonte primária, a biografia elaborada por um seu contemporâneo
e discípulo. O problema é que Diego Ramirez era, também,
um admirador do Doutor Profundo e esse trabalho, citado por Reiser e Trindade
Salgueiro, assemelha-se muitas vezes a um inflamado panegírico.
Além de vasta produção em língua
inglesa, surgida na revista The Thomist, a obra de João de São
Tomás foi trabalhada em Espanha, França e no Canadá,
onde o número de trabalhos surgidos sobre o autor suplanta em muito
o que possamos supor:
"Uma referência muito especial merece o Canadá, onde o
tomismo renasce com vitalidade notável, tomando como guia Frei João
de São Tomás. Pela Universidade de Laval (Québec)
foi editada recentemente uma Antologia da Obra Teológica Joanista
"Theologia Dogmaticae Communia" em quatro volumes, preparada por Hervé
Gagné e Armand Mathieu. [...] Neste importante centro de cultura
têm sido apresentadas várias teses Joanistas para a obtenção
de graus universitários. Temos notícia de quatro para licenciatura
[...] e três para doutoramento: 'L'action selon Jean de Saint-Thomas';
'The problem of measure in the eternity of God and in created durations
according to John of Saint Thomas' e 'La connaissance du singulier matériel
selon Jean de Saint-Thomas' [...].
Na Universidade de Notre-Dame, de Indiana, nos Estados Unidos, elaborou
há alguns anos o Prof. Clarence Finlayson a sua tese 'Dios y la
Filosofia', publicada em 1945 pela Universidade de Antioquia, em Medellin,
na Colômbia, cujo propósito foi defender que a essência
metafísica de Deus ou o primeiro nome metafísico de Deus
é a existência, considerando Frei João de São
Tomás propugnador de tal opinião"2.
Em Portugal Pinharanda Gomes tem sido um incansável divulgador
da obra e das produções surgidas sobre o dominicano, merecendo
destaque os seus trabalhos João de Santo Tomás na Filosofia
Portuguesa do século XVII, e Antologia de Estudos sobre João
de Santo Tomás, dados à estampa ambos em 1985. Em 1944, no
terceiro centenário da morte do dominicano, as revistas Lumen e
Estudos publicaram números especiais alusivos à efeméride
com inúmeros artigos dedicados a João de São Tomás.
Para além de mais de uma dezena de artigos esparsos da
autoria de portugueses sobre a vida obra do dominicano, merece destaque
a extensa atenção que lhe dedica António Manuel Gonçalves;
e os excelentes e rigorosos estudos de João de Oliveira e Trindade
Salgueiro, respectivamente Síntese teológico-filosófica
do conhecimento através da obra de João de S. Tomás,
Realismo de João de S. Tomás e Nominalismo de Descartes,
e "O Conhecimento Intelectual na Filosofia de Frei João de São
Tomás".
No campo da Semiótica do Doutor Profundo esta extensa
profusão de trabalhos reduz-se significativamente, sendo considerado
como pioneiro na abordagem do assunto o ensaio "Signe et Symbole" incluído
em Quatre essais sur l'esprit dans sa condition charnelle, de Jacques Maritain.
Em Portugal este trabalho foi retomado com vigor por José Gonçalo
Herculano de Carvalho, Professor da Universidade de Coimbra, que lhe reserva
copiosas referências em Estudos Linguísticos e Teoria da Linguagem,
tendo-lhe dedicado um artigo em 1995, "Poinsot's Semiotics and the Conimbricenses".
Depois, para além do artigo "Reflexão sobre a Natureza
e Divisão do Sinal na Lógica de João de São
Tomás", da autoria de Mário Garcia, o projecto semiótico
do mestre lisbonense tem sido largamente negligenciado em Portugal.
Resta referir, claro, o monumental trabalho de John Deely, composto
pela tradução para inglês e comentário do Tratado
dos Signos, e enriquecido ainda com copiosos índices, tradução
das notas de Reiser, e três apêndices retirados do Curso Filosófico.
Lamentavelmente esta luxuosa e lindíssima edição bilíngue,
publicada em Berkeley em 1985, de que pudemos apreciar um exemplar em casa
do Professor Doutor Herculano de Carvalho encontra-se, segundo a Amazon,
a maior livraria virtual do mundo, há muito esgotada.
II.Rumo ao Grau Zero do Saber
A originalidade de João de São Tomás está
em ter, pela primeira vez, encarado a semiótica como uma problemática
autónoma da qual todos os outros tipos de conhecimento dependem.
Mesmo as modelizações e recolecções ordenadas
de dados experienciais mais básicas dependem de processos
de semiose que não são exclusivamente humanos. No caso da
organização e modelização de experiências
sensorio-motoras, são os signos formais que proporcionam a sua possibilidade
mesma, enquanto o domínio da intersubjectividade e comunicação
vital para as experiências humanas gregárias, e para a constituição
de domínios que nos são tão caros quanto a história,
ciência e arte, se rege pela utilização de signos instrumentais
que o sujeito descodifica e formaliza de forma mais ou menos adequada.
Nos fenómenos semióticos radica assim a possibilidade
de interagir com o mundo de forma bem sucedida e, já num patamar
superior de percepção, de confrontar esses modelos com os
de outros sujeitos, constituindo redes semióticas que, ao revelarem-se
adequadas e formalmente constituídas dentro dos mesmos princípios,
permitem a comunicação e a abertura do indivíduo para
o exterior e para uma intersubjectividade que se escora em modelizações
objectificadas que retiram a sua existência de processos semiósicos
conscientes e inconscientes, realizados com vista a uma interacção
que não tem, primariamente, por fim, comunicar, mas antes um sentido
muito mais vital de sobrevivência e adaptabilidade. O primeiro patamar
onde os processos semióticos funcionam é o da interacção
com o mundo e o real, sendo que os fenómenos comunicativos podem
até ser encarados como uma mera consequência destas estratégias
adaptativas, comuns a toda a vida.
O rasgo de génio que alimenta todo o Tratado dos Signos
de João de São Tomás foi ter compreendido que a Lógica
precisava recuar para um ponto anterior ao que era o tratamento habitual
dado a esta ciência, análise dos termos e proposições,
das categorias e tipos de raciocínio que estão acessíveis
ao humano. Este recuo a um primitivo grau zero do saber, espécie
de Génesis das estratégias organizativas do mundo que defendem-no
alguns autores3 desembocaram concomitantemente ou acidentalmente nas
formas elaboradas de comunicação que caracterizam a interacção
humana é o que de mais precioso e novo o Tratado dos Signos tem
para oferecer. Daí que a frase "et in universum omnia instrumenta
quibus ad cognoscendum et loquendum utimur, signa sunt, ideo, ut logicus
exacte cognoscat instrumenta sua, oportet quod etiam cognoscat quid sit
signum" constitua o cerne do ambicioso programa de estudos que orienta
a minuciosa exploração das realidades sígnicas do
Tratado, ao mesmo tempo que funda a tomada de consciência do carácter
propedêutico da semiótica relativamente a todas as outras
ciências.
O facto de um trabalho de ambição e fôlego
tão vastos se ter iniciado no século XVII pela mão
de um português, tendo depois esta constatação do carácter
originário e fundador da semiótica sido ciclicamente retomada
por outros autores4, levanta questões de alcance epistemológico
que transcendem largamente os limites do próprio De Signis
e das descobertas que João de São Tomás aí
faz.
A dar corpo hoje aos princípios epistemológicos
que regulavam, intrinsecamente e de forma não explicitada, o trabalho
dos autores medievais, obter-se-iam modelos de enormes potencialidades.
A Revelação e este ponto é claríssimo no
trabalho de João de São Tomás funciona como uma
axiomática que oferece parte do conjunto de princípios
dos quais podem ser deduzidos os elementos que compõem um sistema,
seja filosófico, teológico ou metafísico.
Os axiomas têm portanto capacidade para funcionar como
argumento de demonstração, e pode recorrer-se a eles, sem
temer o vício de circularidade, para justificar um raciocínio
ou, simplesmente, solucionar um problema, que poderá conhecer qualquer
resposta, excepto uma que contrarie os axiomas inicialmente dados. Este
tipo de raciocínios, a assunção inconsciente de uma
axiomática, ocorre frequentemente em João de São Tomás
quando, por exemplo, propõe um argumento, provando-o em seguida
simplesmente por o aplicar às pessoas divinas, ao demonstrar que
qualquer outro tipo de conclusão seria herética5.
Incarnando Deus a Verdade e o Bem, este tipo de modelos, a que
João de São Tomás chama "mais conformes à verdade"6
e que gozam das condições para se encontrarem mais próximos
dela constituem-se como uma tímida prefiguração do
relativismo epistemológico defendido por Popper e Kuhn e transposto
até aos seus limites mais improváveis por Pierre Lévy,
para quem
"[Actualmente...] as teorias cedem terreno aos modelos. Na maior parte
dos casos, um modelo não é verdadeiro nem falso, nem mesmo
testável. Revela-se apenas mais ou menos útil, mais ou menos
eficaz ou pertinente. O declínio da verdade crítica não
significa portanto que a partir de agora se aceitará seja o que
for sem análise, mas que nos encontraremos perante modelos mais
ou menos pertinentes [...]" (Lévy, 1990:153).
A peculiaridade de um modelo desta ordem é, abrindo-se
à refutação, orientar-se em direcção
às verdades eternas incarnadas por Deus, no caso de João
de São Tomás, ou, para um positivista laico, em relação
a configurações que capturem e exprimam de forma mais adequada
a estrutura ontológica do real. Os paradigmas e a mundividência
com que tais modelos se encontram comprometidos estão, necessariamente,
vinculados a uma diversidade que tem a sua origem nos pressupostos básicos
de cada um, sendo a razão comum que os une uma questão de
percurso via ad veritatem.
Claro que assim constituído o conhecimento tem o seu calcanhar
de Aquiles, mas também a sua pujança e fecundidade, na plasticidade
e fragilidade intrínseca que o caracterizam.
A relativização da noção de progresso
é a consequência natural do jogo de forças estabelecido
entre estes factores, que se alimentam da tensão mútua e
obrigam a questionar a oportunidade e eficácia de cada nova teoria.
O De Signis terá sido, muito provavelmente, a primeira
abordagem sistemática da problemática semiológica,
onde toma corpo uma tentativa fundamentada de estabelecer uma topologia
das diversas espécies e qualidades de signos, clarificando o seu
funcionamento nas vertentes sintáctica, semântica e pragmática.
Que tão ambicioso projecto tenha sido, durante séculos,
votado ao esquecimento, e para mais, sendo a sua temática objecto
de sucessivas redescobertas por parte de outros pensadores, só vem
colocar de novo com mais acuidade a questão da fragilidade do conhecimento
humano e a noção de progresso em Filosofia.
III. Requiem por uma Nova Ciência
Porque falhou João de São Tomás? Que condicionalismos
determinaram que o seu brilhante tratado tivesse por destino, pelo menos
até à década de 40, o olvido, quando os progressos
feitos pelo dominicano justificariam que fosse, no mínimo, tomado
como ponto de referência por todos quantos se viriam depois a dedicar
ao estudo destas questões?
A revolução que nos séculos XVII e XVIII
levou de vencida a maneira como na Europa se encarava o conhecimento constitui
a única explicação para a ignorância, e portanto
em termos práticos rejeição, do labor do mestre lisbonense.
Contra uma Escolástica que dominava ainda a Universidade
e que colocara o seu braço armado a Inquisição
ao serviço da repressão das novas ideias que sopravam da
Europa racionalismo, empirismo e todo um saber de experiência feito
as novas problematizações surgidas nos séculos XVI
e XVII não cessaram de ganhar terreno e de cativar os espíritos,
e isto no meio de conflitos não poucas vezes violentos, para se
verem decididamente adoptadas e afirmadas como saber vigente em meados
do século XVIII, acarretando o novo iluminismo um corte radical
com a tradição que lhe dera origem.
Durante os séculos anteriores, minados de tensões,
a Escolástica enceta também um percurso de lenta renovação:
"Embora dentro dum quadro ainda escolástico, poderão assinalar-se alguns esforços de actualização [...] No estrangeiro destacam-se Fr. João de S. Tomás, tomista, Fr. Agostinho de Macedo, escotista, e Isac Cardoso, ecléctico"7.
Esta tradição sairia todavia derrotada da querela com o naturalismo, e isso explica, em grande medida, que os seus rasgos mais inovadores tenham sido, por arrastamento, rejeitados e votados ao silêncio. O empobrecimento a que a crítica radical da Escolástica e, posteriormente, a sua rejeição liminar constituiu, fica bem claro no juízo de Maria Cândida Pacheco:
"Na amplitude duma reforma pedagógica, a Filosofia é, assim, a grande marginalizada, sob o signo do empirismo radical e frustre, desprovido de uma rigorosa fundamentação racional, importado e superficialmente assimilado, na rejeição complexada de toda a Escolástica. No decurso dos tempos, esta atitude explicará a aceitação acrítica e passiva dum positivismo que vai perdurar até aos nossos dias"8.
O destino que o Tratado dos Signos partilha com as propostas escolásticas
da sua época convida pois a colocar a questão do progresso
em Filosofia, e aí, na trajectória singular que descreve
se traçam de novo os limites de uma epistemologia que é amor,
proximidade e aconchego a uma verdade que, não obstante, permanece
mais alta e inacessível. É este, de resto, o sentido mais
abrangente que se pode descortinar na redescoberta do De Signis: a Filosofia
enferma de uma espécie de maldição de Sísifo
e está condenada a retornar sempre, de olhos mais ou menos virgens,
às eternas perplexidades que lhe deram origem e alimentam o seu
filosofar.
Pelo rigor desapaixonado e o propósito crítico
e fundamentador, o De Signis constitui-se assim como peça fundamental
de um saber que incessantemente se busca e se renova, sem trair uma génese
que o faz discurso ad veritatem, de olhos postos num horizonte de perfeição
que não alcançará.
Se tivesse sido fadado para exprimir formalmente os pressupostos
epistemológicos que lhe subjazem, o De Signis apresentar-se-ia então
como um percurso único de descoberta que reivindica para si o vigor
de uma demanda apaixonada, que utiliza, friamente, como instrumento, as
potencialidades da razão humana.
Aliás, com o mestre lisbonense, poderiamos falar de razão
pura, no sentido de uma razão que se exercita e manifesta no campo
da pura especulação, procurando dotar do maior rigor um
rigor axiomático a construção e resultados do seu
trabalho.
Que todo o seu talento especulativo não tenha descambado
em tenebrosas elucubrações idealistas, ou numa analítica
do pormenor irrelevante, como sucedeu com tantos dos seus contemporâneos,
explica-se porque João de São Tomás crê firmemente
no realismo tomista e trabalha, sem pudor, com o dado e o sensível,
não, obviamente, um dado que se abra à experimentação,
mas que lhe permite todavia manter o seu projecto semiótico circunscrito
nos limites de um mundo que é também o nosso, dotando as
suas classificações de uma perenidade que séculos
de trabalho posterior ainda não obliteraram.
O carácter singular deste Tratado que gravita, como muitos
outros, passados e futuros, à volta da verdade, justifica portanto
muito mais do que a mera decifração arqueológica do
seu texto, mas que se colham os frutos de tanto saber.
IV. Tipos e Qualidades de Signos
Segundo João de São Tomás
É no segundo artigo das Súmulas, bem no início
da Ars Logicae, que João de São Tomás começará
a gizar os contornos do seu edifício semiótico. Signo é
definido pelo dominicano como "aquilo que representa à potência
cognoscitiva alguma coisa diferente de si"9, e esta fórmula encerra
uma crítica explícita à definição agostiniana
de signo pois esta última, ao invocar uma forma (species) presente
aos sentidos que faz surgir alguma outra coisa na cognição
apenas pode ser aplicada ao signo instrumental, mas nunca ao formal, porque
esse é interior ao cognoscente e portanto nada acrescenta aos sentidos.
O conhecimento, por seu turno, pode ter quatro causas que actuam
conjuntamente na produção de uma apercepção:
Eficiente tratam-se das potências que dão origem ao conhecimento, como o intelecto, os olhos ou o tacto.
Objectiva trata-se do próprio objecto que dá origem a determinado acto de conhecer.
Formal é o próprio conhecimento pelo qual o intelecto
se torna cognoscente, e que, enquanto tal, não tem de ser objecto
de uma apercepção consciente, como sucede com a audição
de um som ou a visão de uma pedra.
Instrumental trata-se do meio através do qual o objecto
a conhecer é representado ao intelecto, como quando através
de um ícone se reconhece o objecto para o qual este remete, ou através
da pegada de um animal o cognoscente é remetido para a criatura
que a produziu.
Uma representação gráfica do processo de
produzir conhecimento, que implique a inventariação das suas
causas resultaria então da seguinte forma:
Também os objectos que se apresentam à cognição podem ser de três tipos:
Exclusivamente motivo é o objecto que leva o intelecto a formar uma ideia distinta dele próprio, assim como um semáforo vermelho remete imediatamente quem o apreende para a proibição de passar.
Exclusivamente terminativo trata-se da coisa conhecida pela noção produzida por um outro objecto, como, por exemplo, a proibição de passar que é tornada conhecida pelo objecto "semáforo vermelho".
Terminativo e motivo simultaneamente é o objecto que estimula a potência para formar a cognição dele próprio, assim como um gato que se mostra a si mesmo é motivo, porque estimula o intelecto ou um sentido particular para conhecer o gato, e também terminativo porque no próprio gato ou num dos seus acidentes cessa essa cognição.
As quatro causas do conhecimento, que para ele concorrem, têm
como actividade "fazer conhecer". Desta forma, pode-se "fazer conhecer"
eficientemente, objectivamente, formalmente e instrumentalmente. Já
representar é feito por tudo aquilo que traz algo ao intelecto,
e assim só funciona objectivamente, formalmente e instrumentalmente.
No domínio da significação, aquele onde
precisamente surgem os diversos tipos de signos, só se pode operar
formalmente e instrumentalmente, porque significar é tornar alguma
coisa distinta de si presente ao intelecto, e desta forma o acto de significar
exclui tanto a representação porque aí uma coisa
"significa-se" a si própria , como as condições que
concorrem eficientemente para o conhecimento porque estas operam em toda
a cognição e não se destinam exclusivamente à
presentificação de outra coisa distinta de si.
Gráficamente, torna-se mais simples visualizar como estes
três processos fazer conhecer, representar e significar se organizam
mutuamente através de relações de inclusão/exclusão
bem definidas:
Na significação propriamente dita, toda a actividade
de conhecimento que abstrai dos modos eficiente e objectivo, encontram-se
os diversos tipos de signos, tal como João de São Tomás
os classifica. Esse trabalho é levado a cabo adoptando duas perspectivas
distintas, que dão origem a qualidades diversas de signos.
Da perspectiva do sujeito cognoscente, enquanto o signo é
encarado na sua relação ao intelecto que conhece, divide-se
o signo em formal e instrumental.
O signo formal é constituído pela apercepção,
que é interior ao cognoscente, não é consciente e
representa algo a partir de si. Tem portanto a capacidade de tornar
presentes objectos diferentes de si sem primeiro ter ele próprio
de ser objectificado.
O signo instrumental, por seu turno, é o objecto ou coisa
que, exterior ao cognoscente, depois de conscientemente conhecido lhe representa
algo distinto de si próprio.
A segunda perspectiva adoptada por João de São
Tomás para classificar os signos é o ponto de vista em que
estes se relacionam ao "signado", ou seja, ao referente ou à própria
coisa em si por eles significada. Desta perspectiva, dividem-se os signos
em naturais, convencionais e consuetudinários.
O signo natural é o que pela sua própria natureza
significa alguma coisa distinta de si, e isto independentemente de qualquer
imposição humana, razão pela qual significa o mesmo
junto de todos os homens. Tal sucede, por exemplo, com o fumo, que significa
o fogo que lhe dá origem; ou com o relâmpago, que significa
o trovão que se lhe segue.
O signo convencional é o que significa por imposição
e convenção humana, e assim não representa o mesmo
junto de todos os homens, mas só significa para os que estão
cientes da convenção; caso da palavra "macaco" que significa
qualquer primata porque, em português, assim foi arbitrariamente
estabelecido.
O signo consuetudinário, de que João de São
Tomás chega a duvidar ser verdadeiramente signo, é o que
representa em virtude de um costume muitas vezes repetido, mas que não
foi objecto de uma imposição pública explícita;
assim como arrotar à mesa de um árabe no final de uma refeição
é sinal de que o comensal está saciado e manifesta desta
forma, que é polida e signo de educação esmerada,
o seu agrado ao anfitrião.
A catalogação dos signos conforme se adopta a perspectiva
da sua relação ao signado ou à potência nunca
pode, evidentemente, ser desenraízada da sua inserção
nos processos mais vastos que são "fazer conhecer" e "representar",
sendo que o esquema constituído por João de São Tomás
pode tomar a forma do seguinte diagrama:
Signo é portanto aquilo que torna um signado, que é
algo distinto de si, presente ou unido à potência cognoscente.
Repare-se que, não sendo explicitamente behaviorista, a formulação
de signo de João de São Tomás deixa terreno aberto
para a definição funcionalista de signo proposta por Morris
e que parece ser, ainda hoje, a mais adequada para definir os limites superiores
e inferiores das realidades sígnicas, que são, nesta perspectiva,
tudo aquilo que num dado momento integra um processo semiósico e,
portanto, significa alguma coisa para alguém. A semiótica
não tratará então de um dado tipo de objectos, mas
de qualquer objecto, desde que significante, ou seja, integrando um processo
de semiose. E dizer isto, note-se, é quase o mesmo que dizer que
signo é o que representa algo distinto de si, donde a ênfase
colocada no verbo insere, precisamente, as realidades sígnicas num
contexto behaviorista de funcionamento em situação que parece
o mais apropriado para as definir.
É esta possibilidade, aberta pela definição
joanina, de que tudo seja passível, num determinado contexto, de
significar, que remete para um mundo hiper-povoado de signos. A tarefa
do semiólogo, ou, como diria João de São Tomás,
do lógico, torna-se assim clara: trata-se de estabelecer uma taxionomia
ou topologia desta infinita abundância de sinais que povoam o universo.
V. O Problema das Relações
Depois desta breve exposição, nas Súmulas,
dos conceitos e definições que serão usados ao longo
do Tratado dos Signos, quando se estuda mais detalhadamente as suas particularidades
e modos de funcionamento, urge aclarar o problema das relações
secundum esse/ secundum dici, porque João de São Tomás
utilizará este dispositivo conceptual medievo, aplicando-o com rara
felicidade aos signos, para tentar determinar os seus tipos e comportamento.
O problema das relações é abordado fundamentalmente
nos capítulos IV e V do Livro Zero. A partir daí João
de São Tomás utilizará as noções com
todo o à vontade para falar dos signos, e o assunto, que é
bem complexo e não falho de subtilezas, merece atenção
detalhada.
Contra os nominalistas e os que defendem que só existem
relações secundum dici, isto é, relações
que são formas extrínsecas aplicadas às coisas como
numa comparação, João de São Tomás vai
defender que já Aristóteles estabelecera a existência
de relações secundum esse, isto é, relações
cujo carácter fundamental é ser para outra coisa, não
à maneira de uma denominação extrínseca, mas
enquanto traço essencial do seu próprio modo de existir:
"Mas Aristóteles, definindo o relativo, diz que: 'são aquelas coisas que têm todo o seu ser para outro'. Todavia, na opinião dos que põe as relações apenas segundo o ser dito, a totalidade do ser do relativo não se tem para outro, uma vez que o ser que têm nas coisas reais é absoluto, na verdade, só dizem 'respeito a' porque são conhecidos comparativamente com outro. Logo, a tais relativos não convém a definição de Aristóteles de que todo o seu ser se tem para outro. Donde frustradamente Aristóteles emendaria a definição dos antigos se só pusesse as relações segundo o ser dito..."10.
A verdade é que se Aristóteles aceitasse meramente a definição dos antigos, de que apenas existem relações secundum dici, isso implicaria que a substância também fosse relativa. Daí que o estagirita distinga os dois tipos de relação, secundum esse/ secundum dici, pois se por um lado lhe repugna relativizar a substância, a formulação "todo o seu ser para outro" que diz respeito às relações segundo o ser erradicaria o carácter absoluto das coisas, no caso de só admitir este tipo de relação:
"Logo, o Filósofo põe as relações reais distintas das relações segundo o ser dito"11.
É nas Categorias, o primeiro livro do Organon, que Aristóteles dedica um capítulo ao tema da relação, e é da leitura deste que João de São Tomás conclui que o estagirita distingue já as relações segundo o ser, postulando a sua existência. De facto, assim é:
"Chamamos relativas às coisas quando se diz que elas estão na dependência de outras, porque a sua existência está de algum modo relacionada com outras [...] são portanto relativos os termos cuja substância é a de serem ditos dependentes de outros, ou de se referirem de algum modo a outros. Por exemplo, dizemos que um monte é alto apenas em comparação com outro, dado ser em relação a outro que o monte é alto; o semelhante diz-se do semelhante a qualquer coisa, e os demais termos da mesma natureza dizem-se por virtude do mesmo carácter de relação [...]"12.
Os termos cuja substância é a de serem ditos dependentes de outros ou a eles referenciáveis são relativos secundum esse e João de São Tomás tem por isso toda a razão ao afirmar que já o Filósofo estabelecera as relações como relações segundo o ser, ao passo que nega que as substâncias primeiras possam, de alguma forma, ser relativas deste modo, isto é, secundum esse:
"A questão de que nenhuma substância é relativa, como em geral se admite, poderia dar azo a controvérsia. Uma excepção se daria, no entanto, no caso de certas substâncias segundas. Quanto às substâncias primeiras, é verdade que elas não são relativas, pois que nem os todos, nem as partes das substâncias primeiras são relativos [...] Se, portanto, a definição dada [pelos antigos, que se reporta às relações secundum dici] para relativos fosse suficiente, seria muito difícil, senão impossível, demonstrar que nenhuma substância é relativa. Mas se a definição for insuficiente, e se considerarmos relativos apenas os termos cuja essência consiste em uma certa relação, talvez houvesse remédio para esta incerteza. A anterior definição aplica-se, sem qualquer dúvida, a todos os relativos, mas o facto de uma categoria se definir por referência a alguma outra fora dela não a torna necessariamente relativa"13.
Assim, a definição mais simples que pode dar-se das relações segundo o ser dito é que são aquelas onde subsiste alguma coisa de relativamente independente (absoluto) entre os relacionados, e portanto a totalidade do seu ser não é ser para outro; ao passo que nas relações secundum esse todo o seu ser consiste em ser para outro, como sucede por exemplo, no caso da semelhança ou da paternidade, pois todo o seu ser e essência se orienta para o termo da relação o objecto que é semelhante, ou o filho, no caso da paternidade , de forma que desaparecendo o termo, a própria relação não subsiste. Ora,
"se o ser destas coisas fosse alguma coisa absoluta, não desapareceria
apenas por causa do desaparecimento do termo"14.
É assim que para João de São Tomás as relações segundo o ser e segundo o ser dito distinguem-se a partir do próprio modo de exercer a relatividade, pois
"[...] nas relações segundo o ser toda a sua razão ou exercício é respeitar [...]"15,
ao passo que,
"[...] o exercício ou razão da relação segundo o ser dito não é puramente respeitar o termo, mas exercer alguma outra coisa donde se segue a relação [...]"16,
quase como se estas últimas fossem acidentais às coisas,
não fazendo parte da sua estrutura ontológica mas sendo-lhes
acrescentadas por mão humana, a qual se encarregará de lhes
dar existência exprimindo-as daí o nome com que foram
baptizadas pelos medievais: secundum dici.
Como as relações secundum esse/ secundum dici,
nesta formulação que aqui foi dada e que é a que João
de São Tomás expressamente defende, esgotam a totalidade
do campo das relações e excluem-se mutuamente, podem ser
representadas através de um diagrama de Venn-Euler da seguinte forma:
Para João de São Tomás, a relação é uma categoria que se reveste de aspectos particulares que a distinguem das restantes formas. Em primeiro lugar, está mais dependente e requer com maior necessidade o fundamento, porque é movimento de um sujeito em direcção a um termo, enquanto as outras categorias retiram a sua entitatividade e existência do sujeito. Depois, e consequência disto, sucede com a relação que não depende nem pode ser encontrada num sujeito da mesma forma que as outras categorias, mas depende essencialmente do fundamento que a coordena com um termo e a faz existir "como uma espécie de entidade terceira"17. A relação transcendental ou secundum dici é portanto uma forma assimilada ao sujeito que o conota com algo extrínseco, ao passo que na ontológica ou segundo o ser, passe a tautologia, a essência da relação é ser relação.
Passando depois a explicar a diferença entre relações
reais e de razão João de São Tomás lança
finalmente luz sobre o mecanismo que com uma beleza e simplicidade surpreendentes
lhe vai permitir dar conta de todos os tipos de signos que já enumerou.
Ao distinguir as relações reais e de razão
diz, de passagem, que esta divisão só é encontrada
nas relações segundo o ser18, não chegando a mencionar
o que, em tal caso, sucede nas transcendentais. Este ponto, nunca é
demais sublinhá-lo, é vital para a compreensão do
De Signis pois muitos autores19, e eu própria no início deste
trabalho fui induzida nesse erro, são tentados a relacionar univocamente:
Relações
Secundum Dici --------------------De Razão
Secundum Esse --------------------Reais
Num esquema onde as relações secundum dici seriam
sempre de razão, ao passo que as secundum esse seriam sempre reais,
isto é, tal como se dão entre as coisas realmente, ora, o
assunto, como já vimos, é bem mais complexo. São as
relações segundo o ser que podem ser reais ou de razão,
sendo que, no caso de uma relação secundum esse real e finita
nos encontramos perante uma relação categorial.
A organização das relações tal como
João de São Tomás as formula é passível
da seguinte representação:
A importância destas subtis distinções só
poderá ser devidamente apreciada ao longo do Tratado dos Signos.
Refira-se, todavia, que é o facto da ordem das relações
secundum esse unir em si tanto o que é real como o que é
de razão, que vai permitir a explicação cabal de todos
os sistemas e tipos de signos, porque signos há que constituem relações
reais (naturais), outros, relações de razão (convencionais)
mas todos são relações segundo o ser.
VI. Do Signo Segundo a Sua Natureza
A questão introdutória do Tratado dos Signos é se o signo pertence à categoria da relação, e se essa relação é secundum esse ou secundum dici.
"E falamos aqui de relação segundo o ser, não de relação categorial, porque falamos do signo em geral, enquanto inclui tanto o signo natural como o convencional, discussão que envolve ainda o signo enquanto ente de razão, isto é, o signo convencional"20.
De facto, ao interrogar-se se o signo em geral que envolve o natural, o convencional e o consuetudinário pertence à ordem da relação, João de São Tomás não pode incluí-lo na relação categorial, porque esta é sempre real e finita, ora o signo convencional não tem fundamento real, antes se baseia numa relação de razão, mas como a relação segundo o ser une em si estas duas ordens: o que é real e o que é de razão, podendo, às vezes, ser uma, às vezes outra, é esta a ordem adequada para tratar do signo in communi, e isto porque
"[...] só naquelas coisas que são [total e essencialmente] para outro se encontra alguma relação real e alguma de razão"21.
A resposta à inquirição não tarda:
o signo constitui, evidentemente, uma relação segundo o ser,
dado que a sua ratio é ser totalmente para outro, o objecto que
representa ou manifesta, com uma ordem de dependência, ao cognoscente.
Posta esta conclusão, João de São Tomás tratará de vincar que o signo não é meramente manifestativo ou representativo, caso em que seria conhecido pela potência como um objecto de alguma forma absoluto, e que portanto não poderia integrar uma relação segundo o ser. Claro que o signo é manifestativo e representativo, mas não apenas isso é também dependente e inferior à coisa significada, e assim é um objecto que é totalmente para o outro que representa ou manifesta.
"E o fundamento desta conclusão é tomado da própria razão e essência do signo, porque a razão do signo não consiste somente nisto, que é manifestar ou representar outra coisa que ele próprio, mas naquele modo específico de manifestar, que é representar outra coisa enquanto modo inferior daquela [...]"22.
Abstraindo se a relação segundo o ser na qual o
signo consiste é real ou de razão, João de São
Tomás passará às provas desta conclusão, recolhidas,
como seria de esperar, da doutrina do Aquinate, em textos que este dedica
à questão dos Sacramentos.
A segunda tese proposta pelo mestre lisbonense nesta questão
introdutória é que a ligação do signo ao signado
é uma relação categorial, isto é, uma relação
segundo o ser real e finita; pois ainda que o signo, enquanto encarado
meramente no seu aspecto manifestativo se relacione ao signado transcendentalmente,
todavia, do ponto de vista em que lhe é subordinado e funciona como
seu substituto, relaciona-se àquilo que significa por uma relação
categorial secundum esse. Já a relação que estabelece
com a potência cognoscente, à qual torna presente o signado,
não é segundo o ser mas transcendental.
No segundo capítulo do De Signis inquire-se se a relação do signo natural ao signado é real ou de razão, e a questão coloca-se porque, sendo certo que algumas das relações que ocorrem no signo natural são reais, todavia importa averiguar se são elas que constituem a relação essencial do signo. É que muitas relações concorrem no signo, a de efeito para a causa, ou a de imagem, mas não são exclusivas dele, ora,
"[...] não é nisto que consiste a formal e essencial razão do signo [...] Com efeito, encontra-se a razão de um objecto sem a razão de um signo; e a razão de um efeito ou imagem ou causa, pode também ser encontrada sem a razão de signo"23.
A relação que é específica do signo e que lhe é característica, ocorrendo sempre que este é chamado a funcionar com relação à potência e ao signado é a relação de substituição com dependência e de modo inferior à coisa significada, cujas vezes o signo faz.
"Perguntamos portanto se aquela formal e propriíssima relação do signo, que se encontra ou surge de todas as coisas envolvidas na acomodação do signo ao signado ou à potência, é uma relação real no caso dos signos reais ou naturais"24.
A resposta a esta pergunta não tarda, a relação entre o signo natural e o signado é necessariamente real, e não de razão, porque é fundada em algo real, pois
"[...] para que alguma coisa em si própria seja cognoscível,
não pode ser simples produto da razão; e que seja mais cognoscível
relativamente a outra coisa, tornando-a representada, é também
alguma coisa real no caso dos signos naturais. Logo, a relação
do signo, nos signos naturais, é real"25.
É desta forma que o signo natural, ao substituir em favor de um determinado referente, fá-lo através de uma relação real que é proporção e conexão com a coisa representada é isto que explica que a pegada do lobo represente antes o lobo que a ovelha embora depois, no seu exercício de representar à potência, objectificando-se, o signo estabeleça com ela uma relação de razão. Esta dupla relação do signo, ao referente e ao intelecto que conhece, oferece razão para equívocos, diz João de São Tomás, pois não poucos autores, ao verificarem que a apreensibilidade do signo é uma relação de razão,
"[...] julgam que a própria razão do signo é simplesmente uma relação de razão"26.
Passando a explicar a relação dos signos convencionais
ao signado, o dominicano conclui que essa relação é
de razão, mas, salvaguarda, o signo não consiste na mera
denominação extrínseca, o acto pelo qual se atribui
um nome às coisas, exprimindo esse nome relações com
os objectos. Embora a imposição de uma comunidade seja exigida
para que o signo convencional signifique, estes signos distinguem-se depois
pelas relações que estabelecem com as funções
ou objectos aos quais estão ligados.
A univocidade da relação que o signo estabelece
entre potência e signado é a questão que introduz o
terceiro capítulo do Tratado dos Signos. É evidente, diz
João de São Tomás, que os signos externos também
se relacionam à potência como objectos, e essa relação
coincide com a relação que com ela estabelecem muitos
outros objectos que não são signos.
O que se trata portanto de apurar é se significativamente,
enquanto signo, essa relação é distinta daquela que
estabelece com o referente, ou se, por hipótese, nos encontramos
perante três relações: duas estabelecidas com o cognoscente
enquanto objecto e enquanto signo e uma terceira relativamente ao signado.
A questão complica-se, diz o dominicano, porque o signo
diz respeito simultaneamente à potência e ao signado já
que decorre da sua definição que ele torna um presente ao
outro ora isto poderá ser feito por uma única e mesma relação,
o que levanta dificuldades porque a relação à potência
é, como já se viu, de razão, enquanto ao objecto significado
é real; ou então, são distintas as relações
do signo para um e outro termo, e esta pluralidade de relações
na sua essência excluí-lo-ia da categoria de relação.
João de São Tomás resolve a dificuldade
considerando que a relação do signo à potência
e ao signado é uma e a mesma, sendo que a relação
ao referente toca-o directamente, enquanto a potência é tocada
indirectamente por essa relação.
Ora, se potência e signado fossem considerados como termos
directamente atingidos pela relação, isso exigiria necessariamente
que tal relação fosse distinta num termo e noutro, mas em
tal caso o signo referir-se-ia à potência como objecto o
que já vimos também sucede e não formalmente como
signo.
Tal conclusão que a mesma relação a um
termo é directa, a outro indirecta prova-se porque o signo diz
respeito ao seu significado directamente como aquilo que deve ser representado
ao cognoscente; enquanto tal relação toca indirectamente
a potência, através de uma relação real,
porque ela é aquilo ao qual tal signado é representado.
"Repugna, com efeito, nestas relações, as quais existem por modo de substituir e de representar, que respeitem aquilo cujas vezes fazem e não aquilo em ordem para que substituem, porque é ao substituir ou fazer as vezes de alguma coisa segundo alguma determinada razão e em ordem para algum determinado fim, que uma coisa faz as vezes de outra; de outro modo aquela substituição não seria determinada, porque é determinada pelo fim para o qual é feita. Logo, se a relação de representar e de substituir as vezes de alguma pessoa é determinada, importa que respeite aquela pessoa, e também atinja isto, por causa do qual e em ordem ao qual substitui [...] E assim, como o signo faz as vezes e representa o signado substituindo a favor daquele determinadamente (para que torne presente o objecto à potência), necessariamente nas próprias entranhas e íntima razão de tais substituições e representações do signado, como é uma substituição e representação determinada, é envolvido algum respeito para a potência, porque é para isto que o signo substitui, para que represente à potência"27.
Do que foi dito, a conclusão surge então cristalina:
a mesma relação que atinge directamente o signado atinge
indirectamente a potência enquanto o ser manifestável à
potência está incluído no próprio signado.
"E assim, como o signado não é respeitado como sendo alguma coisa de absolutamente em si, mas como manifestável à potência, necessariamente a própria potência é tocada obliquamente por aquela relação, a qual atinge o signado não por subsistir nele precisamente como é em si, mas enquanto é manifestável à potência, e assim de alguma maneira a relação do signo atinge a potência na razão de alguma coisa manifestável a outro"28.
Assim, a relação do signo, aquela que lhe é
própria, essencial e intrínseca, diz respeito à potência
indirectamente. Note-se que João de São Tomás não
fala aqui da apreensibilidade do signo qualidade que este partilha com
outros objectos, que lhe advém enquanto está sob a "razão
do objecto", para utilizar a terminologia joanina mas enquanto o signo
atinge o signado como objecto manifestável à potência.
O argumento é subtil, mas se bem apreendido, claro.
Funciona da seguinte forma: a relação do objecto para a potência é de razão (não existe antes da operação do intelecto), relação esta que, ocorrendo necessariamente no signo, não é todavia a relação que lhe é própria porque este partilha-a com todos os cognoscíveis que não são signos. Contudo, a relação do signo à potência é indirectamente real, porque embora este não lhe diga respeito (directamente) por uma relação real, ser manifestável à potência é, no objecto, algo de real (existe antes da operação do intelecto). Donde a relação do signo à potência, que ele atinge indirectamente, é real, embora a sua apreensibilidade, enquanto objecto, que já constitui uma outra relação, seja de razão. Por isso João de São Tomás pode fundamentadamente dizer:
"[...] pois como um objecto respeita a potência é uma coisa, outra bem diferente é o que, num objecto, é ser manifestável à potência. Ser manifestável e objectificável é alguma coisa de real, e é aquilo de que depende a potência e pelo qual é especificada; antes, é porque um objecto é assim real que não depende da potência por uma relação real. Donde, como o signo, sob a formalidade do signo, não respeita a potência directamente pois isto é a formalidade do objecto mas respeita a coisa significável ou manifestável à potência, assim a potência enquanto indirectamente inclusa naquele objecto manifestável é atingida por uma relação de signo real [...]"29
relação essa que nada mais é que o facto do signado lhe ser realmente manifestável, embora a própria manifestação em acto que é feita enquanto este assume a forma de um objecto deva necessariamente revestir-se da forma de uma relação de razão.
Para responder à questão se o acto de significar
(constituído pela condução ou exibição
do signado à potência) pertence à ordem da causalidade
eficiente João de São Tomás distingue três elementos
inerentes ao acto de representar ou significar: a produção
de espécies ou imagens das qualidades sensíveis do objecto
extrínseco que estimulam o cognoscente; o estímulo da potência
para que receba a espécie e este é um momento anterior
à própria recepção; e por último o concurso
do signo com a potência para produzir uma apercepção.
É neste último ponto que a questão se complica, pois
João de São Tomás pretende averiguar se o acto de
significar a representação do signado à potência
que ele admite ter uma causa eficiente, provém eficientemente
do signo.
A descoberta do dominicano sobre este ponto é que o signo
não é causa eficiente da significação, pois
significar não é produzir um efeito.
A conclusão prova-se por três ordens de argumentos.
O primeiro é retirado da autoridade de São Tomás,
que aponta como causa eficiente do conhecimento a própria razão
ou intelecto do cognoscente. O segundo é que os objectos, enquanto
formas extrínsecas, não produzem eficientemente conhecimento,
antes as suas espécies são impressas na potência por
uma outra causa eficiente; é que
"[...] se a razão do objecto é salvada por isto, que é o facto da coisa ser representável, consequentemente fazer a representação activamente está fora da razão do objecto e não é requerido para ela [...] Logo, representar ou fazer presente não pertence ao próprio objecto, enquanto formalmente é objecto, como causa eficiente desta apresentação, mas como à forma e acto que à potência é apresentado e unido"30.
O último argumento retira-se da própria definição de signo instrumental, decorrendo desta que funciona como instrumento substituinte do objecto, não um instrumento eficiente, mas um que representa a partir de um outro objecto, cujas vezes faz. Ora, o signo representa um signado à maneira de um objecto, donde a emissão de espécies, tal como no objecto, não é causada eficientemente pelo signo, mas objectivamente, isto é enquanto se destinam a ser conhecidas.
"Pois o signo, se é instrumental e extrínseco, não representa o signado de outra forma que representando-se como objecto mais conhecido, e o signado como alguma coisa virtualmente contida em si, isto é, como algo mais desconhecido para o qual o signo exprime alguma relação e conexão. Logo, o seu concurso para representar o signado à potência é o mesmo que o seu concurso para se representar a si, porque representando-se a si representa também o signado enquanto pertencente a si. Donde a emissão das espécies e excitação da potência pertence ao signo do mesmo modo que pertence ao objecto enquanto este se representa a si, ou seja, causando-o objectivamente, não eficientemente, porque o signo instrumental não representa o signado de outra forma que representando-se primeiro a si como objecto, e ulteriormente estendendo a representação de si para outro em si virtualmente implícito e contido"31.
Todavia, se falarmos não já de um signo instrumental,
mas do formal, o argumento, e portanto a conclusão para que ele
aponta, permanece válido: esta qualidade de signos formais representa
não eficientemente mas a partir de si objectivamente, tal como sucede
nos instrumentais.
Representar, ou significar, que é o que convém
ao signo enquanto signo, é simplesmente substituir um objecto e
torná-lo presente à potência cognoscente, e isto não
é feito produzindo efeitos por parte do signo, embora muitas outras
causas que não oriundas do signo concorram eficientemente para produzir
a representação: a que imprime eficientemente espécies,
a potência que produz a apercepção...
A questão que encerra o Livro I é provavelmente
uma das mais interessantes do trabalho: será que os animais irracionais
(bruta) e os sentidos externos utilizam signos para atingirem as realidades
por eles significadas? João de São Tomás exclui aqui,
evidentemente, os signos linguísticos e toda a actividade
que exija o discurso o que se trata portanto de saber é se sem
o discurso e sem a comparação e colação pode
ocorrer a utilização de signos e do seu modo próprio
de significar.
A primeira parte da conclusão, como habitualmente, não
tarda: os animais irracionais são capazes de utilizar signos, tanto
naturais como consuetudinários, e fazem-no frequentemente.
Para defender esta conclusão, João de São
Tomás recorre, em primeiro lugar, a argumentos retirados da autoridade
de S. Tomás de Aquino32. Três ordens de razões podem
ser retiradas do Doutor Angélico para sustentar esta posição:
os animais recordam, de benefícios ou danos passados, a oportunidade
ou não de prosseguirem certas actividades, e isso é passar
de um signo, por exemplo o dano, à coisa que o provocou.
Para além disso, os animais têm capacidade
para se exprimir utilizando signos naturais, podendo ainda apreender certos
tipos de signos consuetudinários. Este último ponto prova-se
pela constatação de que animais há que são
disciplináveis podem, mediante instruções, habituar-se
a desenvolver ou evitar determinadas actividades. A experiência
quotidiana também ensina que os animais podem ser influenciados
por signos,
"[...] tanto naturais como os gemidos, o balido da ovelha, o canto da ave como consuetudinários, como sucede, por exemplo, quando o cão, chamado pelo nome, é movido pelo costume, embora não inteleccione a imposição [...] Para além disto, digo, vemos que um animal irracional, ao ver uma coisa, tende para outra distinta, assim como quando ao perceber um odor [de caça, por exemplo] prossegue alguma via [...] ou ouvindo o rugido do leão treme e foge, e seiscentas outras coisas nas quais não responde dentro dos limites do que percebe pelos sentidos exteriores, mas pelo que percebe dos sentidos externos é conduzido para outro. O que, claramente, é utilizar um signo, ou seja, a representação de uma coisa não só por si, mas por outra coisa distinta de si"33.
Quanto à segunda parte da questão de abertura, a
resposta é também afirmativa: os sentidos externos, tanto
dos homens como dos animais, utilizam signos instrumentais e são
capazes de operar com diferentes formas de significação.
Para não variar, os primeiros argumentos a favor desta
conclusão são colhidos em S. Tomás de Aquino, que
ensina que o signado já é visto e está patente no
signo instrumental, logo os sentidos externos podem ser conduzidos de uma
imagem para a coisa que ela representa sem necessidade de utilizar o discurso.
"[...] o signo nada mais pede na sua definição, excepto que represente outro distinto de si e seja meio conducente para outro. Mas não pede que isto seja feito por meio do discurso ou comparando e conhecendo a condição relativa de um para outro; de outro modo, nem nos sentidos internos dos animais os signos poderiam ser encontrados. E se exigisse o discurso formal, nem os anjos utilizariam signos, o que é falso"34.
Claro que desta forma o sentido externo só pode aceder
ao signado enquanto este está presente no signo, e conhece-o apenas
enquanto aquelas duas realidades estão ligadas, pois no caso de
um signado ausente, alcançá-lo exigiria algum tipo de comparação
para estabelecer que uma coisa é signado de outra e tal operação
já não é acessível aos sentidos externos. Note-se
também que o signado, que como já vimos não pode estar
ausente, não é atingido como sendo o mesmo que o signo, nem
é conhecido por si através de uma espécie própria;
os sentidos externos são conduzidos do signo para o signado por
uma terceira via: enquanto este está contido e conjunto com o signo
e, simultaneamente, se distingue dele sem que isso signifique ausência
caso em que a passagem de um a outro exigiria comparação
e colação.
"[...] o sentido externo conhece o signado como contido no signo e, como diz São Tomás, conhece Hércules na estátua. Nem nada mais é requerido para o signo; com efeito o signo não representa mais amplamente o seu signado que o que está contido no signo, e assim não é necessário conhecer o signo por uma cognição mais ampla e perfeita [...] Mas é conhecido o próprio signado assim contido no signo, assim como é conhecido que isto é a imagem de um homem e não de um cavalo, que aquela é imagem de Pedro e não de Paulo; o que não poderia suceder se o signado fosse de todo ignorado"35.
No resumo e apanhado geral que se segue a todos os capítulos,
João de São Tomás insiste fundamentalmente na importância
da definição de signo, nas condições requeridas
para que alguma coisa seja signo, e como distinguir entre um signo e outros
manifestativos que não o são caso da imagem, da luz que
manifesta as cores ou do objecto que se manifesta a si mesmo o signo
é sempre inferior ao que signa, porque no caso de ser igual ou superior
destruiria a essência do signo. É por esta razão que
Deus não é signo das criaturas, embora as represente, e uma
ovelha nunca é signo de outra ovelha, embora possa ser sua imagem.
Assim, as condições necessárias para que
algo seja signo são a existência de uma relação
para o signado enquanto algo que é distinto de si e manifestável
à potência; é ainda necessário que o signo se
revista da natureza do representativo; deverá também ser
mais conhecido que o signado em relação ao sujeito que o
apreende; e ainda inferior, mais imperfeito, e distinto, que a coisa que
significa.
VII. Das Divisões do Signo
O Livro II, ou Quaestio XXI, trata não já da natureza
do signo mas das suas divisões. Temas fundamentais dos seis artigos
que constituem a Quaestio são a adequabilidade da divisão
de signo em formal e instrumental; se os conceitos, as espécies
impressas e o próprio acto de conhecer pertencem à categoria
dos signos formais; se é apropriada a divisão dos signos
em naturais, convencionais e consuetudinários; e se o signo consuetudinário
é verdadeiramente um signo, ou pode reduzir-se à categoria
dos convencionais.
Sobre a divisão dos signos, da perspectiva do cognoscente,
em formais e instrumentais, a questão que se coloca é saber
se os signos formais são verdadeiramente signos, ou, por outras
palavras, de que modo se revestem estes das condições necessárias
ao signo, nomeadamente, conduzir a potência para um referente e ser
mais imperfeito que a coisa significada. A dificuldade, neste ponto,
agudiza-se porque exige, sem dúvida, finas distinções,
explicar de que forma o signo formal, que é interior ao cognoscente
e a maioria das vezes não é sequer apreendido conscientemente,
é meio condutor para o signado:
"[...] e assim o signo formal para isto conduz, para que o conceito
e apercepção sejam postos na potência e esta se torne
cognoscente; mas o próprio conceito não é meio para
conhecer. Pelo contrário, alguma coisa é dita ser conhecida
igualmente imediatamente quando é conhecida em si e quando é
conhecida mediante um conceito ou apercepção; com efeito
o conceito não faz a cognição mediata"36.
S. Tomás de Aquino vem, mais uma vez, lançar luz sobre o assunto, ajudando João de São Tomás a resolver a dificuldade. Ensina o Doutor Profundo que o medium in quo da cognição, ou seja, o objecto no qual outra coisa é vista, pode ser tanto uma coisa material exterior à potência, como algo formal e intrínseco à potência caso da espécie expressa ou palavra mental. Assim, de acordo com S. Tomás,
"[...] a palavra mental ou conceito é dado como distinto do acto de cognição [embora o que apreende possa disso não ter consciência]. [...] E o primeiro meio no qual [o material e extrínseco] faz a cognição mediata, isto é, a partir de outra coisa conhecida, ou cognição deduzida, e pertence ao signo instrumental; mas o segundo meio no qual [intrínseco à potência] não constitui uma cognição mediata porque não duplica o objecto conhecido nem a cognição. De resto, é verdadeira e propriamente um meio representando um objecto, não como meio extrínseco, mas como intrínseco e formando a potência. [...] Mas um objecto é tornado presente ou representado à potência não a partir dele próprio imediatamente, mas mediante o conceito ou espécie expressa. Logo, o conceito é meio ao representar, meio pelo qual o objecto é tornado representado e conjunto com a potência"37.
Dos argumentos aduzidos, a conclusão, que não tarda, não poderia ser outra: o signo formal deverá, verdadeiramente, ser signo, embora difira do instrumental no modo de representar e significar. É evidente, de resto, que os signos formais diferem dos instrumentais pois não se mostram à maneira de um objecto extrínseco no qual outra coisa é conhecida, mas como conduzem à cognição de outro e recorde-se que o conceito é distinto do acto de conhecer revestem-se todavia da "razão de signo", ainda que só formalmente, pois o signo formal não existe nem estimula a cognição fora da potência. Sendo o movimento de apreensão do signado simultâneo com a apreensão do conceito, o sujeito não terá consciência de que se encontra perante duas operações, e é por esta razão que o signo formal não representa como um objecto primeiro conhecido que conduz a outro, mas essas duas cognições distintas, do ponto de vista de quem apreende, fundem-se numa só é o que João de São Tomás quer dizer quando refere que o conhecimento proporcionado pelo signo formal "não acrescenta numericamente à cognição".
"E assim, quanto ao modo de conhecer, com maior propriedade se encontra a razão do signo no signo externo e instrumental, enquanto o acto de conduzir de uma coisa para outra é mais manifestamente exercido quando duas cognições existem, uma do signo, outra do signado, que quando existe apenas uma única cognição, caso que sucede no signo formal. [...] Donde sucede que para salvar a propriedade do signo basta que este seja pré-conhecido, o que o signo formal alcança não porque seja conhecido como objecto, mas como razão e forma pela qual o objecto é tornado conhecido no interior da potência, e assim é pré-conhecido formalmente, não denominativamente e como coisa conhecida"38.
Novamente se reafirma portanto a conclusão já estabelecida: o conceito ou espécie expressa é verdadeiramente representativo de outra coisa distinta de si, embora a sua forma específica de representar não "acrescente numericamente à cognição", e portanto merece a denominação de signo, que partilha com o instrumental. Exemplos aduzidos por João de São Tomás para mostrar, com toda a clareza, como funciona o signo formal, também não faltam:
"Pois o conceito, por exemplo, de homem, representa outra coisa diferente de si, ou seja os homens; e é mais conhecido, não objectiva mas formalmente; uma vez que torna conhecido o homem, que sem o conceito é desconhecido e não presente ao intelecto; e pela mesma razão é primeiro conhecido formalmente, isto é, funciona como razão pela qual o objecto é tornado conhecido. Mas isto que é razão para que alguma coisa seja de tal tipo, enquanto razão e forma é anterior a essa coisa, do mesmo modo que a forma é anterior ao efeito formal. Logo, se o conceito é razão para que uma coisa seja conhecida, é anterior pela prioridade da forma ao sujeito e razão denominante para a coisa denominada. Semelhantemente, um conceito não é igual ao próprio objecto representado, mas inferior e mais imperfeito do que aquele [...] Contudo, não importa quão perfeito, um conceito em nós não atinge a identidade com o representado, porque nunca atinge isto, que se represente a si, mas antes sempre representa outro diferente de si, porque sempre funciona como substituinte a respeito do objecto; logo, sempre retém a distinção entre a coisa significada e o próprio significante"39 .
A segunda parte da questão proposta pelo dominicano, depois
de tão copiosas explicações, resolve-se facilmente
a partir do que já foi demonstrado. A divisão do signo em
formal e instrumental é essencial e unívoca porque, como
já vimos, o signo formal, tal como o instrumental, é verdadeiramente
signo. Quanto à adequação da divisão, João
de São Tomás explica que ambos os termos se excluem mutuamente,
e a divisão esgota o todo dividido os tipos de signos enquanto
estão ordenados em relação à potência
portanto a adequação é evidente. Provar que a divisão
é essencial, e não acidental, também não é
difícil: como existem duas formas distintas de representar, uma
a partir de si (signo formal), outra como coisa objectificada primeiro
conhecida (signo instrumental), representações diferentes
têm de ser originadas em tipos de signos diferentes, e portanto tal
denominação não pode nunca ser acidental.
A questão seguinte prende-se com a tentativa de apurar
se o conceito ou espécie expressa é, ou não, um signo
formal. A conclusão do dominicano é que a espécie
expressa ou conceito é, por excelência, um signo formal. Instrumental
é evidente que não poderá ser, pois em nada se assemelha
a um objecto primeiro conhecido que conduz a outro; é, isso sim,
termo da intelecção que torna a coisa conhecida.
"E o fundamento da conclusão tira-se porque o conceito inteligível directamente representa uma coisa diferente de si à potência, por exemplo o homem ou a pedra, porque é uma semelhança natural daquelas coisas, e pela sua informação o conceito torna o intelecto cognoscente em acto por uma cognição terminada pela própria cognição de si, e não por uma cognição de si pré-existente. Logo, o conceito é apercepção formal tornando o intelecto inteleccionante não ao modo de um acto, mas ao modo de um termo ou apercepção terminada"40.
A segunda conclusão de João de São Tomás é que a espécie sensível expressa, nas potências sensíveis funciona, em relação a essas potências, como um signo formal, e isto quer tais espécies sejam produzidas pelas potências, quer se devam a alguma causa extríseca, como um anjo ou um demónio. Escutemos, mais uma vez, as razões do mestre lisbonense, que são em tudo semelhantes às que sustentam as conclusões anteriores:
"[...] tais imagens ou ícones são signos formais,
porque não conduzem a potência nem lhe representam o objecto
a partir de uma outra cognição de si pré-existente,
mas conduzem imediatamente para os próprios objectos representados,
porque estas potências sensitivas não podem reflectir sobre
elas próprias e sobre as formas expressas que têm. Logo, sem
estas espécies expressas sendo conhecidas pelas potências
sensitivas, as coisas são tornadas imediatamente representadas às
potências; logo esta representação é feita formalmente
e não instrumentalmente, nem de alguma cognição anterior
da imagem ou ícone"41.
Voltando-se agora para a questão de saber se a espécie impressa imagem das qualidades sensíveis do objecto que faz as suas vezes unindo-se à potência para produzir a cognição é signo formal, o mestre lisbonense vai defender que a espécie impressa não é signo formal.
Anteriormente, já havia explicado as funções desta espécie impressa:
"[...] como o objecto não pode por si próprio ir para a potência e unir-se a ela, é necessário que isto seja feito por meio de alguma forma, que é chamada espécie, que assim contém o próprio objecto de modo intencional e cognoscível para que possa torná-lo presente e unido à potência. E porque aquela forma ou espécie é instituída por natureza para esta função, diz-se representar o objecto à potência, porque lhe presentifica ou torna presente o objecto. E é dita também semelhança natural do objecto porque da sua própria natureza actua fazendo as vezes do objecto, ou é o próprio objecto no ser intencional"42.
A negação da qualidade de signo formal à espécie impressa é defendida, novamente, com base em passagens de S. Tomás de Aquino. O argumento é o seguinte: o signo é alguma coisa conhecida, que torna, através de si, uma outra coisa conhecida. Posta a questão nestes termos, resta apenas provar que a espécie impressa não se enquadra nesta definição, porque a espécie impressa é apenas um princípio pelo qual a potência conhece não é nem objecto, nem termo da cognição.
"O fundamento desta conclusão é que a espécie impressa
não representa o objecto à potência cognoscente ou
à cognição da potência, mas une o objecto à
potência para que conheça, logo não é signo
formal"43.
Para reforçar esta posição, basta atentar no facto de que a espécie impressa não pode representar ou manifestar à potência isso será feito pela espécie expressa porque representar supõe a cognição, e a espécie impressa constitui um momento anterior: é princípio da cognição, concorrendo com outros para a produzir.
"Mas eliciada ou posta a cognição, não é a própria espécie impressa que manifesta, mas a expressa, que é o termo no qual é completada a cognição; pois nem a cognição tende para espécie impressa, nem conhece nessa espécie. Logo a espécie impressa não é o que manifesta o objecto à cognição formalmente, mas o que produz a cognição, no termo de cuja cognição, ou seja, na espécie expressa, o objecto é tornado manifesto"44.
A questão de saber se o acto de conhecer, ou seja a própria operação de inteleccionar, que se distingue do objecto conhecido e das espécies impressas e expressas, pertence à categoria dos signos formais ocupa também o dominicano. A resposta é, mais uma vez, negativa: nenhum acto de intelecção é signo formal. É que o signo deve ser representativo de outra coisa distinta de si, enquanto o acto de inteleccionar é uma operação que tende para o objecto, mas nada representa.
Um signo consuetudinário aquele que significa por um costume amiúde repetido mas não resulta de uma imposição pública significa natural ou convencionalmente? A esta questão João de São Tomás responderá que se o costume é causa do signo, então tal signo será convencional; mas se o costume é efeito, expressa apenas um tipo de uso, uso esse que constitui a coisa como signo, e então o fundamento do signo consuetudinário será natural. O signo consuetudinário tem assim capacidade para unir em si estas duas ordens, a do convencional e a do natural, dependendo da perspectiva em que for tomado: como efeito ou como causa.
"Nem é inconveniente que dois modos de significar convenham à
mesma coisa segundo formalidades distintas. Donde, quando um modo de significar
é removido, ou outro permanece, e assim o mesmo signo nunca é
natural e convencional formalmente, embora materialmente seja o mesmo,
isto é, a significação natural e convencional convenham
no mesmo sujeito"45.
VIII. Das Apercepções e Conceitos
A questão de saber se as apercepções de uma
coisa presente (intuitiva) e ausente (abstractiva) são distintas
ocupa agora João de São Tomás. Em primeiro lugar,
a apercepção intuitiva exige a presença real e física
da coisa apercebida, não apenas a intencional, devendo o seu objecto
encontrar-se extra videntem. Assim, a forma mais comum e adequada
de distinguir entre a apercepção intuitiva e abstractiva
é, precisamente, a que considera o termo da cognição
como ausente ou presente.
O dominicano conclui depois que intuitivo e abstractivo originam
diferentes tipos de apercepção acidentalmente, isto é,
"por outro e por razão daquilo ao qual estão juntas"46. Argumentos
para confirmar esta conclusão são tomados de S. Tomás
de Aquino, o qual defenderá que,
"[...] o conhecimento da visão ou apercepção intuitiva acrescenta sobre a apercepção simples ou abstractiva alguma coisa que está fora da ordem da apercepção, nomeadamente a existência da coisa. Logo, São Tomás sente que as razões da apercepção intuitiva e abstractiva não expressam diferenças essenciais e intrínsecas, porque estas razões não estão fora da ordem da apercepção, mas pertencem à própria ordem do cognoscível. Mas acrescentar alguma coisa que está fora do sujeito que vê e fora da própria ordem da cognição, é acrescentar alguma coisa acidental e extrínseca"47.
De resto o intuitivo e abstractivo não consistem simplesmente
na mera denominação extrínseca, defende João
de São Tomás, mas são alguma coisa intrínseca
à própria apercepção, de forma que quando estas
cognições passam de intuitivas a abstractivas dá-se
nelas uma modificação real.
Resta então ao dominicano enumerar as quatro diferenças
fundamentais entre o intuitivo e abstractivo. Em primeiro lugar encontramos
uma diferença de causa, porque a apercepção intuitiva
é causada pela presença e coexistência física
do objecto com a potência, ao passo que a abstractiva é produzida
pelas espécies de objectos ausentes. Em segundo lugar, a apercepção
intuitiva é sempre mais clara que a abstractiva. Depois, uma outra
diferença prende-se com a ordenação temporal, dado
que a apercepção intuitiva é sempre anterior à
abstractiva. Por último, no que toca ao cognoscente, a apercepção
intuitiva pode ser encontrada tanto nas potências sensitivas quanto
nas intelectivas; mas a abstractiva jamais pode dar-se nos sentidos externos.
A questão seguinte trata de apurar se pode existir nos
sentidos externos um conhecimento intuitivo de coisas fisicamente ausentes,
ou seja, se pode ocorrer aí uma apercepção abstractiva.
Muitos autores acreditam que para a apercepção
intuitiva apenas é requerida a presença objectiva da coisa,
isto é, basta que a coisa seja conhecida, não se exigindo
a sua coexistência física com o próprio acto de a conhecer,
donde é evidente que, para quem assume tais posições,
poderia ocorrer uma apercepção intuitiva da coisa fisicamente
ausente.
Claro que esta não é a posição de
João de São Tomás, para quem a resposta à questão
é, evidentemente, negativa: a apercepção intuitiva
exige não só a presença objectiva (enquanto conhecida)
do objecto, mas também a sua presença física.
"Mas é requerido para a razão do intuitivo o segundo modo de presença cognoscente, ou seja, é requerido que alguma coisa seja atingida sob a própria presença, atingida enquanto é afectada pela própria presença e enquanto a presença é fisicamente exercida na própria coisa. Mas se a presença é atingida deste modo, não pode ser atingida tal como existe no interior das causas e ao modo de alguma coisa futura, nem enquanto passou e teve o modo de alguma coisa passada, porque nenhuma destas coisas é ver uma coisa em si própria, ou ser movido por ela, ou ser atingido excepto segundo é em outro. Pois o futuro sob a razão do futuro não pode ser inteleccionado excepto nas causas nas quais está contido. [...] Logo, como a visão intuitiva é feita na coisa presente segundo a presença afecta essa coisa em si, e não segundo essa coisa é contida noutra ou segundo a própria presença é conhecida como sendo um tipo de coisa e essência, a conclusão manifesta é que a intuição é feita a partir da presença física, enquanto fisicamente se tem da parte do objecto, e não apenas enquanto está objectivamente presente à potência cognitva"48.
Também nos sentidos externos é impossível encontrar apercepções de coisas fisicamente ausentes. A questão é tão óbvia que bastará, sem mais, escutar João de São Tomás para nos convencermos das suas razões.
"Certamente é evidente que uma coisa ausente não pode ser vista, porque os sentidos externos devem receber espécies dos objectos. Mas se os objectos não são presentes aos próprios sentidos, não podem movê-los e produzir espécies. Logo, ao menos para isto a presença física do objecto é requerida. Depois, nos sentidos requerendo um contacto físico para produzir a sensação, como é o caso do tacto e do gosto, é manifesto que a presença física do objecto é essencialmente requerida, porque o contacto é requerido, pois é através desse contacto que a própria sensação é intrinsecamente feita. Mas o contacto essencialmente requer a presença dos contactantes, porque não pode ser feito entre coisas distantes; logo, muito menos entre coisas ausentes, porque todo o ausente in re está distante"49.
Na questão seguinte trata-se de apurar se os conceitos
reflexivos (aqueles pelos quais o homem conhece que conhece o seu objecto
é o próprio acto cognitivo da potência) e os conceitos
directos (aqueles pelos quais se conhece algum objecto, sem reflectir sobre
o próprio acto de conhecer), se distinguem realmente e, caso a resposta
seja afirmativa, qual é a causa da diferença entre eles.
É evidente, diz João de São Tomás,
que as potências intelectivas, mas não as sensitivas, podem
reflectir sobre elas próprias, pois como o intelecto diz respeito
universalmente a todos os seres, também dirá, forçosamente,
respeito a si próprio.
Razões para sustentar que um conceito reflexivo difere
realmente de um directo, coisa de que alguns autores duvidam, podem também
ser aduzidas da doutrina do Doutor Angélico, pois
"[...] São Tomás expressamente diz na Suma Teológica que 'o acto pelo qual alguém intelecciona uma pedra é um acto, o acto pelo qual alguém se intelecciona a si próprio inteleccionando é outra coisa bem diferente'; logo, o conceito reflexivo é um conceito distinto de um conceito directo, porque actos distintos produzem conceitos distintos"50.
Quanto ao conteúdo dos conceitos reflexivos, que espécie
de objectos estes possuem, a resposta é simples os seus objectos
são conceitos, e eles eliciam sempre actos de cognição,
produzindo por sua vez conceitos, que podem, naturalmente, ser expressos
por palavras significativas. No caso presente, quanto ao produto, a diferença
entre reflexivo e directo é irrelevante, pois o seu resultado é
sempre um conceito, seja de uma coisa externa inteleccionada, seja do próprio
intelecto e do seu acto cognitivo, e esse conceito será essencialmente
semelhante.
De resto, o homem necessita absolutamente dos conceitos reflexivos
para se aperceber de que se apercebe porque só pode atingir a actividade
do intelecto dependentemente de uma coisa sensível que seja, por
sua vez, percebida. Tal caso, evidentemente, não sucede nos anjos,
que não têm uma apercepção reflexiva de si porque
conhecem directamente a sua substância e intelecto; logo, não
existe a necessidade de utilizarem conceitos reflexivos. Em Deus, esta
actividade dos anjos, inteleccionar-se a si próprio, dá-se
ainda mais perfeitissimamente:
"[...] Existe uma inteligência, nomeadamente a divina, que é em si o seu próprio acto de inteleccionar, e assim para Deus inteleccionar-se a si próprio inteleccionando, e inteleccionar a sua essência são uma e a mesma coisa, porque a sua essência é o seu acto de inteleccionar. Existe também outra inteligência, nomeadamente a angélica, que não é o seu próprio acto de inteleccionar, mas onde, contudo, o primeiro objecto do seu acto de inteleccionar é a sua própria essência. Assim, embora para um anjo inteleccionar-se a si próprio inteleccionando, e inteleccionar a sua essência, seja distinto segundo a razão, contudo um anjo intelecciona ambos ao mesmo tempo e pelo mesmo acto, porque inteleccionar a sua essência é a própria perfeição da sua essência [...]"51.
Já o primeiro objecto dos actos de intelecção humanos são as coisas materiais extrínsecas, é isso que é primeiramente conhecido pelo homem, enquanto o próprio acto de conhecer um sensível extrínseco é apreendido secundariamente, sendo que,
"[...] através do acto é conhecido o próprio intelecto
do qual o próprio acto de inteleccionar é a perfeição"52.
Tal sucede porque embora os conceitos e a cognição estejam presentes em todo o momento na potência, contudo, essa presença, a que João de São Tomás chama "formal", não basta para que sejam conhecidos directamente, porque para que pudessem ser conhecidos directamente necessitariam cumprir todas as condições de objecto da potência e essas, já o vimos, são que se trate de algo material e extrínseco, condição que o conceito e o acto de conhecer não preenchem, e assim, para serem conhecidos, exigem reflexão, que pode ocorrer por regressão quando um objecto material é conhecido, regressão essa que passa do conceito, ao acto de conhecer, à espécie desse conceito, até se atingir a própria essência da alma.
"E assim os nossos conceitos, embora sejam inteligíveis segundo eles próprios, contudo não são inteligíveis segundo eles próprios ao modo de uma essência material, e logo não são primariamente e directamente presentes objectivamente, excepto quando são recebidos ao modo de uma essência sensível, modo que, sem excepção, deve ser recebido de um objecto sensível. E porque recebem isto, no interior da potência, a partir de um objecto sensível directamente conhecido, são ditos serem conhecidos reflexivamente, e serem tornados inteligíveis pela inteligibilidade de um ente material"53.
Este processo de regressão, que parte da coisa material
e pode, eventualmente, atingir a essência ou natureza da alma é,
diz o dominicano, tomado de S. Tomás de Aquino, e é ele que
dá origem ao nome de "conceito reflexivo":
"[...] é dito que o conceito reflexivo é um conceito de outro conceito porque a primeira coisa que é atingida pela reflexão é outro conceito, depois a potência, e a alma, e assim por diante"54 .
A distinção entre conceito ultimado e não ultimado pode ser encarada de dois pontos de vista. Em geral, diz-se ultimado um conceito que seja termo, isto é, aquilo no qual cessa a cognição, onde esta subsiste e se mantém, e não ultimado o conceito através do qual a cognição tende para um termo; adoptando uma perspectiva diversa a dos dialécticos e designando exactamente o mesmo objecto, chama-se conceito ultimado àquele que versa sobre as coisas significadas (que são termo) e não ultimado ao que se debruça
"sobre as próprias expressões ou palavras significantes"55.
De resto a diferença entre ultimado e não ultimado
é meramente formal, já que não nos encontramos perante
uma distinção essencial entre os dois conceitos, mas uma
diferença a que João de São Tomás chama "pressupositiva",
uma vez que se toma não da própria natureza dos conceitos,
mas dos objectos àcerca dos quais versam, que, esses sim, são
distintos, sendo um a coisa presente in re, e outro as palavras destinadas
a exprimi-la.
Até aqui, as distinções são bastante
simples. As dificuldades começam a surgir quando se trata de apurar
se um conceito não ultimado da voz, ou seja, uma expressão
linguística, representa apenas a própria expressão,
ou se representa tanto a expressão como o seu significado, significado
esse que, temos de supô-lo, é distinto da própria coisa
significada, caso em que estaríamos perante um conceito ultimado.
Em princípio, diz João de São Tomás,
a significação terá, de algum modo, de ser envolvida
no conceito não ultimado, porque
"[...] se a voz é nuamente considerada como um certo som feito por um animal, é evidente que pertence a um conceito ultimado, porque deste modo é considerada enquanto é um tipo de coisa, isto é, do modo como a Filosofia trata aquele som"56.
Este será o ponto de vista defendido pelo mestre lisbonense, de que a significação está e é representada no conceito não ultimado, embora o cognoscente não necessite atingir a convencionalidade da significação, a "relação de imposição", mas basta que lhe seja representado que tal significação existe. É o que sucede no caso de um homem ouvindo uma expressão cujo significado não compreende, sabendo, todavia, que tal significado existe:
"Mas quando percebe a significação no que toca ao facto
de existir, sem contudo conhecer para que fim essa significação
é imposta, em tal caso o conceito é chamado não ultimado,
porque embora de facto não conduza para a coisa significada [pois
ignora-se qual seja] como para a coisa última em particular, contudo,
conduz para uma coisa significada pelo menos em geral e de um modo confuso
surgido da deficiência do sujeito ignorante da significação"57.
IX. Esboço de uma Gnosiologia
A gnosiologia joanina, que naturalmente está profundamente
enraízada na doutrina tomista a este respeito, é utilizada
com todo o à vontade e sem grandes enquadramentos teóricos
ao longo do De Signis porque a cabal explanação da sua organização
e funcionamento é feita nos livros De Anima.
Este tema é profusamente tratado nos excelentes estudos
de Trindade Salgueiro e João de Oliveira, e pela importância
que assume no desenrolar do Tratado dos Signos merece que nele se atente
com algum pormenor.
Em termos ontológicos, a posição de João
de São Tomás é, como seria de esperar, desassombradamente
realista: os seres existem e oferecem-se ao homem para que possam ser pensados
é porque existem realmente que podem ser inteleccionados, constituindo
a inversão desta máxima o extremo mais antitético
que uma posição idealista pode assumir.
Que faz o homem com estes seres que se lhe oferecem tão
despidos de problematicidade ontológica? São essenciais à
vida tal como a conhecemos, pois "nada há no intelecto que não
tenha estado primeiro nos sentidos" é o princípio que alimenta
a reflexão gnosiológica junto de todas as escolas tomistas,
e na Escolástica em geral. Daí que o intelecto só
possa conceber Deus e a alma conotativamente com os sensíveis; tal
como só pode conhecer a própria actividade do intelecto através
do conceito reflexivo (que precisamente tem a função de a
"conotar com os sensíveis"), ancorando o intelecto em algo sensível
que lhe é proporcionado, e permitindo depois por regressão
que este se debruce sobre a sua própria actividade.
O objecto que é proporcionado à inteligência
humana é a essência das coisas materiais. Como o homem é
uma alma estrita e essencialmente unida a uma realidade material, o seu
corpo, só pode conhecer a essência das coisas recebendo-a
dos sensíveis e depurando-a progressivamente, através de
um processo de abstracção, das escórias materiais
que se colam ao objecto.
"No estado de união ao corpo, a nossa inteligência não pode entender as substâncias espirituais senão por conotação com as essências sensíveis; no estado de separação [e estariamos perante um anjo ou inteligência pura] é que ela as pode entender como são em si mesmas"58.
O instrumento por excelência para conhecer a essência ou natureza das coisas sensíveis são as espécies, que representam aos sentidos o que há de formal nos objectos, pois, como é evidente, os sentidos não podem receber o objecto com a sua pesada materialidade física, embora o recebam tal como é, só que despojado de tudo o que nele era material e sensível. Aliás, a espécie é o objecto, só que revestindo-se de um distinto modo de ser:
"No ser intencional e representativo a espécie impressa é conforme com o objecto; e mais que conforme, pois ela é a própria essência do objecto sob este aspecto, que todo o conteúdo real está contido representativamente na espécie"59.
É através das espécies impressas e expressas,
e por um processo de progressiva abstracção, que o homem
acede ao mundo material. É extraordinariamente complicado o esquema
de funcionamento desta abstracção, inspirando-se nas
teses aristotélicas sobre este assunto, colhidas por via do Doutor
Angélico, e isto porque obriga a decompôr uma série
de operações que no homem se dão imediatamente, de
forma fulminante, das quais, na maioria os casos, ele não tem consciência,
exigindo-se, para as penetrar, um esforço da vontade e do intelecto.
Todo o conhecimento se inicia com a espécie impressa,
que é proporcionada ou imprimida nos sentidos externos. Ela é
a forma do próprio objecto como cognoscível, um meio através
do qual o objecto é conhecido. João previne, no Tratado dos
Signos, contra o erro de a considerar um signo formal. A espécie
impressa (e impressa porque se imprime nos sentidos) é meramente
um princípio concorrente para a cognição, não
é nem objecto, nem termo desta. Já a espécie expressa.
ou conceito, é verdadeiramente signo formal, porque o intelecto
conhece nela como num termo, e esta já lhe apresenta o objecto como
algo distinto de si.
O homem recebe então nos sentidos as espécies impressas,
que representam o objecto despido das suas condições materiais
mas ainda claramente individualizado. Estas espécies serão
trabalhadas pelo intelecto agente ou activo, uma das faculdades da alma,
que as depura transformando-as em espécies expressas, isto é,
produzindo o conceito, que é signo formal, através do qual
o homem conhece.
A espécie expressa é depois trabalhada pelo intelecto
passivo, produzindo-se, da sua conjunção ou apropriação,
o conhecimento. O processo é clara e sucintamente explicado por
Trindade Salgueiro (1940:38 e ss.):
"O princípio, claramente exposto por Fr. João de São Tomás, é que na alma há dois princípios necessários ao conhecimento intelectual: a inteligência agente, que abstraindo das condições materiais dos objectos, torna as espécies sensíveis em inteligíveis, e a inteligência possível, que por meio das espécies inteligíveis realiza o conhecimento [...] Da espécie sensível, que lhe é apresentada, a inteligência agente vai produzir a espécie inteligível, que há-de conduzir ao verbo mental, por meio da inteligência possível. Com efeito, é sobre a espécie sensível, ainda cercada de todas as notas individuais, o fantasma, que a inteligência agente vai operar, por abstracção, de modo a que fiquem apenas os elementos universais que constituem a essência [...] Sobre a espécie assim elevada ou tornada inteligível é que opera a inteligência possível. O mundo entra assim na alma despojado dos seus elementos materiais e reduzido ao que é espiritual ou essencial".
Refira-se que um idealista, ou um nominalista, ou alguém
que aglutine ambas as posições, dispensaria todo este complicado
esquema, crente na possibilidade de uma apreensão clara e distinta,
ou que os nomes que se colam às coisas são criaturas de razão
(ens ficta), subsistindo no mundo apenas o puramente individual.
O processo de conhecimento refina-se com a passagem da espécie
expressa aos sentidos internos, onde o homem possui quatro faculdades que
concorrem para eliciar a cognição. A primeira é o
sentido comum, que compara e distingue as sensações produzidas
pelos sentidos externos. A fantasia, ou imaginação, conserva
e reproduz as imagens dos sentidos, estando ainda aberta à composição,
pois através, por exemplo, das espécies do touro e do homem,
pode formar a imagem do minotauro.
A estimativa, terceira faculdade, é já mais refinada,
podendo distinguir as propriedades de benefício ou dano de um objecto,
propriedades essas que não estão acessíveis aos sentidos
externos. Escutemos Trindade Salgueiro (1940:34) sobre o funcionamento
dual desta faculdade:
"O autor [João de São Tomás] distingue na estimativa um poder simplesmente cognoscitivo e um poder activo. Pelo primeiro conhece simplesmente o que lhe é apresentado pelos sentidos. Pelo segundo fica ao serviço de uma potência superior e é produtora de uma espécie, não para si, mas para a potência superior que serve, e assim opera em virtude da alma, que eminentemene contém todas as potências e dá à potência inferior a força motiva da potência superior para emitir a espécie".
A última faculdade dos sentidos internos é a memória,
que conserva as espécies como passadas, e através de um esforço
da vontade, pode reconstituir todo o percurso de uma percepção,
processo a que os animais não têm acesso.
"Nisto difere a memória da imaginação, porque esta reproduz as espécies como presentes ou actuais, as quais se lhe aderem 'como os outros acidentes aderem ao sujeito em que existem'" (Trindade Salgueiro, 1940: 38).
Este complexo e delicado esquema oferece como resultado as três
operações do intelecto: a apreensão simples, o juízo,
e o discurso ou raciocínio. Registe-se ainda que a possibilidade
de erro, no conhecimento, nunca radica nos sentidos, ao contrário
do que defenderá, por exemplo, Descartes, para quem estes são
essencial e intrinsecamente enganadores, ou, pelo menos, suspeitos. O erro
só pode ocorrer no juízo que se forma a partir dos dados
recebidos pelos sentidos, e João de São Tomás exemplifica,
no De Signis, que não erra o sentido que apreende o latão
ou o ouropel (vê uma coisa dourada), mas sim o juízo, capaz
de tomar como ouro o que não o é.
Quanto às operações do intelecto, que constituem,
no conjunto, a faculdade especificamente humana de pensar, elas distinguem-se
entre a apreensão simples, que é a formação
de um termo ou conceito no intelecto sem que nada se afirme ou negue sobre
ele; o juízo, a que João de São Tomás chamará
também no De Signis "composição" ou "divisão",
e que é constituído pela atribuição ou negação
de um predicado ao termo, formando assim a proposição. Por
último, temos como coroar desta longa cadeia o raciocínio
ou "elaboração do discurso", que é a faculdade de
pensar propriaente dita, quando da verdade de uma proposição
se infere outra verdade aí não presente. Corresponde, grosso
modo, ao juízo sintético kantiano (aqui realizado entre
proposições), o qual contém no predicado algo que
não estava verdadeiramente presente no sujeito.
"O progresso iniciado na apreensão acentua-se e aperfeiçoa-se no juízo e no raciocínio. No juízo, porque na enunciação que ele envolve, e que é a síntese de dois conceitos propostos pela inteligência, o conhecimento alarga-se; e nesse confronto-síntese a inteligência conhece a verdade ou conformidade do próprio juízo com a 'quidade' [essência]. Finalmente, no raciocínio completa-se a progressão. Na indução, a inteligência progride da verdade particular, adquirida pela experiência, para a verdade universal ou para a lei; e na dedução, da verdade incerta progride-se para a verdade certa, na qual aquela está contida". (Trindade Salgueiro, 1940: 53),
O processo da passar dos sensíveis, aos conceitos ou signos
formais, para, a partir daí, eliciar um acto de cognição
pode, esquematicamente, ser descrito da seguinte forma:
X. A Mediação Sígnica
Raiz de Todo o Conhecer e Pensar
O exame do delicado esquema gnosiológico de João
de São Tomás permite agora com outra precisão analisar
o papel do signo e da semiose nos actos cognitivos humanos.
Recorde-se que é a espécie impressa, que se oferece
aos sentidos externos, que ao ser trabalhada pelo intelecto agente se transforma
em espécie expressa ou conceito, este sim, já apto a ser
recebido pelo sentido interno e trabalhado pelo entendimento.
João de São Tomás já provou à
saciedade que tal conceito é signo formal, interior ao cognoscente,
porque é um meio que representa o objecto à potência
cognitiva. Como já vimos, apenas e exclusivamente por intermédio
da espécie expressa o mundo é proporcionado ao homem, sem
esta ele seria como uma mónada sem janelas, um organismo funcionando
em absoluta clausura e incapaz de constituir, rudimentar que fosse, qualquer
imagem do mundo.
É evidente, então, que João de São
Tomás identifica toda a vida mental com processos semiósicos,
ou, estendendo a máxima Escolástica, nada está no
intelecto que não tenha estado primeiro nos sentidos e não
tenha sido submetido a estruturas semiósicas mediadoras que possibilitam
a consciência e modelização do mundo.
Com uma coerência extraordinária, e esta era a conclusão
que se impunha depois do estabelecimento de tais premissas, o mestre lisbonense
abre espaço a um dos ramos da semiótica que só muitos
séculos mais tarde se veria plenamente constituído: a zoosemiótica,
que estuda o modo como os animais modelizam o mundo por intermédio
do que João de São Tomás chamaria, passe o anacronismo,
signos formais60.
São portanto os signos veículo único e fundamental
de condução do extramental à alma, e da própria
alma se inteleccionar a si inteleccionando. Os signos iluminam o mundo
que se oferece às aproximações cognitivas do homem
porque este é um composto, substancialmente unido, de alma e corpo,
e assim tudo o que cognitivamente se lhe dá tem de possuir alguma
conotação ou relação com os sensíveis,
já que é sempre através dos sentidos externos que
tudo o que é mundo penetra na alma.
Fora o homem um anjo (espírito puro sem matéria)
e poderia aperceber, sem discurso nem signos alvo de utilização
instrumental, e muito mais perfeitissimamente, tudo o que tão arduamente
abstrai.
Operando aqui no nível mais básico ou radical em
que podem ser encontrados os processos de semiose, e com perfeita consciência
de como esses processos são, a outro nível, via de intersubjectividade
e de objectificação do mundo e dos instrumentos de nele intervir
Arte, Ciência e Filosofia , João de São Tomás
poderia dizer, com Morris, a cujo behaviorismo, já o vimos, está
muito próximo:
"A civilização humana está dependente de signos
e sistemas de signos, e a mente humana não se pode separar do funcionamento
de signos se é que a mente não deve ser identificada com
tal funcionamento"61.
É também Morris que fornece preciosos e poderosos
instrumentos para analisar o labor semiótico do Doutor Profundo,
mediante a divisão tripartida que postula para a sua ciência.
Porque as fronteiras desses conceitos, outrora tão claros e distintos,
têm vindo a diluir-se à medida que vão sendo reelaborados
em sucessivos estudos, urge dar aqui brevemente conta deles, e da forma
como serão interpretados ao longo deste trabalho, em que operam
como instrumentos de análise.
XI. Essas Obscuras Relações
a que Chamamos Signos
João de São Tomás toma a semiótica,
ou, como lhe chamaria, o estudo da natureza dos signos, como raiz de toda
a lógica e de facto assim sucede, já que opera ao
nível mais básico em que os veículos sígnicos
funcionam e os processos semiósicos podem ocorrer. São estes
poderosos instrumentos que permitem conhecer, pensar, atingir níveis
de expressão e intersubjectividade, e portanto passar a dimensões
da lógica que analisam níveis superiores de semiose: proposições,
discurso, meta-linguagens.
Claro que a tripartição da semiótica nos
seus três vectores fundamentais sintaxe, semântica e pragmática
é noção que nem sequer aflora a mente do dominicano
e, não obstante, a sua inquirição da natureza dos
signos, realizada com um rigor sistemático notável, toca
de perto os três domínios.
Precisemos então o sentido destas noções,
tal como foram propostas por Morris. O trabalho sobre as relações
formais dos signos uns com os outros será chamado sintaxe, que se
ocupa, portanto, da dimensão sintáctica da semiose. Ela é,
diz Morris, a parte mais desenvolvida dos estudos semióticos e abstrai,
no seu estudo, das relações dos signos aos objectos ou intérpretes.
Já o estudo das relações dos signos aos
objectos a que estes se aplicam recebe o nome de semântica, e dedica-se,
evidentemente, à dimensão semântica da semiose o
processo pelo qual algo funciona como um signo para alguém; enquanto
as aproximações que se dedicam ao estudo das relações
dos signos com os seus intérpretes os agentes do processo de semiose
recebem o nome de pragmática.
"A análise precedente é aplicável a todos os signos, sejam eles simples ou complexos"62,
esclarece Morris. O que se trata aqui de apurar, portanto, é
em que consiste a doutrina semiótica do Doutor Profundo em termos
sintácticos, semânticos e pragmáticos.
Útil será também explicitar que João
de São Tomás já encara os signos como complexas teias
relacionais, e não realidades estáticas daí o quase
abuso da relatio secundum esse/secundum dici em ordem a analisá-los.
Em primeiro lugar, coloca a totalidade dos signos na categoria de relações
secundum esse, e isto é explicitamente afirmar que a sua essência
é serem relação e produzirem outras relações.
Depois, é obrigatório concluir, do que o dominicano expõe,
que os signos instrumentais são necessariamente geradores de um
signo formal no cognoscente de outra forma, como lhe acederiam aos sentidos
internos? salvo, claro, quando a estes signos falta um interpretante.
Escutemos agora Peirce definindo signo perto de 300 anos mais tarde:
"Um signo, ou representamen, é qualquer coisa que está
para alguém em lugar de qualquer coisa sob uma relação
ou a um título qualquer. Dirige-se a alguém, isto é
cria no espírito desta pessoa um signo equivalente ou talvez um
signo mais desenvolvido. Este signo que ele cria, chamo-o o interpretante
do primeiro signo. Este signo está em lugar de alguma coisa: do
seu objecto. Está em lugar deste objecto não sob todos os
aspectos, mas por referência a uma espécie de ideia que designei
algumas vezes o fundamento do representamen"63.
Não é abusar de João de São Tomás
dizer que esta definição peirceana de signo está inteiramente
contida nos seu projecto semiótico. Senão vejamos, para Peirce
o signo está para alguém em lugar de qualquer coisa não
sob todos os aspectos, que é precisamente o que João de São
Tomás quer dizer quando insiste até à exaustão
que o signo é inferior ao signado, pois se fosse superior ou idêntico
destruiria a "relação do signo", que é de subordinação.
Atendo-nos aqui ao caso da identidade, que é o mais comum, se um
objecto se apresentar a alguém sob todos os aspectos daquilo que
manifesta será imagem representativa ou propagativa, não
signo, porque este abstrai e representa apenas alguns traços ou
categorias do objecto.
Quanto ao interpretante que, segundo Peirce, o primeiro signo
cria no espírito de quem o recebe, ele é, evidentemente,
uma consequência da gnosiologia joanina, já que qualquer signo
instrumental deve necessariamente transformar-se em espécie expressa
ou conceito para aceder ao cognoscente, e este segundo signo é claramente
identificável com o interpretante peirceano.
Em termos de análise sintáctica João de
São Tomás é parco em desenvolvimentos, e de facto
nem estuda as relações dos signos uns com os outros, nem
formula quaisquer regras a que tais relações devam obedecer.
Limita-se, sim, a traçar sistemática e firmemente as fronteiras
entre os diversos tipos de signos e isso é, ainda que obliquamente,
afirmar o que tais relações não são.
Refira-se que estas divisões, que são sintácticas,
se dão adoptando quer um ponto de vista semântico, quer um
ponto de vista pragmático. Pelo primeiro, aquele em que os signos
se relacionam ao signado ou seu objecto, dividem-se em naturais, convencionais
e consuetudinários. Pelo ponto de vista pragmático, aquele
que considera as suas relações à potência cognoscente,
dividem-se os signos em formais e instrumentais.
A análise sintáctica de João de São
Tomás detém-se aqui neste ponto. Nada mais é dito
sobre as relações entre estes tipos de signos que são
discriminados semanticamente, apenas se traçam, claramente, as suas
fronteiras Esta posição é natural e, de facto, a única
possível no nível de análise com que João de
São Tomás está comprometido, pois para estudar relações
propriamente sintácticas seria preciso que a semiótica se
dedicasse a sistemas de signos complexos; ora já vimos que
o Doutor Profundo se encontra um passo atrás, inquirindo o que sucede
antes dos signos se começarem a organizar em juízos, proposições
e discursos.
Do ponto de vista pragmático, aquele que divide os signos
em instrumentais e formais, as relações já são,
por via da gnosiologia, mais ricas. É assim que os signos instrumentais
se ligam aos formais por uma relação não exclusiva
de causa-efeito. Para se constituir um signo formal, e porque nada há
no intelecto que não tenha estado primeiro nos sentidos, é
necessário ou um signo instrumental, aquele que se apresenta como
objecto extrínseco, ou simplesmente um objecto manifestativo mas
não veículo sígnico. É verdade que também
podem dar-se conceitos de coisas não existentes na natureza, mas
tais conceitos ocorrem ou por conotação com sensíveis,
ou por composição, através da faculdade da imaginação,
de espécies oriundas do mundo objectivo.
Em termos de análise semântica a perspectiva em
que os signos se ordenam aos seus signados as descobertas do dominicano
são já mais numerosas. É seguindo critérios
de exploração semântica, por exemplo, que estabelece
que o signo é essencialmente relação, portanto relatio
secundum esse, já que é o facto deste se orientar inteiramente,
com uma ordem de subordinação, para o seu objecto, que verdadeiramente
o constitui como signo. Está assim encontrado um critério
claramente semântico na definição de signo, visto todas
as realidades que se orientam para um objecto, e que lhe são mais
imperfeitas e dele dependentes, constituirem signos.
No estudo da relação do signo in communi ao seu
objecto, ou designatum, esta relação será, para João
de São Tomás, relação segundo o ser real e
finita porque, dependendo do designatum realmente, o signo tem de se lhe
relacionar secundum esse.
A investigação semântica prossegue com a
inquirição sobre se a relação do signo natural
ao signado é real, e a resposta não poderia deixar de ser
afirmativa, já que este signo se funda numa proporção
ou conexão real para a coisa representada, isto é, existente
antes da operação apreensiva do intelecto e independente
desta. É evidente, também, que nos signos convencionais sucede
o oposto, e que a relação que os anima é de razão
não existiria sem uma prévia operação do
intelecto porque o seu fundamento é uma imposição
comunitária socialmente determinada. De resto, é directa
a relação dos signos aos seus signados, porque estes ligam-se-lhes
como "aquilo que deve ser representado" a um intérprete.
Ao tratar das apercepções e conceitos, novamente
as preocupações semânticas voltam a estar na ordem
do dia para o dominicano. Assim, as apercepções intuitivas
e abstractivas discriminam-se relativamente à presença ou
ausência dos objectos a que se referem, sendo certo que os sentidos
externos jamais podem aceder ao conhecimento intuitivo de coisas fisicamente
ausentes.
Novamente os objectos dos signos voltam a ocupar João
de São Tomás quando investiga se conceitos reflexivos e directos
se distinguem realmente, concluindo que estes se discriminam em relação
aos objectos que possuem no primeiro caso, conceitos que permitem à
potência inteleccionar-se a ela própria inteleccionando; no
segundo objectos que são simplesmente apercebidos, sem que se atente
no próprio acto de inteleccionar.
São também critérios semânticos que
permitem distinguir entre conceitos ultimados e não ultimados. Mais
uma vez, essa diferença toma-se por relação aos objectos
que estes possuem: o ultimado versa sobre um termo ou coisa significada;
o não ultimado sobre as palavras significativas. É
por isso, explica João de São Tomás, que não
se fala aqui de uma diferença essencial entre os dois conceitos,
já que a distinção opera com recurso a categorias
semânticas, tomando-se apenas da diferença ente os objectos
que possuem.
Em termos pragmáticos, e esse aspecto já foi aqui
suficientemente realçado, João de São Tomás,
porque não analisa complexos sígnicos, proposições
e discurso, mas o signo tomado na sua pureza mais radical, ocupa-se somente
da relação, ou das diversas relações, que este
pode estabelecer com a potência, e portanto com o cognoscente, ficando-lhe
vedada a análise do uso e abuso dos signos no decurso de processos
interlocutivos concretos, pois estes nunca afloram o seu Tratado dos Signos.
A primeira inquirição a que poderiamos chamar pragmática
é a que conclui que a relação do signo à potência
é transcendental; constatação essa que nada mais faz
do que manter o mundo dentro dos limites do que pode eventualmente ser
conhecido, do que se abre à cognição, mas não
a impõe. Se o ser dos veículos sígnicos fosse orientarem-se
essencialmente para as potências o homem habitaria um universo virtualmente
animado onde os signos se lhe imporiam, ainda que contra a sua vontade,
ora um animismo deste tipo não poderia repugnar mais a um fidelíssimo
católico. É por isto, aliás, que a relação
dos signos, de todo e qualquer signo, à potência, é
de razão. Com efeito, se tal relação existisse antes
da operação mental que a cria os homens seriam alvos indefesos
de signos-arma que constantemente os bombardeariam64.
Mas se o signo estabelece com a potência relações
de razão, toca-a indirectamente por uma especialíssima relação
real, que é o facto de que, no objecto, ser manifestável
(em potência) à potência é algo de real.
No que toca à questão de saber se a exibição
de um signado à potência é provocada eficientemente
pelo signo, João de São Tomás conclui pela negativa,
uma negativa que se relaciona, directamente, com o facto dos signos jamais
se poderem impor, pela sua natureza intrínseca, ao homem. Existem,
é claro, causas eficientes da significação, mas todas
se situam do lado da própria potência cognitiva, não
do signo, que, enquanto tal, nada produz, e o argumento é válido,
pelos mesmos motivos, tanto para os signos formais como instrumentais.
Análise que se situa dentro dos limites da pragmática
é também a que questiona se os animais irracionais e os sentidos
externos utilizam signos, e a resposta será afirmativa. Os animais,
porque são disciplináveis e reagem muitas vezes a coisas
que não se situam dentro dos limites estritos daquilo que percebem
pelos sentidos, utilizam certamente signos. Os sentidos externos fazem-no
igualmente. São capazes de aceder a certas formas de significação,
mas só enquanto o signado está contido no signo, porque qualquer
outra operação exigiria comparação, colação
e discurso, o que os sentidos externos, obviamente, não realizam.
A questão de apurar se o signo formal é verdadeiramente
signo toca também os domínios pragmáticos da semiose,
já que se vai inquirir sobre a relação deste signo
ao cognoscente. Já se viu sobejamente que os signos formais são
interiores ao cognoscente, e que são verdadeiramente signos João
de São Tomás defende-o com base em que conduzem à
cognição de outra coisa diferente deles próprios,
sendo distintos do acto cognitivo pelo qual a coisa é conhecida.
Isto significa, claro, que a espécie expressa funciona, em relação
à potência como signo formal. Mas a conclusão já
não é válida para a espécie impressa, ela não
é objecto nem termo de cognição esse papel é
desempenhado pela espécie expressa mas apenas um meio concorrente
com outros para que a potência elicie a cognição.
Também o acto de inteleccionar fica claramente excluído
da categoria dos signos formais, já que esse acto é a operação
pela qual a potência tende para o objecto, mas nada representa nem
é meio para conhecer outra coisa antes, são as coisas que
são conhecidas por meio de tal acto.
Conclusões
A semiótica ou inquirição da natureza e essência
dos signos constitui-se, claramente, para João de São Tomás,
como o estudo das relações entre esses signos e os seus intérpretes
(relações simultaneamente secundum dici e de razão);
entre os signos em geral e o que estes designam (relações
secundum esse); e ainda entre os próprios signos entre si, que estabelecem,
enquanto unidades consideradas atomisticamente, relações
de causa-efeito em torno dos seguintes pólos perceptivos-expressivos:
instrumental (plano da recepção) > formal > instrumental
(plano da expressão).
Desta lógica das relações, que João
de São Tomás elabora, utilizando para o efeito proposições
primitivas ou signos isolados, se pode partir para o estudo da Lógica
propriamente dita, que se debruça sobre as linguagens e os raciocínios,
complexos sígnicos elaborados que obedecem salvo na perspectiva
sintáctica, onde os processos tendem a complexificar-se às
mesmas regras que qualquer veículo signíco encarado isoladamente,
porque, em última análise, todos os processos comunicativos
e judicativos terão de se decompor ou serem reconduzidos a estas
unidades básicas.
Em termos de concepção, o Tratado dos Signos destina-se
a explicitar e desvelar, utilizando esta lógica das relações,
a peculiaridade dos fenómenos perceptivos, a sua ligação
com a estrutura ontológica do mundo, e a maneira como é possível
traduzi-la e plasmá-la em formas expressivas palpáveis e,
mais importante ainda, comunicáveis a outrem. Nesta materialização
do mundo objectivo no intersubjectivo radica a possibilidade de constituição
de todas as estruturas e elementos trans-subjectivos que normalmente são
identificados com cultura ou produções humanas de mundo três,
para utilizar a terminologia de Popper.
Breve exame, portanto, do papel do signo e das suas especialíssimas
relações na estruturação do mundo tal como
o conhecemos.
A ordem das relações secundum dici abarca em si
todo o mundo subjectivo, porque é por intermédio de relações
transcendentais, que são, simultaneamente, de razão, que
o mundo se oferece à consciência por intermédio dos
veículos sígnicos, meio condutor das realidades objectivas
à alma. As relações secundum esse delimitam, por seu
turno, o campo da intersubjectividade. São elas que constituem,
propriamente, aquilo que é essencial aos signos, e só por
meio destes é o homem capaz de objectivar, de forma extramental,
imagens do mundo que ficam, desde então, virtualmente acessíveis
a qualquer outro sujeito.
Podendo os signos, na sua relação directa ao objecto,
constituirem indiferentemente relações reais ou de razão,
fica devidamente salvaguardada a sua inesgotabilidade. É que o homem,
enquanto fonte e causa eficiente de certos tipos de signo, aqueles cujo
fundamento é uma relação de razão, garante,
por um lado a possibilidade de expandir continuamente a ordem da significação;
por outro, não só a capacidade de realizar progressos de
ordem cognitiva e modelizações de mais perfeita adequabilidade
a certas franjas do real, mas precisamente o inverso é a existência
de certas capacidades expressivas e evolutivas ao nível da significação
que pode proporcionar o desenvolvimento de novas aproximações
cognitivas ao mundo nunca antes realizadas65.
Aos medievais, em geral, apavorava-os com um terror apocalíptico
a ideia de infinito; ora a semiótica de João de São
Tomás abre-se também a esta dimensão. Não se
refere aqui, evidentemente, um infinito em acto, mas antes uma inesgotabilidade
virtualmente infinita ou infinita em potência.
De resto é preciso não esquecer que este esquema
semiótico proposto pelo dominicano permite transcender o domínio
da percepção sensorio-motora actual através da indiferença
à presença ou ausência do signado, ou seja, entre o
intuitivo e abstractivo, já que o produto destas duas operações,
ainda que distinguido em virtude do tipo de objecto, será essencialmente
o mesmo: conceitos que, num caso como noutro, serão essencialmente
idênticos. João de São Tomás explica que o signo
conserva integralmente a sua capacidade de funcionar mesmo nestas situações
limite, pois desaparecido o signado, diz, permanece a imposição,
no caso dos signos convencionais, ou a conexão, no caso dos signos
naturais, "virtualmente" ou "fundamentalmente".
Possibilidade de progresso indefinido em direcção
às Verdades Eternas por via da capacidade de recomposição
arbitrária do cabedal de signos existente num dado momento, por
um lado; por outro, capacidade de abstrair das condições
perceptivas e sensitivas actuais, através da memória mas
também pela essencial indiferença do signo à presença
do signado constituem assim, para João de São Tomás,
os dois vectores fundamentais a partir dos quais se organizam as produções
culturais humanas, e, também, todas as estratégias comunicativas
que pressupõem a materialização, confronto e reajustamento
de modelos.
A existência de um mundo objectivo, povoado de entes reais
que são autonomamente dependem não do homem mas de um acto
criador de Deus e se relacionam independentemente das humanas operações
de apreensão é assumida, ao longo de todo o Tratado dos Signos,
como facto inquestionável, e denuncia o pendor realista das teses
de João de São Tomás, colhido por via da inspiração
tomista que ecoa por toda a obra. Agora, mesmo tomando tal verdade como
certa, é possível ir mais longe e João de São
Tomás fá-lo. O mundo objectivo extramental, povoado de entes
reais autónomos que, eventualmente, poderão estabelecer relações
entre si, só existe, para o homem, João de São Tomás
diria "objectivamente", isto é, através da percepção
ou tal como é na apreensão, e neste sentido constitui um
ens rationis, algo que, de alguma forma, depende do intelecto do cognoscente.
Quer dizer que João de São Tomás aceita sem pestanejar
que há mais realidade para além do objectivamente presente
à consciência, mas está vedada ao intelecto humano,
o qual só pode conhecer por meio de signos.
Isto conduz-nos directamente às duas grandes correntes
que atravessaram sincrónica e diacronicamente, num percurso não
isento de conflitos, o pensamento ocidental até aos nossos dias:
realismo-idealismo. A maneira como costuma, geralmente66, ser tematizada
e interpretada a querela fá-la remontar originariamente a Platão,
que inventa o idealismo, e a Aristóteles, que se lhe contrapõe
no extremo oposto. O tema atravessa toda a Idade Média, com clara
vantagem, sobretudo depois do fôlego que lhe é dado pela síntese
tomista, para as posições realistas. O nominalismo faz, contudo,
escola, defendendo posições idealistas de matizes e tons
variados, embora colocando sempre a ênfase dos processos cognitivos
num sujeito todo-poderoso.
Pode dizer-se, todavia, que só com Descartes a doutrina
colhe o máximo do sucesso sociológico que lhe estava reservado,
e começa a influenciar, decisivamente, toda a produção
de conhecimento subsequente, passando o realismo a ser paternalisticamente
encarado como doutrina primitiva e ingénua. A síntese hegeliana,
que reduz, materialmente, o mundo a produto de uma ideia que se reencontra
e auto-consciencializa no homem, espécie de delírio da razão,
representa o expoente máximo, quase demencial, de um ultra-idealismo
já fora de qualquer controle67. Contra isto, Kant é tido
como o homem que veio pôr os pingos nos iii's, temperando realismo
e idealismo numa ordem de fusão que aproveita o que de melhor ambas
têm a oferecer. É assim que, à máxima realista
o mundo existe independentemente de mim Kant acrescenta, sem o absolutizar,
o papel do sujeito mas só pode ser conhecido mediatamente através
das estruturas cognitivas próprias ao homem.
Esta é a descoberta kantiana fundamental, que depois será
refinada com o trabalho sobre o juízo e a proposta de uma nova tábua
das categorias; e o que se pretende aqui demonstrar é que ela já
está, não latente, mas patente, no Curso Filosófico,
constituindo um dos pressupostos básicos que orientam o Tratado
dos Signos.
Para João de São Tomás, como bom tomista,
o mundo dos entes reais não oferece qualquer problematicidade ontológica,
existe, simplesmente, em virtude de um acto criador de Deus; mas o homem
só pode aceder-lhe através de uma complexa abstracção
que se reduz, no ponto zero em que o mundo penetra a alma, à mediação
sígnica omnia instrumenta quibus ad cognoscendum et loquendum
utimur. É inegável no Tratado esta fusão realismo-idealismo
no ponto em que o dominicano se debruça sobre o que é especificamente
humano. Claro que depois, um dos aspectos mais fantásticos do De
Signis, que aqui, por razões óbvias, não se explora,
é que após referir como funcionam estes mecanismos no homem,
João de São Tomás passa, sistematicamente, à
análise, e consequentemente às diferenças, das mesmas
operações nos anjos e em Deus.
Está realizada portanto no Curso Filosófico a superação
do realismo e idealismo, que desaguam conjuntamente numa ordem de fusão:
o mundo objectivo, aquele onde pululam ens reale, só é acessível,
pelo menos para o homem, como ens rationis, isto é, objectivamente,
através de uma percepção mediada por signos. Esta
posição, não mais abandonada, ou pelo menos sem conhecer
desvios significativos, desde que proposta por Kant teria de esperar, curiosamente,
pelo nosso século, para conhecer a sua consagração
no domíno das ciências físicas; estando, desde McLuhan,
persistentemente em foco na análise dos processos comunicacionais68.
Revolução, de consequências à data
imprevisíveis, da estruturação e modelização
do conhecimento que inaugura, com João de São Tomás,
uma nova ordem: aquela onde objetivo e subjectivo se fundem para dar origem
à materialização de uma imagem do mundo passível
de fundamentar modelos operativos que podem ser projectados intervenientemente
na natureza e que são, por outro lado, comunicáveis a terceiros,
permitindo o estabelecimento de projectos construtivos colectivos.
Que pretende João de São Tomás? A sua é
uma poderosa e iluminada forma de dar resposta às questões
que desde sempre têm perseguido o homem, sendo que o sólido
e coerente edifício do Curso Filosófico, que é uma
síntese com pretensões totalizadoras, resulta (involuntariamente?),
fruto em grande medida do trabalho do De Signis, numa perfeitíssima
ontologia.
Pode a semiótica ser identificada com uma ontologia? À
maneira moderna como Hartmann e Quine lidam explicitamente com o problema,
certamente não, mas a "maneira moderna" não é a opção
correcta para enquadrar um medieval69, e de facto o que o De Signis oferece
no final da sua apropriação, e porque busca a forma como
"conhecemos o quê?", é uma catalogação sistemática
das diversas regiões habitadas pelo Ser que põe especial
ênfase nas que rodeiam e estão acessíveis ao humano.
Por outras palavras, estamos perante uma ontologia porque como o mundo
só é acessível objectivamente - através da
cognição - e esta é impreterivelmente mediada por
signos, a semiótica determina a resposta à questão
ontológica fundamental: o que há70. Há Deus, os anjos,
o homem e o mundo. Este último oferece-se mediado por signos formais-instrumentais,
naturais, convencionais e consuetudinários que delimitam, pelas
suas formas próprias, a estrutura do que é apercebido. Pelas
relações que estabelecem com o sujeito e os seus referentes,
criam tipos de objectos distintos: apercepções intuitivas
e abstractivas, que são distintas atendendo ao objecto, mas não
ao que eficientemente produzem: conceitos. Esta ordem é tendencialmente
capaz de originar progresso pela possibilidade de evolução
da ordem da significação mas no seu esquema básico,
a que a característica "evolução" inere, é
em termos humanos incontornável e inescapável. Só
a intervenção de Deus, dos anjos ou demónios, pela
infusão de espécies alienígenas, pode perturbar
o equilíbrio ôntico das coisas violando ostensivamente as
leis cognitivas inscritas desde todo o sempre na natureza humana.
Resta acrescentar que apesar das características que distinguem
o Tratado dos Signos como corpo autónomo no interior do Curso Filosófico,
a totalizadora explicação do mundo tal como o conhecemos
só é acessível, pese embora a importância fundadora
do De Signis, a partir do conjunto da obra71, e mesmo esta, apesar do fôlego
e rigor extraordinário, não pode responder a todos os motivos
de desassossego e inquietação do homem. Para isso João
de São Tomás reserva o monumental Curso Teológico,
porque só na metafísica poderão estas questões
encontrar a sua cabal fundamentação72. Crê-se ter ficado
demonstrado à saciedade que não é perpetrar particular
violência em relação ao Cursus extrair dele o De Signis,
que, precisamente, já goza de um estatuto relativamente autónomo
no conjunto das outras questões.
Esta breve exploração aqui proposta, por outro
lado, mereceria talvez uma contextualização mais ampla. Deveria
ser tido em conta, no estudo do De Signis, não só a obra
dos Conimbricenses, por onde João de São Tomás estudou
na sua juventude, como os autores contra quem polemiza, fundamentalmente
Ockam e Suarez; e isto porque muitas das questões e perplexidades
que abalaram séculos de reflexão são retomadas com
particular tenacidade e argúcia por João de São Tomás,
que não hesita em propor respostas.
De influências directas ou indirectas, lidas ou sonhadas,
estão definitivamente livres as obras de Kant e Peirce, e todavia,
pelo fervor posto pelo dominicano nas questões gnosiológicas
e semiológicas, muito beneficiaria o trabalho com o cotejo às
propostas destes autores, cotejo onde poderiam ainda incluir-se os empiristas
ingleses pelo trabalho desenvolvido sobre a percepção e a
associação.
Lamentavelmente, a vida humana não é mais que um
começo, uma tese de mestrado não é mais que um desajeitado
gatinhar, e a única consolação que a Filosofia tem
para oferecer é que os mistérios do Ser, que há mais
de 3 mil anos desvela-oculta a sua face, ainda esperam por ser revelados.
Notas:
1. Isto a fazer fé no trabalho de autor anónimo, publicado no nº especial 8-9 da revista Estudos, Coimbra, 1944.
2 . Gonçalves, António Manuel, inActualidade de Frei João de S. Tomás, in Revista Portuguesa de Filosofia, XI, pp. 586-591, 1955, Braga.
3 . Nomeadamente Thomas Sebeok, que se notabilizou pelos seus trabalhos de Zoosemiótica, onde explora precisamente estas vertentes dos processos semióticos.
4 . É o caso, por exemplo, de Locke, Peirce e Saussure, como pode ser visto nas páginas II, III e IV do presente trabalho
5 . Tal sucede, por exemplo, na p. 109 do Tratado
dos Signos, quando João de São Tomás explica que é
impossível falar apenas de relações secundum dici,
porque isso seria antinómico com o que sucede em Deus a crença
na existência de relações divinas leva à sua
assunção no real: "Esta razão é muitas vezes
usada por S. Tomás, e indica outra [...] retirada da crença
na existência de relações divinas, que enquanto se
distinguem entre si, são dadas realmente da parte das coisas; de
outro modo, as pessoas relativas não se distinguiriam realmente,
o que seria herético".
("Hac ratione utitur saepe D. Thomas aliamque indicat [...] petitam
ex relationibus divinis, quae in quantum distinguuntur inter se realiter,
a parte rei dantur, alioquin non distinguerentur realiter personae relativae,
quod esset haereticum".)
6. Tomás, João de São, "O tomismo indefectível de Frei João de São Tomás", in Gonçalves, António Manuel, in Antologia de Estudos sobre João de Santo Tomás, p. 88, org. de Gomes, Pinharanda, Edição do Instituto Amaro da Costa, 1985, Lisboa.
7. Pacheco, Maria Cândida Monteiro, "Filosofia Portuguesa no Pensamento Português dos séculos XVII e XVIII", Actas do I Congresso Luso Brasileiro de Filosofia, in Revista Portuguesa de Filosofia, 38-II, Braga, 1982, p. 497.
8. Ibidem, p. 485.
9. Tomás, João de São, in Tratado dos Signos, p. 45.
10. Tomás, João de São, in Tratado dos Signos, p. 107.
11 . Ibidem, p. 108.
12 . Ibidem, p. 108.
13. Ibidem, pp. 75-77.
14. Tomás, João de São, in Tratado dos Signos, p. 109. . Tomás, João de São, in Tratado dos Signos, p. 109.
15. Ibidem, p. 119.
16. Ibidem, p. 119.
17. Ibidem, p. 119.
18. Ibidem, p. 121.
19. Deely, Jonh, Tractatus de Signis The Semiotic of John Poinsot, University of California Press, Berkeley, 1985, p. 462.
20. Tomás, João de São, in Tratado dos Signos, pp. 136-137.
21. Ibidem, p. 138.
22. Ibidem, p. 141.
23. Ibidem, p. 164
24. Ibidem, p. 164.
25. Ibidem, p. 168.
26. Ibidem, p. 170.
27. Ibidem, pp. 193-194.
28. Ibidem, pp. 194-195.
29. Ibidem, p. 200.
30. Ibidem, p. 240.
31. Ibidem, pp. 241-242.
32. Recorde-se que muitas vezes estes argumentos nada provam em termos de raciocínio e confronto racional de posições apenas servem de prova, em João de São Tomás, porque funcionam como princípios fundamentadores enquadrados na sua axiomática.
33. Ibidem, p. 254.
34. Ibidem, p. 256.
35. Ibidem, p. 258.
36. Ibidem, p. 280.
37. Ibidem, p. 281.
38. Ibidem, p. 284.
39. Ibidem, pp. 285-286.
40. Ibidem, p. 311.
41 . Ibidem, p. 312.
42. Ibidem, p. 322.
43. Ibidem, p. 324.
44. Ibidem, p. 325.
45 . Ibidem, p. 367.
46. Ibidem, p. 376.
47. Ibidem, p. 377.
48. Ibidem, pp. 404-405.
49. Ibidem, pp. 407-408.
50. Ibidem, p. 430.
51. Ibidem, p. 433.
52. Ibidem, p. 433.
53. Ibidem, pp. 434-435.
54. Ibidem, p. 437.
55 . Ibidem, p. 446.
56. Ibidem, p. 448.
57. Ibidem, p. 451.
58 Tomás, João de São, Curso Filosófico, q. X, art. III, in Oliveira, João de, "Síntese Teológico-Filosófica do Conhecimento Através da Obra de João de São Tomás", in Lumen, Revista Católica do Clero, XII, p. 126, Lisboa.
59. Ibidem, q. VI, art. II.
60. E se a disciplina se afigura estranha, mais estranhas as há, como a fitosemiótica, que estuda os processos semiósicos das plantas.
61. Morris, Charles, 1994, Fundamentos da Teoria dos Signos, p. 3, trad. de Fidalgo, António, trabalho policopiado na Universidade da Beira Interior, Covilhã.
62. Morris, Charles, 1994, Fundamentos da Teoria dos Signos, p. 9, trad. de Fidalgo, António, trabalho policopiado na Universidade da Beira Interior, Covilhã.
63. Peirce, Charles Sanders, 1931-1958, Collected Papers, p. 2.228, Cambridge, Harvard University Press, citado por Rodrigues, Adriano Duarte, in Dimensões Pragmáticas do Sentido, p. 45, Edições Cosmos, 1996, Lisboa.
64. Esta é, assim parece, uma lei da natureza descoberta por João de São Tomás, que os publicitários dos nossos dias parecem apostados em violar, lamentando não o poder.
65. Possivelmente, a forma mais clara de visualizar esta noção é atermo-nos ao caso de linguagens artificiais, como as matemáticas, onde de postulados e axiomas recém criados se podem extrair, dedutivamente, mundos inumeráveis, ou, como diria Leibniz, todos os mundos possíveis claro exemplo de como a existência de um determinado dispositivo conceptual pode originar conhecimento e imagens do mundo radicalmente novas.
66. O tema é tão vasto que cobre perto de dois mil anos de Filosofia e portanto não se tem aqui a pretensão de lhe delimitar contornos precisos ou marcar posições a este respeito pretende-se apenas fornecer um enquadramento singelo da forma como costuma ser tratado, sendo que, qualquer ligeiro arranhar desta lisa e nua superfície que se oferece à leitura, permitiria imediatamente contestar as mega-generalizações aqui feitas, porque os problemas são, de facto, muitíssimo mais complexos.
67. Sou, a todos os títulos, admiradora incondicional de Heráclito e de Hegel, razão pela qual não há nenhum juízo de valor subjacente aos adjectivos empregues.
68. Provou-se, com o princípio da indeterminação
de Heisenberg, que é impossível medir, simultaneamente, com
precisão, a posição e momento de um electrão.
Apenas se podem obter médias estatísticas de sucessivas medições
realizadas sobre o mesmo micro-objecto; e isto porque a existência-interferência
de um sujeito, e os próprios instrumentos de medição
(compostos por átomos e electrões sujeitos às mesmas
leis de indeterminação) interferem e contaminam a pesquisa
com um certo grau de incerteza.
Por outro lado, na análise dos processos comunicacionais
e nas que se prendem com situações de percepção
mediadas por media, tendem cada vez mais a diluir-se as distinções
sujeito-objecto, verificando-se mesmo, para alguns autores (Rheingold,
por exemplo) uma verdadeira dissolução de identidades,
e isto precisamente devido à propriedade de o sujeito e as instâncias
mediadoras afectarem as produções alcançadas.
69. Ao longo de todo o trabalho, João de São Tomás tem sido tratado como um medieval que, cronologicamente, como é óbvio, não é. Talvez seja altura de explicar que esta deliberada opção se prende com o facto de falarmos de um dos últimos representantes da Segunda Escolástica que é, na forma, espírito, formação e preocupações um medieval, vivendo num século que há muito deixou de o ser.
70. É quase constrangedor, por exemplo, ver como Quine e Hartmann, e antes deles Frege, trataram tão detidamente o problema dos signos sem referente existente in re, ou como signos diferentes se podem aplicar ao mesmo referente (o bem conhecido paradoxo da estrela da manhã-estrela da tarde), e ver a maravilhosa elegância com que João de São Tomás lida com o problema sem necessidade de criar regiões ontológicas especiais para explicar a aberração.
71. Vide Apêndice A, Índice da Totalidade do Curso Filosófico Segundo a Edição Crítica de Reiser.
72. Poderão? O Professor Doutor Adélio de Melo costumava
informar os alunos, logo na primeira aula, que se tinham vindo para Filosofia
à procura de "respostas", melhor seria que saíssem enquanto
era tempo.