Anabela Gradim, Universidade da Beira Interior
  
 No que toca à apresentação do presente trabalho,
  
  tradução do Tratado dos Signos elaborado pelo dominicano
  
  português João de São Tomás no século
  
  XVII, importa dar conta de quatro tipos de considerações
  
  necessárias à justificação do resultado final:
  
  a matéria sobre a qual se operou; a forma que se pretendeu imprimir
  
  ao trabalho; os passos e opções seguidos na tradução
  
  de alguns termos estritamente técnicos; e finalmente, as escolhas
  
  que presidiram à elaboração da edição
  
  que aqui se oferece. 
   
I. A tradução
Matéria: 
   Sendo um medieval no espírito, estilo e convicções,
  
  João de São Tomás poderia, contudo, ser classificado
  
  entre os modernos pois a sua obra já não está limitada
  
  pelas condições de produção da época
  
  a que espiritualmente pertence: idealização da obra, realização
  
  de manuscritos, e cópia laboriosa dos mesmos. Este facto acabou
  
  por simplificar o presente trabalho. Na verdade, não existem originais
  
  da obra de João de S. Tomás, dado que o autor acompanhou
  
  e pôde rever pelo menos as primeiras três edições
  
  do seu Curso Filosófico e, a crer em Deely, terá destruído
  
  ou ignorado os manuscritos por os considerar “de pouca importância”
  
  após publicados. 
   Assim sendo, a tradução aqui apresentada baseia-se
  
  na segunda reimpressão do Curso Filosófico, editada por Reiser
  
  e publicada em Itália por Marietti, em 1932. Trata-se de uma edição
  
  crítica do Curso Filosófico que tomou perto de sete anos
  
  a ser preparada por Reiser e onde se fixa o que pode ser considerado o
  
  texto clássico do Doutor Profundo. Quanto à primeira parte
  
  da Ars Logicae, Reiser utilizou para a fixação do texto a
  
  edição de Roma de 1637, enquanto para a segunda parte utiliza
  
  a edição de Madrid de 1640, explicando tal decisão
  
  porque eram estes os trabalhos mais fiáveis surgidos em vida do
  
  autor, “cui ultima ipsius auctoris manus accessit ”. 
   Refira-se ainda que Reiser, no seu trabalho, cita, em nota de
  
  rodapé, as variações relevantes ao texto que trabalha,
  
  surgidas nas edições de Lion de 1663, e de Colónia
  
  em 1638; notas essas que, por economia de espaço e tempo, nos abstivemos
  
  aqui de traduzir. Pertence também a Reiser o monumental trabalho
  
  de referir as referências bibliográficas, por vezes obscuras,
  
  que João de São Tomás faz a outros autores, à
  
  obra e respectivo local onde podem ser encontradas, socorrendo-se para
  
  tanto, fundamentalmente, da edição Romana Leonina e da edição
  
  de Parma da obra de S. Tomás de Aquino. Na impossibilidade de aceder
  
  a estes e outros trabalhos, tomaram-se como boas as referências a
  
  essas obras aduzidas por Deely, na convicção de não
  
  ser este um deslize muito grave, já que na edição
  
  da Suma Teológica da BAC, as referências de S. Tomás
  
  de Aquino a outras obras e autores são, pura e simplesmente, omitidas
  
  na tradução espanhola.
Forma: 
   Gadamer considera que “toda traducción es ya una interpretación,
  
  e incluso puede decir-se que es la consumación de la interpretación
  
  que el traductor hace madurar en la palabra que se le oferece [...] Quando
  
  es necesaria la traducción no hay más remedio que hacerse
  
  cargo de la distancia entre el espíritu de la literalidad originaria
  
  de lo dicho y el de su reproducción, distancia que nunca llega a
  
  superarse por completo”1. No presente trabalho procurou-se
  
  por todos os meios escapar a esta concepção gadameriana da
  
  tradução como interpretação2.
  
  A razão é que uma tradução interpretante oblitera
  
  necessariamente parte das estruturas de sentido que se cruzam no original,
  
  porque ela própria, fruto da compreensão, é já
  
  a doação de um sentido, e arrisca portanto encerrar o texto
  
  que pretende revelar numa unidimensionalidade empobrecedora. Daí
  
  que a principal aposta deste trabalho seja, tanto quanto possível,
  
  manter a tradução dentro dos limites da mais estrita literalidade,
  
  oferecendo, simultaneamente, acesso ao corpo latino do Tratado dos Signos,
  
  que funcionará sempre como instância de controlo. É
  
  evidente que uma opção teórica deste tipo, embora
  
  ofereça ao leitor grande margem de liberdade, onera-o com uma responsabilidade
  
  suplementar que é a de superar o abismo entre a nossa contemporaneidade
  
  velozmente veloz e o distante universo conceptual da Segunda Escolástica.
  
  Tarefa tremenda esta de interpretação e recomposição
  
  que aqui se propõe passar ao leitor, ao invés de abastecê-lo
  
  já com a versão digerida e pronta a consumir das lições
  
  do mestre dominicano. 
   Evita-se assim, além do mais, a operação
  
  de extrema delicadeza que é a de encerrar num lapso de tempo um
  
  sempre frágil momento de compreensão, investindo-o da dignidade
  
  das coisas perenes ao vertê-lo, definitivamente, noutra língua.
  
  É que ficou por fazer a pergunta: que sucede quando o momento interpretativo
  
  falha ou sofre um desvio, pequeno que seja, durante a tradução?
  
  É óbvio que nesse caso o sentido do original é falseado,
  
  e isso pode ser feito insensivelmente, sem pôr em causa a coerência
  
  interna do texto; ao mesmo tempo que a mera existência de um momento
  
  de interpretação expulsará alguns dos sentidos latentes
  
  no original para as margens do não-conceptualizável ou incoerente. 
   Importa também tornar claro que o princípio de
  
  literalidade funciona aqui como ideia reguladora. De facto, não
  
  subsistem ilusões ingénuas de escapar inteiramente ao círculo
  
  hermenêutico constituído pela estrutura antecipativa da compreensão,
  
  que exige sempre um momento de interpretação divinatório
  
  — para usar a feliz expressão de Schleiermacher — em que se antecipa
  
  o sentido do todo por meio de uma empatia virtual com o autor. Gadamer
  
  demonstra que toda a compreensão é antecipativa e que toda
  
  a exegese implica preconceitos do intérprete, sendo estas estruturas
  
  psicológicas trans-subjectivas, por seu turno, condição
  
  sine qua non da própria interpretação. Por isso se
  
  admite aqui que não é possível extirpar nenhuma leitura,
  
  exegese ou tradução do conjunto de preconceitos trans-subjectivos
  
  ligados a uma tradição que se tornou anónima e a-histórica
  
  e que orientam e regulam o momento de antecipação. Todavia
  
  é possível e, crê-se, desejável, excluir de
  
  uma tradução toda a interpretação psicologizante
  
  baseada numa pseudo-afinidade divinatória com um autor — é
  
  esse o sentido que a literalidade desta versão portuguesa do Tratado
  
  dos Signos busca.
 Cumpre ainda notar que também Feyerabend lança achas
  
  importantes a esta discussão. “Tornou-se claro que os dicionários
  
  e as traduções são meios indigentes de introdução
  
  dos conceitos de uma língua que não se relacione de perto
  
  com a nossa, ou de ideias que não se adaptem à maneira ocidental
  
  de pensar. As línguas que tais têm que ser aprendidas de forma
  
  improvisada, como uma criança aprende palavras, conceitos, aparências.
  
  Não devemos exigir que o processo de aprendizagem se estruture de
  
  acordo com as categorias, leis e percepções que nos são
  
  familiares. E é precisamente este modo ‘sem preconceitos’ de aprendizagem
  
  que um estudo de campo se destina a garantir [...] Sabemos hoje que toda
  
  a língua contém dentro de si própria meios que lhe
  
  permitem reestruturar grandes partes do seu aparelho conceptual [...] Podemos
  
  portanto dizer correctamente que os resultados de uma investigação
  
  de campo e as descobertas científicas mais fora do comum poderão
  
  sempre exprimir-se em inglês. Mas isso não significa que a
  
  minha primeira tese seja falsa. A língua indígena e o inglês
  
  antes da tradução são na realidade incomensuráveis.
  
  A minha segunda tese é que o desenvolvimento da percepção
  
  e do pensamento em termos individuais passa também por estádios
  
  que são mutuamente incomensuráveis. A minha terceira tese
  
  é que os pontos de vista dos cientistas de diferentes períodos,
  
  escolas e temas, e especialmente os seus pontos de vista sobre as questões
  
  fundamentais, são muitas vezes tão diferentes como as ideologias
  
  subjacentes a diferentes culturas” (Feyerabend, 1988: 275). 
   Uma tradução tão literal quanto possível
  
  poderá portanto permitir subverter a própria tradução,
  
  reenviando e remetendo continuamente para a mundividência do original,
  
  e assim eliminar a incomensurabilidade pela abertura da possibilidade de
  
  assimilação dos quadros conceptuais que lhe deram origem
  
  e que, no caso de João de São Tomás, não são
  
  uma realidade tão distante e remota que exclua a hipótese
  
  de um leitor recuar ao seu universo conceptual e assimilá-lo com
  
  proveito, apreendendo, “de forma improvisada”, a incomensurabilidade do
  
  texto. 
   Esta superação do abismo intelectual que nos separa
  
  da Segunda Escolástica, à maneira de como um antropólogo
  
  realizaria, no exemplo de Feyerabend, o seu trabalho de campo, é,
  
  evidentemente, uma possibilidade que só a proximidade do latim ao
  
  português permite entrever. “Os linguistas recordam-nos que uma tradução
  
  perfeita jamais é possível, ainda que nos sirvamos de definições
  
  contextuais complexas. Como já vimos, tal é uma das razões
  
  da importância do trabalho de campo, durante o qual as novas linguagens
  
  são aprendidas improvisadamente, e da rejeição como
  
  inadequada de qualquer abordagem que confie numa tradução
  
  completa ou parcial” (Feyerabend, 1988: 281). 
   E ainda que se tenha limitado a subjectividade interpretante
  
  ao mínimo, e que, mediante isso, se acredite firmemente na possibilidade
  
  de aceder ao quadro mental em que João de São Tomás
  
  trabalhou, a verdade é que as palavras de Gadamer continuam a fazer
  
  sentido para quem quer que se tenha debatido com os dilemas de uma tradução:
  
  “El traductor tiene muchas veces dolorosa conciencia de la distancia que
  
  le separa necesariamente del original [...] La exigencia de fidelidad que
  
  se plantea a una traducción no puede neutralizar la diferencia fundamental
  
  entre las lenguas. Por muy fieles que intentemos ser, nos encontraremos,
  
  sin embargo, en situaciones, en las que la decisión habrá
  
  de ser en qualquier caso inadecuada”3. 
   Explicada portanto a busca da estrita literalidade, por mais
  
  utópica que possa parecer, pela determinação de não
  
  obliterar nenhum sentido possível, extirpar toda a subjectividade
  
  psicologizante da compreensão, e promover um eixo dialógico
  
  leitor-autor ao invés de autor-tradutor, resta dar a conhecer que
  
  tal metodologia resultou em três princípios reguladores que
  
  orientaram todo o trabalho de tradução: fidelidade semântica,
  
  fidelidade sintáctica, e recurso a uma hermenêutica extrinsecalista. 
   A fidelidade semântica revela-se na tentativa de utilizar
  
  os vocábulos portugueses mais aproximados da versão latina
  
  que lhes deu origem. É certo que esta opção pode parecer
  
  óbvia, mas a verdade é que seria discutível pois,
  
  em largos casos, correspondem a estes clones semânticos palavras
  
  mais modernas, que poderiam ser tomadas por equivalentes, e que a serem
  
  utilizadas tornariam o texto muito mais acessível a um leitor actual.
  
  A razão de terem sido rejeitadas prende-se, por um lado, com o facto
  
  de se tratarem de expressões técnicas, e por outro com a
  
  opção deliberada de não florir ‘arcaísmos’
  
  que, obviamente, não o são, ainda que isso tenha sido realizado
  
  a expensas do conforto do leitor. 
   Pugnando pela fidelidade sintáctica, procurou-se manter
  
  inalteradas as construções, por vezes elípticas, a
  
  que João de São Tomás recorre, acreditando que, se
  
  por vezes se torna obscura na densidade das frases a busca da sua razão,
  
  tal caminhada proposta pelo dominicano tem um sentido. Este propósito
  
  foi depois reforçado pela constatação, de que Deely
  
  dá nota, dos resultados desastrosos de sucessivas tentativas de
  
  traduzir ou editar João de São Tomás, melhorando-lhe
  
  o estilo, experiências essas que resultaram, nalguns casos, em falsificações
  
  de sentido, noutros, foram simplesmente empobrecedoras — em nenhuma situação,
  
  garante o americano, o original foi superado ou melhorado (Deely, 1985:
  
  459). 
   Frequentemente causa de perplexidade, o estilo de João
  
  de São Tomás tem, todavia, sido objecto de luminosas interpretações.
  
  “Et cependant ces phrases longues, coupées d’incidentes, alourdies
  
  par des redites, nous apportent souvent des fórmules définitives,
  
  sagement equilibrées et dont de caractére lumineux nous éblouit.
  
  On chemine d’abord dans une épaisse fôret, mais tout à
  
  coup, dans une éclaircie, l’ombre cesse, le jour paraît dans
  
  tout son éclat et l’on peut sans peine apprecier le chemin parcouru
  
  et contrôler les résultats acquis”4. 
   Já a opção por uma hermenêutica extrinsecalista
  
  na fixação da tradução de alguns termos estritamente
  
  técnicos pode com simplicidade ser explicada. João de São
  
  Tomás é claramente um autor de escola, um fidelíssimo
  
  autor de escola, e quando utiliza termos técnicos que não
  
  define em toda a sua extensão, reporta-se aos termos do tomismo,
  
  e portanto à forma como são entendidos em S. Tomás
  
  de Aquino5. Daí que para a fixação
  
  de certos termos na tradução se tenha recorrido ao que constitui
  
  o seu uso e significado no tomismo, e também, mercê sobretudo
  
  do excelente glossário de Nicolas, à forma como foram vertidos
  
  para francês pelos tradutores da Suma Teológica. Segue-se
  
  a explicação detalhada dos diferentes motivos para tais opções. 
    
   
Termos: 
   
 Convenire: 
   Este verbo, em geral, poderia ser traduzido por “convir a, adaptar-se,
  
  acomodar-se” (DLP)6. Deely, na maioria dos casos, tradu-lo
  
  por “to belong”.  Importa todavia notar que em S. Tomás de
  
  Aquino o termo assume um carácter eminentemente técnico.
  
  Na teologia tomista, em sentido restrito, convenientia é aquilo
  
  que convém a um ser, que é o seu bem, para o qual o apetite
  
  o faz tender; e num sentido mais abrangente, é o que, sem pertencer
  
  necessariamente a um ser, nem ser requerido pelo seu telos, aperfeiçoa-o
  
  e pode coadjuvar na prossecução do seu fim próprio. 
   Neste trabalho optou-se, quase sempre, por traduzir literalmente
  
  conveniência e inconveniência, na expectativa de que o contexto
  
  iluminasse a carga técnica e as conotações que o conceito
  
  pode assumir. É evidente que outras opções poderiam
  
  ter sido tomadas. Os tradutores da edição francesa da Suma
  
  Teológica expressaram melhor que ninguém esta dificuldade:
  
  “Notons ici la difficulté de traduire des termes ayant pourtant
  
  une valeur technique importante. En bien des cas on a préferé
  
  traduire conveniens par approprié, adapté, justifié,
  
  et non conveniens par illogique, absurde, incohérent, maladroit
  
  [...]”7. Pese embora o louvável propósito
  
  de tornar o texto claro e acessível ao leitor de hoje, a verdade
  
  é que a língua latina não é, em nenhum caso,
  
  menos rica e plena de potencialidades que os idiomas a que deu origem.
  
  Se S. Tomás e os que o tomaram como mestre usaram este termo, em
  
  detrimento de outros, num sentido tão técnico, para exprimir
  
  conceitos de matizes diversas, ele deverá ser mantido, ainda que
  
  isso exija que seja feito o esforço de ascender à letra e
  
  espírito do texto, ao invés de o aproximar às nossas
  
  próprias acomodações quotidianas.
 Dictio: 
   Surge insistentemente no terceiro artigo das Súmulas,
  
  Definitio Termini, e poderia ser traduzido por “acção de
  
  dizer, de exprimir, de pronunciar, discurso, conversação,
  
  prática, recitação, arte de dizer, dicção,
  
  expressão, palavra” (DLP). 
   A dificuldade é portanto óbvia: apurar em que sentido
  
  utiliza João de São Tomás a palavra. Deely decide-se,
  
  cumulativamente, por “expression” e “diction”. Neste trabalho, optou-se
  
  por “dicção” na suposição de que seria o mais
  
  adequado para exprimir simultaneamente “vocábulo” e “expressão”. 
  
  Note-se que Pinharanda Gomes, na tradução portuguesa do Perihermenias,
  
  chama enunciação ao termo, enquanto último constituinte
  
  significativo da locução: “A locução (logos)
  
  é um som oral com um significado convencional, em que cada parte,
  
  separadamente considerada, apresenta um significado como enunciação
  
  e não como afirmação ou negação. Pretendo
  
  dizer, por exemplo, que a palavra homem significa algo, mas em si mesmo
  
  não afirma nem nega [...]”
 Efficiens, effective: 
   O primeiro termo reporta-se a “activo, que produz, prático”
  
  (DLP), enquanto o segundo poderia ser traduzido por “que efectua, que produz,
  
  eficiente” (DLP). Utilizados os termos no Tratado dos Signos, pela primeira
  
  vez, no segundo artigo das Súmulas, Definito et divisio signi, efficiens
  
  é traduzido por Deely como “productive”, enquanto effective passa,
  
  na versão americana do texto, a “effectively” (having an effect,
  
  producing the intended result [OAD]8 ). No presente trabalho
  
  optou-se por traduzir indistintamente ambos os termos por eficiente ou,
  
  na forma adverbial, eficientemente, emprestando-lhe não só
  
  o sentido que o termo tem em português corrente (“que produz realmente
  
  um efeito” [DULP]9 ), mas também o que vem tendo
  
  em Filosofia desde que Aristóteles estabeleceu a teoria das quatro
  
  causas, sendo que, na época de S. Tomás, e para a Escolástica,
  
  causa eficiente já não se prendia apenas à origem
  
  do movimento mas era “a que pela sua acção faz existir o
  
  que por si só é incapaz de existir [...] determina a passagem
  
  do não-ser ao ser” (Pires, 1989: 911). Refira-se ainda que Herculano
  
  de Carvalho, no ensaio “Segno e significazione in João de São
  
  Tomás” adopta precisamente o mesmo procedimento, tomando efficiens
  
  e effective por “efficiente” e “efficientemente”.
 Per, ad modum: 
   Traduzido aqui por “ao modo de”, enquanto Deely prefere a fórmula
  
  “in the way of”.
 Ad aliquid: 
   Dependendo do contexto em que é utilizado neste Tratado
  
  dos Signos, poderá ser traduzido quer por “relação”,
  
  quer por “ser para” (alguma coisa). Para se compreeder como este ad aliquid
  
  se plasma na noção de relação, nada melhor
  
  do que recordar o que foi e como nasceu o filosofar àcerca deste
  
  conceito. É Platão o primeiro a identificar, no Teeteto,
  
  a noção de relação, a que chama “o-para-alguma-coisa”.
  
  Aristóteles aborda o tema sistematicamente, incluindo a relação
  
  na Tábua das Categorias, sob a designação de “o para
  
  qualquer coisa” (prós ti). Já para os escolásticos
  
  “a relação é um modo de ser para [...] (esse ad)”
  
  (Pires, 1992: 663), e é precisamente neste sentido, enquanto puro
  
  respeito, que João de São Tomás utilizará o
  
  termo ad aliquid .
 Ratio: 
   Tratou-se, de todos os termos em apreço, do mais difícil
  
  de verter para português. É vastíssimo o âmbito
  
  de significações que ratio pode assumir: “conta, cálculo,
  
  interesse, consideração, empenho, relação,
  
  comércio, trato, situação, estado, modo, género,
  
  espécie, natureza, inteligência, juízo, bom senso,
  
  prova, motivo, causa, argumento, explicação, opinião,
  
  sentimento...” (DLP) são apenas alguns dos sentidos mais correntes
  
  do termo em latim. 
   Numa primeira abordagem, atendendo ao contexto em que o vocábulo
  
  é inserido no Tratado dos Signos, a opção de tradução
  
  que parecia mais adequada e que melhor inteligibilidade oferecia aos escritos
  
  de João de São Tomás era “natureza”, termo que se
  
  manteve durante grande parte do trabalho. Note-se que Deely optara, para
  
  solucionar a problematicidade deste ratio tão abundantemente empregue
  
  por João de São Tomás, pela palavra “rationale” (fundamental
  
  reason for or logical basis of something [OALD]), e explica porquê:
  
  “Illustrating the obsolete meaning of ratio as ‘rationale’ the OED cites
  
  Gale, writing in 1678: ‘the formal reason or nature of sin consists in
  
  its being a deordination or transgression of the divine law’ (Cont. Gentiles,
  
  III, 7). Hence, according to the OED, what we mean by ‘rationale’ today
  
  was expressed by ‘formal reason or nature’ just as Poinsot had written
  
  formalis ratio signi. Hence, according to the OED we must translate ‘formal
  
  reason’ or ‘nature’ of the 17th century english by contemporary term ‘rationale’.
  
  So likewise we must translate Poinsot’s term formalis ratio signi by ‘the
  
  formal rationale of the sign’” (Deely, 1985: 471). Sendo que este passo
  
  foi dado na suposição de que “rationale” exprime adequadamente
  
  o sentido simultaneamente realista e subjectivo de ratio.
 Para além da dificuldade, óbvia, de que não
  
  existe em português nenhum equivalente semântico de “rationale”,
  
  importa referir que em S. Tomás de Aquino e na Escolástica
  
  de inspiração tomista subsequente ratio é um termo
  
  técnico de âmbito muito mais vasto que o que o termo “razão”
  
  assume hoje para nós. Para São Tomás, ratio tanto
  
  pode ser a faculdade de pensar como aquilo pelo qual a realidade é
  
  o que é. Neste último sentido, muito mais amplo que o termo
  
  “razão” em português, ratio confunde-se com ideia, natureza,
  
  essência, e em alguns sub-contextos do Tratado dos Signos estes três
  
  termos seriam, porventura, mais adequados a uma inteligibilidade que permitisse
  
  a assimilação do texto sem esforço de maior. Note-se
  
  porém que ratio é, além de princípio de inteligibilidade,
  
  razão imanente, essencial e substancial das coisas, que se confunde
  
  mesmo com a sua essência: ela é a razão porque uma
  
  substância e seus acidentes são aquilo que são . “Tout
  
  être doit rendre compte de soi à la raison. Ce principe implique
  
  que le réel soi l’oeuvre d’une Pensée. Aussi bien parlera-t-on
  
  des raisons éternelles. On dira même qu’il y a une raison
  
  immanente en chaque chose, un logos, et c’est de son essence même,
  
  de son intelligibilité propre qu’on veut parler” (Nicolas, 1984:115). 
   Daqui que a opção de Deely não pareça
  
  ser a mais feliz. Recorre a um vocábulo que o Oxford English Dictionary
  
  considera já obsoleto, de difícil assimilação,
  
  portanto, para um leitor contemporâneo, e pretende ainda investi-lo
  
  da capacidade de exprimir as nuances realistas e subjectivistas da doutrina
  
  de João de São Tomás; ora estas, a existirem, não
  
  estão depositadas no termo ratio mas na totalidade do Tratado dos
  
  Signos, donde poderão ser extraídas pelo leitor atento. Além
  
  disso, este “rationale” não parece dar conta da amplitude e carácter
  
  particular da ratio tomista, que é ser princípio imanente
  
  da cognoscibilidade das coisas determinando-as na sua actualidade. Por
  
  todas estas razões, optou-se no Tratado dos Signos por traduzir
  
  ratio por “razão”, que deverá, evidentemente, ser tomada
  
  como termo técnico que é no contexto da filosofia tomista.
 Species: 
   Trata-se de mais um termo para o qual não existe hoje,
  
  em português, forma adequada de dar conta. Deely opta por traduzi-lo
  
  por “specifying form”, o que se revelará, como veremos, uma feliz
  
  aglutinação de sentidos. Já os tradutores britânicos
  
  de Santo Agostinho10, no passo em que este define a
  
  noção de signo11, optam por “impression”:
  
  “For a sign is a thing wich, over and above the impression it makes on
  
  the senses, causes something else to come into the mind as a consequence
  
  of itself”, enquanto a edição portuguesa do mesmo texto defenderá
  
  que “signo é tudo aquilo que para além do seu próprio
  
  aspecto que possui em si e nos apresenta aos sentidos, faz com que uma
  
  outra coisa nos surja no espírito”12  (itálico
  
  nosso). 
   A verdade é que no contexto do Tratado dos Signos nenhuma
  
  destas belas paráfrases podia ser utilizada eficazmente, devido
  
  à frequência com que o termo species surge, enquanto a fórmula
  
  de Deely, em português, resulta numa asserção pleonástica.
  
  Assim sendo, species passou, naturalmente, a “espécie”, e por isso
  
  tentar-se-á aqui dar conta do significado do conceito na gnosiologia
  
  tomista. Espécie é a semelhança ou imagem das qualidades
  
  sensíveis de uma coisa, imagem essa que é imprimida nos sentidos
  
  para que o objecto seja conhecido. Desta forma, o intelecto recebe as espécies
  
  inteligíveis, enquanto os sentidos externos recebem as espécies
  
  sensíveis emitidas pelos objectos. A partir das espécies
  
  sensíveis a razão forma, por meio do intelecto agente, uma
  
  semelhança da coisa no espírito, e é a partir desta,
  
  chamada por extensão espécie inteligível, que o universal
  
  é abstraído do singular.
 Respicio/respicere: 
   Destes dois termos se deu conta como “dizer respeito a”, “respeitar”;
  
  trata-se do acto de pura relação, de ser para... aquilo a
  
  que diz respeito ou que é respeitado.
 Relatio secundum esse/Relatio secundum dici: 
   Traduzido aqui por “relação segundo o ser”, ou
  
  ontológica; e “relação segundo o ser dito”, ou transcendental,
  
  que correspondem à distinção elaborada pelos medievais
  
  secundum res, secundum verba. 
   A relação ontológica, tal como foi primeiramente
  
  formulada por Aristóteles é aquela na qual os relativos têm
  
  todo o seu ser para outro; a sua essência é referir-se, ser
  
  relação a alguma outra coisa — secundum esse refere-se portanto
  
  não à existência das relações, mas a
  
  este seu modo particular de existir. 
   Já a relação transcendental é a ordem
  
  para um termo exterior quando essa ordem está incluída numa
  
  realidade absoluta e concorre para a definir. A realidade absoluta é
  
  então referida a um objecto exterior a ela própria, existente
  
  ou não. Transcendental aplica-se aqui no sentido de que a relação
  
  perpassa e pode ser encontrada em diversas categorias do ser, visto tratar-se
  
  da pura generalidade que pode ser aplicada a uma vastíssima categoria
  
  de entes. Secundum dici trata-se então da forma como as coisas,
  
  embora mantendo em si, de alguma forma, uma certa realidade absoluta, podem
  
  ser definidas pela sua referência a um termo exterior. É por
  
  esta razão que Deely recusa situar as relações segundo
  
  o ser dito apenas no plano linguístico, preferindo, na sua tradução,
  
  dilatar a abrangência do termo traduzindo-o por “relation according
  
  to the way being must be expressed in discourse” (itálico nosso).
  
  Defende pois que em oposição a situar o secundum dici no
  
  plano meramente linguístico, o termo exprime, antes de mais, a realização
  
  na ordem do discurso de uma obrigação (must) imposta a essa
  
  ordem pela própria realidade, constituindo este conceito uma das
  
  chaves fundamentais para compreender a natureza e alcance do Tratado dos
  
  Signos. 
   A verdade é que não se compreende muito bem a oposição
  
  que Deely quer aqui fazer ressaltar: é óbvio que a forma
  
  como as coisas são expressas no discurso é a forma como terão
  
  de ser expressas e que a realidade, de alguma maneira, se impõe
  
  às potencialidades criadoras e recriadoras da linguagem. Ainda assim,
  
  esta imposição da realidade ao discurso só pode ser
  
  extraída do Tratado dos Signos no final da sua apropriação
  
  como objecto — assim como um mineiro só no final da sua busca poderá,
  
  à força de picareta, extrair da rocha algumas esmeraldas.
  
  Sendo secundum dici a forma como os seres são expressos depois de
  
  submetidos ao processo de semiose, deverá ser traduzido o mais literalmente
  
  possível, de acordo com os usos da época, como “segundo o
  
  ser dito”. Que, em João de São Tomás essa forma se
  
  imponha, ou não, ao plano da expressão, isso deverá
  
  ser pacientemente minado ao longo do Tratado dos Signos, e não colocado
  
  ante rem, como um a priori da própria tradução. Esta
  
  é, de resto, a regra que Jean Gauvin se dota no processo de decifração
  
  de um texto filosófico e que, por maioria de razão, deverá
  
  ser seguida numa tradução, objecto que se destina a ser decifrado.
  
  É que ainda que um texto seja conhecido, compreendido e apropriado
  
  na sua totalidade, a progressão de outrém nesse texto deverá
  
  ser “fundada na sucessividade linear das linhas e páginas, uma progressão
  
  que autoriza retornos atrás mas proíbe a descontinuidade
  
  de um salto brusco para a frente. Tal é, pelo menos, a regra que
  
  sempre me impus: nunca recorrer a uma exposição de conjunto
  
  sobre o livro, para ‘resolver’ as dificuldades que levanta um texto preciso
  
  [...] e, correlativamente, não reconhecer como pertinentes senão
  
  os problemas que se referem ao passo do livro imediatamente em causa ou
  
  aos que já foram lidos”13
Notitia: 
   Este vocábulo apresenta problemas quase insolúveis
  
  na forma de tradução por que se optou. Notitia é aquilo
  
  que é apercebido e fixado pela mente na sequência de um acto
  
  cognitivo. Deely vai vertê-lo por awareness, o que, tal como na opção
  
  aqui seguida, é um vocábulo ligeiramente mais activo do que
  
  deveria para se poder considerar a tradução integralmente
  
  correcta. A língua mais fadada para dar conta desta expressão
  
  parece ser o francês, onde notitia é, fiel e simplesmente,
  
  vertido por l’aperçu. No caso da versão portuguesa do texto
  
  que aqui nos ocupa, optou-se por dar conta de notitia como apercepção,
  
  importando, todavia, clarificar que a palavra não pode ser tomada
  
  nem no sentido de apercepção reflexiva, tal como foi utilizada
  
  por Leibniz, nem, puramente, no sentido de ‘acto de se aperceber de alguma
  
  coisa’, porque notitia é mais passiva — é o acto de se aperceber,
  
  mas é também aquilo que resulta na mente depois de dado o
  
  acto do sujeito de se aperceber de algo.
 Signatum: 
   É, de todos os termos do Tratado dos Signos, o mais belo
  
  e cuja tradução foi, simultaneamente, mais simples mas também
  
  mais frágil. Com signatum João de São Tomás
  
  refere-se à própria coisa absoluta, tomada em si mesma, que
  
  o signo referencia; fala-se então do objecto, ou referente, para
  
  utilizar uma terminologia bem estabelecida nos nossos dias. 
   Deely traduzirá signatum por “signified thing”, e trata-se
  
  de uma opção correctíssima. Em português poder-se-ia
  
  utilizar, visto que o verbo latino signo simplesmente não existe,
  
  mas é traduzido por “assinalar” e vocábulos semelhantes,
  
  “assinalado”. Seria uma opção literal, correcta, mas francamente
  
  deselegante face à beleza do verbo signo. Outra via possível
  
  seria utilizar a terminologia consagrada por qualquer autor para referenciar
  
  este conceito, e aí as opções seriam vastíssimas.
  
  O signatum de João de São Tomás foi, depois, para
  
  Frege e Peirce, “objecto”; para Eco, “referente”; para Morris, “denotatum”;
  
  para Russel, “denotação”; para Carnap, “extensão”.
  
  Nenhum destes termos capta a simplicidade, elegância e beleza da
  
  fórmula latina ao criar o verbo signo, que permite exprimir coisas
  
  tão extraordinárias como “Signo id quod signat signatum est”;
  
  (“Signo é aquilo que signa um signado”). 
   Perante tal dificuldade, traduzir vocábulos que não
  
  existem na língua-alvo sem que nada se perca da perfeição
  
  essencial da forma original, vem em auxílio deste trabalho uma das
  
  muitas regras que Peirce estabeleceu e seguiu no domínio da terminologia:
  
  “Para as concepções filosóficas antigas negligenciadas
  
  pelos escolásticos, imitar, tanto quanto possível, a expressão
  
  antiga [...] Para as concepções filosóficas que divergem
  
  um cabelo que seja daquelas para as quais existem termos apropriados, inventar
  
  termos, tendo em conta os usos da terminologia filosófica e os usos
  
  da língua inglesa, mas conferindo-lhe no entanto uma aparência
  
  nitidamente técnica”14. 
   Por todas estas razões, mas fundamentalmente porque falamos
  
  de termos estritamente técnicos e porque esta era a forma menos
  
  violenta e bárbara de os traduzir, ou adaptar, signare e signatum
  
  foram, respectivamente, traduzidos por “signar” e “signado”, sendo que
  
  o verbo, tal como em latim, pode muito facilmente ser conjugado. 
   
II. A edição 
   
 A bem da genealogia ninguém deixará de se colocar
  
  a questão: Quem descobriu o Tratado dos Signos no meio do imenso
  
  Curso Filosófico de João de São Tomás? Neste
  
  ponto três nomes surgem como referência incontornável
  
  para quem se dedica ao estudo do trabalho semiótico do Doutor Profundo:
  
  Jacques Maritain, José Gonçalo Herculano de Carvalho, e John
  
  Deely. 
   A Maritain ficou a dever-se o primeiro ensaio sobre esta temática,
  
  Signe et Symbole, incluído na obra Quatre essais sur l’esprit dans
  
  sa condition charnelle (Paris, 1939). Segundo Herculano de Carvalho, foi
  
  a leitura desse trabalho que o levou depois à publicação
  
  de Segno e significazione in João de São Tomás, incluído
  
  no segundo volume de Estudos Linguísticos (Coimbra, 1969), trabalho
  
  esse precedido, três anos antes, pela análise e inclusão
  
  de copiosas referências ao mestre lisbonense, especialmente nos capítulos
  
  7 e 8 do tomo I de Teoria da Linguagem (Coimbra, 1967)15.
  
  A paixão pelo dominicano nunca mais deixou Herculano de Carvalho,
  
  que ainda hoje lhe dedica aturado estudo, veja-se por exemplo o seu recente
  
  trabalho “Poinsot’s semiotics and the conimbricenses”, datado de 1995. 
   Já a John Deely se deve a tradução e primeira
  
  edição autónoma do Tratado dos Signos, o Tractatus
  
  de Signis — the semiotic of John Poinsot, dado à estampa em 1985
  
  pela University of California Press, sendo que, de acordo com Herculano
  
  de Carvalho, Deely, antes de iniciar a sua tradução, conhecia
  
  já tanto os trabalhos de Maritain quanto a sua própria obra,
  
  objecto de divulgação e interesse do outro lado do Atlântico16.
  
  Importa ainda notar que outros aspectos que não estritamente semióticos,
  
  dos cursos Filosófico e Teológico, têm sido persistente
  
  e continuamente objecto de trabalho e estudo por parte de numerosos autores,
  
  entre os quais se contam boa quantidade de portugueses e espanhóis.
  
  Quanto ao presente trabalho, a sua génese deve-se à notícia
  
  da existência da obra de Deely, a partir da qual foi possível
  
  recompor este percurso que conduz, invariavelmente, ao trabalho pioneiro
  
  de Maritain. 
   E coloca-se agora a questão de saber quem cunhou a expressão
  
  Tratado dos Signos para se referir às Quaestiones XXI, XXII e XXIII
  
  do Curso Filosófico, que o compõem. Herculano de Carvalho,
  
  num trabalho recente, dá a entender que terá sido Deely o
  
  autor da expressão17. O próprio Deely,
  
  e com razão, é de opinião que o tratado foi baptizado
  
  pelo seu autor, João de São Tomás18.
  
  De facto o dominicano, na introdução, dirigida ao leitor,
  
  a toda a Lógica, e também na introdução à
  
  segunda parte da Lógica, explica claramente que em vez de um comentário
  
  ao De Interpretatione aristotélico, que se limitará a resumir
  
  em poucas páginas, prefere dar à estampa um “tratado àcerca
  
  dos signos e apercepções”, que remete para o final da segunda
  
  parte da Lógica devido às extraordinárias dificuldades
  
  que tal assunto encerra, dando contudo ao tema um tratamento muito geral,
  
  para principiantes, no início dos livros das Súmulas19.
  
  São estas razões mais que suficientes para se considerar
  
  que a expressão Tractatus de Signis foi inventada e proposta inicialmente
  
  por João de São Tomás, a ainda bem que assim sucedeu,
  
  pois onde se poderia encontrar um título melhor e mais adequado
  
  a esta obra? 
   Segundo João de São Tomás, além das
  
  alusões feitas ao tema nos três primeiros artigos das Súmulas,
  
  o Tratado dos Signos é composto pelas Quaestiones XXI, XXII e XXIII
  
  da segunda parte da Lógica do Curso Filosófico, intituladas,
  
  respectivamente, De signo secundum se, De divisionibus signi, e De notitiis
  
  et conceptibus. 
   Já para Herculano de Carvalho20, em
  
  ordem a compreender em toda a sua extensão a problemática
  
  semiológica tal como foi proposta pelo Doutor Profundo, seria necessário
  
  ler os dois primeiros artigos das Súmulas, as Quaestiones I a V
  
  das Quaestiones Disputandae21 , da primeira parte da
  
  Lógica; e ainda as Quaestiones XXI e XXII da segunda parte da Lógica. 
   John Deely faz uma selecção muito diferente para
  
  a sua apresentação do Tratado dos Signos, considerando, além
  
  das Quaestiones XXI, XXII e XXIII expressamente nomeadas por João
  
  de São Tomás, ser necessário atentar ainda, na segunda
  
  parte da Lógica, nos artigos I, II e IV da Quaestio II — De ente
  
  rationis logico; e nos artigos I, II e III da Quaestio XVII — De praedicamento
  
  relationis. Nesta sua opção, bem diferente da de Herculano
  
  de Carvalho, Deely segue expressamente as instruções de João
  
  de São Tomás no prefácio à 4ª edição
  
  da segunda parte da Lógica, onde afirma que o Tratado dos Signos
  
  só deverá ser abordado “depois do conhecimento havido àcerca
  
  do ente de razão e categoria de relação”22 , precisamente as duas Quaestiones onde Deely faz um apanhado dos artigos
  
  mais relevantes, transformando-os, respectivamente, em “First Preamble:
  
  On mind-dependent being”; e “Second Preamble: On relation”, que apresenta
  
  separadamente dos três livros que constituem o Tratado propriamente
  
  dito. 
   Cumpre explicar que João de São Tomás tem,
  
  de facto, razão. É impossível compreender o Tratado
  
  dos Signos sem primeiro investigar o que é dito no Curso Filosófico
  
  àcerca do ente de razão e da categoria de relação.
  
  Por esta razão, os cinco artigos mais importantes dessas questões
  
  foram introduzidos na presente edição do Tratado sob a designação
  
  de Livro Zero, sendo importante salientar que este Livro Zero não
  
  pertence propriamente ao De Signis, mas agrupa alguns artigos das Quaestiones
  
  II e XVII da segunda parte da Lógica, respectivamente De ente rationis
  
  logico e De praedicamento relationis. Estas foram aqui consideradas as
  
  questões fundamentais para a possibilidade de compreensão
  
  e interpretação do Tratado dos Signos, mas tal selecção
  
  não esgota, de todo, o manancial de problemas e informação
  
  que poderia ser extraída do Curso Filosófico e relacionada
  
  com estas questões. Assim, para além da proposta de Herculano
  
  de Carvalho de que já se deu nota, quem desejasse aprofundar a gnosiologia
  
  de João de São Tomás, tão intimamente ligada
  
  ao seu projecto semiótico, teria de fazer uma incursão aos
  
  seus livros De Anima, incluídos no terceiro volume do Curso Filosófico,
  
  e aí, nas Quaestiones IV, V e VI, seria indispensável abordar
  
  os seguintes artigos: “Utrum sensus sint potentiae passivae vel activae”,
  
  “Utrum sensibus externis conveniat deceptio et reflexio supra suos actus”,
  
  “Quod sit subiectum potentiae visivae et medium illius”, “Quomodo fiat
  
  actio videndi et quid sit”, “Utrum requiratur necessario, quod obiectum
  
  exterius sit praesens, ut sentiri possit”, “Utrum necessario sint ponendae
  
  species impressae in sensibus”, “Utrum sensus externi forment idolum seu
  
  speciem expressam, ut cognoscant”, “Utrum dentur sensus interni et quot
  
  sint”, “Quid sint phantasia et reliquae potentiae interiores, et in quibus
  
  subiectis sint”, “Quae sint species impressae et expressae in sensibus
  
  internis”, para nomear apenas alguns. 
   Por último, resta referir as alterações
  
  à forma do Curso Filosófico a que se procedeu nesta apresentação
  
  do De Signis. Os três primeiros capítulos das Súmulas,
  
  passaram, na versão portuguesa, a artigos, devido à sua extensão
  
  mínima. As três Quaestiones que compõem o Tratado dos
  
  Signos recebem aqui o nome de Livros, tendo-se-lhe alterado a numeração
  
  original para I, II e III. O Livro Zero, como já foi dito, é
  
  constituído pela aglutinação de alguns artigos de
  
  duas Quaestiones distintas e é, de certa forma, exterior ao que
  
  João de São Tomás pretendia fosse o seu tratado. Quanto
  
  aos artigos que, na versão latina, compõem uma Quaestio,
  
  foram aqui chamados capítulos, por ser essa a divisão mais
  
  normal e corrente de um livro. 
   
Notas:
1. Gadamer, Hans-George, Verdad y Método: fundamentos de una hermenêutica filosófica, p. 462, Ediciones Sígueme, 1957, Salamanca.
2. Tarefa difícil, senão mesmo impossível, de cumprir na totalidade. Até Deely admite que o seu trabalho tem tanto de tradução quanto de interpretação.
3 . Gadamer, Hans-George, Verdad y Método: fundamentos de una hermenêutica filosófica, p. 454, Ediciones Sígueme, 1957, Salamanca.
4. Simonin, “Review of the 1930 Reiser edition of Poinsot, 1631 and 1632”; citado por Deely, 1985: 459. Também Garrigou-Lagrange, citado por Deely, descortina um sentido na paixão circular do mestre dominicano: “Jean de Saint-Thomas avait, pour employer la terminologie de Denys, conservée par saint Thomas, la ‘contemplation circulaire’, qui, par opposition au mouvement ascensionnel, soit droit, soit oblique, revient constamment sur les mêmes choses, en décrivant plusiers fois le méme cercle, sans se lasser, pour mieux voir et revoir tous les aspects et toutes les richesses d’une vérité superieure. Ainsi l’aigle, aprés s’être élevé très haut par un mouvement droit ou par un mouvement en spirale, se plaît à décrire plusieurs fois le même cercle, puis à planer comme immobile, en scrutant l’horizon de son puissant regard. Ces retours circulaires sur les mêmes choses peuvent fatiguer les lecteurs qui ne sont pas parvenus à une vue si simple et si haute, qui n’ont pas la même joie que Jean de Saint-Thomas à ‘redire la même chose sans la répéter jamais’; ils voient la répetition matérielle, et pas assez la continuité formelle du regard intelligent... Ceci dit pour défendre le noble Jean de Saint-Thomas, tout en reconnaissant qu’il paraît quelque-fois un peu trop aimer le cercle sur lequel il revient, et qui n’est encore qu’une image lointaine de Dieu”.
5. E se bem que sejam admissíveis desvios ao uso corrente de um termo no tomismo, também se pressupõe que a própria literalidade do texto poderá, a qualquer momento, reconduzir o leitor a essa violação da norma.
6. Dicionário de Latim Português, col. Dicionários Editora, Porto Editora, sd, Porto.
7. Nicolas, Marie Joseph, 1984, “Vocabulaire de la Somme Théologique”, p. 100, in Somme Théologique, vol. I, Les Éditions du CERF, Paris.
8. Oxford Advanced Learner’s Dictionary, 1989, 4ª edição, Oxford University Press.
9. Dicionário Universal da Língua Portuguesa, 1995, Texto Editora, Lisboa.
10. Agostinho, Santo, On Christian Doctrine, trad. de Shaw, J. F., Encyclopaedia Brittanica, 1993, Chicago.
11. Definição essa que é citada e criticada por João de São Tomás logo no início do Tratado dos Signos.
12. Agostinho, Santo, Àcerca da Doutrina Cristã, in AA.VV, Textos de Hermenêutica: Agostinho, Espinoza, Hegel, Dilthey, Nietzsche, trad. de Reis, Alberto, e Andrade, José, Rés Editora, 1984, Porto.
13. Gauvin, Jean, “ O discurso da filosofia sistemática — experiências de leitura e investigações de estrutura”, in Philosophie du Langage, nº 21, 1971, p. 176.
14. Peirce, Charles Sanders, Collected Papers, vol. I, citado por Rodrigues, Adriano Duarte, 1991: 78.
15. Umberto Eco faz igualmente referência, na sua tese de doutoramento, ao trabalho semiótico de João de São Tomás, mas esse estudo, Il problema estetico in Tommaso d’Aquino, só foi editado um ano após a publicação do ensaio de Herculano de Carvalho, Segno e significazione in João de São Tomás; e também não é de crer que um trabalho de doutoramento sobre o Aquinate tenha deixado de escrutinar minuciosamente a obra de Maritain.
16. Veja-se, por exemplo, Luigi Romeo, “Pedro da Fonseca in Renaissance Semiotics: A Segmental History of Footnotes”, Ars Semeiotica, II, John Benjamin, 1979, Amsterdam.
17. “This is however not possible without a long and detailed comparison of his Tractatus de Signis (to use John Deely’s felicitous title) not only with the first chapter De Signis of the Comentarii in Libros Aristotelis De Interpretatione of the ‘Cursus Conimbricensis’, but with a number of other commentaries of the same aristotelian book...”; Carvalho, José Gonçalo Herculano de, “Poinsot’s semiotics and the conimbricenses”, p. 131, in Ensaios de homenagem a Thomas Sebeok, coord. de Norma Tasca,Fundação Engenheiro António de Almeida, 1995, Porto.
18. “To begin with, the main title of our presentation, Tractatus de Signis, it is the designation chosen by Poinsot himself to refer to this part of his work [...]”; Deely, 1985: 445.
19.“Ad haec metaphysicas difficultates pluresque alias
  
  ex libris de Anima, quae disputantium ardore in ipsa Summularum cunabula
  
  irruperant, suo loco amandavimus et tractatum de signis et notitiis in
  
  Logica super librum Perihermenias expedimus”; “Quod in prima Logicae parte
  
  promisimus de quæstionibus pluribus, quæ ibi tractari solent,
  
  hic expediendis, plane solvimus, excepto quod iustis de causis tractatum
  
  de signis, pluribus nec vulgaribus difficultatibus scaturientem, ne hic
  
  iniectus aut sparsus gravaret tractatus alio satis per se graves, seorsum
  
  edendum duximus loco commentarii in libros Perihermenias simul cum quæstionibus
  
  in libros Posteriorum, et pro commodiori libri usu a tractatu Prædicamentorum
  
  seiunximus.” 
    (“Quanto a estas dificuldades metafísicas e outras dos
  
  livros Da Alma, que o ardor das disputas levou a introduzir no início
  
  dos livros das Súmulas, levei-as para local próprio, e desenvolvemos
  
  na Lógica, àcerca do De Interpretatione, um tratado àcerca
  
  dos signos e apercepções”; “Cobrimos aqui, como prometemos,
  
  as várias questões tradicionalmente tratadas na primeira
  
  parte da Lógica, excepto, por boas razões, o Tratado dos
  
  Signos, cheio com tantas e tão extraordinárias dificuldades,
  
  e assim, para libertar os textos introdutórios da presença
  
  destas dificuldades incomuns, decidimos publicá-lo separadamente
  
  em lugar de um comentário ao De Interpretatione e junto com as questões
  
  dos Analíticos Posteriores; e para um uso mais conveniente separamos
  
  o Tratado dos Signos da discussão das Categorias”); Tomás,
  
  João de São, in Tratado dos Signos, p. 55.
20. Vide “Segno e significazione in João de São Tomás”.
21. Vide Apêndice A — Índice da totalidade do Curso Filosófico segundo a edição crítica de Reiser.
22 . “Sed tamen, quia haec omnia tractantur in his
  
  libris per modum interpretationis et significationis, commune siquidem
  
  Logicae instrumentum est signum, quo omnia eius instrumenta constat, idcirco
  
  visum est in praesenti pro doctrina horum librorum ea tradere, quae ad
  
  explicandam naturam et divisiones signorum in Summulis insinuata, huc vero
  
  reservata sunt. Nunc autem in hoc loco genuine introducuntur, post notitiam
  
  habitam de ente rationis et praedicamento relationis, a quibus principaliter
  
  dependet inquisitio ista de natura et quidditate signorum. Ut autem clarius
  
  et uberius tractaretur, visum est seorsum de hoc edere tractatum, nec solum
  
  ad praedicamentum relationis illud reducere, tum ne illius praedicamenti
  
  disputatio extraneo hoc tractatu prolixior redderetur et taediosior, tum
  
  ne istius consideratio confusior esset et brevior”. 
   (“Mas porque todas estas coisas são tratadas nestes livros
  
  por meio da interpretação e significação, e
  
  visto que o instrumento da lógica é o signo, de que constam
  
  todos os seus instrumentos; por isso, pareceu melhor agora, em vez da doutrina
  
  destes livros, apresentar aquelas coisas destinadas a expôr a natureza
  
  e divisão dos signos, que nas Súmulas foram introduzidas,
  
  e para aqui, portanto, foram reservadas. Agora porém neste lugar
  
  com toda a razão se introduzem, depois do conhecimento havido àcerca
  
  do ente de razão e categoria da relação, dos quais
  
  principalmente depende esta inquirição sobre a natureza e
  
  essência dos signos. Para que o assunto mais clara e frutuosamente
  
  seja tratado, achei por bem separadamente àcerca disto fazer um
  
  tratado, em vez de reduzir e incluir a questão na categoria da relação,
  
  para que a discussão da relação não se tornasse
  
  redundante e enfadonha pela introdução deste tema exterior;
  
  e também para que a consideração do signo não
  
  se tornasse mais confusa e breve”), (itálico nosso); João
  
  de São Tomás, in Tratado dos Signos.