COMUNITARISMO OU LIBERALISMO?

Gisela Gonçalves, Universidade da Beira Interior

Setembro 1998



No âmbito da filosofia política, a discussão entre liberalismo e comunitarismo apresenta, logo à partida, algumas dificuldadesna sua dissecação. Embora a maior parte da literatura sobre este debate se tenha produzido nos anos 80, a discussão está já muito enraizada no tempo, podendo-se mesmo ver um retomar da confrontação entre o formalismo kantiano e o romantismohegeliano.
Enquanto os liberais se sentem herdeiros de Locke, Hobbes, Stuart Mill, Kant, os comunitaristas, têm as suas raízes no aristotelismo, em Hegel e na tradição republicana da Renascença (como por exemplo, Maquievel e "O Príncipe", que mais não é do que um tratado político onde se afirma que o governante deve subordinar a sua conduta ao êxito político). Os primeiros partilham a ideia de liberdade de consciência, respeito pelos direitos do indivíduo e desconfiança frente à ameaça de um Estado paternalista; os comunitaristas comungam da desconfiança pela moral abstracta, têm simpatia pela ética das virtudes e uma concepção política com muito espaço para a história das tradições.
Outra dificuldade na análise deste debate encontra-se no facto, de não se tratarem de duas doutrinas filosóficas opostas bem definidas, mas de duas "equipas" bastante heterogéneas. Do lado Liberal encontramos autores como John Rawls, Ronald Dworkin, Thomas Nagel, Bruce Ackerman e Charles Larmore. Entre os Comunitaristas encontramos Alasdair MacIntyre, Charles Taylor, Michael Sandel,Will Kymlicka, e Michael Walzer, entre outros.
Do elevado número de intervenientes neste debate resulta a impossibilidade de se afirmar que existe uma resposta liberal e uma resposta comunitarista ao problema do julgamento político e dos princípios que regem as práticas e as instituições políticas. Há um continuum de respostas onde só os dois extremos se encontram indiscutivelmente no campo liberal ou no campo comunitarista. Daí poder falar-se em comunitarismo radical e comunitarismo moderado, assim como em liberalismo radical (muito individualista) e em liberalismo moderado (mais susceptível às condições culturais e sociais da vida política).
Na realidade, as divergências teóricas não se reflectem necessariamente no plano das posições políticas concretas, já que a própria tradição liberal não é homogénea. Os liberais, na linha de Hobbes, defendem que a política está desprovida de significação moral, que o Estado não é mais do que um instrumento destinado a assegurar a coexistência pacífica dos indivíduos numa determinada sociedade contractualista. Já na linha de Kant, consideram que o Estado tem uma função moral autêntica e que transcende as considerações pragmáticas ou naturalistas determinantes para os anteriores. Aqui incluídos encontramos Rawls, Dworkin, Larmore, para quem, a política não tem por obrigação responder às exigências de sobrevivência mas sim garantir a cada um, e de maneira igualitária, a liberdade de escolher e de perseguir uma concepção da "vida boa", nos limites do respeito de uma capacidade equitativa por parte dos outros.
Do lado oposto, o comunitarismo propõe que o indivíduo seja considerado membro inserido numa comunidade política de iguais. E, para que exista um aperfeiçoamento da vida política na democracia, se exiga uma cooperação social, um empenhamento público e participação política, isto é, formas de comportamento que ajudem ao enobrecimento da vida comunitária. Consequentemente, o indivíduo tem obrigações éticas para com a finalidade social, deve viver para a sua comunidade organizada em torno de uma só ideia substantiva de bem comum.
Subjacente a estes princípios comunitaristas encontramos ÉticasSubstanciais, que determinam que uma teoria moral só se pode desenvolver a partir de uma concepção específica do bem, ou mesmo, de uma hierarquia de bens. São ÉticasPerfeccionistas ao afirmarem que não podemos definir aquilo que é politicamente justo sem invocar uma concepção substancial do bem, e Contextualistas (na justificação mais radicalmente comunitarista), ao defenderem que não podemos apontar uma concepção do bem sobre uma base natural e abstracta mas apenas por referência aos valores substanciais veiculados pela tradição de uma comunidade histórica particular.
No caso dos Liberais, encontramos Éticas Procedimentaisque definem uma teoria moral fundada segundo normas procedimentais, formais, desligadas de qualquer concepção específica do bem. São éticas que em vez de decidirem o que é que há que fazer, dizem de que forma decidiremos correctamente o que devemos fazer. Por esta razão são Anti-
-Perfeccionistas ou Neutralistas na justificação de regras que orientem a vida pública.
O debate entre Liberais e Comunitaristas foi despoletado sobretudo pela "Teoria da Justiça" (1971) de John Rawls, que deu origem a uma renovação espectacular da filosofia política anglo-saxónica. Apesar do grande número de objecções e comentários em volta deste tema há, de certa forma, consenso entre filósofos políticos das duas "equipas", sobre os temas essenciais a tratar dentro desta discussão. Em primeiro lugar importa referir duas oposições nevrálgicas: justiça e bem; indivíduo e comunidade. Num segundo ponto, será abordado o tema: Liberdade, Estado e Cidadania.
No intuito de melhor apresentar a discussão liberais/comunitaristas, o trabalho a seguir apresentado, está estruturado sobre esses elementos fundamentais da querela e, além disso, recorre-se do contributo do pensamento de alguns autores como, John Rawls e Alasdair MacIntyre, emblemático das duas correntes.
 

O JUSTO E O BEM

Um dos temas consensuais no debate liberalismo/comunitarismo incide no reconhecimento da importância fulcral da articulação entre os conceitos de justo e de bem.
Se contextualizarmos a oposição filosófica entre os conceitos de justo e de bem verificamos que se trata de um dos temas principais da tradição filosófica ocidental. A afirmação do justo sobre o bem traça a fronteira entre os pensamentos morais antigos e modernos: os antigos colocavam a questão de qual o bem, que sendo objecto do meu desejo me levaria à melhor forma de vida (eudaimonia) (1); os modernos preocupam-se com a questão do justo, isto é, como é que eu devo agir, já não em relação ao meu bem, à minha felicidade, mas em relação às condições que tornam possível a procura do bem, conduzida por cada indivíduo (dever).
Se as éticas pré-iluministas tinham como pressuposto o raciocínio que consiste em deduzir o telos a partir da natureza humana, em contrapartida, as éticas iluministas rejeitaram qualquer perspectiva teleológica da natureza humana ao não aceitarem a ideia do Homem como possuidor de uma essência que definisse o seu verdadeiro fim. Enquanto Aristóteles parte do Homem e deduz as virtudes necessárias para atingir um ideal de vida, Kant vai partir de uma regra racional que está acima do Homem como espécie e elabora uma ética que se reduz à descoberta e aplicação das leis a priori do pensamento e do raciocínio puro que devem reger o comportamento moral. Kant procura a forma universal da lei moral fundamentada racionalmente, sem referência a uma entidade superior, exterior ou transcendental.
A noção moderna de dever foi uma maneira de libertar a ética de questões de conteúdo existencial demasiado subjectivas (no sentido de se tomar por orientação a felicidade ou a realização individual) e encontrar um Bem como um princípio formal, que uma vez aplicado seria o critério de valor moral objectivo de toda e qualquer acção - a generalização do conceito de Dever.
Neste sentido, a afirmação da "Prioridade dojusto sobre o bem" - tese central do pensamento ético moderno e contemporâneo - tem vantagens para os pós-kantianos: oferece uma justificação da moral mais sólida do que a justificação antiga, porque não depende de pressupostos empíricos; parece mais aplicável num mundo onde a obrigação moral deve coabitar com uma pluralidade crescente de concepções do bem. Além disso, a atenção deslocou-se das concepções substanciais do bem em direcção às noções de autonomia moral e de liberdade individual. Esta nova forma de colocar a questão moral implica uma distinção de princípio entre a moral pessoal (indivíduo) e a esfera do político (colectivo).
Tendo presente esta contextualização importa realçar que na articulação entre os conceitos de justo e de bem se tornou um lugar comum afirmar que os Liberais defendem a prioridade do "justo sobre o bem" (posição deontológica) e que os Comunitaristas defendem a prioridade do "bem sobre o justo" (posição teleológica).
O debate actual a propósito do justo e do bem consiste, em parte, na questão de se este deslocamento do interesse filosófico (do bem para o justo) foi um progresso ou um erro. Os liberais optam unanimemente em favor do progresso, já a maior parte dos comunitaristas, têm uma atitude muito crítica em relação a esta deslocação em direccção ao justo.
Segundo Michael Sandel (2), a prioridade do justo sobre o bem pode ser compreendida de duas formas diferentes: ponto de vista moral e epistemológico. Do ponto de vista moral "Prioridadedo justo sobre o bem" significa que os princípios de justiça limitam as concepções de bem que os indivíduos podem escolher e colocar em prática, porque quando os valores escolhidos entram em conflito com os princípios de justiça, são estes que se devem respeitar. Encontramos aqui a oposição, como já vimos antes, entre teorias deontológicas e teleológicas. Do ponto de vista epistemológico a "prioridade dojusto sobre o bem" denota que os princípios de justiça não podem ser escolhidos com base numa concepção específica do bem, mas que pelo contrário, o facto de escolher princípios de justiça específicos é uma condição para poder fazer uma escolha entre diferentes concepções de bem. Esta segunda interpretação conduz à separação entre teorias antiperfeccionistas e teorias perfeccionistas.
Nesta dupla dicotomia, enquadramos a "Teoria da Justiça" de Rawls numa teoria deontológica e numa ética antiperfeccionista - traços característicos de qualquer teoria liberal.
 

John Rawls e a Teoria da Justiça

Filósofos contemporâneos como Jurgen Habermas e John Rawls prosseguem, explicitamente, a reactivação do pensamento iluminista. Mostram-se herdeiros de Kant na intenção de determinar os critérios pelos quais seja possível distinguir o racional ou ético do irracional e não ético.
Habermas encontrou o critério ético nas condições de possibilidade do que designa «acção comunicativa». Sumariamente a tese é a seguinte. Tendo em conta que os humanos somos seres de fala e que a nossa acção mais específica é a comunicação, essa mesma ideia de comunicação que nos constitui encerra os critérios de validade da própria comunicação e dos seus resultados. Ao falar e discutir sobre questões normativas, que são as que nos separam, expressamos as nossas posições contrárias. Mas, se dialogamos é porque procuramos o consenso. Não o consenso alcançado numa acção comunicativa em que a relação entre os falantes não é simétrica mas desigual (relação de domínio de uns sobre os outros) mas sim, o consenso alcançado numa comunicação justa e simétrica - acordo que merece ser qualificado de racional.
A ideia de uma comunicação perfeita a que Habermas designa, «situação ideal de diálogo» - é uma ideia inata em nós, intrínseca à nossa realidade comunicativa ou racional, já que é a linguagem o que nos distingue enquanto racionais. Assim, quando discutimos sobre questões normativas, projectamos - enquanto ideia reguladora - essa situação ideal que nos servirá de critério para julgar as situações reais em que se realiza de facto a discussão.
Para Habermas, a «situação ideal de diálogo» é o critério que nos há-de permitir ajuizar e avaliar os acordos fáticos. Um critério que não proporciona qualquer conteúdo sobre os acordos que devem ser estabelecidos, mas que apenas se limita a propor um procedimento: se são respeitados os requesitos da comunicação justa, os resultados racionais resultarão por acréscimo e a validade dos mesmos está garantida.
A Teoria da Justiça de Rawls também é procedimental porque, como é visível, ele tenta reencontrar um consenso, uma base universalmente aceite, aonde escorar a legitimação dos valores e normas, de forma a tornar viável a fundamentação racional da lei.
Os principais pressupostos de base da sua teoria são: 1) A raridade dos recursos - o facto de que a totalidade de recursos a distribuir é menor do que a procura; 2) O reconhecimento do "facto do pluralismo" - a existência de um desacordo profundo e irredutível ao nível das concepções do bem defendida pelos indivíduos; e 3) O reconhecimento de todos os membros da sociedade como indivíduos racionais e razoáveis - capazes de formular concepções do bem e de desenvolver um "sentido de justiça".
Com base nestes pressupostos Rawls recupera a teoria moderna (contractualista) da fundação da sociedade como produto de um acordo ideal entre os seus membros sobre o modo "justo" de viver em comum. Seria uma experiência imaginária, em que os indivíduos escolhem sob o "véu da ignorância", isto é, no desconhecimento dos papéis e hipóteses que lhes podem estar reservados, garantindo assim opções em função apenas de considerações gerais sobre a sociedade e não em função de interesses particulares e egoístas.
Rawls apresenta uma teoria semelhante à de Habermas, na medida em que simula uma "posição originária" da qual devem proceder os princípios fundamentais da justiça. Esta posição consiste na simulação da imparcialidade ao ser representada por uma comunidade de seres livres e com igualdade de oportunidades. Da "posição originária" nascem os três princípios da justiça: liberdade, igualdade de oportunidades e princípio da diferença (à luz do qual as desigualdades só serão justificadas, quando e na medida em que propiciam a melhoria da situação dos mais desfavorecidos).
Além disso, Rawls também afirma que com a sua teoria pretende fixar as condições gerais de perseguição do bem, mas não se ocupa da avaliação de conceitos particulares de bem nem do uso que cada indivíduo pode fazer dos seus recursos legítimos (é anti-perfeccionista).
A teoria de Rawls foi alvo de muitas objecções, na maior parte comunitaristas. Além de ser contestado o carácter generalista dos seus princípios de justiça é também criticado o facto de se tratar de uma teoria da justiça que não pode honrar as suas próprias pretensões porque está ligada a uma concepção implícita de bem. Esta concepção sobressai quando Rawls se pronuncia a favor de uma teoria que concebe o bem de cada indivíduo como o exercício da livre escolha racional. Contrariando esta perspectiva, o teórico M. Sandel (3), afirma que o bem nunca é objecto de uma escolha mas que reside no pleno desenvolvimento de certos aspectos que são constitutivos da nossa identidade (familiares, religiosos,etc).
Por isso, o bem nunca pode ser objecto de uma escolha racional mas sim objecto de uma autodescoberta.
Toda esta polémica conduz-nos, necessariamente, a outra questão, não menos importante, sobre a forma como serão desenvolvidas as concepções do bem, inseridas numa comunidade democrática.
 

INDIVÍDUO E COMUNIDADE

O debate contemporâneo entre filósofos liberais e comunitaristas parece polarizar-se em torno de outra, não menos importante, oposição: indivíduo e comunidade.
As teorias políticas liberais são inseparáveis do individualismo moderno ao valorizarem o indivíduo em relação ao grupo social e por se oporem às visões colectivistas da política que tendem a valorizar o grupo social e não o indivíduo.
Este facto, conduziu a críticas ferozes por parte dos filósofos comunitaristas tecendo uma questão bastante complexa, onde se pode encontrar pelo menos três dimensões, ou perspectivas, de abordagem: antropológica, onde se critica à concepção liberal de um sujeito descomprometido e atomizado; normativa, ao se questionar o princípio moral sobre o qual se rege a moral política - valorização da liberdade individual; e, sociológica, porque a sociedade liberal induz os membros da sua sociedade a uma atitude individualista, egocêntrica que tem efeitos destruturantes sobre a identidade individual e do grupo.

I - O sujeito descomprometido e atomatizado do Liberalismo

A crítica antropológica e normativa estão intimamente ligadas e recaem sobre o sujeito descomprometido e atomatizado do Liberalismo.
Segundo os Liberais, os indivíduos não são definidos pelas suas interdependências - económicas, sociais, éticas, sexuais, culturais, políticas ou religiosas. Os indivíduos são livres de colocar em questão e de rejeitar qualquer forma de participação em grupos, instituições ou actividades particulares. São livres de questionar as suas convicções, mesmo as mais profundas.
Charles Taylor e MacIntyre são alguns dos filósofos a apontar que os teóricos liberais se apoiam numa antropologia fraca, apresentado o ser humano como um ser desencarnado, um sujeito sem raízes, descomprometido, mas capaz de escolher soberanamente os fins e os valores que orientam a sua existência. Esta concepção é, segundo eles, irrealista porque a liberdade e a identidade do homem não são características ontológicas inatas à pessoa.
Pelo contrário, aquilo que dá sentido à existência, são os conteúdos substanciais (daí o comunitarismo defender uma ética perfeccionista) que tecem a história própria de cada um. Estes conteúdos já estão inscritos na cultura, precedem o indivíduo, por isso ele é pré-determinado na forma de definir a sua identidade e exercer a sua liberdade.
A uma antropologia descritiva corresponde uma antropologia normativa: os fins que orientam a nossa existência não são produto duma escolha arbitrária e soberana mas o produto duma auto-interpretação contextualizada da nossa situação num horizonte sociocultural que nos precede. É esta auto-interpretação que dá consistência e densidade ao sujeito. Ao afirmarem que o individualismo é inseparável da socialização, os comunitaristas pretendem mostrar que o indivíduo livre da concepção liberal é ele mesmo produto duma forma específica de socialização.
Segundo os comunitaristas a atomização do social tem consequências duplas. Por um lado, empobrece e enfraquece o tecido cultural ao destruir as identidades culturais incompatíveis com o individualismo liberal. E, a diversidade cultural é uma condição necessária para que os indivíduos possam escolher livremente uma concepção de "vida boa". Por outro lado, a atomização do social demonstra-se destruturante para a ordem social porque suscita um déficit de legitimidade.
Ao individualismo liberal, os comunitaristas contrapõem as formas de socialização características da sociedade grega ou do antigo regime. É o caso de Alasdair MacIntyre, autor de "After Virtue - A Study in Moral Theory" (4), onde procura recuperar a teoria social e política de Aristóteles.
Este neo-aristotélico tem por objectivo modernizar a ética aristotélica, recusando, todavia, o controverso conceito de Biologia metafísica (5). Pretende minimizar o elemento metafísico e salvar a natureza humana, não a interpretando no sentido cosmológico mas no sentido social. Estes dois sentidos advêm da tensão interna entre as definições aristotélicas: animal racional (cuja maior virtude é a contemplativa) e animal político, para o qual a vida em comunidade e em harmonia é atingida através da amizade (a virtude que liga os indivíduos). A tese central é que esta dimensão sócio-política é recuperável modernamente, uma vez que as virtudes se impõe por relação à vivência social, à vida em comunidade.
Realçando os valores comunitários, MacIntyre extrai de Aristóteles um elemento histórico-narrativo ou semântico: a vida humana adquire sentido quando ganha a forma de uma narrativa de carácter histórico ou globalizante, e não uma forma meramente atomística. A obtenção da unidade histórico-narrativa sofre de duas contrariedades modernas: uma de carácter social e natureza eminentemente prática, inexistente na polis clássica, que deriva da fragmentação da vida em esferas duais (público/privado; trabalho/lazer) - o comportamento exigido ao indivíduo numa esfera é incompatível, ou melhor, não tem ligação com as exigências sociais das outras esferas; um outro obstáculo, de índole teórica, tem origem na filosofia analítica e na análise atomística da razão, bem como no existencialismo, nomeadamente de Sartre, no qual se faz uma negação da unidade da vida imediata.
Uma outra visão interessante deste problema (indivíduo/comunidade), próxima do comunitarismo, pertence ao filósofo canadiano Charles Taylor. Taylor nota que a controvérsia liberais/comunitaristas não tem apenas um lado normativo mas também ontológico: não se pode elaborar uma concepção política de justiça sem passar pela subtileza prévia duma reflexão ontológica sobre a condição do homem e o seu estar em sociedade. Não porque Taylor considere que as questões morais e políticas se reduzem a questões ontológicas, mas porque a condição ontológica do homem delimita o campo de posições que é possível ter no plano normativo das teorias políticas.
Segundo Taylor a sociedade democrática actual enferma de três males éticos: o individualismo, o desencantodo mundo, relacionado com uma racionalidade tecnológica e instrumental e, por último, uma perda da liberdade.
O individualismo moral vigente nas sociedades modernas teve como efeitos civilizacionais, por um lado, a recusa e a inviabilização de qualquer ordem cósmica e, por outro, um egoísmo social crescente. O individualismo mostra que ninguém está disposto a sacrificar-se em nome de valores presumivelmente sagrados ou transcendentes.
Directamente associado a este aspecto, um modo de ver economicista, científico, calculista proliferou no domínio das relações humanas, favorecendo a ideia do outro como um puro meio na prossecução de um fim particular. Esta utilização excessiva ou mesmo exclusiva da razão instrumental obriga a que tudo seja definido por critérios de eficiência e de lucro, numa lógica de meios e de fins, numa tentativa de rentabilização do esforço e de maximização do proveito - os indivíduos constituem a própria matéria da acção.
O terceiro mal da modernidade é consequência dos dois primeiros. A perda da liberdade verifica-se não só ao nível individual, mas também no plano colectivo ou político: pelo constrangimento da técnica, cuja dinâmica própria possui à partida um elemento impositivo, o agir comum encontra-se inevitavelmente limitado e determinado. É que todas as possíveis acções são obrigadas a passar pelo filtro da racionalidade tecnológica, que imprime a sua marca na própria potencialidade do agir.
O individualismo tira força à vida em comunidade, facto que produz um desinteresse pelas questões do político e da liberdade. Preocupamo-nos cada vez menos com a participação pública e ficamos "em nossa casa" a desfrutar dos prazeres da vida privada, principalmente num tempo em que os Estado nos fornece os meios para o fazer.
Taylor encontra a resposta aos males modernos na Ética daAutenticidade e que deu o nome à sua obra "TheEthics of Authenticity" (6). A definição ética de Taylor não se enquadra no sistema bipolar - neo-aristotélicos versus neo-kantianos - mas opera uma síntese de diferentes elementos das duas tradições antagónicas. Tal como Aristóteles não define uma norma, mas um ideal de vida. De Kant prolonga uma tentativa de inversão da fundamentação biológico-metafísica da ética.
O ideal de autenticidade define-se por valores como a sinceridade e a genuinidade pessoal do indivíduo para consigo mesmo (relativismo moderno), mas não dispensa um destinatário - o outro. O carácter dialógico da existência, essencial à cultura democrática, exige que do outro advenha o reconhecimento e a confirmação da identidade individual. É importante a relação e o reconhecimento intersubjectivo para a construção da minha identidade porque o meu julgamento de valores e do valor da minha própria existência só tem sentido enquanto objecto de reconhecimento social, de confirmação social.
A Ética da Autenticidade não aspira à negação do individualismo, pelo contrário, nasce da pressuposição da livre escolha como resposta e resolução das doenças modernas. Só que para Taylor, e aqui segue a mesma linha de MacIntyre, esta opção individual faz-se sempre num horizonte de significação, pré-estabelecido, efectua-se por relação a um amplo leque de valores pré-existentes (7). O liberalismo não é negado inserido num horizonte de significação,
A livre escolha possibilita a constituição de uma identidade individual que é indissociavel dos quadros axiológicos de referência no quadro prévio das significações. O indíviduo é um "self" capaz de responder por ele mesmo à questão "Quem sou eu?", em termos que não são exclusivamente universais e pré-construídos.
Taylor e MacIntyre não defendem a tese de que o contexto sócio-cultural determina a pessoa ao ponto de que será condenada a reproduzi-lo sem variação. É sempre possível a emergência de sentido em novos valores. Mas a orientação dada a uma existência não é objecto de uma escolha ou de um julgamento soberano, mas de uma descoberta de si. As sociedades modernas dão a possibilidade ao indivíduo de constituir a sua própria identidade de maneira multiforme e de definir aquilo que é importante para ele.
Pelo contrário, do ponto de vista liberal, é importante garantir a cada um a possibilidade efectiva de possuir um julgamento crítico sobre os valores e as finalidades que devem orientar a sua acção, baseado num individualismo onde prevaleça o justo.
 

II. O Liberalismo é viável socialmente? Uma crítica sociológica.

A crítica comunitarista ao individualismo liberal também é travada no plano sociológico. Esta crítica incide na percepção individualista do laço social subjacente à teorias liberais de inspiração rawlsiana. Porque, como é ilustrado pela ideia de uma "posiçãooriginal", o Liberalismo de Rawls inscreve-se na tradição contractualista (Hobbes, Locke): a sociedade é uma associação resultante de um acordo negociado entre os indivíduos; o Estado é a garantia, o fiador do contracto social - o dispositivo institucional que tem por função assegurar a coexistência equitativa dos interesses privados dos seus indivíduos.
A crítica comunitarista sublinha que uma ordem social não se pode estabelecer, estruturar e estabilizar baseada num encontro de egoísmos. Já Durkheim dizia que a simples associação de interesses individuais não pode criar ordem social. A ordem social só irá subsistir de maneira durável se se apoiar no reconhecimento pelos membros do grupo social, de uma normatividade social que lhes preexiste. O contractualismo não dá conta do sentido de obrigatoriedade das normas que estão na base do laço social, porque entende que o Estado nasce de um acordo que os contraentes podem dissolver quando lhes convém.
Para os Comunitaristas, um Estado Liberal - simples instrumento de garantia dos direitos, desligado de qualquer forma de conforto pessoal ou comunitário - não é viável socialmente e é destrutor de identidades individuais e colectivas. Os indivíduos são atomizados, apercebem-se dos concidadãos como seres que lhes fazem obstáculo ou que estão ao serviço dos seus projectos privados.
Rawls, nos textos mais recentes, dá resposta a esta objecção sociológica (8):
1) O Liberalismo político não pressupõe que qualquer forma de socialização deve tomar uma forma contratual e livre de qualquer referência a valores comunitários. A sua ambição limita-se a propôr um modelo institucional para uma comunidade política democrática - comunidade que não exclui a existência no seu seio de formas comunitárias de sociabilidade (família, religião, etc.).
Note-se que a concessão de Rawls ao comunitarismo não é total porque defende que os laços de pertença repousam sobre a adesão voluntária. Mas, a adesão voluntária é problemática numa análise sociológica - todos nascemos, somos socializados e vivemos no seio de grupos sociais particulares (família, nação, igreja, comunidade étnica) na qual não escolhemos deliberadamente entrar. É um facto social incontornável.
2) A sociedade liberal concebida por Rawls ou Larmore não corresponde à imagem dada pela crítica comunitarista: uma associação produzida por um contracto entre indivíduos que, de forma egoísta, apenas procuram no pacto social, a maneira de maximizar a satisfação dos seus interesses privados (linha de Hobbes).
Contra Hobbes querem dar ao pacto social uma significação moral: a sua legitimação repousa no reconhecimento pelos cidadãos, de que ele assegura uma possibilidade máxima e equitativa para cada um definir e realizar a sua concepção de "vida boa".
Para Rawls, sociedade Liberal não está ligada pelas considerações relativas ao interesse particular de cada um, mas pelas considerações morais partilhadas relativamente à liberdade igualitária de todos. Há uma comunidade política onde os cidadãos partilham uma mesma finalidade e uma mesma concepção de bem público. E sublinha mesmo, que uma sociedade Liberal bem ordenada não é apenas uma sociedade onde as instituições de base são conformes a certos princípios de justiça, mas uma sociedade onde esses princípios são publicamente justificados pelos cidadãos.
Em suma, a ruptura dos liberais contemporâneos com um egoísmo sociológico à Hobbes não implica uma renúncia ao individualismo normativo.
 

DOIS CONCEITOS DE LIBERDADE, ESTADO E DE CIDADANIA

Tanto do lado dos Liberais como dos Comunitaristas a Liberdade éelevada à classe de princípio essencial. Ambas as partes sentem que uma sociedade só é justa se os membros que a compõe aí vivem livremente e, se a finalidade da actividade política for realizar as condições nas quais essa liberdade é possível.
Enquanto para o senso comum, Liberdade significa livre arbítrio, a capacidade e possibilidade de fazer aquilo que se quer, perspectivada por filósofos políticos, podemos encontrar variadas interpretações. Como a de Isaiah Berlin (9) que classifica duas concepções polares de liberdade: concepção negativa e concepção positiva de liberdade. No primeiro caso, a liberdade é pensada como uma libertação relativamente a qualquer coacção social; no segundo, a liberdade designa a auto-realização do indivíduo, que só se pode realizar num contexto social que a promove.
É esta oposição que divide as concepções normativas liberais e comunitaristas sobre o papel do Estado nas sociedade modernas.
A reflexão dos filósofos liberais contemporâneos parte duma constatação empírica: as sociedades contemporâneas são caracterizadas por um persistente pluralismo axiológico e qualquer tentativa para o esquecer apenas irá violar o princípio de igualdade (tão respeitado pelos liberais).
Neste contexto, o poder político deve ser neutro nas finalidades e justificações. O papel do Estado deve limitar-se a garantir o respeito dos direitos individuais e dos princípios de justiça que derivam do imperativo de igual liberdade para todos. Isto implica que o poder de coacção exercido pelo Estado deve poder ser reconhecido como legítimo por aqueles sobre os quais o poder é exercido.O estado Liberal deve conseguir suscitar junto do cidadão um sentido específico de justiça que lhe permita reconhecer como politicamente aceitável uma decisão, mesmo que ela não encontre lugar no horizonte da sua moral pessoal.
Os Liberais (concepção negativa da liberdade) reconhecem uma significação moral às instituições políticas no sentido de que a sua única finalidade legítima é assegurar a todos os membros duma sociedade uma máxima autonomia e igualdade para todos - princípio individualista. Isto implica que nas sociedades modernas pluralistas o Estado Liberal não pode ser "perfeccionista" - promover uma concepção moral ou religiosa particular ou impor aos cidadãos comportamentos ditados por essa concepção. O Estado Liberal deve sim, ser neutro nas suas finalidades por relação a qualquer concepção de bem.
Os Comunitaristas (concepção positiva de liberdade)julgam redutora esta concepção antiperfeccionista e individualista do Estado. Para eles, um Estado Liberal - simples instrumento de garantia dos direitos, desligado de qualquer forma de conforto pessoal ou comunitário - não é viável socialmente e é destrutor de identidades individuais e colectivas. Fazer do princípio de autodeterminação do sujeito o princípio moral exclusivo sobre o qual devem repousar as práticas e as instituições políticas só pode desembocar na rejeição de todo o valor comum e provocar a desagregação do sentimento de pertença política. É em si mesmo um princípio contraditório que desemboca no niilismo: uma sociedade onde as finalidades da nossa acção só recebem valor duma escolha individual será uma sociedade onde a "vontade de poder" dominará as relações sociais e onde todo o sentido moral se reduz a uma auto-afirmação do sujeito.
Segundo os Comunitaristas, a liberdade do homem não lhe é naturalmente dada como crêem os liberais: ela é conquistada e desenvolvida. O homem só pode atingir a sua liberdade autenticamente através de certos modos de vida: virtuosos e não alienados.
O modo de vida autêntico varia de autor para autor, correspondendo a diferentes formas de cidadania. No caso de MacIntyre, há a defesa de uma interpretação comunitarista stricto sensu. Segundo este autor, a participação na vida da comunidade, a cidadania, passa pela adopção dos modos de vida tradicionalmente valorizados por ela - implica um Estado paternalista: uma comunidade política com o objectivo de assegurar a cada um, um livre desenvolvimento, promovendo os valores da tradição e encorajando os modos de vida que realizam esses valores. A valorização da tradição implica da parte do cidadão, uma certa obediência aos valores por ela veiculados e às suas instituições.
Uma outra interpretação possível é a de Taylor, com uma interpretação do "humanismo cívico" porque pede emprestado os temas clássicos do humanismo cívico (teve a sua maior expressão no pensamento político de Rousseau). A inscrição do indivíduo na vida da comunidade passa pela sua participação activa na vida política da cidade. Senão formos cidadãos não somos homens verdadeiros. Encontramos aqui uma valorização das virtudes republicanas clássicas e a participação política directa. A liberdade do homem é antes de tudo uma liberdade pública.
O humanismo cívico não é bem visto aos olhos dos liberais porque se baseia numa compreensão perfeccionista da política. Os Liberais defendem que, se as sociedades modernas são pluralistas - são partilhadas por diferentes concepções de "vida boa" - consequentemente, se uma comunidade política quer devotar um respeito igual a todos os seus membros, ela não pode favorecer uma concepção particular de "vida boa".
Este raciocínio conduz à defesa de um Estado neutro.A questão da Neutralidade de Estado pode seguir uma posição liberal clássica (como B.Ackerman), que não se preocupa com a questão do bem e coloca-se a favor dum Estado neutro, abstendo-se de qualquer intervenção nas concepções de bem desenvolvidas pelos indivíduos. Mas também pode originar a posição liberal moderna (como J.Rawls), que reconhece a importância, para uma sociedade justa e estável, de uma cultura pública partilhada, incluindo certas ideias de bem (por exemplo, o Estado pode encorajar a prática de certas virtudes cívicas).
Em suma, uma das discussões mais prementes na discussão ética da democracia é a da participação dos membros de cada comunidade na sua vida pública. A concepção liberal defende que «uma vez que os cidadão se vejam a si mesmos como pessoas livres e iguais, reconhecerão que para realizarem as suas diferentes convicções de bem necessitam dos mesmos bens primários - ou seja, os mesmos direitos básicos, liberdades e oportunidades - bem como dos mesmos meios destinados a todos os fins, como o rendimento, a riqueza e as mesmas bases sociais de auto-estima. (...) Segundo esta visão liberal, a cidadania é a capacidade de cada pessoa formar, rever e realizar racionalmente a sua definição de bem.» (10)  Em oposição a esta teoria surgem os comunitaristas, apelando a um ressurgir da concepção republicana cívica da política, onde a noção de bem comum está bem presente. Essa noção deverá ser anterior e independente das vontades e desejos individuais.
 
 

COMO CONCLUSÃO

A filosofia política e a sua ética têm uma tradição importantíssima no pensamento sobre a vida pública da Humanidade. As várias teorias filosóficas sobre a política, o Estado, formas de governo, formas de participação e cidadania, são construídas com base numa Ética política. É da distinção entre Público e Privado, Bem e Mal, Justo e Injusto que se constróem os quadros para uma teorização da vida política.
Aos filósofos políticos cabe a tarefa de desenhar esquemas conceptuais do poder e das instituições políticas, das relações entre o Estado e a sociedade, numa perspectiva normativa. Ao longo de todo o trabalho foi demonstrado como pode caber à filosofia comunitarista e à filosofia liberal tal tarefa, nomeadamente na discussão das dimensões éticas das sociedades democráticas modernas.
A articulação entre liberalismo e comunitarismo supõe variadas posições. Os mais liberais tendem a valorizar a liberdade e os direitos individuais, os mais democratas a igualdade e a participação. Estamos perante uma luta permanente dentro do regime de democracia. Enquanto o liberalismo puxa para a exacerbação das diferenças e da desencarnação, já o comunitarismo puxa para uma homogeneização e para poderosas formas de união.
Ora esta articulação e tensão pode ser vista como o principal capital simbólico da democracia. A discussão política foi, e será sempre, do meu ponto de vista, a melhor forma de perceber fenómenos reais, e de propor novas soluções para uma democracia, que por vezes, está tão longe de conceitos éticos.
 


 NOTAS
 
 

1- A ética antiga dizia respeito à questão acerca da verdadeira felicidade humana, promovida pela prática das virtudes. Por exemplo, para Aristóteles a melhor forma de vida - theoria - é a actividade racional que consiste na contemplação de verdades eternas (vida intelectual ou contemplativa); já para a Ética Cristã a virtude máxima é o amor pelo próximo. A ética aristotélica formula uma definição de virtude segundo uma ordem eterna do cosmos, e de acordo com o lugar que o homem ocupa nesse cosmos. Ainda que de modo diverso, o cristianismo pressupõe também a existência de uma ordem superior, de uma entidade transcendente - Deus - que constitui o princípio e a fonte das normas éticas.

2- André Berten, Pablo da Siveira e Hervé Pourtois, Libéraux et Communautariens, Presses Universitaires de France, 1197, p. 29-32.

3- Ibid., p. 35.

4- Alasdair MacIntyre, After Virtue - A Study in Moral Theory, Duckworth, London, 2ª edição, 1985.

5- O modelo metafísico de justificação da ética aristotélico funda-se no pressuposto de um universo estático e fixo onde as gerações humanas ocupam um lugar determinado.

6- Charles Taylor, The Ethics of Authenthicity, Harvard University Press. Este livro tem como referência ou fundamento um outro, do mesmo autor, mas mais vasto e datado de 1989 que se denomina "Sources of the Self", Cambridge University Press, London. Taylor remete-nos diversas vezes para ele ao longo da leitura do "The ethics of Authenticity", alegando falta de espaço e por certos assuntos já lá terem sido tratados de uma forma mais aprofundada.

7- Este raciocínio é elaborado sobretudo, no capítulo IV - "Horizontes Inescapáveis" - de "The Ethics of authenticity" de Charles Taylor.

8- André Berten, Pablo da Siveira e Hervé Pourtois, Libéraux et Communautariens, op.cit., pp. 244-248.

9- Ibid., p. 237.

10- Chantal Mouffe, O Regresso do Político, Gradiva, Lisboa, 1996, p. 84.