LINGUAGEM E MODERNIDADE

Comunicabilidade da experiência e convenções de representação nas sociedades mediatizadas

(Tese de Mestrado em Ciências da Comunicação)


Gil António Baptista Ferreira, Universidade da Beira Interior


Janeiro de 2000

(Introdução; Capítulo I; Capítulo III; Capítulo IV; Conclusão; Bibliografia)

Capítulo Segundo


ANÁLISE CRÍTICA DA LINGUAGEM E QUESTIONAMENTO DAS SUAS POSSIBILIDADES COMUNICATIVAS




As teses antes apresentadas fornecem uma compreensão das questões da linguagem que são directamente relevantes para o que se reconhece usualmente como a crise corrente da linguagem. Uma possibilidade para estabelecer este argumento é apresentar uma comparação entre as posições antes referidas e outras abordagens cuja orientação visava superar os problemas que tais concepções colocavam, sobretudo relacionados com a ambiguidade ou a imprecisão em que ‘caía’ a linguagem. Embora as teorias seguintes não sejam de forma alguma os únicos contendores na presente luta por uma cientificidade e depuração da linguagem, o seu questionamento revelará contudo se alguma posição forneceu à linguagem, de forma segura e operativa, as soluções para os seus problemas na actualidade.

A percepção dos problemas da linguagem, ampliada ao longo do século XIX, entrou neste século com uma importância considerável e crescente. A exigência de rigor no conhecimento do mundo vinha impondo a necessidade de compreender os mecanismos linguísticos, não só aos especialistas da linguagem mas também a lógicos, matemáticos e filósofos. Um movimento iniciado por Gottlob Frege e por Bertrand Russell foi acompanhado por Ludwig Wittgenstein e pelo chamado Círculo de Viena,1 com esforços notáveis no sentido de construir linguagens precisas e destituídas de ambiguidade.2



O ideal da linguagem lógica

A ambição de uma análise da linguagem foi levada a cabo pelo neopositivismo lógico ou neo-empirismo, expressões que designam a chamada doutrina do Círculo de Viena. Foi elaborado um programa com grande detalhe por este movimento, de que Rudolph Carnap foi um dos destacados representantes. Uma das suas teses principais defendia que «quando a filosofia é purificada de todos os elementos não científicos, apenas a lógica da ciência restará.» Se por lógica da ciência Carnap explicava referir-se à «sintaxe da linguagem da ciência»3, por linguagem da ciência afirmava ainda entender não o vocabulário técnico dos cientistas, mas antes a linguagem ‘universal’ nos termos em que todos os factos, sejam do senso comum ou do domínio científico, possam ser expressos.4 Embora as actividades propriamente ditas desta corrente tenham acabado em 1938, a sua influência não deixou de se fazer sentir através da filosofia analítica, de certo modo herdeira deste Círculo.

E é assim que a tarefa da filosofia se apresenta como de análise das formas linguísticas, através da investigação do seu significado autêntico, eliminando os equívocos a que conduz o uso impróprio. Deste modo, a filosofia analítica, resultante essencialmente da análise lógica da linguagem, propõe-se edificar uma sintaxe lógica aplicável a uma linguagem rigorosa, que permitisse descrever e apreender o mundo empírico.

Em acordo com as posições que antes abordámos, também a ideia fundamental da filosofia analítica é que o real não pode ser aprendido de outra forma que pela linguagem, donde vem que a análise da linguagem é a única via para a análise do pensamento. A questão pode ser colocada de outra forma: no dia a dia, vemos como a nossa linguagem tem a grande vantagem de raramente nos deixar sem palavras, tudo é descritível. Contudo, descrever o novo é, como demonstrámos antes, relacioná-lo de formas específicas com o previamente conhecido.

Apercebemos, também aqui, um preço a pagar: é que uma linguagem assim entendida não pode ser rígida. À primeira vista, haverá na linguagem um mecanismo que permite ao pensamento aplicar-se sempre ao mundo, independentemente da forma que este mundo possa assumir, fazendo-o ‘falar’, manifestando a essência linguística das coisas de que falava Benjamin. Com efeito, nas situações do quotidiano, pensamos as coisas e dizemo-las – mas, também em acordo com os neopositivistas, apenas de modo talvez verdadeiro. É que com uma dada linguagem temos um conjunto indefinidamente grande de veículos para expressar um pensamento, cada conjunto com um sentido definido pelas partes que o compõem, que o torna numa descrição específica de como as coisas são. Mas algo nos escapa se virmos isto como a totalidade da nossa capacidade de expressarmos pensamentos novos. Há alguma plasticidade, por parte das palavras, que torna a linguagem ‘imperfeita’. Pois é a partir da constatação de tal flexibilidade das palavras que nasce a aspiração de uma linguagem rigorosa, que permita exprimir sem ambiguidade o sujeito da realidade.5

A filosofia analítica começa então pela análise lógica da linguagem, principalmente pelo seu aspecto sintáctico ou gramatical. O objecto do estudo são as articulações lógicas entre os elementos da linguagem e as proposições constituídas por esses elementos. A ferramenta privilegiada destas pesquisas é formada pela lógica das proposições e pela lógica dos predicados, onde figuram os quantificadores, para a constituição de proposições complexas. A partir desta base são possíveis orientações diversas, mas as principais coordenadas destes trabalhos partiram das doutrinas lógico-matemáticas de Frege e Russell.

Acerca da linguagem, afirmava Frege como é espantoso ela conseguir expressar, recorrendo a algumas sílabas, séries de pensamentos insuspeitados. «Como encontra imediatamente com que vestir um pensamento que foi pela primeira vez concebido por um terrestre, de tal modo que outro possa conceber uma coisa que é totalmente nova.»6 Frege explica que isso é possível apenas porque conseguimos distinguir partes num pensamento, que correspondem às partes de uma frase, de forma a que a estrutura de uma frase possa ser vista como uma imagem (bild) do pensamento. Isto é, «admitimos que usamos de facto um símile quando realizamos a relação do todo e da parte com os pensamentos.»7 Um símile tão natural e tão adequado que eventuais defeitos devem ser encarados tão só como meras perturbações.

Frege, ainda em 1879 na sua Begriffschrift (escrita conceptual), elaborou o modelo de uma “língua conceptual” ou “ideografia”, destinada a exprimir os enunciados matemáticos nos termos de uma notação algorítmica rigorosamente disciplinada por regras de inferência, que deviam eliminar as lacunas no processo de raciocínio, até então colmatadas pelos matemáticos com o recurso à intuição.8

Três anos depois, Frege caracterizaria assim a linguagem do quotidiano ou linguagem natural: «Os defeitos – da linguagem natural – supracitados têm a sua origem numa certa maleabilidade e mutabilidade da linguagem, que, por outro lado, é condição da sua capacidade de desenvolvimento e da sua utilidade multifacetada.»9 Explica então esta ideia recorrendo à comparação da linguagem com a mão: apesar da sua aplicabilidade a diversas tarefas, a mão revela-se incapaz relativamente a outras. Ora, essa insuficiência é suprida pelo recurso a mãos artificiais, que atingem uma precisão que uma mão não poderia ter. Trata-se de ferramentas que criamos para fins especiais, e que devido a características como a inflexibilidade ou a rigidez das partes constituintes (características que a mão não tem), se tornam precisas. E tal como sucede com as mãos, «também a linguagem natural não é suficiente. Precisamos de um sistema de sinais do qual seja banida a ambiguidade, uma estrita forma lógica cujo conteúdo não possa escapar.»10

Para atingir esse objectivo de rigor no processo de raciocínio, Frege apontava um modelo de linguagem logicamente controlado, imune às distorções emocionais e intuitivas que afectam a linguagem vulgar. Na realização do seu projecto, retomou, entre outras, a ideia da língua ideal de Leibniz.11 Procurou então realizar tanto a dimensão sintáctica (ou calculística), relativa às operações sobre um certo sistema de signos ou caracteres simples e indefiníveis, como a dimensão semântica, que define o universo do discurso em relação ao qual se revelam interpretáveis as operações executadas. A dimensão de rigor e de certeza dos enunciados lógicos é assim estabelecida nas suas condições de analiticidade e na sua condição de pertença a um sistema formal, constituído por ideias e proposições primitivas, das quais resultavam dedutíveis os teoremas, mediante as respectivas regras de dedução. A sua função era excluir a intervenção perturbadora dos elementos intuitivos que preenchiam as lacunas entre os elos de uma cadeia dedutiva. Assim, Frege pôs em prática a condição de rigor dos enunciados lógicos e matemáticos, através do instrumento de uma língua artificial e logicamente controlada – a ideografia. Esta opõe-se à linguagem natural de significados emocionais intuitivos e deve revelar-se idónea para exprimir de forma límpida os princípios e as regras disciplinadoras dos processos dedutivos.

Independentemente de Frege, Bertrand Russell criou nos Principia Mathematica (1910-1913, publicados em colaboração com o lógico Whitehead) um sistema lógico-formal a que deveria ser reduzida toda a matemática pura, e que resulta da análise dos enunciados matemáticos segundo as formulas da lógica, e da decomposição dos métodos e dos processos de dedução utilizados em matemática em ideias indefiníveis e inalisáveis e em princípios ou proposições primitivas da lógica.

Salientou então as proposições elementares que, analisadas logicamente, se revelam claramente como proposições complexas. Mas o que ele procurava eram as proposições atómicas, os átomos lógicos indivisíveis logicamente, proposições e átomos em plena correspondência com os factos atómicos da realidade. Russell efectuou a partir daqui uma verdadeira análise dos mecanismos do pensamento tal como eles se revelam na linguagem – e terá sido esse o seu grande contributo para o presente estudo. Em suma, a teoria lógica de Russell agiu de modo bastante sugestivo no pensamento de então ao propor a interpretação filosófica com um funcionamento antimetafísico, aspirando à conciliação entre empirismo e racionalismo numa “filosofia científica”. A ciência concentraria em si um único mas vasto fragmento do mundo, que então poderia “explorar”, e é esta uma ideia que será determinante noutros momentos da análise lógica da linguagem.



A linguagem como refiguração do mundo

Foi inspirado principalmente por Bertrand Russell que surgiu o filósofo de origem austríaca Ludwig Wittgenstein. Com um percurso iniciado nas ciências aplicadas, desviou a sua investigação para a lógica a partir da leitura dos Principles of Mathematics e também das «grandiosas obras de Frege».12 O ambiente cultural que viveu em Cambridge caracterizava-se pelo empenho numa operação de análise conceptual: procuravam-se instrumentos de análise destinados ao esclarecimento dos aparelhos lógico-linguísticos operantes nas ciências naturais, na matemática, na lógica e nas doutrinas dos filósofos.

Também o meio intelectual era “irrequieto”, na sua abundância de filósofos, economistas, matemáticos, historiadores e lógicos, com nomes como o já referido Russell, Moore, Keynes, Strachey e, mais tarde, Ramsey e Sraffa, que pouco a pouco operaram o repúdio das ortodoxias dominantes nas diversas áreas do saber. A ideia dominante tendia a aplicar, através da revisão crítica da tradição, novos valores culturais vincados por traços de clareza e rigor intelectual, através da submissão a profunda revisão crítica das atitudes teóricas, das problemáticas e dos processos de argumentação tradicionais.13 A importância deste ambiente será adiante reflectida; atente-se contudo que Wittgenstein, como muitos outros filósofos do século XIX e mesmo XX, está ainda enredado nas preocupações epistemológicas que dominaram o pensamento Iluminista, de que os aspectos mais significativos serão posteriormente desenvolvidos. O seu primeiro trabalho de vulto, o Tratado Lógico-filosófico (1922),14 surge do cuidado de Wittgenstein em realçar a forte coesão das diferentes teses relativas à essência da linguagem, sendo considerado uma elucidação das condições necessárias a priori e das possibilidades da linguagem – em acordo com o ideal da metodologia kantiana.

Já desde 1913 que Wittgenstein atribuía ao trabalho filosófico as coordenadas de uma pesquisa essencialmente analítica, subtraindo assim à filosofia a pretensão de afirmar enunciados de alcance existencial, para além do poder de confirmar ou anular asserções científicas.15 É neste sentido que refuta componentes da teoria logicista de Frege e Russell, que implicavam asserções existenciais e recorriam a pressupostos ontológicos de qualquer espécie.

Deste modo, ao investigar a natureza dos enunciados lógicos e dos enunciados matemáticos, Wittgenstein elaborou no Tractatus uma doutrina destinada a atribuir um limite ao pensamento e à sua expressão, determinando a área do pensamento significante. Os enunciados do pensamento tradicional constituem (segundo a sua tese) um sistemático mau entendimento da lógica da linguagem, ao ultrapassarem o limite que ao pensamento e à expressão linguística é atribuído. Como vemos, trata-se em suma do questionamento que se tornaria recorrente nos debates ao longo do século: apresenta-se então esta obra como uma reflexão sobre as condições gerais que tornam possível que uma linguagem, seja ela qual for, sirva para falar de um mundo, seja ele qual for.

Em acordo com a perspectiva de Wittgenstein, a relação entre os factos do mundo e os da linguagem é expressa pela proposição segundo a qual a linguagem é a refiguração (ou imagem) lógica do mundo. Partindo de que «a imagem lógica dos factos é o pensamento», «o que a imagem representa é o seu sentido». Uma linguagem assim considerada é a linguagem idealmente perfeita – uma linguagem que, independentemente da sua estrutura gramatical, respeita em si a estrutura essencial da realidade. Ora, Wittgenstein avança com o “sinal proposicional”, o «sinal através do qual exprimimos o pensamento», sendo a proposição a possibilidade de exprimir o sentido. Atente-se no sinal proposicional: é constituído por elementos (as palavras), que nele se relacionam de determinado modo; mas acima de tudo, «o sinal proposicional é um facto». Por outras palavras: a configuração do signo simples (nome) no signo proposicional corresponde à configuração do objecto numa situação real.


Signo, sentido e mundo

Mas a linguagem corrente não permite que dela se extraia imediatamente a lógica da linguagem: «a linguagem mascara o pensamento», ou seja, «da forma exterior da roupa (leia-se proposições) não se pode deduzir a forma do pensamento mascarado.» A razão de tal desacordo é a forma exterior da referida roupa haver sido concebida não para deixar entrever a forma do corpo, mas antes com fins totalmente diferentes, nomeadamente os relacionados com acordos tácitos de compreensão.

Wittgenstein iniciara o Tractatus justamente afirmando como o mundo é determinado pelos factos (ou estados de coisas), elementos em que é possível decompô-lo. Ora, o sinal proposicional empregue e pensado é o pensamento, que é a proposição com sentido. E a totalidade das proposições, considera Wittgenstein, é a linguagem. Com as linguagens, o homem pode expressar qualquer sentido sem ter qualquer noção do que significa cada palavra: não há uma imagem verdadeira a priori, as palavras antes de constituídas num sinal proposicional são, tão só, projecções de situações possíveis. Com o sinal proposicional é projectada no mundo uma proposição, uma possibilidade de exprimir de modo perceptível pelos sentidos.16

A fundamentação deste apriorismo linguístico que apresenta um modelo linguístico previamente dado ao pensamento levantará depois, entre outros, o questionamento de como é possível a fundamentação de tal linguagem científica. Um substantivo específico é quase sempre ligado aos mesmos adjectivos (mesmo que implícitos), aos mesmos atributos ‘explicativos’ antes que qualquer contradição ou antagonismo lhe possa ser proposto. Como uma sentença, o predicado fixar-se-ia na mente do receptor, que assim reage de um modo específico, fixado, à concreção esmagadora e petrificada de que adiante falará Herbert Marcuse.

Convém notar que a proposição não pode ser considerada uma mera mistura de palavras: ela é articulada, e é essa articulação que define a sua ligação com o pensamento de estados de coisas (pensáveis, e logo possíveis). Tal como refere noutro momento Wittgenstein, a proposição é a descrição de um estado de coisas, que sendo verdadeira (é fixada em sim ou não) mostra como as coisas se passam, qual o seu sentido. E, assim, é a relação projectiva da proposição com o mundo (com o sinal proposicional) que, ao ser um facto, pode exprimir um sentido.17 Neste momento, Wittgenstein acentua a distinção entre as possibilidades do sentido e as do nome em torno de uma convicção essencial: um conjunto de nomes não pode exprimir um sentido. Ou, dito de outro modo, se uma situação pode ser descrita (pelo sentido), não pode contudo ter um nome. Aos nomes, sinais simples e primitivos que não podem ser decompostos, é atribuída a função de denotar objectos – nomeamos objectos, que depois mandatamos na proposição, permitindo falar deles, dizer como eles são. Assim, «uma situação pode ser descrita, mas não pode ter um nome».18 Tão exemplar como formalmente contraditória é a analogia fornecida pelo próprio Wittgenstein: os nomes são como pontos, distinguindo-se das proposições que se assemelham a setas – e são estas que têm sentido.19

Recorde-se, contudo, que a proposição é ‘a descrição de um estado de coisas’: mas uma descrição especial, no entanto. Porque construída com a ajuda de um ‘andaime lógico’, a proposição descreve a realidade segundo as suas propriedades internas, comunica um sentido analisável e compreensível se compreendermos as suas partes constituintes.20 Um sentido que é sempre classificável, com as qualidades de verdade ou de falsidade, dependentes da «concordância ou não-concordância do seu sentido com a realidade.»21

Concluindo, importa destacar como tal tese pressupõe uma identificação do pensamento com a linguagem; recorde-se que não é pensável nem exprimível o que não for um facto do mundo, ideia bem expressa na famosa última notação do Tractatus: «Acerca daquilo de que se não pode falar, tem que se fica em silêncio»,22 ideia que encerra uma crítica do filósofo a questões (filosóficas, muitas delas), sem resposta porque sem sentido.23

Mas, convém notar que estas pesquisas só indirectamente dizem respeito à linguagem vulgar. Não lhe dizem respeito directamente porque Wittgenstein, neste momento do seu pensamento (como todos os neopositivistas do Círculo de Viena) toma como evidente que as imprecisões e ambiguidades das línguas naturais as tornam incapazes de dizer o real de modo rigoroso; e assim, num estudo sobre as condições do dizer, elas podem, portanto, ser postas de parte. No entanto, as línguas artificiais não são totalmente estranhas à linguagem vulgar: ou são transformações desta ou, de qualquer maneira, são construções feitas a partir dela e por ela definíveis. E, desta forma, reflectir sobre as condições que permitem às línguas lógicas dizer o mundo é, indirectamente, reflectir sobre a linguagem vulgar.

A elucidação das condições a priori da possibilidade de toda a linguagem é assim o projecto de base do Tractatus, de onde se podem extrair ainda, em acordo com Gilbert Hottois, três outros objectivos complementares: descrever a linguagem vulgar, elaborar um sistema lógico e, a partir daqui, passar à construção de uma linguagem ideal e perfeita.24 Todas as teses desta obra são condicionadas por uma posição ontológica fundamental desta fase do autor: o mundo é constituído por factos, e os factos manifestam-se nesses outros factos que são as proposições significantes. Assim, os limites da linguagem são os limites do mundo, e os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo, de tudo o que compreendo, penso e exprimo. O conceito não tem qualquer conteúdo que não o designado pela palavra para o facto objectivo; o nome da coisa designa essa coisa, ‘fechando’ o significado dessa coisa e excluindo outras maneiras de funcionamento desse nome.25

Note-se que Wittgenstein vem vincando de forma notória um aspecto de particular importância, aqui e ali já referido: a questão dos limites da linguagem. É esta uma ideia intimamente ligada à doutrina do pensável, uma das mais importantes teses de Wittgenstein. A este propósito, escrevera já no prefácio do Tractatus como o objectivo dessa obra era desenhar a linha de fronteira do pensamento – ou antes, apenas daquilo que do pensamento podemos expressar. E, observa então, a tal «linha da fronteira só poderá ser desenhada na linguagem.»26 É neste sentido que afirmará adiante que toda a filosofia «é crítica da linguagem»;27 em torno desta ideia giram, de certo modo, a teses principais desta fase do autor.

Em suma, a linguagem, devido à sua factualidade, é essencialmente contingente; para a tornar possível é necessária uma “substância” ou “forma do mundo” da qual a essência da linguagem é isomórfica. «Não há uma imagem verdadeira a priori» antes da comparação com a realidade, afirmava Wittgenstein.28 É evidente o desejo de uma “notação” ideal única por detrás da diversidade grosseira e aparente das linguagens e simbologismos lógicos, como postulado de um método único de projecção, concedendo assim à linguagem e à lógica um carácter essencialmente unitário. Voltando à tese principal do Tractatus: uma língua só diz os factos do mundo se a sua forma lógica for a forma do mundo. É este o limite da linguagem; para lá dele está o não sentido, está o não pensável. Por outras palavras, a questão que aqui se coloca é a da operacionalidade da linguagem, que se estabelece sempre que as palavras e os conceitos tendem a coincidir.

No limite, é também à percepção de Herbert Marcuse que recorremos: se as palavras e os conceitos coincidem, neste universo científico e tecnológico (que determina, contudo, a expressão política e social) o «conceito tende a ser absorvido pela palavra», e é considerado como «aquele que não tem qualquer outro conteúdo que não o designado pela palavra no uso anunciado e padronizado.»29 E aqui a pertinência da hermenêutica de Ricoeur, que considera «absurdidade» a tentativa de interpretar literalmente a enunciação. Diz-nos: «O anjo não é azul, se azul é uma cor; a tristeza não é um manto, se o manto é um trajo feito de tecido.»30 Assim, (e de novo), a palavra tornar-se-ia o cliché, funcional, objectivo e eficaz, mas que evitaria também o desenvolvimento genuíno do significado; produzindo pensamento e acção positivos, embora excluindo noções transcendentes, críticas e de tensão. Noções estas que geram o conflito entre duas interpretações que sustenta a metáfora. E aqui, na interpretação metafórica, uma interpretação literal autodestrói-se numa contradição significante. Então, a verdadeira metáfora, a metáfora viva, transporta consigo o inesperado, o diferente, dela brotando a inovação semântica.31

Mas o problema que então se levantara era se as línguas artificiais conseguiriam realizar o objectivo visado e considerado falhado pelas línguas naturais. Observar-se-á de seguida que esta essência unitária – traduzida pela notação no método da projecção – não se manifesta de todo. Como veremos, e como uma percepção kafkiana bem intuíra (cujo maior alcance, todavia, apenas adiante aclararemos), aquele que perseguir tal intenção «corre atrás dos factos tal um principiante de patinagem que, ainda por cima, se treinasse num lugar onde é proibido fazê-lo.»32 É neste sentido que também Musil verifica «que esta ordem não é tão estável como parece; nenhum objecto, nenhuma pessoa, nenhum princípio é sólido, tudo está dependente de uma metamorfose invisível, mas nunca interrompida»;33 sente-se, assim, que só nos restará o papel do reconhecimento da irredutível diversidade e heterogeneidade de projecções e notações.


Jogos de linguagem e interacção

Em 1945 Wittgenstein terminou a primeira parte das Investigações Filosóficas,34 onde abandonou o tema central do Tractatus - a definição das condições e requisitos de uma linguagem logicamente perfeita e universal, de um simbolismo ideal. Na sua autobiografia, Carnap recorda como Wittgenstein, «sobretudo por influência de Frege, estava efectivamente convencido quer da superioridade das línguas artificiais, constituídas com rigorosos procedimentos simbólicos, quer da sua utilidade, se não indispensabilidade, para a análise dos enunciados e dos conceitos filosóficos e científicos.» 35 Contudo, num segundo tempo, Wittgenstein desmentiria expressamente essa tese.

A ideia segundo a qual podemos ‘falar’ certezas várias a priori sobre a relação entre a ordem do mundo e a ordem da linguagem ou, por outras palavras, a ideia de que podemos coordenar linguagem e mundo de um modo logicamente unívoco sem fazer uso da linguagem logicamente equívoca como interpretação do mundo, revelou-se impossível. No prefácio das Investigações, Wittgenstein refere-se a «erros graves», que se via obrigado a reconhecer na sua primeira obra. É com a intenção de dar relevo às suas novas ideias que propõe a publicação conjunta da velha com a nova maneira de pensar: «esta só poderia ser verdadeiramente iluminada pelo contraste e contra o campo de fundo daquela.»36 Parece consensual – apesar de não unânime – que as duas obras principais de Wittgenstein representam à primeira vista dois estilos filosóficos tão diferentes quanto é possível.37 O próprio «autor do Tractatus Logico-Philosophicus» é referido no célebre e decisivo parágrafo 23 das Investigações como uma vítima típica das ilusões de que o (novo) Wittgenstein nos tentará agora libertar.38 Não é decerto fácil determinar o que o pensador austríaco tinha em mente quando afirmou a um contemporâneo, no estilo enigmático que lhe era peculiar, como o Tractatus constituía aos seus olhos a exposição perfeita de uma concepção não somente oposta às das Investigações, mas que devia ser considerada igualmente, num certo sentido, como a única que lhe podia ser oposta.39

Tentaremos aqui, antes de mais, explicitar uma noção reconhecida como capital: os jogos de linguagem,40 espécie de fio de Ariana que nos guiará em torno do sentido geral das teses relativas à linguagem. A citação inicial das Investigações, retirada das Confissões de Santo Agostinho, é o ponto de partida para a exposição do modelo que Wittgenstein pretende apresentar, e mais não é que ilustrativa do seu próprio paradigma no Tractatus. Na concepção agostiniana, a função principal da linguagem consiste em conceber todas as palavras como aprendidas e funcionando à maneira de nomes (a linguagem como nomenclatura), ou seja, como possuidoras de uma significação (sob a forma de algum objecto – real, mental ou ideal, pouco importa; um ‘significado’, em suma) que lhe é correlativa. A conexão entre uma palavra (nome) e a sua significação é levada a cabo por um acto de ‘ostentação’ ou ‘mostração’ ou ainda de demonstração. Ao construir a teoria dos ‘jogos de linguagem’ simples (como o do comerciante ou do pedreiro) e considerando nela palavras com modalidades de uso e de apreensão manifestamente diversas, Wittgenstein mostrou como o modelo agostiniano não é aplicável ao conjunto das palavras da nossa linguagem. De facto, como sugere nas Investigações, não só não utilizamos da mesma forma «utensílios» diferentes como ‘laje’, ‘cimo’ ou ‘este’, mas também o efectivar da sua significação não pode ser conhecido através do modelo da «denominação ostensiva».41 A diversidade dos ‘jogos de linguagem’ não pode, de forma alguma, ser uniformizada por uma fórmula universalmente aplicável, de modo a resultar em algo como «esta palavra designa isto» ou «cada palavra da linguagem designa algo».42 Esta fórmula deriva do modelo de «apreensão ostensiva» dos nomes das coisas, abusivamente considerado como fundamental (ao fazer aceder as crianças à linguagem) e universal (aplicável a todas as espécies de palavras), e que teria o efeito de uniformizar o campo semântico, e logo o pensamento.


A noção de jogo de linguagem surge associada por Wittgenstein à prática e ao uso que se faz da linguagem; usamos as palavras à semelhança de um daqueles jogos por meio dos quais as crianças aprendem a sua língua natal. Porém, uma criança que pela primeira vez aprende a linguagem não pode ainda entender as explicações indicativas, uma vez que não dispõe de nenhuma articulação estrutural do mundo que lhe diga a que se alude em cada caso, nem conhece a função que a palavra tem na linguagem. «É preciso já saber (ou dominar) um mínimo para poder perguntar pelo nome de uma coisa.»43 A concepção agostiniana prevê a criança como podendo já pensar, mas não ainda falar: e aqui a inversão profunda que Wittgenstein então propõe.

Ora, verificamos aqui também o acordo com a posterior proposta de Ricoeur de uma semântica de profundidade. Vimos antes, com a tese hermenêutica, como era a um mundo possível e a um modo possível de alguém nele se orientar que a semântica se dirigia, um mundo com dimensões abertas e descortináveis pela interpretação. Numa clara alusão à concepção agostiniana diz-nos Ricoeur: «Vai [o discurso] além da mera função de apontar e mostrar o que já existe, e neste sentido, transcende a função de referência ostensiva, ligada à linguagem falada. Aqui, mostrar é ao mesmo tempo criar um novo modo de ser.»44

A definição de jogo de linguagem agora dada por Wittgenstein é clara: chamamos jogo de linguagem «ao todo formado pela linguagem com as actividades com as quais ela está entrançada»;45 e assim, as palavras designam qualquer coisa dependente do modo como são usadas. Como as ferramentas que compõem uma caixa de ferramentas, cada uma com a sua função distinta, também as palavras se encontram arrumadas, com as respectivas funções a que correspondem. Wittgenstein, neste momento, tende a reduzir “ter o mesmo sentido” a “efectuar a mesma coisa”, sugerindo que tradução e sinonímia reenviam a uma família de usos: «Num grande número de casos, se bem que nem em todos, em que utilizamos a palavra ‘significado’, ela pode ser assim definida: o significado de uma palavra é o uso que ela tem na linguagem.»46 A linguagem surgia, de novo, como uma actividade não sujeita a regras rígidas, mas a regras com uma inexaurível margem de indeterminação e sujeita ainda a novas e ulteriores regras e restrições que o uso requerer.

E aqui surge, também, um ponto que julgamos de importância capital, quer na oposição ao anterior paradigma wittgensteiniano, quer no desenvolvimento da presente posição: uma regra não constitui uma prescrição executiva e não tem um fundamento lógico para a escolha das modalidades da linguagem, mas apenas a circunstância factual que os homens produzem. Quer isto dizer que as regras são inferidas pelo ‘jogador’, durante a observação do decurso do jogo, pela maneira como ele é jogado e pelo comportamento dos jogadores. «Aprende-se o jogo vendo como é que os outros o jogam».47 Trata-se, sem dúvida, de uma asserção que significa, de novo, a reafirmação do carácter social da linguagem e da comunicação, fazendo justiça às intuições aqui apresentadas, desde o interaccionismo simbólico de Mead. Segundo esta ideia, toda a compreensão do sentido supõe a respectiva participação no jogo linguístico, em cujo contexto se liberta, a priori, a estrutura de sentido de uma situação. Quer isto dizer que, também em acordo com a doutrina de Wittgenstein, a compreensão do sentido é substituível pela descrição externa da conduta. Por último, toda a conduta humana apenas resulta acessível dentro dos limites de um jogo linguístico, ou seja, enquanto conduta compreensível e com sentido.48

Mas também o uso não é uma regra normativa que possa ser imposta à linguagem: ele surge da própria linguagem, é o que há de habitual no seu decurso, e é aí, na própria realidade da linguagem, que o seu ideal deve ser procurado. Já «não procuramos a ordem ideal, tal como se as nossas frases habituais não tivessem ainda um sentido acabado e como se tivéssemos de construir uma ordem perfeita», de rigor exacto. É outra agora a forma de estabelecer a ordem: «onde existe sentido, existe ordem.»49 Wittgenstein defende, assim, como mesmo na mais vaga das proposições deve existir uma ordem perfeita, desde que haja sentido.

Do mesmo modo, qualquer definição, ostensiva ou verbal, não pode funcionar (ser compreendida) se não conhecermos antes o papel (uso, função) fundamental da sua expressão.50 Uma expressão pode muito bem esclarecer-nos sobre o significado de ‘mesa’, quando nos referimos a esse objecto concreto (quando sabemos que não utilizamos essa palavra como nome de outra coisa ou para exprimir alguma sensação). Mas a definição não pode traduzir adequadamente a diferença entre categorias de palavras, porque - e aqui reside o perigo da fórmula da definição - elas funcionam sempre segundo o modelo da denominação; isto é, tratam indiferentemente todas as palavras como nomes.

É por isso que Wittgenstein diz que inicialmente nós temos «aprendizagens ostensivas» e não «definições ostensivas».51 Também por isso, o acto de «ostentação efectiva» (gesto) ou verbal (cada palavra reenviar a cada significação) não pode ser entendido se não nos soubermos já servir dos diferentes tipos de utensílios que a linguagem compreende. Quando dizemos são sete, somos compreendidos se o outro souber que nos servimos de nomes de números de modo diferente de nomes de objectos. E a situação ainda mais se complica se eu enunciar «isto é um sonho». Em suma: «o sentido de uma palavra é aquilo que a explicação do sentido explica».52 Contudo, esta explicação do sentido necessita de ser procurada, como veremos.

No entanto, não se trata aqui apenas de uma mera concepção instrumentalista da linguagem; também Wittgenstein a defende para além dessa concepção com o institucionalismo da acção. A obediência a uma regra, a acções como um relato, a uma ordem dada ou recebida e assim por diante, não é algo feito por um único homem e apenas uma vez na vida. A “obediência” é antes em relação a costumes, a usos e instituições. E, por isso, a filosofia – enquanto análise da linguagem – não pode ter como tarefa rectificar a linguagem ou desenvolvê-la, procurando uma forma mais completa ou perfeita. A filosofia «não pode de forma alguma intervir no uso efectivo da linguagem», «não pode fundar a linguagem»,53 antigo sonho neopositivista. Pode, tão só, descrever a linguagem, deixando depois tudo como encontrou. Não explica nem deduz coisa alguma: limita-se a pôr as coisas à nossa frente. Pode ainda comparar vários ‘jogos linguísticos’ entre si e até mesmo estabelecer entre eles uma ordem, visando uma tarefa particular – mas será então uma ordem entre as muitas possíveis;54 assume-se sem dúvida aqui a defesa da multiplicidade de linguagens.


Variabilidade, linguagens e vivências

Ao longo das Investigações, a linguagem surge como um instrumento para resolver situações existenciais. Trata-se de uma imagem que nos remete para o §11 das Investigações – temos uma caixa de ferramentas possuidoras de uma aparente identidade quanto à forma (veremos adiante a importância de tais semelhanças), mas possuindo funções diferentes, e passíveis de uso nas situações mais diversas. A forma como agrupamos palavras e conceitos (como construímos ‘jogos de linguagem’) é aí explicitada: depende da finalidade da classificação e da nossa inclinação. É evidente o afastamento em relação às intenções iniciais de Wittgenstein, dirigidas à análise completa das proposições, onde, no fim, encontraríamos elementos estáveis, imutáveis. Teses que supunham na linguagem uma sistematização e implicavam a existência de um sentido analítico único e determinado, para cada palavra ou proposição. Em suma, um mito analítico que supunha a possibilidade de traduzir os diversos ‘jogos de linguagem’ num discurso lógico único, que diria o sentido do essencial.

Ora, a exigência de regras rígidas é explicitamente oposta à constatação da infinita variedade da linguagem.55 Wittgenstein ataca assim o postulado da análise única e absoluta, e introduz na relação mundo-linguagem o carácter não necessário que reconhecera nos factos do mundo. E, se tal relação não é necessária, pode então assumir formas diferentes; são possíveis diversas formas de linguagem, correspondentes às diversas formas que a relação pode assumir. O esquema teórico tradicional, assumido no Tractatus, é agora apenas uma das infinitas formas de linguagem. Infinitas porque se trata de uma multiplicidade que não pode ser assumida de uma vez por todas: novos jogos linguísticos e formas de linguagem nascem continuamente, isto enquanto outros caiem em desuso ou são esquecidos.56 As palavras oscilam entre várias possibilidades (‘aparentadas’, como veremos) até se fixarem, em cada altura, no significado que mais lhes convém. Todavia, pode na locução imediata uma palavra saltar para outro significado sem isso implicar qualquer aplicação incorrecta da linguagem. É célebre a passagem Bíblica em que Jesus Cristo, dando conta desta característica da linguagem – embora não conste que fosse especialmente letrado – brincou com os significados da mesma palavra, quando um dia decidiu informar o apóstolo São Pedro do seguinte: «tu és pedra (Pedro), e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja.»57 Além disso, estudiosos há que consideram haver mais de três mil trocadilhos ou jogos de palavras só nas peças de Shakespeare, verdadeiro malabarista da língua inglesa, que dera bem conta do carácter ambíguo das palavras (e também das acções e dos acontecimentos) e nele centrou alguns dos mais notáveis momentos de criação artística.

Sublinhe-se, no entanto, o carácter público da observância de regras, deduzido exactamente da subordinação dos “jogos de linguagem” (como actividade) a essas mesmas regras. «Por isso, seguir uma regra é uma praxis. (...) e por isso não se pode seguir a regra ‘privatim’».58

Ora, esta explanação de Wittgenstein sobre o que é seguir uma regra é dada, como é óbvio, com a preocupação de elucidar a natureza da linguagem; não deixa, contudo, de mais uma vez lançar luzes sobre a dimensão simbólica do comportamento humano, aplicando a este domínio a noção de regra. É neste sentido que, na esteira de Wittgenstein (e de Max Weber, neste aspecto), Peter Winch define a natureza do comportamento significativo: o que se intenta subjectivamente, segundo uma configuração significativa de circunstâncias (‘motivo’) que para o agente ou observador surge como uma razão significativa do dito comportamento.59

Dissolvendo o enquadramento teórico-linguístico do Tractatus, Wittgenstein fornece agora uma pesquisa gramatical dos usos da linguagem, opondo à anterior pretensão universalista um modelo gramatical de linguagem das experiências individuais. Torna-se agora de novo plausível a tradição que, unindo pensamentos marcantes mas distintos, se formula no espírito da consideração kafkiana: «Estás ridiculamente ajaezado por este mundo.»60 A expressão ‘jogos linguísticos’ é, assim, utilizada para sublinhar a linguagem como actividade ou forma de vida:61 com eles damos ou obedecemos a ordens, descrevemos um objecto e construímo-lo a partir de uma descrição, relatamos acontecimentos ou especulamos sobre eles, traduzimos de uma língua para a outra – as possibilidades de relação no mundo são múltiplas.62

A heterogeneidade dos jogos linguísticos é de tal ordem que não podem ser reduzidos a um qualquer conceito comum, que os classifique isoladamente, fora «deste mundo». Sobre a procura de um elemento constante, determinado e fixo que resista a tal heterogeneidade, Wittgenstein lança o desafio: «Olha, para ver se têm alguma coisa em comum». Contudo, acrescenta ainda: «não penses, olha».63 O que nos impede de ver os detalhes e as diferenças – isto é, de ver, simplesmente – é a nossa aspiração ao geral e aversão ao caso particular. E então, recorrendo aqui à admirável imagem expressa por Kafka: «Com a vista mais poderosa, podemos dissolver o mundo. Diante dos olhos fracos solidifica-se, diante dos olhos mais fracos mostra o punho, diante dos olhos mais fracos ainda não tem vergonha, espanca aquele que ousa contemplá-lo.»64

Ora, o conceito de ‘jogo de linguagem’ implica, como vimos, uma atenção ao particular, ao contextual (atenção que «é a oração natural da alma», dizia Benjamin no ensaio sobre Kafka); opõe-se aos postulados universalistas que esquecem a inelimitável singularidade do indestrutível sujeito linguístico. Segundo nos dizia ainda Kafka numa bem densa reflexão: «O indestrutível é um; cada indivíduo o é ao mesmo tempo que é comum a todos.»65

Diz-nos Wittgenstein: «Verás parecenças, parentescos, e em grande quantidade.»66 Desta forma, tal como distinguimos semelhanças entre os membros de uma família, parecenças físicas, psíquicas ou outras, que se sobrepõem e se cruzam da mesma maneira, também os conceitos têm fronteiras de uso delimitadas. Parecenças de conjunto e de pormenor. E assim o recurso aos exemplos e às metáforas, uma constante na Investigações: cerca de noventa por cento do seu conteúdo são descrições, exemplos e metáforas;67 traçando as indeléveis fronteiras na tensão entre individualismo e sociabilidade. A linguagem é compreendida, aqui, plena de mediações que são as etapas do processo de cognição e de avaliação cognitiva; subsiste ainda a tensão entre aparência e realidade, entre substância e atributo, que lhe confere autenticidade.68

A propósito da construção dos ‘jogos de linguagem’, e considerando as ‘relações de parentesco’ na sua elaboração, toda a descrição é algo que assenta no privilegiar de metáforas sem razão suficiente para a sua escolha, sendo que é no privilegiar de certas metáforas que se joga grande parte dos antagonismos entre os homens.69 Poderia, ainda assim, ser possível traçar diversos conceitos precisos que denotassem, cada um, tal ou tais aspectos, tais semelhanças e diferenças, de um tecido conceptual de base. Para uma qualquer finalidade, poderemos traçar fronteiras: mas não será certamente essa delimitação a marcar a possibilidade de uso desse conceito delimitado. A verdadeira questão é que o traçado que eu operar não coincidirá necessariamente com o que outro traçar. Sobre tal linha de fronteira, «eu não a poderia reconhecer como aquela que eu sempre quis traçar, ou que tinha traçado em mente»,70 observa Wittgenstein.

O conceito que cada um traçar não será o mesmo que outro delimitar: antes lhe é aparentado. Wittgenstein lembra que Frege comparava um conceito com uma área, e que depois observava que uma área com fronteiras vagas não é uma área. A questão que assim se coloca é a de saber se um conceito com limites indeterminados ainda é um conceito.71 Mas se, como vimos antes, o significado de uma expressão consiste no seu uso, e os conceitos coincidem com o significado das expressões (sentido),72 então os conceitos relativos ao domínio empírico são sempre conceitos abertos – e mesmo os que, em determinado momento surjam fixos podem, subitamente, oscilar e tornarem-se vagos.


A grande ausência

Face ao referido na secção anterior, a linguagem é, afinal, um «sabê-lo e não ser capaz de o dizer», um «saber de algum modo equivalente a uma definição sem palavras, de tal modo que ao ser posto em palavras eu o posso reconhecer como expressão do meu saber.»73

É este um aspecto central deste trabalho e, em certa medida, recorrente, nas questões que temos vindo a desenvolver. É uma questão necessária sobretudo para mostrar toda a distância que existe entre reagir simplesmente de forma regular a um estímulo verbal (e aqui tendemos para a instrumentalidade pura da linguagem, para a marcuseana linguagem administrada) e o facto de utilizar um signo propriamente dito, como um nome, para introduzir um elemento ausente do contexto. Trata-se, em suma, de uma questão que nos remete para uma outra, que é como aprendemos a designar e nomear não objectos exteriores, mas antes sensações, impressões, estados ou processos mentais – objectos de sentido interno.

É esta uma questão que atormentou, de forma significativa, a consciência moderna que postulou a ‘crise da linguagem’, visível entre outros desde Celan a Benjamin, a Kraus ou a Kafka (os mais citados). Ainda em Agosto de 1913 escrevia o escritor de Praga no seu Diário: «Quantas falsas verdades de que tinha perdido toda a noção sobem como o resto à superfície! Se a união real fosse tão permeável como a real separação, teria certamente feito bem. Dentro de mim próprio não há, sem relações humanas, mentiras visíveis.»74 E é este o problema que Wittgenstein coloca num dos desenvolvimentos mais célebres mas também mais controversos das Investigações, e que, pela sua importância para este trabalho, merecerá alguma atenção: a sua tese da “linguagem privada”.

Por “linguagem privada” Wittgenstein entende uma linguagem que não só não é visível em factos, mas ainda que não pode ser compreendida por outro que não o seu utilizador. «Poder-se-ia falar de uma compreensão subjectiva. E poder-se-ia chamar ‘linguagem privada’ a sons que eu ‘pareço compreender’, mas que ninguém mais compreende.»75 A principal razão dessa impossibilidade é que só esse utilizador está em condições de saber o que está em questão quando usa a linguagem – às sensações imediatas e privadas apenas o indivíduo pode aceder –, uma impossibilidade que toca no vértice do que tem sido um dos temas principais deste trabalho, a comunicabilidade da experiência. É assim que nos aproximamos ainda um pouco de Benjamin e de Gadamer, e nos afastamos da ideologia que prescreve a linguagem instrumental, insólita acompanhante.

A título unicamente ilustrativo, recordamos como é frequente a constatação da impossibilidade de expressar vivências internas por parte de poetas e artistas. Neste sentido, lembramos o jovem Werther, a clássica personagem de Goethe, que, nas suas epístolas a propósito de um estado de alma causado pelo ambiente bucólico que experienciava, tendo como interlocutor o crepúsculo, escrevia: «ah!, pudesses tu dar expressão a isto, pudesses tu insuflar no papel a vida ardente e plena que existe em ti, para que ele se tornasse o espelho da tua alma, tal como a tua alma é o espelho do Deus infinito! Mas a verdade, amigo, é que fico aniquilado ao fazê-lo, acabando por sucumbir ao poder do esplendor destas vivências.»76 É apenas um exemplo entre os múltiplos possíveis; a consciência europeia do nosso século está amplamente documentada com referências à inanidade da linguagem.77

Mas a questão é que «uma outra pessoa não pode compreender esta linguagem».78 Disséramos antes que há jogos que se jogam sozinho,79 e assim, deste modo, inicia Wittgenstein o que alguns consideram ser a sua exposição de tentativas de refutação de uma linguagem privada. A tese de Wittgenstein sobre a linguagem privada é elucidada sobretudo na secção 293. Dando conta da impossibilidade prática de extrair palavras de todos os factos, retractados em palavras pelas regras, mesmo assim há uma suposição que é criada. Usamos uma imagem; uma imagem, repita-se, que permitirá a formulação de hipóteses acerca do objecto ou da sensação, e da sua relação com a pessoa. «A imagem mental da dor entra no jogo de linguagem; apenas não entra como imagem.»80 A sua tese é, simplesmente, não que um objecto privado é suprimido da nossa linguagem, mas que a sua ‘imagem’ deve desempenhar outros papéis nos nossos jogos de linguagem, para além de tão só representar um objecto privado. É visível, nesta ideia, a influência do “estruturalismo lógico”, concepção filosófica tradicional que defendia como «as sensações são intransmissíveis, ou antes, tudo o que nelas é qualidade pura é intransmissível e jamais impenetrável.»81 Por outras palavras, «uma imagem mental não é uma imagem, mas uma imagem pode corresponder-lhe.»82

Ao contestar a possibilidade de uma linguagem privada, Wittgenstein não terá querido dizer que as descrições de sensações ou de experiências privadas não teriam sentido se não fossem publicamente verificáveis ou confirmáveis (pelo menos em princípio), mas simplesmente que a linguagem em que falamos de coisas desse género não tem sentido senão como parte de uma linguagem pública mais vasta, com outros jogos de linguagem sobre outras coisas diversas. Um dos principais exemplos que Wittgenstein fornece de como as palavras se referem às sensações, e como é que essa conexão é estabelecida, encontra-se na secção 244 das Investigações, com a imagem da palavra “dor”: «Eis uma possibilidade: estabelecer uma conexão entre a palavra e a expressão primitiva, natural, da sensação, e substituir a expressão natural pela palavra. Uma criança fere-se e grita; os adultos falam com ela , ensinam-lhe a fazer exclamações e, mais tarde, a dizer frases. Ensinam à criança um novo comportamento de dor.» Parece-nos ser este um bom exemplo de um tipo de esquema público que permite que diferentes pessoas comparem as respectivas sensações. Segundo este modelo, uma sensação é um caso de dor quando é do tipo que condiz, pelas suas características, com o que é normalmente considerado e ao qual se reage, como no exemplo referido. A tese de Wittgenstein é pois, como vemos, que o “condizer” é conceptual (gramatical) e não factual.

Por outras palavras, aquilo a que chamamos «dar um nome à dor», significa na realidade a substituição das expressões naturais inarticuladas da sensação pelas expressões artificiais articuladas e elaboradas. Parece porém, em acordo com o que de Wittgenstein foi já dito, absurdo pretender que exista entre a expressão da dor e a própria dor uma descrição da dor. Pergunta ele: «Então como é que eu posso querer ainda entrar com a linguagem entre a dor e a sua exteriorização ?»83


Olhando de lado a própria sensação

Um corolário notável das observações antes referidas é a importância das vivências privadas reais para as linguagens públicas em que podemos exprimir as primeiras – ou pelo menos falar delas em acordos de pressuposições tácitas, segundo Wittgenstein. Mas o problema que se coloca é justamente a criação da linguagem pública que exprima as vivências privadas.

Para esclarecer a significação de uma palavra é bastante útil, segundo Wittgenstein, verificar por que tipo de aprendizagem ela foi adquirida. E assim, uma linguagem intrinsecamente inverificável, como é o caso da linguagem privada, é uma linguagem em que hesitamos em assegurar que há um sentido e que o compreendemos. Sente-se, nesta tese, a presença incontestável do positivismo lógico, que decerto teve um importante papel na emergência da “linguagem privada”. Encontramos de novo uma versão da concepção filosófica tradicional e corrente, que Poincaré exprimiu: «As sensações de outro serão para nós um mundo eternamente fechado. Se a sensação a que chamo vermelho é a mesma que aquela a que o meu vizinho também chama vermelho, nós não temos qualquer meio de verificar.»84

A ideia é também retomada nas Investigações, nas secções 273-274. Questionando a palavra “vermelho” e o seu sentido para cada um e para todos, Wittgenstein afirma como a compreensão do «dizer que se refere a, em vez de designa (r)» é a «expressão mais acertada, do ponto de vista psicológico, para uma determinada vivência.» Ilustra ainda a ideia: «É como se eu deitasse um olhar de lado para a minha própria sensação ao pronunciar a palavra, como se me dissesse: eu sei realmente o que quero dizer com isto».85 É possível encontrar neste modo de actuação princípios da (re) criação que serviam de guia também na tradução, como vimos. Também aqui a linguagem vive essencialmente dessa tensão, à margem entre o original e o novo texto, numa tradução que chamámos lateral/litoral, fiel a si própria e à coerência interna.

A partir daqui, somos tentados a concluir que, na “incapacidade” de designar uma sensação privada, a palavra “vermelho” faz pelo menos referência, ou relaciona-se, a uma sensação desse género ou a uma elemento dessa classe. Está assim presente toda uma filosofia da linguagem transportada para a prática da comunicação (mas muito para além dos limites da “mera” comunicação) que, passando pelo interaccionismo, ganhou forma na hermenêutica deste século, em Benjamin e Gadamer, e onde a linguagem se transforma, nessa alquimia verbal actualizadora, em processo de individuação no confronto com o Outro. Neste sentido, recorde-se como o principal objectivo de Wittgenstein nesta sua discussão acerca das vivências privadas era antes um jogo de linguagem público para que se possa falar delas, e não a constatação da sua inacessibilidade ou inexprimibilidade.

Mas, noutro momento, afirmaria Wittgenstein como esse é um benefício puramente ilusório. Porque são diversas as questões que se colocam: como se efectua tal operação misteriosa e oculta, que consiste em manter sob o olhar a impressão pessoal, a que se recorre sempre que se sinta necessidade de saber do que fala? Que independência podemos garantir de exercer o tal ‘controlo lateral’ sobre todo o processo? E ainda, para visar as coisas, saberemos nós dar um nome digno desse nome, susceptível de funcionar como tal, e de ser utilizado realmente numa linguagem?86 Por outras palavras, a questão que se afirma verdadeiramente resume o seguinte pressuposto: não podemos comunicar a outro senão a forma, e não o conteúdo. Donde, falamos a nós mesmos sobre o conteúdo. Mas como se relacionam as nossas palavras com o conteúdo de que somos conscientes? E para que fim?


Ao contestar de certo modo a possibilidade de uma linguagem privada, Wittgenstein não terá, todavia, querido dizer que as descrições de sensações ou “experiências privadas” são sem sentido se não forem publicamente verificáveis ou confirmáveis: a forma como falamos de tais referentes é antes uma parte da linguagem pública mais vasta, que comporta todas as outras coisas do género. E são o início e não o fim de um jogo de linguagem: na medida em que eu o utilizo uma linguagem pública, para além de me constituir como sujeito que sou, é essencial que os outros, sendo informados de que sou, ajam e reajam de certa forma em função do que digo; é necessário um jogo de linguagem público para constituir o significado da nossa fala sobre sensações, e que lhe dê sustentação semântica.87 Uma sustentação problemática, porque apontada ao uso e ao outro, à uniformização semântica, em última instância instrumental, de conteúdos de improvável circunscrição e concreção.88 Porém, fazendo justiça à intuição do interaccionismo simbólico desde Mead, «o homem é um ser racional porque é um ser social».89 O significado apenas é apercebido, nos seus contornos, a partir da atitude performativa dos participantes em cada situação; a compreensão de significados, de intenções ou de textos não poderá ser reconstruída como conhecimento de factos objectivos. A solução do problema que Wittgenstein propõe, como explicita Saul Kripte, antes liga o termo ‘significado’ a conceitos como ‘regra’ ou ‘modo de aplicação’.90


Da imposição de regras como regulação da praxis

Como anteriormente afirmámos, toda a filosofia da linguagem de Wittgenstein está de certo modo suspensa da existência de proposições, que, na realidade, são regras linguísticas. Não terá esta filosofia a pretensão de questionar a génese dos nossos conceitos; antes se interessa pelo facto de termos os conceitos que temos - isto apesar da grande importância do problema da aprendizagem e do objectivo declarado de o relacionar com o conceito de significação. Neste sentido, é a explicação do esquema público/particular em que nos apoiamos para falar que aqui interessa, mesmo (e em particular) acerca das vivências “privadas”.

Para compreender uma situação fazemos uma conjectura, que é bem fundada se, por exemplo, pudermos constatar que a audição da palavra é regularmente acompanhada da ocorrência de uma certa imagem, e posteriormente, de uma certa acção. “His speech is their speech”, nas palavras de Mead. Mas como também já vimos, no caso de uma “linguagem privada” o sujeito encontra-se, enfim, reduzido a apenas dizer que houve qualquer coisa que o fez dizer...; o que é tão só uma causa e não algo verificável, ajustável a uma regra ou a um paradigma. Estamos de novo a jogar, de certo modo, com a natureza paradoxal da linguagem, em que a expressão linguística bem sucedida se torna mais do que uma expressão individual, abrindo o espaço da realidade comum.91 Passa, então, a existir algo entre nós (o entre nous), flutuando a cada momento nesse ponto onde, em conjunto, sorvemos o mundo, um espaço público, como explica Charles Taylor: «A linguagem cria o que podemos chamar um espaço público, (...) no qual coloca determinados conteúdos perante nós.»92

A questão que por agora se coloca é que, como afirma também Wittgenstein no Livro Azul, «um homem que grita não escolhe a boca com que apela por nós.» E adivinha-se então uma desproporção imensa, devoradora, galopante, entre as imagens “privadas” e as palavras “públicas”. As consequências desta questão ao nível social são extraordinariamente importantes, e a contemporaneidade mediática a cada instante o comprova. Como refere Marcuse, «os Governos e as máquinas, os controladores de ponto e os gerentes, os técnicos em eficiência funcional, os salões de beleza dos políticos (que garantem aos líderes a maquilhagem apropriada) falam uma linguagem diferente e, portanto, parece ser deles a última palavra.»93 E assim, constatamos hoje como o transmitido pelos media tem todo este efeito implacável de montagem: acerca dos mais dolorosos ou terríveis acontecimentos sempre surge a ‘insuportável’ mas indispensável voz de pose e artifício, a voz da compostura oficial. Precisamente porque não é de todos os homens a “palavra final”, não é deles a boca com que apelam. E então, explica ainda Marcuse: «É a palavra que ordena e organiza, que induz as pessoas a fazerem as coisas, comprar e aceitar.»94 E aqui nos aproximamos uma vez mais do sentido daquela percepção que desde Mead nos acompanha: a significação tem uma referência dupla, uma para a coisa que para nós mesmos indicamos, outra para a instância a que se dirige o significado, primeiro ela é sempre um nome, e depois um conceito. Neste jogo de incertezas se erguem e desmoronam as arquitecturas intelectuais, oscilando os significados decisivamente no sistema infinito de relacionações – mediante, embora, a conformação ou utilização das possibilidades.

Mas, para esclarecer a significação de uma palavra é necessário questionar ainda por que tipo de aprendizagem ela foi (ou pode ser) adquirida; por esta razão, a “linguagem privada”, inensinável, não corresponde ao que consideramos ser utilizar uma linguagem. Uma linguagem é qualquer coisa que é essencialmente humana - no sentido em que é a partir do comportamento humano que interpretamos uma linguagem que nos é estranha.95 É neste contexto que surge o célebre dito de Wittgenstein: «se um leão pudesse falar, nós não o poderíamos compreender»96, não apenas porque a sua vida social está organizada diferentemente da comunidade humana, mas sobretudo, como propõe Intikka, porque os dados sensíveis que constituem o mundo do leão são diferentes dos dados sensíveis dos seres humanos – Intikka sugere mesmo, em tom menos sério, que este exemplo seria talvez mais incisivo se usasse moscas, cujo aparelho perceptivo é mais gritantemente diferente do humano.97

Ora, o aspecto que importa salientar advém justamente desta ideia: há, sem dúvida, jogos que jogamos sozinhos e em que os lances são “privados”. Contudo – e este o argumento a destacar -, jogos que são parasitas dos jogos públicos e que, além disso, não podem desempenhar a função semântica que os jogos de linguagem públicos exercem. Como diz Wittgenstein, «seguir a regra é uma praxis. E crer estar a seguir uma regra não é seguir a regra. E por isso não se pode seguir a regra ‘privatim’» 98

Ao dizer que seguir uma regra é uma prática, Wittgenstein avança que o conceito de aplicação de uma regra implica uma pluralidade de casos e de utilizadores. Apenas na medida em que nos referimos a um uso normal é que há uma relação entre a representação que me vem ao espírito e a utilização que eu faço dessa representação ao longo do tempo. Há pois «casos normais e casos anormais», que funcionam na medida em que a imagem nos cria uma expectativa de aplicação, porque em geral ‘desta imagem os homens fazem esta aplicação’. Quer isto dizer que o uso futuro está já presente de todo na compreensão, o dizer no querer dizer, o acto na intenção e a execução na regra; «de uma maneira estranha, a própria aplicação já está, num certo sentido, presente».99 Aqui reconhecemos, uma vez mais, o papel decisivo da determinação pela tradição.

Embora colocado de forma distinta, o problema hermenêutico torna-se aqui central. A teoria tradicional do ‘círculo hermenêutico’ apresenta-se sob uma nova luz e readquire uma importância fundamental: a compreensão implica sempre uma précompreensão que é, por sua vez, pré-figurada pela tradição determinada na qual vive o intérprete – e onde modela os seus juízos prévios, diria Gadamer. Reencontramo-nos, enfim, com uma percepção que não pode deixar de se colocar: toda a linguagem assenta numa significação social, pragmática, em que «palavra e figuração constituem a argamassa que aglutina os elementos da célula étnica.»100 Porém, e como nota Charles Taylor, se é certo que é sobre um pano de fundo implicitamente conhecido e compreendido que a prática linguística se move, este movimento é também na direcção de uma actualização do código. É esta faculdade que possibilita o aparecimento de novas expressões, ‘inventadas’ no decurso da conversação, pela primeira vez articuladas a partir da compreensão implícita.101


Linguagem e limites do mundo: posições

A linguagem está pois intimamente ligada à vida social humana, e em certa medida é mesmo constitutiva dela. Os reflexos desta asserção para o desenvolvimento deste trabalho são significativos, sobretudo pelos paralelos que é possível estabelecer com outras abordagens antes feitas, não obstante outras diferenças evidentes. Neste sentido, a comparação entre a perspectiva de Gadamer e a de Wittgenstein continua, pelo menos num certo nível, simples de facilitar. Apesar da série de contrastes que apresentam, no que respeita ao papel da linguagem na vida social humana as semelhanças são notáveis.

Mas antes das semelhanças, adiante-se o aspecto que constitui o principal contraste ente as duas posições. Mostrou-se que Gadamer definia a linguagem em termos ontológicos; no seguimento da tese de Heidegger de que a linguagem é a «morada do Ser», Gadamer defendia que «o que pode ser compreendido é linguagem», fazendo desta ideia aspecto central do seu pensamento. Esta perspectiva da linguagem opõe-se, obviamente, à direcção fundamental da teoria de Wittgenstein, essencialmente epistemológica. O interesse deste pela linguagem é ditado pela tese de que não podemos conhecer nada do que está para além da linguagem. É de uma corrida contra os limites da linguagem que aqui se trata, no dizer de Wellmer, disputada desde as mais triviais falas ao domínio da arte: então, «falando na face de cada experiência individual é também falar na face da realidade.»102

A forma de evidenciar este contraste é sobretudo bem ilustrada pelos diferentes modos como Gadamer e Wittgenstein definem a ideia de “jogo de linguagem”. Wittgenstein refere-se à linguagem como um jogo, a fim de salientar que a linguagem é constitutiva da actividade humana: os seres humanos fazem coisas com as palavras. A posição de Gadamer, todavia, caracterizar-se-á melhor com a afirmação: «as palavras fazem coisas connosco», isto é, não jogamos nós jogos de linguagem, antes é a linguagem que nos joga – pensamos dentro da linguagem, as palavras prescrevem os sentidos únicos em que podemos utilizá-las.


Wittgenstein ainda está enredado nas preocupações epistemológicas que dominaram o pensamento Iluminista. Apesar de transcender muitas das dicotomias iluministas, recusar-se-ia a realizar a viragem crucial da epistemologia para a ontologia, que Gadamer efectuou. Em virtude de diferirem a este respeito, ambas as abordagens das possibilidades da linguagem divergem em aspectos significativos para esta análise. Quer Gadamer quer Wittgenstein foram apanhados no que tem sido identificado como viragem linguística na filosofia do século XX, e é a preocupação comum com a linguagem que define a semelhança entre si. Mas trata-se de uma semelhança bem mais profunda que um mero acordo sobre a temática.

Em primeiro lugar, a linguagem para Wittgenstein implica sempre um modo de vida, «uma forma de vida», o que é semelhante à valorização do comunitarismo da abordagem gadameriana, que antes vimos. Em segundo lugar, o realce de Gadamer em que a linguagem não é como um instrumento que se possa pôr de lado após a sua utilização é também repetido por Wittgenstein de forma muito semelhante. Em terceiro lugar, a famosa descrição de Wittgenstein dos jogos de linguagem encontra a sua contrapartida na posição de Gadamer: a linguagem é também para si algo em que entramos, uma actividade que partilhamos.

A semelhança mais impressionante entre as abordagens da linguagem ditadas por Gadamer e Wittgenstein é assim a incapacidade de fornecer um ponto de compreensão fora do mundo linguisticamente constituído pelos actores sociais, incapacidade que admitem sem problemas.103 Como Wittgenstein, Gadamer assere que os limites da linguagem são os limites do nosso mundo. Contudo, vislumbramos também um acordo (que, de forma mais profunda, encontra correspondência em Heidegger) no reconhecimento de que todas as explicações, enquanto ‘enlaces’ de dados, pressupõem já um compreender originário de algo que pode libertar dados diversos e imprevistos, segundo o jogo linguístico envolvido com cada forma de vida. É assim que nos aproximamos um pouco também de Benjamin, de Proust, de Kafka, entre outros, e de um dos seus temas principais: a recordação. Há um mundo linguisticamente articulado pré-compreendido, e cujo sentido é posto em evidência – reactualizado – ao ser «tecido na substância da vida vivida» de que nos falava Benjamin.

Mas retomando: este acordo fundamental de posições tem uma série de implicações importantes para a compreensão de uma abordagem linguística. Tanto Gadamer como os wittgensteinianos rejeitam explicitamente a busca da definição do «conhecimento objectivo» dos cientistas naturais no domínio das ciências sociais, negando que o modelo científico oferecido pelas ciências naturais seja apropriado à investigação neste tipo de ciência. Outra semelhança fundamental entre estas duas posições é a recusa comum em analisar a intencionalidade subjectiva. Com Gadamer vimos como a interpretação é a fusão de horizontes, o que retira qualquer pretensão em obter um sentido objectivo intemporal, vincado pela subjectividade do autor: ao invés, autor e intérprete fixam historicamente o sentido.

Podemos observar uma ideia semelhante no exemplo do escaravelho das Investigações. A palavra ‘escaravelho’ tem um uso na linguagem das pessoas. Se assim for podemos compreender ao que se está a referir aquele que usa essa palavra – contudo, para isso precisa tal palavra de um jogo de linguagem público que lhe dê sustentação semântica (e o mesmo se passa sobre as ‘linguagens privadas’ das sensações), sendo fundamental, como é evidente, o jogo de linguagem interpessoal. Ora, desta posição comum, ditada pela rejeição da intencionalidade subjectiva, um aspecto de especial importância há a destacar. Ao salientarem a natureza intersubjectiva da compreensão, tanto Gadamer como Wittgenstein situam a linguagem directamente no mundo comum das práticas humanas, em vez de a colocarem no mundo obscuro privado da subjectividade individual. A convergência metodológica entre ambos estende-se, assim, até a uma concordância básica sobre a definição da linguagem: ambos definem linguagem como discurso público mais do que tradução do discurso interior. É este acordo sobre a natureza pública da linguagem que, mais do que qualquer outro factor, assemelha as abordagens da linguagem geradas pelas suas teorias.104


Conclusão

As posições antes desenvolvidas, apesar de diversas entre si, oferecem vantagens significativas para as ciências da linguagem. De maior importância ainda, o que uma análise destes pensadores revela é que, apesar da concepção iluminista, as investigações sobre os diversos aspectos do conhecimento caem inevitavelmente no erro, na inoperabilidade ou na confusão. O confronto do cientificismo aplicado à linguagem com as posições de Wittgenstein (na última fase do seu pensamento) e de Gadamer, é em parte, exemplar disso mesmo. Mas também aqui, e muito embora como vimos estes dois pensadores façam um sério e notável esforço por definir a base social do conhecimento (pela linguagem) através da análise da constituição intersubjectiva do sentido, os seus esforços terão eventualmente pontos fracos, em última instância, quando admitem a constituição (também individual) do sentido. Ambos sustentam como há um “eu” que fala (ou em que a linguagem fala).

Ora, está fora de questão que, ao utilizarem o meio social que é a linguagem, os actores sociais participam de modo decisivo nos sentidos fornecidos pela linguagem. Mas é aqui que surge a limitação – falar da constituição individual no sentido não dá conta de como é que a linguagem é constituída no mundo social. Ou seja, a confiança na intencionalidade individual como base do sentido torna, não obstante, problemático o carácter distintamente social da linguagem. De um modo redutor, podemos considerar que a percepção desta deficiência mais não é que uma consequência da adesão moderna à dicotomia objectivo-subjectivo (objecto-sujeito), um problema central na filosofia da consciência.



1 Wienerkreis

2 Cfr. Russ, Jacquelline, La Marche des Idées Contemporaines, Paris, Armand Collin, 1994, pág.311.

3 Cfr. Carnap, R., citado por Max Black, «Some problems connected with language», in Shanker, Stuart (org.), Ludwig Wittgenstein, Critical Assessments, Vol.1, Londres, Routledge, 1997, pág. 47.

4 Paul Lorenzen refere-se à «ficção de Carnap de uma linguagem ideal construída a partir de puras frases atómicas», para a contrapor com a metáfora do barco de Otto Neurath: «Nós somos como navegantes que têm de transformar o barco no alto mar, sem nunca poderem, numa doca, desmanchá-lo ou reconstruí-lo usando melhores materiais. Só a metafísica é que pode desaparecer de vez. Os aglomerados imprecisos são sempre, de um modo ou de outro, parte constituinte do barco», citados por Blumenberg, Hans, Naufrágio com Espectador, Lisboa, Vega, 1990, pág.99.

5 Cfr. Dummett, Michael, Les Origines de la Philosophie Analytique, Paris, Gallimard, 1991, págs. 13-15.

6 Frege, G., citado por Travis, Charles, «Intuicionismo sublunar», in Cadernos de Filosofia nº3/ 1998, Lisboa, Edições Colibri, 1988, págs. 20-21.

7 Ibidem.

8 As influências da escrita conceptual de G. Frege no Tratado Lógico-filosófico são explicitadas pelo próprio Wittgenstein nesta obra.

9 Frege, G., Uber die wissenschaftliche Berechtigung einer Begriffschrift”, 1882, citado por Travis, Charles, Op.cit., págs. 18-19.

10 Ibidem.

11 A “língua ideal” de Leibniz possui uma dimensão calculística ou sintáctica (o cálculo ratiocinator), e uma dimensão semântica (a characterística), definindo a primeira o sistema de signos e a segunda o universo do discurso a que aqueles se aplicam.

12 McGuiness, Brian, Wittgenstein, Les Annés de Jeunnesse, Paris, Seuil, 1984, pág.48.

13 Ibid., pág. 48 e segs. As posições teóricas que adoptaram eram dirigidas já não para a codificação de vastos esquemas metafísicos modelados com base em algumas intuições globais da realidade, representados pela escola do idealismo de Green, Bradley e McTaggart, e que tinha exercido ampla hegemonia sobre a cultura filosófica inglesa das últimas décadas do século XIX, mas antes para a elaboração de instrumentos analíticos destinados ao esclarecimento dos aparelhos lógico-linguísticos, operantes nas ciências naturais, na matemática, na lógica e na filosofia.

14 Wittgenstein, Ludwig, Tratado Lógico-filosófico, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, s/d. Nota: ao longo deste trabalho, para maior simplificação, esta obra será abreviada por Tractatus, conforme à generalidade das obras consultadas.

15 Wittgenstein, Ludwig, citado por Gargani, Aldo, Wittgenstein, Lisboa, ed. 70, 1988, pág. 17.

16 Wittgenstein, Ludwig, Tractatus, §3.1.

17 Ibid., §3.142.

18 Ibid., §3.144.

19 Analogia que, não obstante ser superiormente elucidativa, não esconde pois o paradoxo que é o recurso a uma imagem ou comparação em tal contexto.

20 Wittgenstein, Ludwig, Tractatus, pág. 56.

21 Ibid., §2.222, pág. 38.

22 Ibid., pág. 142.

23 Cfr. Ibid., pág. 53.

24 Cfr. Hottois, Gilbert, La Philosophie du Langage de Ludwig Wittgenstein, Bruxelas, Université Libre de Bruxelles, 1991, pág.63.

25 Cfr. Marcuse, Herbert, A Ideologia da Sociedade Industrial, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1982, pág. 92-94.

26 Wittgenstein, Ludwig, Tractatus, pág. 29.

27 Ibid., §4.0031, pág. 53.

28 Ibid., §2.225, pág.38.

29 Marcuse, Herbert, Op. cit., págs. 94-95.

30 Ricoeur, Paul, Teoria da Interpretação, pág. 98.

31 Cfr. Ibid., pág. 98-100.

32 Kafka, Franz, Meditações, pág. 120.

33 Musil, Robert, Op. cit., pág. 307.

34 Wittgenstein, Ludwig, Investigações Filosóficas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987. Para uma maior simplificação, ao longo deste trabalho esta obra será designada apenas por Investigações. A parte II foi escrita entre 1946 e 1949.

35 Carnap, R. Intellectual Autobiography, citado por Pasquinelli, Alberto, Carnap e o Positivismo Lógico, Lisboa, Ed. 70, 1987, pág. 28.

36 Wittgenstein, Ludwig, Investigações, pág. 166.

37 Veja-se, a este propósito, o que considera Black: «Despojem o Tractatus da sua ontologia como Wittgenstein também o fez, e subsistem muitas coisas que são importantes. Wittgenstein não rejeitou o Tractatus como um erro colossal: os seus temas principais podem ainda ser discernidos na sua obra posterior.», Verificationism and Wittgenstein’s Reflections on Mathematics, Revue international de Philosophie, pág. 88-89 (1969), pág290, cit. por Bouveresse, Jacques, Le Mythe de l’Intériorité, Paris, Minuit, 1987, pág. 35.

38 Ibid., pág. 190.

39 Cfr. Malcom, N., Ludwig Wittgenstein, A Memoir, Oxford, B. Blackwell, 1958, pág.69.

40 Em alemão Sprach Spiel,

41 Cfr. Wittgenstein, Ludwig, Op. cit., §28, pág. 193.

42 Ibid., §10 e 13, págs. 179 e 181.

43 Ibid., §30.

44 Ricoeur, Paul, Teoria da Interpretação, pág. 132.

45 Wittgenstein, Ludwig, Op. cit., §7, pág. 177. Uma explicação para a escolha do termo “jogo de linguagem” é a dada por Malcom, que conta que um dia em que Wittgenstein se passeava ao longo de uma pradaria onde se disputava um jogo de futebol, e que, observando as funções de cada jogador, lhe veio subitamente a ideia de que também a linguagem é um jogo – mas que se joga com as palavras. Citado por Hottois, Gilbert, Op. cit., pág. 449.

46 Wittgenstein, Ludwig, Investigações, §43, pág.207.

47 Ibid., §54.

48 É à luz deste ponto de vista que se torna possível a interpretação de Wittgenstein desenvolvida de forma consequente por Peter Winch em A Ideia de uma Ciência Social e sua Relação com a Filosofia (São Paulo, Companhia Editora Nacional). Com efeito, também Winch parte de que «o domínio da realidade nos é dado pela linguagem que usamos. Os conceitos que temos estabelecem para nós a forma de experiência que temos do mundo.» (pág. 25) Ora, assim também as relações de um homem com os seus semelhantes estão marcadas pelas suas ideias sobre a realidade, «as relações sociais são expressões de ideias sobre a realidade.» (pág.32) Daí a necessidade de seguir regras que orientem não só o comportamento da pessoa em questão mas também necessárias a quem observa, e a partir delas interpreta.

49 Cfr. Wittgenstein, Ludwig, Op.cit., §98.

50 Cfr. Ibid., §28.

51 Ibid., §5-6.

52 Cfr. Ibid., §28.

53 Ibid., §124, pág.262.

54 Cfr. Ibid., §132, pág.264.

55 Cfr. Ibid., § 100-102, pp. 253-254.

56 Cfr. Ibid., § 99, pág. 253.

57 O verdadeiro nome de S. Pedro era Simão, mas, logo no primeiro encontro com Jesus, que falava aramaico, recebeu o nome / alcunha de Kefas, que nessa língua semita significava ‘rochedo’, ‘pedra’.

58 Ibid., §202, pág.322.

59 Cfr. Winch, Peter, Op. cit., pág. 51.

60 Kafka, Franz, Meditações, pág. 119.

61 Cfr. Wittgenstein, Ludwig, Op. cit., §19.

62 Cfr. Ibid., §23. Nota: a própria matemática é um jogo linguístico, uma vez que fazer matemática significa agir «de acordo com certas regras», afirma Wittgenstein noutro momento. A necessidade que preside a esta actuação, o «deve» (must), é próprio das técnicas em que consiste a matemática, e que constitui um modo particular de lidar com as situações.

63 Ibid., §65-66, pág. 227. A mesma ideia constitui um dos fundamentos da poesia de Fernando Pessoa, heterónimo Aberto Caeiro. Uma convicção presente em toda a obra sob este heterónimo, de que citamos a título ilustrativo: «O Mundo não se fez para pensarmos nele / (Pensar é estar doente dos olhos) / Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo... / Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...» ou «O essencial é saber ver, / Saber ver sem estar a pensar, / saber ver quando se vê, / E nem pensar quando se vê /Nem ver quando se pensa.», O Guardador de Rebanhos.

64 Kafka, Franz, Op. cit., pág. 120.

65 Ibid., pág. 122.

66 Wittgenstein, Ludwig, Op. cit., §66, pág. 227.

67 Cfr. Hottois, Gilbert, Op.cit, pág.117.

68 Cfr. Marcuse, Herbert, Op. cit., pág. 93.

69 Cfr. Hottois, Gilbert, Op. cit., pág.117.

70 Ibid., §76, pág. 235.

71 Cfr. Ibid., §70-71, págs. 231-232.

72 Cfr. Ibid., § 560-561, pág. 455.

73 Ibid., §75-76, págs. 235-236.

74 Kafka, Franz, «Diário», in Antologia de Páginas Íntimas, pág. 69.

75 Wittgenstein, Ludwig, Op. cit., §269, pág. 347.

76 Goethe, Johann Wolfgang, A Paixão do Jovem Werther, Lisboa, Relógio d’ Água, 1998, pág.131.

77 Outro exemplo é o da Carta a Lord Chandos, de Hugo von Hoffmannsthal, onde se pode ler: «Eu sentia um mal estar inexplicável apenas por pronunciar as palavras ‘espírito’, ‘alma’ ou ‘corpo’. (...) Sucedeu-me querer repreender a minha filha Khatarina Pompilia, com a idade de quatro anos, por ter dito uma mentira infantil; pretendia mostrar-lhe a necessidade de dizer sempre a verdade, mas ao fazê-lo as noções que me vieram à boca tomaram subitamente uma coloração tão mutável, encavalitaram-se a tal ponto umas sobre as outras, que esvaziaram completamente a minha frase. Como que num acesso de doença, tendo efectivamente o rosto pálido e sentindo uma violenta pressão sobre as frontes, deixei a criança sozinha, bati a porta atrás de mim e só recobrei algo do meu espírito sobre uma sela, ao fim de um pedaço de tempo a galopar através da terra deserta.» Saliente-se ainda o recobrar da linguagem através do contacto com a mudez da terra. Hoffmannsthl, Hugo von, Carta a Lord Chandos, Lisboa, Hiena, 1990, págs. 26-28.

78 Wittgenstein, Ludwig, Op. cit., §243, págs. 335-336. A apresentação deste argumento prolongar-se-á, sobretudo até ao §315.

79 Ver o §248 das Investigações, página 337: «A proposição «As sensações são privadas» é comparável à proposição: «Paciências com cartas joga-se sozinho».

80 Ibid., §300, pág.360.

81 Poincaré, E. La Valeur de la Science, Flammarion, Paris, 1905, pág. 263.

82 Wittgenstein, Ludwig, Op. cit., §301, pág.360.

83 Ibid., §245, pág. 336.

84 Poincaré, Op.cit., pág.202.

85 Wittgenstein, Ludwig, Op. cit., §274, pág. 349.

86 Cfr. Bouveresse, Jacques, Op. cit., pág.411.

87 Em muitos sentidos considerado um pensador moderno, o alemão Goethe tem no jovem Werther uma reacção contra os valores da ideologia burguesa que, contudo, teria desenvolvimento capital a partir da segunda metade do século XIX, e que noutro ponto importará abordar. Atente-se contudo a propósito na reflexão do emblemático Werther acerca dos jogos de linguagem públicos, que no caso incidiam na jovem Lotte: «Devias ver a figura ridícula que faço quando se fala dela em sociedade! E quando me perguntam se ela me agrada? Agrada! Odeio de morte a palavra. Que espécie de pessoa será aquela a quem Lotte agrada, a quem não preenche todos os sentidos, todas as emoções?! Agrada! Outro dia alguém me perguntou se Ossian me agradava!» Goethe, J. W., Op. cit., pág. 167

88 A este propósito, registava em 1913 Kafka no Diário: «O mundo prodigioso que tenho na cabeça. Mas como me libertar e libertá-lo sem me dilacerar? E antes ser mil vezes dilacerado do que retê-lo em mim ou enterrá-lo. Estou aqui para isso, dou-me perfeitamente conta.», Kafka, Franz, «Diário», pág. 67.

89 Mead, George Herbert, Espiritu, persona y sociedad, pág. 379.

90 Cfr. Wellmer, Albrecht, The Persistense of Modernity, Cambridge, MIT Press, 1993, págs. 68-69.

91 Cfr. Ibid., pág. 75.

92 Taylor, Charles, «Theories of Meaning» in Human Agency and Language, Cambridge, Cambridge University Press, pág. 259.

93 Marcuse, Herbert, Op.cit., pág. 94.

94 Ibidem.

95 Cfr. Wittgenstein, Ludwig, Op.cit., §206-207, págs. 323-324..

96 Ibidem.

97 Intikka, Jaakko e Intikka, Merrill, Uma Investigação sobre Wittgenstein, São Paulo, Papirus Editora, 1994, pág.329.

98 Wittgenstein, Ludwig, Investigações, §202, pág. 322.

99 Ibid., §141, págs. 272 –273.

100 Leroi-Gourhan, A., Op. cit., pág. 179.

101 Cfr. Taylor, Charles, «Language and Society», in Comunicative Action, Essays on Jürgen Habermas’s The Theory of Communicative Action, Polity Press, págs. 25-26. Como acrescenta Taylor, esta mesma posição é igualmente aplicável à sociedade: «há sempre costumes já estabelecidos e normas já articuladas; elas são usadas e ao mesmo tempo renovadas no decurso da prática. Esta prática, no entanto, é fruto de um nunca exausto pano de fundo [background] que pode simultaneamente ser a fonte de novos estados e articulações.» As consequências para uma teoria da sociedade são significativas. Com efeito: «Acção refere-se não só ao sistema de normas e regras explícitas de forma de vida, mas também sempre ao pano de fundo que pode gerar novas formas. Assim, são estas novas normas de comportamento que trazem consigo a mudança nessa forma de vida.», ibidem.

102 Wellmer, Albrecht, Op. cit., pág. 76.

103 Cfr. Heckman, Susan, Hermenêutica e Sociologia do Conhecimento, Lisboa, Edições 70, 1990, pág.175.

104 Cfr. Hacking, Ian, Why Does Language Matter to Philosophy?, Cambridge, Cambridge University Press, 1975.