Os limites do devir literatura no jornalismo

Silvio Ricardo Demétrio1

 

Ao se considerar as relações entre o jornalismo e a literatura, há de se ter sempre em mente a base comum da qual ambas as práticas se servem: a linguagem. Esta obviedade nada fácil, a linguagem, exige de quem por sobre ela se debruça certos cuidados a fim de que se extraiam elementos comuns a ambos os campos, e que, portanto, sirva de fundamento para uma análise de relações possíveis. Não firmamos com isto um ato comparativo, senão, buscamos evidenciar as diferenças e as identidades que subsistem no interior destes dois campos. Entendemos que uma comparação seria instauradora de uma negatividade entre os dois campos, como se houvesse a primazia de um sobre o outro, e não é essa a questão, pois na melhor das leituras estaríamos partindo de um juízo de valor e, na pior, de um preconceito.

Quando colocamos que é necessária a observação de elementos comuns, estamos, logo de partida, afirmando uma identidade entre o jornalismo e a literatura. Tal divisa justifica o porquê de nos pautarmos por abordar o tema sob uma perspectiva capaz de preservar os prolongamentos que ambos, literatura e jornalismo, desempenham entre si. Os cuidados a que nos referimos dizem respeito a tomar como ponto de partida determinado objeto que possibilite a entrada no registro que desejamos, onde não trabalhemos no sentido de uma exclusão de um campo ou outro. Em nosso caso, consideramos a manifestação mais próxima do jornalismo dentro da literatura, que por si só aponte para os limites onde se encontram os pontos de contato e as divergências. Isto nos leva a tomar como objeto a obra que primeiro trouxe o jornalismo para dentro da literatura: as ``Ilusões Perdidas'', de Honoré du Balzac.

Como observa José Miguel Wisnik, ``a imprensa vem a ser assunto da literatura depois que a literatura já é assunto da imprensa''2. Ilusões Perdidas foi o livro que Balzac mais demorou para escrever (1835/1843). As desventuras de Lucien du Rubempré, personagem principal do livro, se passam numa França experimentando a gradativa dissolução dos ideais que inspiraram os levantes populares e que, já em 1848, com a Comuna de Paris, chegariam finalmente à derrocada 3 . O significado dessa ruptura, de acordo com Mário de Micheli, é fundamental para se entender o que estava em jogo na metade do século XIX:
``De qualquer maneira, é essa ``unidade'' histórica, política e cultural das forças burguesas-populares por volta de 1848 que nos interessa sobretudo destacar neste momento, pois é exatamente a partir da ``crise'' dessa unidade, e, portanto, da ``ruptura'' desta unidade, que nasce, como dissemos, a arte de vanguarda e grande parte do pensamento contemporâneo. [...] O dissídio entre os intelectuais e a sua classe torna-se agudo, as rachaduras subterrâneas afloram - o fenômeno generaliza-se, a ruptura da unidade revolucionária do século XIX já é um fato consumado. Durante longos anos, até nossa época, as suas conseqüências dominarão os problemas da cultura e da arte''4
Tal conflito é o centro da obra de Balzac, a saber, como reconhece George Lukács, a ``transformação do espírito em mercadoria'' 5. Não há mais espaço para as ``ilusões'' do humanismo, que levara à frente das manifestações populares os intelectuais do século XIX. Tanto o jornalismo quanto a literatura vêem-se envolvidos com uma nova dimensão que os transformará: o mercado editorial de grande escala.

Rubempré é um jovem provinciano que vai tentar a sorte na metrópole munido de seu talento poético e de todas as ilusões possíveis que serão desmontadas uma a uma em Paris. O mundo das letras lhe mostra o quão insignificante é seu intento. Na voz de outro personagem, Daniel du Arthez - primeiro amigo que Rubempré conquista no meio intelectual parisiense: ''... sua história é a minha e a mesma de mil a mil e duzentos jovens que todos os anos chegam da província a Paris''.

Em paralelo a esta desilusão, há também a do amor que foi a principal causa de sua vinda para a capital. Enquanto estavam na província, Lucien du Rubempré e a Sra. du Bargeton se envolveram nos saraus que aconteciam na casa desta. Apaixonaram-se, mas sequer chegaram a alguma proximidade que não fosse lícita. O caso dos dois acaba por se consumar apenas na boatagem. A Sra du Bargeton resolve se afastar do marido de vez, levando para Paris Rubempré como seu protegido e amante. Lá chegando, o provincianismo de ambos acaba por diluir subitamente a paixão frente aos valores da sociedade parisiense. A primeira ilusão de Lucien du Rubempré já está perdida, e os dois acabam por terminar com o caso que sequer iniciaram.

Desabonado de sua protetora, com a qual contava para se manter, além das economias que sua mãe e seu cunhado, David Séchard o haviam dado, Rubempré tenta vender seus dons da escrita a algum livreiro. Mais uma tentavia frustrada. O jornalismo surge então como a alternativa redentora. Rubempré aprende todas as técnicas e expedientes da profissão. Neste ponto do livro, Balzac faz uma listagem dos métodos que os jornalistas empregavam para sustentar toda uma rede de tráfego de influências e troca de favores com editores, casas de espetáculos, políticos, etc.

Balzac empreende um ataque caudaloso por todos os flancos que pode. Se há um mal no mundo, este é a imprensa. De espírito conservador, o escritor francês defendia a monarquia e chegou a apregoar o controle prévio sobre os jornais6 , no entanto, apesar da sua ira contra a imprensa, Balzac conseguiu articular questões cruciais sobre as quais o jornalismo se constituiu durante as grandes transformações engendradas pela Revolução Industrial. Como Wisnik propõe:
``E como Balzac abrangeu, com a vontade de potência de sua visão inaugural, nada menos que todo o arco histórico do problema, pode-se dizer também que a sua questão é a do destino problemático da cultura diante da indústria da cultura''.
Para o escritor francês, o jornalismo seria uma degeneração da literatura, os jornalistas, ``comerciantes de frases''. Isto reforça a tese de Mário de Micheli já citada sobre a quebra da unidade espiritual do século XIX. Isto no sentido de que, como propõe este historiador da arte, quando os intelectuais deixaram as linhas de frente dos movimentos populares, criou-se uma poética da evasão. Balzac se inscreve dentro desta perspectiva pela assimilação do mito do bom selvagem, do culto a uma virtude perdida e que deve ser recuperada. Para ele a província, portanto onde se tem uma situação marcadamente anacrônica em relação ao cosmopolitismo e à industrialização de Paris, é o espaço depositário dos ``verdadeiros'' e ``bons'' valores. A república seria a corrupção instituída. Dilatações do romantismo que Balzac assimilou de Walter Scott e Hoffmann.

Daí a imprensa ser um mal. A nova sociedade desencadeada pelas transformações da Revolução Industrial se impunha aos que queriam conservar um mundo já extinguido, forçando a ``perda total das ilusões''. Às idéias totalizantes da literatura de então, o jornalismo vai se opor em sucessivas fragmentações. Balzac quer levar a cabo uma luta entre ``duas máquinas de representar o mundo'': o jornal e o livro. A pureza está toda com o segundo.

Apresentamos estas considerações na tentativa de nos precavermos de estabelecer uma relação hierárquica entre jornalismo e literatura. Não acreditamos que uma prática seja a degeneração da outra, senão um prolongamento que pode ser entendido a partir da origem de todas as ``ilusões''. A linguagem, como foi tratada pela literatura na época de Balzac, é o substrato sobre o qual se pode construir uma representação do mundo. Não sua reprodução. A equivalência é impossível. Significante e referente, neste caso, jamais coincidirão. Portanto, quer na literatura, quer no jornalismo, a reconstrução do real pode chegar, no máximo, ao verossímil. Afirmamos isto, e frisamos, em relação ao plano da linguagem. Isto coloca o jornalismo e a literatura numa relação de identidade a partir da materialidade da linguagem: a palavra. Como Bakhtin propõe7 , todo signo é ideológico. Diante disto, quais seriam as diferenças entre os signos da literatura e os do jornalismo, se já sabemos que sua igualdade está no fato da defasagem imposta pelo real a qualquer palavra?

A literatura, com a escola do realismo, toma consciência deste limite da linguagem, portanto ``perde'' sua ilusão fundamental, ou melhor, a assume. E assim procedendo, desvela seu processo de reprodução do mundo. Dessa maneira, como observa Wisnik em relação à Balzac, a literatura multiplica as ilusões, já que é a arte de criá-las, porém desmascarando-as por sua auto-referência , chegando dessa maneira a depurar suas verdades. Na mesma linha, o jornalismo parte no sentido oposto, tendo como princípio o desvelamento de qualquer farsa e, no entanto sucumbindo ante uma unidade impossível por ser a efêmera construção dos fragmentos do tempo presente. Quer num extremo ou outro do processo, sempre há a impossibilidade de uma ação totalizante8.

Tal limite é dado pela linguagem. Propomos com isto que as diferenças entre os dois campos se colocam numa relação dialética, tomando por base o conceito de supressão-conservação de Hegel. Segundo o pensador alemão, quando dois termos estão numa relação dialética, aquilo que um elemento suprime do outro, é conservado num estágio seguinte em forma de potência. Dessa maneira temos que a literatura é uma potência interior ao jornalismo, dada a aspiração a uma verdade desmistificadora de todos os engodos ideológicos como tentativa de imprimir uma unidade ao caos do presente. No sentido inverso também, quando a literatura vai promover os fatos mais banais do cotidiano como espaço de revelação de epifanias. Uma prática não exclui nem desabona a outra. Assim como há ``má'' literatura, também existe o jornalismo ``ruim'' - caso ``má'' e ``ruim'' fossem parâmetros que nos garantissem ``cientificidade''.

Afirmamos no início deste ensaio que literatura e jornalismo se prolongam um no outro. Agora podemos citar exemplos: apesar das violentas críticas ao jornalismo, Balzac escreveu sobre sua época, buscando elementos que pudessem, ao serem colocados em contiguidade, dar uma idéia do espírito de seu tempo - isto fica mais claro ao observarmos como a Comédia Humana9 foi publicada de maneira fragmentada, ganhando sua organicidade somente ao fim de todos os volumes. Acreditamos que tais especificidades são próprias do jornalismo: inscrição no tempo presente e a articulação de fragmentos de informação de maneira a propor uma possibilidade de leitura deste tempo. Assim Balzac repudia o jornalismo, porém não há mais como negá-lo. Ele faz parte da modernidade e, se representou uma perda em relação aos ideais de uma literatura depurada de tudo o quanto não fosse ``superior'', tem a suficiente flexibilidade para se deixar infiltrar por outros discursos, até mesmo o mais antagônico destes, em tese, a literatura, sem no entanto perder sua especificidade. Citamos como exemplo o caso do New Journalism, quando todas estas questões foram elevadas ao quadrado em noites de muito café e muitas laudas. Literatura e jornalismo fundiram-se numa terceira via ao sabor do espírito da contracultura. Neste caso, foi a literatura que se prolongou no jornalismo, reinjetando vitalidade através da experimentação estilística com o texto.

Se ainda resta alguma ilusão quanto às relações entre jornalismo e literatura, esta é a de que exista uma prerrogativa de uma prática sobre outra. Necessariamente é uma ilusão ``a ser'' perdida. Ambas têm suas especificidades sem, no entanto deixarem de exercer o seu estatuto básico de serem modalidades de comunicação. O tempo é a medida da precariedade de qualquer coisa. Não seria diferente com o jornalismo. Não seria diferente com a literatura. Os limites existem, mas neste caso, são os limites do devir. O ``tornar-se'' literatura fixa o terreno próprio do jornalismo quando este é pautado pela idéia de uma articulação de fragmentos em busca de uma totalidade do tempo presente, de sua leitura. Se a leitura do presente é a impossibilidade de seu esgotamento, já que este regime de tempo é a superfície sobre a qual emergem os acontecimentos 10 , jornalismo e literatura vão se colocar como horizontes na relação que guardam entre si. Não há como um campo suplantar o outro. É neste limite que acabam as ilusões.

Bibliografia

DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Editora Perspectiva. São Paulo, 1984.

MACHADO, Roberto. Gilles Deleuze e a Filosofia. Graal. Rio de Janeiro, 1985.

MICHELI, Mario de. As Vanguardas Artísticas. Martins Fontes. São Paulo, 1992.

WISNIK, José Miguel. Ilusões Perdidas. In NOVAES, Adauto. Ética. Cia das Letras, São Paulo, 1992.

1
Universidade Estadual de Ponta Grossa. Fundação Assis Gurgacz - Cascavel. FAUL - Toledo
2
WISNIK, José Miguel. Ilusões Perdidas in NOVAES, Adauto (org.) Ética. Cia das Letras, São Paulo, 1992. P. 321 - 343.
3
Em seu ensaio sobre Ilusões Perdidas, Wisnik cita o crítico George Lukács: ``Lukács, para quem o confronto com o rebaixamento dos valores ``autênticos'' origina o gênero, viu neste romance o próprio paradigma da destruição, pelo capitalismo, do humanismo revolucionário das primeiras concepções burguesas da sociedade e da cultura, assim como em D. Quixote o mundo dos ideais feudais cavaleirescos fora destruído pela sociedade burguesa em via de formação''. p 326.
4
MICHELI, Mário de. As Vanguardas Artísticas. Martins Fontes. São Paulo, 1991. P 14 - 15.
5
In Wisnik. Op. Cit. P 323.
6
Balzac foi um dos escritores que Engels admirava. Este afirmava que, embora reacionário em seus princípios, o autor da Comédia Humana consegiu absorver o espírito de sua época, criando personagens consistentes sob o ponto de vista do entendimento dos conflitos sociais que se desenvolviam então na Europa.
7
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Hucitec. São Paulo1994.
8
Wisnik. Op. cit.
9
Na verdade, Ilusões Perdidas é uma parte da grande obra de Balzac, ``A Comédia Humana'', título que o escritor deu a sua obra como uma crítica à Divina Comédia de Dante Alighieri.
10
Tomamos por acontecimento o que é uma manifestação do que não é pré-definível, inaudito e que, portanto, desencadeia uma série de efeitos que irão resultar numa outra condição que seja a possibilidade , e não o determinante, de outros acontecimentos. Acontecimento seria então, por conceito, o termo que desencadeia uma série e seus repectivos cruzamentos com outras séries de outros acontecimentos.