Da nova sensibilidade artificial *
Maria Teresa Cruz, Universidade Nova de Lisboa
Há hoje sinais claros de que a técnica e a
estética se encontram em trajectórias de convergência, e de que esta
convergência é tão importante quanto foi aquela outra entre a ciência e a
técnica, ao formar esse bloco denso que designamos significativamente como
«tecno-ciência». O ponto em que estética e técnica convergem e tornam explícito
um programa comum é o da afecção. A
compreensão do que possa estar em causa neste programa está bem para além das
discussões acerca das relações entre arte e técnica ou da emergência de novas
«artes tecnológicas» e implica, em primeira mão, uma recolocação mais ampla,
mas também mais precisa, da questão estética.
Na economia disciplinar do
pensamento moderno, a estética representou um ensaio de modulação da
afeccionalidade em geral, que permitiu enquadrar aspectos malditos da
experiência moderna, como os do prazer, das paixões e das sensações, transformando-os
na bem-dita e bem-vista, mas também bem abstracta «sensibilidade». O sucesso de
uma tal operação, fica a dever-se a uma maquinaria igualmente abstracta de
figuras, de categorias filosóficas e de topoi literários cuja função é a
de mediar simbolicamente e imaginariamente a afecção, de modo a que tudo aquilo
que nos pode (perigosamente) tocar, possa ser simultaneamente implicado na
experiência e desimplicado dos corpos. Problema e programa de ordem prática, e
só depois poética, que a estética assume aliás, desde o séc. XVII, em
concorrência explícita com a ética e a política.
Mediação do contacto e do impacto que a
afecção impõe, desafecção da afecção, portanto, tal foi o dispositivo estético.
Não sendo puramente lógicas, as suas operações não eram também nem éticas nem
políticas, apesar de visarem os corpos, e de estarem manifestamente ligadas a
um desejo de controlo da vida individual e colectiva. Sem recorrer ao conceito,
à lei ou ao contrato, o dispositivo estético introduz processos de constituição
da experiência sensível: o gosto, o sentimento do belo, o sentimento do
sublime, etc… , em suma, o que designa como «sensibilidade», síntese artificial
no interior da qual se des-integram as sensações, as emoções e os
desejos. Há pois uma produtividade
estética que desagrega a matéria da afecção para a sintetizar e recompôr de
novo, como acontece exemplarmente no caso do prazer estético enquanto prazer
desinteressado ou prazer sem prazer. Por processos similares, se
produz quotidianamente nos media terror
sem horror, comoção sem emoção, compaixão sem paixão, etc… Assim,
a exacerbação da produtividade estética, ou um certo processo de estetização da
experiência, frequentemente criticado como derrame da sensibilidade, acaba por
produzir, na verdade, uma estranha insensibilidade, como se os corpos se
encontrassem definitivamente desimplicados da experiência da afecção. E, de
facto, são cada vez mais frequentes os diagnósticos que associam a estetização
crescente a processos de anestesiamento da vida nas sociedades modernas.
Num olhar retrospectivo, a estética
poderia ser entendida como o primeiro grande dispositivo moderno de desafecção
ou de artificialização da sensibilidade, com o ojectivo específico de modalizar
e dar figura à substância traumatizante da afeccionalidade. Como se, de algum
modo, ela previsse e preparasse, como um ensaio experiencial, o confronto com a
vida contemporânea, marcada pela hiper-estimulação dos sentidos, pelo o
sobreaquecimento das emoções, e pela imposição do choque. Menos facilmente previsível, mas em todo caso
visível, a partir dos finais do século XIX, era o protagonismo que a técnica
deveria assumir neste processo, alimentando e controlando, através de uma aparelhagem densa, o jogo de afecção e de
desafecção da experiência. De facto, as afecções tornaram-se matéria
privilegiada da maquinação técnica moderna. E esses aparelhos chamam-se:
fotografia, cinema televisão, multimedia, redes cibernéticas e ambientes
virtuais - e é neste sentido, e só neste, que se pode falar de uma estética dos
media. Para Walter Benjamin, como se sabe, era já evidente, no iníco deste
século, que os novos dispositivos da imagem causavam comoção e impacto
generalizado e que, portanto, a substância da afeccionalidade estava a ser
penetrada pela aparelhagem técnica moderna, de um modo simultaneamente óptico e
táctil. Na sua perspectiva, esta penetração da cultura (e não apenas do
trabalho) pela técnica, libertava-a, entre outros aspectos, da estetização da
vida e dos seus respectivos efeitos políticos: auto-contemplação e
«auto-alienação» da humanidade pelo espectáculo de si mesma. Em contrapartida, Benjamin via na recepção
sensorial aparelhada pela técnica a possibilidade de um novo comportamento,
«caracterizado pelo facto do prazer do espectaculo e da vivência nele suscitar
uma ligação íntima e imediata com a atitude do observador especializado»[1] isto é, uma atitude examinadora e crítica.
As décadas que se seguiram provaram a
extrema lucidez de Benjamin a respeito da questão da técnica, mas também algum
excesso de expectativas. A aparelhamento técnico da cultura teve como efeito
dominante especializar o observador no próprio espectáculo, com a diferença de
que a possibilidade de «ligação íntima e directa» eliminava tendencialmente,
deste espectáculo, a distância cultural (nomeadamente estética) e tomava de
empréstimo as vias da natureza,
nomeadamente a das sensações e das afecções. Penetrado, e não substituído, pela
aparelhagem técnica, o dispositivo estético torna-se então tão eficaz e tão
efectivo na sua artificialidade, quanto a própria natureza. As novas máquinas
da afecção tornam a sensibilidade artificial tão real quanto necessário para
efectivamente sentir e padecer sem abandonar o seu torpor estético. O corpo
estético aparelhado pela técnica entra numa nova relação à natureza, tornando
evidente a crescente integração entre máquinas e organismos, mesmo nesse
estrato complexo e aparentemente sem regras da experiência humana que é o da
afecção. A equivalência que Deleuze propôs entre máquina, corpo e desejo
colocava aliás a hipótese, partilhada desde cedo por muitos pensadores da
técnica, de que «há tantos seres vivos na máquina como máquinas no seres vivos»[2]. A famosa fórmula de o Anti-Édipo, segundo a qual «a máquina é
desejante e o desejo, maquinado», mostrava que habitar um corpo era construir
«a sua pequena máquina própria, pronta segundo as circunstâncias a ligar-se a
outras máquinas colectivas»[3], técnicas e sociais. Maquinação conectada do corpo, do desejo e da
técnica, tal seria então, a produtividade
afectiva, produtividade que se pode acelerar ou desacelerar, aquecer ou
arrefecer, em suma experimentar e gerir. Esta maquinação da afecção, em que
estética e técnica convergem, é na verdade entendida por Deleuze como «uma
experimentação inevitável», «um programa» que recai igualmente sobre «corpus e
socius»[4].
Se tomarmos, nesta perspectiva, o conjunto
de máquinas que articulam o campo da comunicação, campo por excelência da
conexão, do contacto e do impacto, torna-se claro que elas constituem um
dipositivo planetário de produção e de gestão calculada da afecção,
fabricando-a, modalizando-a, intensificando-a ou entorpecendo-a. Um grande
número de máquinas modernas parece assim vocacionado para prosseguir o programa
de constituição de uma sensibilidade artificial, e dar-lhe o carácter de uma
efectiva experimentação com a
experiência. Experimentação para a qual, os dispositivos multimedia e
hipermedia, o ciberespaço e os sistemas de ambientes virtuais[5] constituem hoje importantíssimos «laboratórios». O espaço imaterial e
lógico do digital está assim a adquirir, pelo menos tendencialmente, a
densidade e a tangibilidade próprias
daquilo que podemos tocar e com o qual nos podemos relacionar sensorialmente e,
até mesmo, emocionalmente. É por isso que o debate em torno da da
potencialidade e da actualização, do real e do virtual, deixou de ser uma
discussão abstracta, ou uma avaliação das possibilidades puramente logiciais da
cibernética, tendo hoje lugar em torno de desses laboratórios de
experimentação com a experiência e dos novos interfaces que eles propõem
para conectar homem e máquina.
É importante relembrar, a este respeito,
que as primeiras teses de McLuhan sobre os novos media tecnológicos
foram bem sintomáticas da relação que a técnica viria a estabelecer, não apenas
com o domínio cognitivo, estendendo e automatizando algumas das nossas
operações lógicas e de cálculo, mas também com todo o nosso corpo e,
principalmente, com a sensorialidade. A hipótese de cada novo medium
ser, como sustentava McLuhan, uma espécie de «prótese» para cada uma das
funções do nosso organismo que se tornava necessário ampliar, especializar,
prolongar, etc… fazia antever que as mediações técnicas viriam a ter uma
importância fundamental ao nível da experiência sensível. Como diz McLuhan em Understanding
Media (1964): «Não é ao nível das ideias e dos conceitos que a tecnologia
tem os seus efeitos; são as relações dos sentidos e os modelos de percepção que
ela transforma a pouco e pouco e sem encontrar a menor resistência» (McLuhan,
1964/1968:37). McLuhan tem também plena consciência de que a criação de uma
estrutura tecnológica de sensibilidade artificial traz consigo
alterações que se manifestam ao nível da afeccionalidade em geral, nomeadamente
ao nível das emoções e das paixões, ou do que chamava um «clima emotivo». Nas
suas palavras, este clima sofre «arrefecimentos» e «aquecimentos», com
consequências nomeadamente políticas no conjunto da sociedade[6].
A própria investigação das ciências
cognitivas, cujos progressos e impasses vão necessariamente enquadrando as
ambições e as limitações da cibernética, encontra-se hoje especialmente voltada
para as nossas experiências de afecção,
nomeadamente emocionais[7]. Paralelamente, a máquina informática
deixa de se pensar apenas segundo o ideal da «máquina inteligente», da máquina
que pensa, ou da inteligência artificial, mas também em função da hipótese de
uma sensibilidade artificial, de uma «máquina que sente» ou do que alguns
propõem já como «affective computing»[8]. A fabricação hard e soft desta sensibilidade artificial
está aliás em marcha, nomeadamente com os dispositivos wearables como o headmounted
display, as luvas, os sensores, etc… e toda uma nova série de interfaces
visuais, auditivos e tácteis. Se as novas máquinas não são ainda realmente
sensitivas, são pelos menos crescentemente integradoras da multisensorialidade,
razão pela qual a noção de multimedia (off
line e on line), mesmo se tecnologicamente vaga, designa um número
crescente de suportes e de produtos. Cada vez mais, a construção dos sistemas
informáticos toma em atenção a relação entre estruturas sonoras, visuais e
cinéticas e modelos formais (numéricos e lógicos) que as possam descrever. Dois
exemplos simples existentes e já plenamente integrados são os sintetizadores e as paletas gráficas. Os
casos mais ousados pertencem aos sistemas de simulação de ambientes virtuais
(desenvolvidos, como se sabe, partir dos simuladores de vôo) com integração de
informação visual, sonora, cinética e táctil, abrindo a possibilidade da
relação homem-máquina se fazer pelos principais canais sensoriais e motores.
Um dos aspectos mais importantes desta
situação é o facto de, pela primeira vez, o aparelhamento técnico da percepção
não incidir privilegiadamente na visão, mas antes num modelo multisensorial. É
curioso relembrar que Benjamin falava já duma necessária perda de relevância da
visão, a respeito do próprio cinema. A novidade do cinema, enquanto dispositivo
óptico, era a de que ele possuía uma «qualidade táctil», a qual advinha
sobretudo da técnica da montagem. Ora, o mais importante é que, para Benjamin,
esta nova qualidade perceptiva respondia a uma necessidade histórica da própria
experiência humana pois, como diz: «as tarefas que são apresentadas ao aparelho
de percepção humana, em épocas de mudança histórica, não podem ser resolvidas
por meios apenas visuais, ou seja da contemplação. Elas só são dominadas
gradualmente, pelo hábito, após a aproximação da recepção táctil»[9]. É importante notar que, ainda hoje, as «alterações no medium da
percepção» (para usar a expressão de Benjamin), continuam a pôr na ordem do dia
a perda da centralidade da visão e uma certa revalorização do táctil, como se
desta reconfiguração da sensorialidade humana dependesse, de facto, como
sugeria Benjamin, a possibilidade de nos posicionarmos relativamente às
transformações radicais da nossa experiência, em vez de sermos delas meros
espectadores.
É um facto que o modo de hierarquização e
de organização das tarefas da percepção não constituem uma condição puramente
biológica, dada à partida, e que a sua forma histórica decide, a cada momento,
aspectos fundamentais da nossa experiência. No caso do olho, Jonhatan Crary
mostra bem que a visão moderna consistiu fundamentalmente num conjunto de
técnicas para constuir o sujeito em observador[10]. Deste processo fez parte, precisamente, a dissociação entre o tacto e o
acto de ver, que se encontravam ainda integrados no caso da concepção clássica
da visão. Distinção e sobrevalorização da visão, de consequências determinantes
em termos científicos, filosóficos e políticos. Boa parte do pensamento crítico
moderno tem consistido, aliás, no desmascaramento desta centralidade da visão,
como teoria, panóptico ou espectáculo. Em A sociedade
do Espectáculo, também Debord relaciona a imposição do «espectáculo» com a
sobrevalorização da visão, em detrimento dos outros sentidos, nomeadamente o do
tacto: «Uma vez que a função do espectáculo é a de fazer com que o mundo deixe
de ser directamente perceptível, para ser visto através de diversas
mediações, é inevitável que procurasse elevar o sentido humano da visão ao
lugar especial que era anteriormente ocupado pelo tacto; a visão, como o mais
abstracto dos sentidos, e o mais facilmente enganado, é hoje naturalmente o
sentido mais prontamente adaptável à abstracção generalizada da sociedade»[11].
Neste ponto largamente consciencializado -
o dos efeitos preversos da centralidade da visão - muitos parecem estar, pois, de acordo. E o entusiasmo actual em torno do multimedia, do hipermedia e a
sua culminação no desejo de imersão total tem ainda, como programa implícito,
uma superação dessa centralidade da visão. Os interfaces sensoriais
multiplicam-se e as «técnicas do observador» são pelo menos complementadas por
um conjunto de «técnicas do utilizador», que tornam o espectador, não
propriamente activo, mas menos puramente retiniano. Em consequência, o
espectáculo, conjuntamente maquinado pelo espectador, parece sofrer um efeito de implosão num espaço caótico, que vai
dissolvendo a topologia rígida do palco, dos bastidores e da plateia. Neste
programa tecnológico assume assim particular relevância, não apenas o
acrescento da interactvidade, mas a implicação de outras dimensões da
percepção, na certeza de que o «espectáculo» não cederá lugar à «participação»
pela simples introdução de mecanismos partilhados de controlo ou manipulação
dos novos media, exigindo ainda a introdução, no sistema, de uma sensorialidade
complexa, estimulável e reactiva, isto é, a sua transformação numa espécie de
ecosistema tecnológico. O projecto que David Rokeby desenvolve desde 1983, e
que intitula «Very Nervous System», (desenvolvidada desde 1983), é bem significativo deste tipo de preocupações. Centrado
num conjunto de diversas interacções não-visuais, usa nomeadamente o som e o
movimento para produzir um sistema altamente «sensível», no qual a percepção
tecnicamente mediada parece adquirir uma nova tangibilidade.
A maior parte das actuais propostas
multimedia interactivas continuam, no entanto, a não dispensar o ecrã e a
exibir efeitos fundamentalmente visuais, mesmo quando há diversos tipos de
interfaces envolvidos. É o caso da famosa visita a uma cidade que percorremos
visualmente, ao mesmo tempo que pedalamos numa bibicleta fixa diante de um
enorme ecrã (de Jeffrey Shaw), das plantas virtuais que vemos crescer a um
gesto nosso (de Christa Sommer e Laurent Mignonneau), ou dos objectos virtuais
que, diante dos nossos olhos, resistem à força e à duração de um sopro (de
Edmond Couchot). Dispositivos com os quais podemos interagir, de vários modos
(gestos dos dedos, movimentos dos braços, das pernas, do rosto, deslocações no
espaço, etc…) sem contudo abandonarmos completamente o papel de espectadores. A
aparente multisensorialidade da
estética informacional é assim desmentida por uma série de experiências
interactivas que permanecem fundamentalmente visuais. Um projecto recentemente
implementado na world wide web, «T-Vison»[12], assinala precisamente uma certa obsessão da visibilidade relativamente ao
ciberespaço. Nesta proposta, o utilizador manipula a figura de um globo
terrestre apresentado no ecrã, composta de um conjunto de imagens de satélite e
de fotos aéreas. Cada uma delas permite um zoom que nos mergulha na
visão de conjunto de uma cidade, de uma das suas ruas, ou mesmo, do interior de
uma das suas casas, levando-nos acompanhar, em tempo real, o registo permanente
de uma câmara video. Mesmo os sistemas de construção de «ambientes virtuais»
são ainda «basicamente, aparelhos de visão», no dizer de Simon Penny. Isto é,
uma «metaforização do espaço digital no interior do visível»[13], como revelam inclusivamente algumas das suas operações mais sofisticada,
tais como a experiência de elevação ou da perda de peso, que se resumem afinal
na experiência de uma espécie de «flying eye».
Este tipo de insuficiências mostram, de
facto, o quanto a própria tecnologia digital se encontra ainda longe da
multisensorialidade e, ao mesmo tempo, presa da primeira grande revolução dos
computadores, nesta matéria, que foi
afinal a do visual display. Em todo o caso, e também aqui, não nos
deixemos enganar pelos nossos olhos, ou melhor, não nos deixemos enganar a
respeito do que é ver. A experiência do multimedia e do hipermedia, mesmo com
todas as suas limitações, e mesmo quando insiste no campo da visão, não nos
deve fazer esquecer o facto de «a visibilidade se situar crescentemente num
terreno cibernético e electromagnético»[14], ou o facto de que «o computador não pode simular e tornar visível senão
aquilo que é já inteligível[15]. A visibilidade, tal como tem lugar no universo informacional dos novos
meios revela-se uma realidade profundamente abstracta. Na verdade, a própria
neurofisiologia moderna demonstrou que a nossa visão não é um mero processo de
recepção de imagens invertidas pela retina, mas sim um processo complexo de
codificação e descodificação de informação, envolvendo partes específicas do
nosso cérebro. E é esta qualidade propriamente informacional da visão que o
digital na verdade revela e acompanha, como nenhum outro dispositivo
tecnológico anterior a ele.
O modo como percepcionamos a paisagem
crescentemente digitalizada que nos rodeia responde, de facto, a «novas tarefas
da percepção» e contém, efectivamente, «alterações no medium da
percepção» (como dizia Benjamin), mesmo no caso da percepção visual. Para estas
novas tarefas e novas performances da percepção, que resultam de novas sínteses
artificiais, a cultura digital propõe já novos conceitos: o conceito de «ciberpercepção», como «antítese do pensamento linear», como
percepção «all-at-once», isto é, percepção imediata e completa de «uma
multiplicidade de pontos de vista, que activa em toda a extensão as dimensões
do pensamento associativo», como
«reconhecimento da transitoriedade de todas as hipóteses, da
relatividade de todo o saber e da impermanência de toda a percepção»; o
conceito de «telepresciência», como capacidade para «anticipar e prever
mais rapidamente e com maior alcance»; ou a «telenóia», como actividade
«inclusiva e colaborativa» permanente que exige a capacidade de orientação «em
redes transpessoais de espíritos e de imaginações»[16] .
A ciberpercepção representaria assim o
conjunto transformado e alargado das nossas actividades perceptivas, no
interior do qual a actual diversidade dos sentidos (visual, auditivo, táctil,
etc…) seria redefinida, re-hierarquizada e possivelmente acrescentada. Isto é,
a nova sensibilidade artificial não se constitui por mera adaptação e
capacidade de conexão das máquinas com os nossos diferentes órgãos sensoriais e
suas funções. Pelo contrário, e como sugere Deleuze, é o nosso corpo que
primeiro perde a certeza e a necessidade dos seus órgãos e das suas funções. E,
neste ponto (pelo menos), Deleuze é ainda Mcluhaniano. De facto, um dos
aspectos mais interessantes das antecipações de McLuhan a respeito da
constituição tecnológica de uma sensibilidade artificial, é o facto de ele ter
compreendido bem que a sua lógica
radica numa inevitável amputação. Apesar
da maior parte dos seus comentadores reter daqui a ideia de um corpo
progressivamente protésico, onde cada orgão vai sendo substituído por mais uma
pequena máquina, a verdade é que a hipótese de Mcluhan é bem mais radical do
que esta lógica construtivista e imaginária, mais ou menos robótica, do corpo
híbrido, a caminho do pós-orgânico. O novo corpo e a nova experiência sensível
resultariam antes de uma síntese verdadeiramente outra, de uma constituição
radicalmente diferente da experiência, no caso, a cibernética. O «corpo sem orgãos» seria o resultado da
amputação do próprio sistema nervoso central, pois, «com o advento da
tecnologia eléctrica, o homem projectou a instalação no exterior de si de um
modelo reduzido do seu sistema nervoso central»[17]. Neste caso «particular», mas globalmente decisivo para todas as nossas
actividades, sejam elas lógicas, sensoriais, motoras ou emotivas, o
funcionamento maquínico não necessitaria mais de distingur entre o visível e o táctil,
entre o audível e o legível, entre o táctil e o cinético, etc…, nem entre o
abstracto e o sensível. Esta hipótese é de facto a hipótese cibernética, no
estadio da tradutibilidade absoluta de todos os dados sensíveis em informação e
da informação em tangibilidade, e o digital, mesmo como o conhecemos hoje,
parece estar já no caminho desta ambição. Esta situação é metaforizada por
McLuhan com uma imgem que ficou célebre: este seria o momento em que
transportaríamos ou experimentaríamos como «pele»[18] toda a experiência.
Semelhante prognóstico só poderá apanhar
de surpresa aqueles que acreditam excessivamente no carácter logicial da razão,
ou aqueles que acreditam excessivamente no carácter irracional da afecção. Na
verdade, toda a experiência e pensamento humanos mostram-nos, desde há muito,
que assim não é, apesar desta discussão (sempre recorrente, pelo menos no
ocidente), conhecer hoje o entusiamo algo ingénuo de uma (falsa) novidade,
nomeadamente no domínio das ciências. No seu estado actual de evolução, a técnica, a tecno-ciência, e as suas
máquinas não fazem mais do que revelar uma condição da própria racionalidade: a
de que inteligibilidade e sensibilidade não são realmente separáveis. Ou ainda,
se quisermos, uma condição propriamente mundana da razão: a de que mesmo
simbolicamente ou imaginariamente, ela sempre teve «pele», mesmo quando, para o
bem e para o mal, lhe é permitido esquecer que tem corpo. Neste sentido, a
«pele» tecnológica não cumprirá funções muito diferentes das que já conhecíamos
bem, funcionando como uma superfície disponível para afecção, que
simultaneamente dispõe dos corpos e os protege. Será possivelmente mais
plástica e transitiva, podendo migrar de corpo para corpo e dos corpos para as
coisas. Tal como nos é possível hoje ver, ouvir e sentir de modos directamente
desconhecidos pelo nosso corpo, também o meio à nossa volta, como diz Roy
Ascott, se pôs «olhar-nos, ouvir-nos e sentir-nos, de um modo cada vez mais
fino»[19], das câmaras de vigilância das instituiçoes públicas, até à imensa rede de
satélites que povam o espaço. Sejam quais forem as transformações profundas,
secretas, metafísicas, ou simplesmente imprevisíveis que estão em curso na
aventura tecnológica da experiência moderna, poderemos pois estar certos de que
não deixaremos de as sentir … na pele.
* No prelo (data prevista de publicação
- Fevereiro de 2000)
** Docente do
Departamento de Ciências da Comunicação da Faculdade de ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa
[1] W. Benjamin,
«A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica», in Sobre arte,
técnica, linguagem e política, Lisboa, Relógio d? Água, 1992, p. 110.
[2] Gilles
Deleuze, O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia, Assírio &
Alvim1972, p. 230.
[3] Deleuze, Dialogues, Champ Flammarion, 1999, p. 199
[4] G. Deleuze, «Comment se faire un corps sans organes?» in Mille Plateaux, Minuit, 1980, p. 188.
[5] Uma explicação
técnica simplificada daquilo em que consistem as experiências num ambiente
virtual, pode ser apresentada do seguinte modo: são experiências sensórias
sintéticas que comunicam componentes físicas e abstractas a um operador humano
ou participante. A experiência sensória sintéctica é gerada por um sistema de
computador que tende cada vez mais a dispor de interfaces com o sistema sensório
humano de modo a que essas experiências apresentem na sua maior diversidade
possível atributos do mundo real (cfr. Kalawsky, 1994, «Virtual environment
systems»: 1-16).
[6] É notório o
modo como McLuhan descreve já então o processo tecnológico de uma gestão da
afectividade em geral e das suas manifestações nos mais diversos domínios da
experiência. Em «Os media quentes e frios» (McLuhan, 1964: 41-52),
McLuhan fala de «media quentes» que tendem a arrefecer o clima de uma
sociedade, assim como dos efeitos de «sobreaquecimento» ou de grande
mobilização afectiva que podem provocar os «media frios», numa sociedade
pouco alfabetizada; ao mesmo tempo que esses mesmos media, no caso de
uma sociedade desenvolvida, podem conduzir a uma mobilização afectiva que vai
apenas no sentido do puro divertmento. A este género de tipologias bem
caracterísitcas da sua linguagem teórica aparentemente imprecisa, McLuhan
acrescenta a seguinte reflexão: «A regularização do “clima emotivo” provocado
pela acção dos media quentes e frios não pode contudo ser feita com o
mesmo rigor com que aprendemos a estabilizar a economia mundial» (McLuhan,
1964: 47).
[7] Veja-se a
importância reconhecida dos trabalhos de António Damásio, nomeadamente
prosseguidos no seu último livro, The feeling of what happens, tem sido
disso testemunho.
[8] E não é por
certo desprezível que a linhagem desta nova área de investigação parta
directamente de Marvin Minsky, nome importante no domínio da inteligência
artificial, através de uma das suas discípulas directas, Rosalind Picard. Desta
autora veja-se, nomeadamente, Affective Computing (MIT Press, 1997).
[9] Walter Benjamin, idem, p. 101.
[10] Cf. Jonathan Crary, Techniques of the
Observer, Cambridge, Mass., MIT Press, 1990. Nesta obra, Crary
reavalia a nossa cultura visual moderna como estreitamente ligada à construção
histórica do sujeito espectador. Desta genealogia da visão fazem parte momentos
fundamentais como os da invenção da perspectiva, da fotografia e do cinema, com
uma atenção especial a estes novos dispositivos da imagem surgidos no século
XIX, os quais, segundo Crary teriam introduzido uma experiência da visibilidade
propriamente localizada no corpo, e que designa como «visão subjectiva» ou
ainda como um corpo que vê.
[11] Guy Debord, A
Sociedade do Escpectáculo, Secção 18.
[12] Criado pelo
Art+Com Group, sediado em Berlin.
[13] Simon Penny «From A to D and Back again. The emerging asthetics of interactive art», in Leonardo (Abril, 1999).
[14] J. Crary, op cit, p. 2.
[15] Edmond Couchot, «Vision, Corps et Mouvement», in Les Cinqu Sens de la Création, Paris, Champ Vallon, 1996, p.128.
[16] Esta recensão,
onde têm lugar muitos outros conceitos, é feita por Roy Ascott em
«L’architecture de la ciberperception», in Les Cinqu Sens de la Création,
Paris, Champ Vallon, 1996.
[17] McLuhan, Understanding Media, 1964, p. 63.
[18] McLuhan, op. cit., p. 68.