O filme etnográfico em Portugal: condicionantes à realização de três filmes etnográficos
Novembro
1998
A apresentação que quero fazer
aqui tem uma vertente visual, ou seja, é baseada no visionamento da imagens de
excertos de três filmes etnográficos que realizei, Regresso à Terra (1993),
Senhora Aparecida (1994), Swagatam (1998). Trata-se de três olhares distintos e
de três trabalhos que resultam de um conjunto de condições práticas (de
produção); de condições teóricas, i.e relativas às minhas preocupações e pontos
de vista enquanto antropóloga e, finalmente resultam do confronto com três
realidades sociais muito distintas e concretas. Gostaria aqui resumidamente de
falar das três condicionantes como forma de introduzir os excertos, que
mostrarei de seguida. Começarei pelas condicionantes teóricas, e é neste
primeiro ponto que me vou alongar um pouco mais num historial do filme
etnográfico, seguidamente tratarei resumidamente as condicionantes geradas pela
dinâmica social das pessoas que filmava durante a rodagem e finalmente tratarei
das condicionantes práticas, de produção. Quero enfim enunciar as
características de um percurso que se move entre a academia e a indústria
televisiva, num quadro de uma área bem difícil de definir: a Antropologia
Visual.
Condicionantes teóricos: o filme
etnográfico como resultado da pesquisa antropológica
Gostava de partir da ideia de que
o Filme Etnográfico é uma representação da realidade, uma construção que passa
pelas ideologias e interesses de quem o faz, dos que nele participam como
personagens, e ainda pelas de quem o vê, partindo do princípio também de que a
Antropologia perdeu, de certo modo, a "inocência epistemológica". Nos
anos 70, quando o campo da Antropologia Visual começa a ser assim designado e
se tentam encontrar definições para aquilo que é o filme etnográfico,
defende-se que este tipo de filme obedece a determinados critérios tais como o
serem sobre o total de uma cultura ou parte definida dela; o terem em conta
"teorias da cultura", implícita ou explicitamente; o facto de darem
conta da investigação e dos métodos de filmagem e o facto de usarem um léxico
antropológico.
Margaret Mead, uma das primeiras
pessoas a usar a câmara na sua investigação, contribuiu para a definição desta
área, defendendo que há uma prisão à escrita e a antropologia é antes de mais
"verbal", baseada nas palavras dos informantes e não tanto na observação
dos acontecimentos e que cinema e fotografia exprimem uma especialização, uma
habilidade que deve ser treinada pelos antropólogos. Para Mead, o filme permite
anotar, conservar e repetir de modo a analisar detalhadamente as situações
sociais. Nesta visão, a Antropologia centra-se na preservação de documentos
culturais, assim como com na divulgação humanitária.
Uma tentativa de definição do filme etnográfico levanta questões à própria
noção das ciências sociais. Como explicar que desde os anos 20, em Inglaterra,
o documentário se tenha desenvolvido (com Grierson) o que não teve qualquer
influência na comunidade antropológica? Apesar de muitos antropólogos levarem
câmaras para o trabalho de campo, os resultados nunca deram origem a uma
"escola" ou "movimento". Radcliffe-Brown, por exemplo,
preocupava-se com uma "ciência da sociedade" baseada em princípios da
estrutura social abstraídos das descrições etnográficas. Estas eram organizadas
em tipologias de que se retiravam princípios gerais, tal como nas ciências
ditas naturais. A metodologia do estrutural-funcionalismo baseava-se nas ideias
de abstracção e generalização.
Em contraste, o
documentarismo ou a Imagem visual tende a ser particular e concreta, e embora
possa servir para ilustrar um princípio abstracto, não serve para fazer
demonstrações abstractas. Neste paradigma, a cultura, no sentido mais geral, é
reduzida ao estatuto de ideologia. Até aos anos 60, a antropologia era
essencialmente "intelectualista" e não tanto "sociológica".
Em França, pelo contrário, o
filme etnográfico era mais compatível com a tendência para a etnologia (no
sentido de uma descrição, conservação dos costumes, artes tradicionais, etc). Na
Alemanha, o folclorismo e a tendência para o formalismo levam à procura de
objectividade nos filmes, surgindo a ideia de criar arquivos visuais dos grupos
sociais de acordo com a etnia e a actividade.
A partir dos anos 60, deixa de haver uma ortodoxia inquestionável e tendem a
terminar vários movimentos que se desenvolvem mais ou menos do estruturalismo,
marxismo, sociobiologia, etc. Actualmente, vivemos uma suspensão da autoridade
paradigmática na antropologia. A nova postura teórica levou a um maior
interesse na Antropologia Visual dentro da comunidade académica, de vários
modos.
Primeiro, pela ênfase na
reflexividade, no processo pelo qual o conhecimento antropológico é gerado no
campo e representado na escrita. Há uma maior preocupação pelo modo como a
relação pessoal com os informantes influencia o tipo de conhecimento derivado
da experiência. Há uma afirmação da inter-subjectividade na Antropologia, que
parte de uma relação entre duas partes que é particular, única. Segundo, pela
ênfase na investigação de novas formas de descrição etnográfica de casos
particulares. Terceiro, pela ideia de que não existe uma só verdade, o projecto
da antropologia seria o de juntar vozes, visões diferentes ( cf.- o conceito de
polifonia de Clifford). Em quarto lugar, e por último, pela ênfase na ideia de
interpretação dos discursos indígenas, põe-se em causa e salienta-se o lado
subjectivo, fala-se da "autoridade da escrita etnográfica"
Falámos das condições que criaram
a hipótese do surgimento deste tipo de filmes como área dentro das ciências
sociais, no entanto, não podemos esquecer que o próprio Documentário enquanto
género cinematográfico também sofreu modificações que influenciaram o filme
etnográfico. Peter Loizos resumiu recentemente, as grandes inovações sofridas
pelo filme etnográfico: O desenvolvimento das técnicas, fundamentalmente o
grande impacto do uso dos microfones ligados à câmara nos anos 60, a maior
sensibilidade das câmaras de 16mm, etc; A utilização de conteúdos mais
diversos, a acompanhar novas áreas da antropologia, conteúdos estes marcados
pela ideia de um actor social com decisões e dilemas próprios. Em Swagatam, por
exemplo, trato um quotidiano de aparência trivial mas que torna mais visível
aquela comunidade do que as situações de excepção. Em Senhora Aparecida, trato
uma situacão de excepção.
Loizos fala ainda de um uso de estratégias
na narrativa mais desenvolvidas, nomeadamente o uso de mais do que uma
"voz" nos filmes. O comentário em off (a voz do expert, impessoal,
distante e colonial) é substituído pelo discurso expontâneo, das pessoas. Finalmente
Loizos refere que os filmes tem uma autenticidade etnográfica cada vez maior
uma vez que se produzem textos, permitindo a contextualização e uma maior
informação sobre o tema do filme.
Basicamente, dentro do cinema documental, podemos ver: ou os filmes feitos por
antropólogos num contexto académico, e em que normalmente há um sacrifício da
forma ou os filmes dos cineastas sobre temas que interessam as ciências
sociais, mas em que há um sacrifício do conteúdo, que se deve a razões várias,
nomeadamente ao facto da produção de documentários estar cada vez mais
associada à televisão. Actualmente, devemos situar-nos face às industrias da
imagem com as quais competimos. O nosso acesso especializado ao 'local
knowledge' (Geerts,1983) existe num mundo marcado pela tecnologia e instituições
televisivas, um 'global village' no qual os dilemas e as possibilidades do
filme etnográfico são cada vez mais complexos.
Mesmo no interior de uma estação de tv particular, os interesses do Estado, dos
gestores, publicitários e equipas entram todos na mesma equação que determina
não somente a forma, mas a existência mesma dos filmes. Tudo se passa como se,
para os produtores de televisão, o público exigisse sempre que as etnografias
televisivas não tratassem senão de povos sem história, mesmo se a antiguidade
de uma tradição e as ameaças que sofre foram tratadas. Não podemos negar que a
televisão ocupa um grau muito elevado na escala das distorções introduzidas
pela intrusão dos antropólogos!
No entanto, penso que o problema principal do filme como resultado de um
trabalho de pesquisa é o facto de a distância entre a realidade e a
representação da realidade ser negada, ou seja, a visibilidade das coisas é o
critério para chegar à realidade (o "eu vi", as imagens como prova) o
que se deve à aparente materialidade do filme enquanto meio.
Trata-se de ter em conta as
especificidades da linguagem audiovisual, reduzindo o número de 'objectos' e
personagens considerados. Trata-se, antes de mais, de apresentar sempre os
fenômenos humanos de modo global e no seu contexto, apoiar-se nos momentos de
empatia do espectador, focar a atenção pela montagem e a construção
dramatúrgica.
Um cinema inter-textual poderia
adoptar formas mais complexas como a inclusão de vozes múltiplas, o recurso a
interpretações diferentes, a montagem de materiais provenientes de realizadores
diferentes, a sobreposição de antigos textos com novos, etc. Esta aproximação
colocaria o filme etnográfico numa melhor situação para confrontar visões
opostas de uma mesma realidade e assegurar a reciprocidade de experiências. Mas
o filme etnográfico foi claro ao mostrar particularidades da vida, tanto usando
as teorias indígenas como as explicações antropológicas. Portanto, uma
antropologia visual conceptual, manejando ideias, é possível; mas ela deve ser
capaz de mostrar o seu sentido profundo, do interior de uma sociedade, em vez
de apresentar as coisas de um modo didáctico, do exterior.
Idealmente, um filme deveria
seleccionar as situações, as palavras, os momentos mais significativos,
evidenciar elementos simbólicos, enfim, construir uma nova realidade (a do
filme), que dá a ilusão e a compreensão da realidade filmada. Quando se deixa
de usar a câmara para documentar a vida social (como um instrumento de recolha)
e se passa a usá-la como meio de expressão, para examinar ao detalhe a vida
social, o processo de filmar pode, penso eu, representar o evento observado. Em
Senhora Aparecida, estou ainda mais a fazer cinema de observação, limito-me ao
que ocorre naturalmente e espontaneamente em frente à câmara: este método
baseia-se na propensão das pessoas para falarem de si, da sociedade, do passado
e do presente. As questões emergem progressivamente, as descobertas associam-se
intimamente com o processo de recolha em imagem e som.
Condicionantes práticos:
condições de produção
O primeiro filme que vou mostrar
corresponde à minha tese de mestrado para a Universidade de Manchester. Aqui, a
abordagem e o tópico corresponde a um trabalho clássico da antropologia. O tema
tratado era a questão da identidade social daqueles que emigram, durante a sua
estadia em férias na aldeia de origem.
No segundo filme, um produtor tem uma boa ideia, fazer o registo de uma festa
em que se promete à Santa, a Senhora Aparecida, ir dentro de um caixão. O
projecto tinha já apoios e um guião que rejeitei, tendo então pedido dois meses
de trabalho de campo, sozinha, no local. Ao esquema de produção típico de um
documentário para televisão sobrepus uma preocupação de fazer alguma
investigação. No entanto, trabalhei com uma equipe técnica de pessoas vindas da
indústria televisiva com quem o diálogo por vezes era complicado.
No caso do terceiro filme, trata-se uma vez mais de uma proposta: retratar a
comunidade hindu em Lisboa. Aqui elaborei a pesquisa muito mais demoradamente e
com a colaboração de um antropólogo e consultoria científica de uma
especialista em hinduísmo. Sabia já que o tempo de rodagem era essencial por
isso decidi usar um formato mais barato (DV, vídeo digital) e poder assim ter
uma rodagem mais longa. Trabalhei desta vez com uma equipe reduzida.
(visionamento dos excertos)
REGRESSO.À TERRA (sinopse) Numa
pequena aldeia isolada na Serra D'Arga, no Norte de Portugal, espera-se
ansiosamente a chegada dos emigrantes que regressam de férias. Durante dois
meses, dá-se então este encontro com a família, os amigos, ou o Santo
padroeiro. Apesar do contraste cultural entre os que ficam e os que partem, a
identidade dos emigrantes constrói-se com base nesta ligação ao rural, à terra
...
Condicionantes que emergem do
confronto com o real: a questão da representação em filme etnográfico
SENHORA APARECIDA (sinopse) A
acção do filme passa-se no lugar da Aparecida, Sanfins do Tomo, pertencente ao
chamado "vale do Ave", zona Industrial por excelência. Aqui se
realizam, todos os anos, as festas à Senhora Aparecida, exuberantes e marcadas
por urna procissão de andores grandiosa e, por outro lado, por uma outra
procissão, desta feita de promessas à Santa, em que os fieis são deitados em
caixões simulando um rito de morte. O filme relata os acontecimentos que se
seguiram à proibição, feita pelo jovem padre, da realização desta ultima
procissão.
SWAGATAM (BEM VINDOS) (sinopse)
Lisboa tem a segunda maior comunidade de hindus da Europa. Este filme retrata
esta comunidade, centrando-se numa familia originária de Diu, que depois
emigrou para Moçambique e daí, em 1976, para Lisboa. O filme retrata o
contraste e o conflito entre este grupo de famílias de Diu, de casta baixa com
o grupo de Lohanas, a casta dos comerciantes. Um novo templo está a ser
construído, no entanto no pátio de sua casa a família Carsane faz ainda as suas
festas e rituais alternativos.
Quero aqui apenas fornecer pistas
para tratar um tópico que me parece muito interessante aprofundar: a forma como
as situações sociais com que nos deparamos influenciam e marcam o filme
etnográfico. Esta questão tem a ver com uma outra mais alargada: o que é que os
nossos personagens esperam da representação que fazemos deles e, mais ainda,
até que ponto este olhar indígena pode ser incluído no filme?.
No caso do Regresso à Terra a questão era clara: as pessoas esperavam que eu
retratasse o mundo arcaico, das tradições, aquilo que tem para elas um valor de
cultura transmissível e, das coisas que permanecem (as danças, as técnicas
tradicionais agrícolas). Eu retratei então este mundo criando o contraste com o
das novas gerações dos jovens filhos de emigrantes em férias. A longa estadia
no terreno permitiu, obviamente, a partilha com as pessoas do visionamento do
material que ia sendo filmado.
No caso da Senhora Aparecida, a
negociação entre quem queria ser filmado e quem não queria ser filmado foi-se
fazendo. No entanto, de certo modo a situação era de tal modo de excepção, como
expliquei antes, que tanto nós, que filmávamos como eles, que eram filmados,
nos deixávamos surpreender pelo decorrer dos acontecimentos. Obviamente, a
câmara serviu aqui de catalisador para o desenrolar da história e também para a
verbalização em tomo daquilo que ia acontecendo.
No caso de Swagatam, apesar da pesquisa e do trabalho de campo, a realidade
hindu surgia-nos distante, difícil de compreender. As barreiras linguísticas e
culturais, assim como o fechamento próprio de uma pequena comunidade
"exilada" do seu pais de origem, aliadas a um forte conhecimento por
parte das pessoas dos mecanismos cinematográficos, fizeram com que o olhar
fosse de uma forma muito mais forte exterior ao mundo que retratava. Assim, foi
decidido durante a montagem que o pátio funcionaria como uma espécie de palco
onde vemos as coisas acontecer, retiraram-se conversas e confissões e usaram-se
em vez planos silenciosos e longos, entrecortados por uma voz de rádio que não
é mais do que a tradução cultural daquelas situações feita para fora. Assim, o
filme retrata a representação dos personagens que eles querem dar mais do que a
sua intimidade e emoções. Por isso foram os próprios que filmaram a ida à
India, que depois revêm com entusiasmo e humor.
Concluindo assim a minha comunicação, parece-me que há um campo aberto para a
Antropologia Visual: a reflexão em texto e, mais importante ainda, na linguagem
cinematográfica usada, em torno da representação do outro, representação esta
que, e é isso que tento fazer nos meus filmes, deve estar em constante diálogo
com a representação que este tem de si próprio. É aqui que se joga a grande
questão do documentário: a ética.