Novos desafios ao espaço público: subjectividade e "cultura de massa"

João Carlos Correia, Universidade da Beira Interior


 


Introdução - Os Novos desafios do espaço público
I - Comunidade, identidade e movimentos sociais
II - As novas relações entre o público e o privado
III - O papel dos media. Visibilidade mediática e publicidade: a recuperação da ideia de público.

Introdução - Os novos desafios do espaço público: reconhecimento de tendências e apresentação do problema

Os principais problemas que pretendo questionar na minha intervenção são os seguintes: a) qual é a possibilidade da mediação de subjectividades, tendo em conta os desafios que as sociedades complexas enfrentam em face da crescente diferenciação e multiplicação de identidades? b) de que forma, essa preocupação se equaciona com o agir mediático, sabendo nós que a ligação entre a experiência política e a experiência comunicacional é um dado adquirido, desde o Iluminismo? c) Por último, de que forma as possibilidades das novas identidades assumem uma dimensão emancapatória de respeito crítico pela pluralidade ou apenas se esgotam numa exploração mercantil dessa mesma diversidade, reproduzindo os desejos do mercado? As questões não são simples, sobretudo, se tivermos em conta que olhar para a diferença identitária supõe uma forte componente normativa e crítica: o problema da integração da diversidade implica que nos questionemos acerca de como decidir entre multiplas pretensões de validade que, de forma crescente, competem na luta pelo seu reconhecimento pela possibilidade de alcançarem visibilidade pública. O problema chave é saber se a transformação dos "eu quero" individuais num "eu devo" colectivo pode ser concretizada especialmente quando se sabe que os critérios de fundamentação e avaliação das pretensões à validade são apreciados por padrões circunstancialmente fundados. Importa, por isso, que lancemos esta questão incómoda: que significa vivermos juntos com as nossas diferenças? (1)
Ao colocar-se esta questão é o próprio problema do alcance de um consenso social que é posto em jogo. Sendo o consenso a forma de mediação de vontades individuais e colectivas, que permite o assentimento e a convergência de todos na adopção de uma certa orientação social (2) a verdade é que existem diversas formas de mediação dessas vontades no que diz respeito ao grau de participação que os actores possuem. Numa particular deriva do pensamento social, supôs-se uma socialização tão uniforme dos membros da sociedade que se acreditou que estes só possam querer o que lhes foi prescrito, que só possam agir de acordo com o programa inscrito na consciência colectiva. (3) Ora o problema que se coloca é, precisamente, o de garantir que a assimilação de vontades se faça com o participação dos actores sociais no decorrer de um processo no qual se garanta o reconhecimento da legitimidade da diferença, não reduzindo, porém, tal diferença nem a um mero factor de perturbação da eficácia do sistema, nem a uma simples manifestação das exigências do mercado, exigências estas cada vez mais subtis na forma como se apropriam no desejo de reconhecimento das identidades para as reduzirem a «simples tendências». Nesse sentido, os consensos que aqui se desejam supõem uma dimensão normativa, implicando a existência de um debate, no qual os participantes, com o recurso ao uso da argumentação, adoptam uma orientação, de acordo com o exame crítico efectuado no decorrer da troca dialógica de argumentos. Não significa isto a existência de uma consensualidade ideal: não existe sociedade sem conflitos e diferendos nem nos devemos esquecer dos interesses contraditórios e plurais dos actores sociais, investidos em diferentes relações de poder. O que se defende é que os consensos que as sociedades vão formando no sentido de mediar as vontades individuais têm a possibilidade de se constituir ou numa lógica de fechamento absoluto, ou, pelo contrário, numa lógica de abertura à introdução de novas possibilidades. A possibilidade de um consenso desta segunda ordem, de natureza democrática e aberto à pluralidade, supõe a existência de uma instância mediadora independente do poder estatal e refractária às formas de regulação que emanam do mercado. Neste sentido, parece-me que só no espaço público democrático, é possível garantir a visibilidade e, desde logo, o debate aberto das pretensões e desejos colocados pelos grupos minoritários e pelas identidades excluídas, de uma forma que se traduza numa afirmação de cidadania. Finalmente, só nesse tipo de instância se pode inscrever uma lógica de resistência às seduções mais comerciais da cultura de massa, as quais ferem, muitas das vezes, o cerne do próprio debate democrático.
O percurso que se segue passará por assinalar de forma mais particularizada, alguns traços de diferenciação e fragmentação, incidindo,em particular na transformação das relações entre público e privado (I e II). Em seguida, como tema fundamental, debruçamo-nos sobre o papel dos media e da cultura de massa, tentando interrogarmo-nos sobre o seu papel eventual na recuperação de um conceito dinâmico de espaço público. (IV)

I- Comunidade, individualidade e novos movimentos sociais

Desenha-se presentemente, a nível da Europa, uma tensão forte entre o o que é tido como garantido e pertence ao universo do que se supõe consensual e as novas propostas identitárias que se fazem sentir nas sociedades modernas, aonde é cada vez mais visível a luta pelo reconhecimento de novos referentes que, por vezes, trazem atrás de si, diversas concepções do mundo, diversas formas de vida e novas orientações socializadoras. Trata-se curiosamente de um processo ao qual está ligado o mecanismo que geralmente designamos por globalização. Com efeito, a desterritorialização das relações sociais faz com que as mesmas, até há pouco confinadas em nacionalismo, estados e ideologias, possam cruzar fronteiras. O estado nacional deixa de ser a única unidade privilegiada de interacção e confronta-se com a multiplicidade de direitos de opção. (4)
Com o desenvolvimento dos meios de comunicação social, generalizou-se a "desespacialização" do tempo, que deixou de ser medido pela experiência do trabalho e da natureza para se tornar cada vez mais abstracto. O estudo da interacção tem que atender, hoje, à contracção do tempo e ao mapeamento do espaço que resultou em grande medida dos meios de comunicação: "(…) o desenvolvimento de novos media de comunicação não consiste simplesmente no estabelecimento de novas redes para a transmissão e informação entre indivíduos cujas relações sociais básicas se mantêm intactas. Pelo contrário, o desenvolvimento dos media cria novas formas de acção e de interacção e novas formas de relações sociais - formas estas que são substancialmente diferentes das relações de interacção face a face que prevaleceram na história humana." (5) Esta globalização permite pois que as diferenças identitárias possam emerger sem estarem associadas a um território específico, ou pura e simplesmente, posasam emergir ligadas à ideia de um território simbólico.
Portugal, apesar de um certo conservadorismo estrutural, não é excepção Este país ao longo de 25 anos, conheceu profundas transformações. De uma imagem profundamente ruralizada de um país dotado de uma segura identidade cultural, passou-se a uma realidade nova que integra diversos espaços de fragmentação: sem sequer entrar em polémicas de natureza identitária, que se relacionem com a conjuntura política mais imediata - refiro-me à regionalização - todos constatamos que, desde há vinte e cinco anos, Portugal sofreu o choque do regresso forçado de numerosos portugueses de diversas raças, etnias e costumes, decorrente das atribulações do processo de descolonização; a imigração de cidadãos de diversos países lusófonos, onde predominam culturas distintas da dominante; a migração interna dos campos para as cidades, e, finalmente, as transformações culturais do espaço público produzidas na paisagem mediática, nomeadamente audiovisual. (6) Finalmente, vale a pena recordar que ao nível daquele que constituia o principal suporte de uma certa imagem tradicional de Portugal - a Religião - também se abriram algumas fissuras, com conteúdos e objectivos muito diversos: a Igreja Católica viu disputado o monopólio que detinha, em Portugal, no domínio das relações com o sagrado e, em especial, alteraram-se profundamente, as formas efectivas de vivência quotidiana da religião. (7) Nesse sentido, podemos talvez concordar que nenhuma dos elementos das da trilogia em que assentou a visão do nosso Mundo- Deus, Pátria e Família - ficou absolutamente incólume. A imagem de "Português, branco, católico e crente em Fátima" vê-se confrontada com uma realidade social dinâmica que supera esse estereótipo.
Assim, e um país fortemente homogéneo que se caracterizava por caminhos unívocos no que respeita a questões como sejam a religião ou a etnia, passou-se a uma situação em que crescentemente se insinuam novas questões que desafiam a noção tradicional da nossa identidade: as condições institucionais que asseguravam o unanimismo político foram, felizmente, derrubadas; ao unanimismo religioso, sucedeu-se um relativo pluralismo confessional, a uniformidade étnica e cultural deu lugar à pluralidade e diversificação de culturas, etnias, raças e costumes, que especialmente se fazem notar na Grande Metrópole. A estabilidade dos costumes - protegida por uma certa hipocrisia oficialista - dá lugar a uma realidade em que são cada vez mais o número de famílias monoparentais, assitindo-se, já mesmo, como acontece noutros países mesmo a uma questionação acerca de questões tão sensíveis como a própria identidade e orientação sexual. (8) Nesse sentido, apesar de tudo isto apresentar contornos ainda tímidos e pouco nítidos, podemos já afirmar que "a nossa actual experiência da identidade não se revê na imagem de uma realidade estável, fixa ou permanente. Revê-se antes na imagem de um diálogo relacional que se joga no acontecimento, no consenso, no diálogo e de igual modo nos conflitos de interpretação, na luta simbólica." (9) Na modernidade tardia, o projecto de auto-identidade, ocorre num contexto de escolha múltipla, em que a noção de estilo de vida ganha um significado particular. Vive-se assim numa tensão entre as influências padronizadoras e homogeneizantes, de que os mecanismos mercantis podem constituir um elemento decisivo e as influências fragmentadoras onde a abertura da vida social, a pluralidade de contextos de acção e a diversidade de mecanismos institucionais e autoridades desempenham um papel decisivo. (10) A reflexividade constante em que se envolveu a construção da identidade pessoal atinge os mecanismos psiquicos e o corpo, através de um conjunto de decisões no qual moldar o corpo, controlá-lo ou, inclusivamente construir formas determinantes de alterar as regularidades biológicas que se tinham por mais adquiridas (a fruição da sexualidade ou a reprodução) passam a fazer parte das possibilidades abertas pelo "estilo de vida". Agnes Heller clama a propósito pelo conceito de contigent person para se referir à indeterminação em que se encontra o sujeito moderno, na medida em que a pessoa moderna não recebe o destino ou o telos da sua vida no momento do seu nascimento como acontecia nos tempos pré-modernos onde se nascia para fazer isto ou aquilo, para se viver desta ou desta forma, morrer desta ou daquela maneira. A pessoa moderna nasceu com um conjunto de possibilidades que não a confronta com a exiastência de uma qualquer telos que dê um sentido unificador a essas probabilidades. De uma certa forma, a pessoa moderna, escolhe-se a si própria, o seu enquadramento, o telos que coloca no centro da sua vida. ..(11)
As sociedades de consumo, caracterizadas pelo individualismo intenso, centradas nas satisfações do desejo e na realização do prazer terão, para alguns, perdido o sentido do ideal, a perspectiva de um fim pelo qual valesse a pena morrer. É neste sentido que Taylor citando Tocqueville, evoca os pequenos e vulgares prazeres que as gentes procuram na era da democracia. (12) A satisfação do desejo individual na sociedade de consumo, surge, nesta perspectiva, associada à face sombria do individualismo, que induz ao fechamento em nós próprios, empobrece o sentido e nos afasta dos outros e da sociedade. A exploração do desejo pode mesmo ser entendida como um recurso ao dispor de uma tirania que já não será como dantes fundada no terror e na opressão, mas antes na gestão e programação das atitudes individuais, consolidada através dos diversos processos de sedução ao seu dispor. (13) Apesar de tudo, a forma como o eu se afirma não implica apenas questões de natureza utilitária: há interrogações acerca de como viver a minha vida de uma forma que seja digna de ser vivida, ou acerca de que tipo de vida devo levar para realizar as minhas competências e aptidões particulares, ou acerca do que constitui uma vida rica de sentido que se oferecem como sendo merecedoras de um tratamento particularmente delicado, uma atenção particular, aquilo a que Taylor chama uma "strong evaluation." (14) A autenticidade, tal como é pensada por Charles Taylor é um conceito que implica, assim, uma afirmação de subjectividade que não se esgota no escapismo nem no hedonismo, tendo, pelo contrário um significado de realização pessoal que se identifica com a afirmação do sujeito num horizonte social que admite a existência do Outro, enquanto realidade concreta e próxima geradora de de enormes potencialidades éticas. Assim, por detrás desta aparente generalização do hedonismo, esconde-se uma ideia de autenticidade susceptível de ser considerada como um ideal moral ou ético e que tem implícita a ideia "de uma existência melhor e mais elevada, aonde a própria ideia de melhor e de mais elevado não se definiria em função dos nossos desejos e necessidades, mas com vista a um ideal ao qual devíamos aspirar". (15)
Taylor considera que a autenticidade é um ideal válido; que os ideais morais podem ser discutidos racionalmente, o que implica uma recusa do subjectivismo; e que estas discussões podem trazer consequências para a actuação dos sujeitos e para o destino da vivência colectiva. Esta posição nega as perspectivas que nos consideram como prisioneiros de um sistema económico ou de qualquer "gaiola de aço" burocrática. (16) A autenticidade inscreve-se no subjectiv turn da modernidade na qual a interioridade tem implicita a ideia de que cada um tem a sua maneira própria de ser humano. Este último raciocínio surge relacionado com a ideia de de que as diferenças entre os seres humanos tem significado moral. Ser sincero consigo mesmo significa ser fiel à minha própria originalidade, a qual eu sou o único a poder descobrir, realizando uma potencialidade que é propriamente minha.
Porém, simultaneamente, a autenticidade implica o reconhecimento do carácter dialógico da existência humana. "Não é possível descobrir isoladamente a nossa identidade: ela é negociada num diálogo, em parte exterior, em parte interior, com o outro." (17) Tornamo-nos agentes humanos, capaz de nos compreender-nos a nós próprios, e logo de definir uma identidade graças à aquisição de uma linguagem, a qual todavia só é adquirida e dominada graças ao intercâmbio que realizamos com os outros que contam para nós, aqueles a que George Herbert Mead refere como "outros significativos".. A descoberta da autencidade não é um processo monológico mas resulta de um encontro com outro. Definimo-nos num diálogo, por vezes por oposição ou em conflito, com as identidades que os outros que contam reconhecem em nós. (18) A constituição da diferença e da originialidade só é passível de ser entendida num horizonte de intercompreensão. O processo de escolha das opções individuais deixa de ser uma mera afirmação de relativismo, no qual tudo pode ser ecolhido por possuir um valor idêntico. Uma tal concepção de igualdade tornaria toda a escolha trivial. Ora a ideia de uma escolha livre não faz sentido senão no caso de certos critérios possuirem mais valor do que outros. Não é possível definir a identidade a não ser situando-me em relação ao que conta. Essa ideia de uma escolha livre fundada numa razão que se move dentro de um horizonte de intercompreensão, permite que nos munamos de argumentos susceptíveis de ser opostos aos que fazem uma interpretação mais fútil da cultura de autenticidade. Sem um horizonte de intercompreensão, a razão revela-se impotente para exercer o seu sentido critico.
Taylor considera, finalmente, que sem a noção de bem comum a autenticidade não se traduz também na transferência da energia política para agrupamentos minoritários, cada vez mais incapazes de mobilizar as maiorias democráticas em torno de programas e políticas comuns. O agir político implica uma comunidade que seja simultaneamente mobilizadora e unificadora, conferindo um sentido último à própria afirmação da autenticidade num contexto moderno. A afirmação da subjectividade, no sentido moderno, surge relacionado com uma ideia de cidadania. A subjectividade afirma-se em articulação com o público.
Se este enquadramento teórico configuraa diversas possibilidades diversas para a subjectividade seria interessante referir-nos em passagem às diversas possibilidades da sua afirmação concreta. Em primeiro lugar, destaca-se a afirmação da individualidade. Depois de uma ética centrada nas relações de produção, hoje o afecto e o imaginário, as ordens implícitas da construção da subjectividade, tornaram-se centrais na modulação da linguagem institucional. As categorias do prazer, do consumo e da liberdade individual parecem misturar-se de acordo com uma lógica em que a busca da pluralidade de caminhos se multiplica ao infinito. A escolha de percursos individuais parece ter-se tornado uma espécie de obsessão absoluta: generaliza-se a ideia de uma espécie de atitude de bricolage perante as escolhas individuais - faça você mesmo- sendo, porém, que o leque de escolhas é pré-determinado. A ética moderna centra-se, de certa forma, em torno da categoria do desejo. Isto tanto pode significar uma apetência crescente pelo consumismo individual como um autêntico desejo de realização da subjectividade.
Em segundo lugar, distingue-se uma tendência para a revalorização da comunidade que se dá a conhecer de formas diversas: a ) a revalorização do passado e a insistência em formas de sociabilidade pré-moderna; b) o agrupamento de novas identidades em antigas formas de sociabilidade, desenvolvendo-se uma consciência de "nós" num plano de ruptura. Existem alguns sintomas de reafirmação de identidades culturas, que se dão a conhecer na revalorização de elementos tradicionais, como sejam um aumento do interesse pela religiosidade popular e a recuperação de dialectos. Reconhecem-se dificuldades na integração de comunidades que se formam de uma certa forma á margem do espaço público que julgamos reconhecer como nosso. Para além do caso mais evidente dos ciganos, somos obrigados a reconhecer a existência de fenómenos crescentes de presença étnica que não ascendem ao espaço público. A presença, no últomo processo eleitoral de candidatos que representam as diversas minorias oriundas dos PALOPs', apesar de ser aspecto positivo, serviu mais para demonstrar a forma como algumas comunidades se encontram alheadas do nosso espaço público, do que propriamente para resolver dificuldades.
Em terceiro lugar, desde os anos sessenta e setenta que se assiste na Europa e nos Estados Unidos ao lançamento de movimentos sociais em que os actores (militantes pacifistas, ecologistas, regionalistas, feministas) que transportam orientações culturais em ruptura com as sociedades industralizadas (19), chamando a atenção do público para elementos que dizem respeito à vivência diária: ambiente, consumo, direitos da mulher, mobilizações anti-racistas ou de defesa de novas minorias, como é o caso recente dos infectados com SIDA. Já não se trata da defesa dos direitos típicos da modernidade - os direitos ligados ao trabalho e à posição na produção. Porem, esta substituição não é evidente nem deve ser olhada sem suspeita: nem deve despertar qualquer forma de euforia pós-moderna nem fazer acreditar os modernos que a política regressa sobre a forma de interevenções mais ligadas ao quotidiano. Muitas das vezes, quando não estão realizados os direitos tradicionais que se identificam com a modernidade, os novos direitos parecem substituí-los. Este processo tanto pode significar uma pura insistência na fruição individual ligada aos processos de consumo - ou seja, um sintoma da vitória dos mecanismos de mercado - como pode estar relacionado com a reconfiguração entre público e privado, sendo por isso uma manifestação de dinamismo da sociedade civil e de cidadania. A resposta encontrar-se- á numa tensão entre ambas as possibilidades entre ambas. Perante um certo triunfo unidimensional das forças reguladoras do mercado e em face da crise de ideologias seguras que apresentem soluções mobilizadoras, os ciadãos recorrem a uma insistência na sua liberdade individual que é, ao mesmo tempo, uma afirmação contra os excessos do Estado e do mercado, chamando a atenção para a dimensão pública de problemas que até aí se reduziam ao privado: a identidade, a família, a educação.

III- A reconsideração das relações entre público e privado

1. Diversas tradições intelectuais propuseram no passado o seu próprio conceito de oposição entre o público e o privado: ou seja, entre a vida pessoal e a vida colectiva, entre o trabalho e a família, entre o individual e o colectivo. De uma forma necessáriamente reducionista, podemos distinguir dois modelos teóricos fundamentais, de análise dessa articulação: assim, no espaço público grego, tal como é descrito por Hannah Arendt, havia uma clara divisão em relação ao mundo da domesticidade, ao universo privado: o espaço público identificava-se com a agora. No espaço público iluminista, pensado por Habermas pelo contrário, verifica-se uma relativa articulação entre o público e o privado, já que os próprios espaços de reunião dos públicos passa pelo próprio interior das casas, em volta dos salões. Hoje, a crítica ao espaço público exige o ponto de vista dos excluídos, reclamando que há identidades e temas com ele relacionados que devem poder ascender à publicidade, abandonando os cantos sombrios da domesticidade: trata-se de reclamar pelo acesso ao espaço público de todos os protagonistas que não tinham acesso ao debate racional e de todos os temas que não diziam respeito, pelo menos directamente, ás relações com o poder polítco.
Ao mesmo tempo, a nova configuração das relações entre público e privado deve associar-se também a uma crise de socialização que deve muito às indústrias dos media e à penetração do mercado no universo da cultura, de uma forma que organiza cada vez mais a nossa vida segundo a repartição de segmentos de consumidores. Neste caso, estaremos perante uma utilização da categoria do privado, que resulta de o tentar reduzir á exploração comercial do desejo, como elemento em torno do qual se ergue a nossa subjectividade. Neste caso, "a procura do prazer, mas também da diferença, do efémero, do encontro e não tanto da relação, a ideia de uma sociedade puramente «permissiva» dão ao pensamento e às condutas sociais do nosso tempo um brilho, uma excitação algo forçada que lembram os entrudos que reaparecem justamente no meio dos nossos invernos, após uma ausência secular." (20) Nesse sentido, as imagens dos media correspondem ao desejo desse brilho com um império de pequenos estremecimentos, de simulacros que preenchem o nosso isolamento cada vez mais radical: a aventura, o risco e a participação, o jogo arriscado dos afectos foram substituídos pela fugacidade luminosa das emoções em segunda mão. Em qualquer dos casos aos media haverá que lançar um forte questionamento crítico.
 
 

IV - O papel dos media. Visibilidade mediática e publicidade: a recuperação da ideia de público.

O espaço público desde sempre foi um espaço medietizado, onde se revelou desde sempre, de forma muito clara a relação entre a experiência comunicacional e a experiência política. Primeiro, assitiu-se a emergência de uma esfera pública que colocou, ainda que em termos ideais, a hipótese de comunicar o pensamento, de forma racional e igualitariamente repartida, no cerne da própria actividade política. Para Kant, "o uso público da razão deve sempre ser livre e só ele pode levar a cabo a ilustração entre os homens." (21) Seguidamente, verificou-se o devir espectacularizante das mensagens e o aparecimento, no lugar do público, dessa forma de sociabilidade heterogénea e indiferenciada que designamos por massa. Ao contrário do público, que admite o exercício dialógico da razão por parte dos indivíduos que o integram, a massa, caracteriza-se por uma mera contiguidade dos actantes geralmente passivos. Tocqueville descreve a massa como uma multidão inumerável de homens todos semelhantes e iguais, "ocupados incessantemente na busca dos pequenos e vulgares prazeres com os quais saciam as suas vidas." (22) Para Stuart Mill, na sociedade de massa, todos "lêem, ouvem as mesmas coisas, vão aos mesmos lugares, têm as suas esperanças e temores orientados para os mesmos objectos, e os mesmos meios para enunciá-los (…)" (23) Contemporaneamente, num ponto de vista que segue o percurso da crítica de Nietzsche e a análise do desencanto do mundo de Weber, a Escola de Frankfurt teoriza uma lógica, inerente à massa, que jamais permite a descoberta de uma alternativa que se traduza numa efectiva transformação social. A cultura dos media, denominada indústria cultural, prolonga a norma que prevalece na empresa e na produção em série. Na indústria cultural, os homens "negam tudo o que transcende a realidade dada." (24) Nesta perspectiva, a forma de opinião veiculada pelos media prescinde da crítica e da reflexão aderindo facilmente aos esterótipos e preconceitos dominantes ou julgados como tal. As normas relacionadas com a simplificação do estilo, com a objectividade confinada à mera descrição, com a temática do interesse humano centrada no entretenimento seriam a manifestação mediática de uma vontade de produzir uma escrita conforme uma opinião considerada dominante e identificada pelos preconceitos e estereótipos, que constituiria o máximo denominador comum entre todos os cidadãos médios. (25)
Por último, hoje são as redes que quebram, no espaço e no tempo, as fronteiras convencionais: "(...) dão a exacta medida do espaço público contemporâneo: já não um espaço essencialmente topológico e físico, mas, cada vez mais, um espaço simbólico, virtual e reticular." (26) Em relação às condições de exercício da cidadania, e de dinamização do espaço público as redes oscilam entre a convicção no que respeita às suas possibilidades democráticas e o receio da multiplicção de novos mecanismos de vigilância. Assim, "não restam hoje dúvidas de quer o desenvolvimento tecnológico favoreceu a implantação de redes altamente centralizadas, e que isso comporta perigos (…); por outro lado, assistimos também à progressiva banalização dos dispositivos ao (ao nível da sua difusão) e da sua sofisticação (técnica), factores que favorecem a "comunicação de troca /interacção" (…) E se ideiais como as de "pluralismo videográfico", "democracia televisual" ou "ideografia dinâmica" (Guattari, 1991) não passam, por enquanto, de meras hipóteses de trabalho de mediana credibilidade; parecem mesmo assim, existir novas potencialidades desconhecidas não perfeitamente avaliadas (ou sequer avaliáveis) nesse imenso potencial tecnológico cada vez mais sofisticado, individualmente acessível ou gerível, graças ao qual o pensamento de todos nós se transforma a um ritmo inusitado e se criam possibilidades até há pouco impensáveis." (27) A relação entre os media e o espaço público aparece assim mergulhada numa teia de contradições quanto às possibilidades de aprofundamento de uma ideia de cidadania : por um lado, os media são vistos como um mecanismo indispensável para que essa ideia se concretize: a experiência política democrática é ligada com uma comunicação livre. Por outro lado, acredita-se que desempenham um papel de difusão e de reforço dos valores estabelecidos e institucionalizados, interiorizando rotinas, normas, valores e géneros discursivos que correspondem ao máximo denominador comum, rejeitando o que se desenvolve na periferia e tudo o que ambiciona a mudança. Neste sentido, as teorias críticas da cultura de massa, designadamente, a violenta análise desenvolvida por Adorno e Horkheimer associam a comunicação com a integração social considerada, simplesmente, como forma de violência que visa a integração dos indivíduos na sociedade de troca. Numa análise que antecipa de forma pessimista, a relação da cultura de massa com a configuração da identidade e a análise da subjectividade, os próprios desvios em relação à norma são olhadas como metamorfoses calaculadas que servem todas para confirmar mais fortemente a valiodade do sistema. (28) Num raciocínio que contem algo de semelhante, Alain Touraine recorre ao conceito de sociedade programada para se referir "à sociedade onde a produção e a difusão maciça dos bens culturais ocupam o lugar central que havia sido o dos bens materiais na sociedade industrial." (29) O poder de gestão nesta forma de sociedade traduz-se em "prever e modificar atitudes, comportamentos, em modelar a personalidade e a cultura, em entrar directamente, portanto, no mundo dos valores, em vez de se limitar ao domínio da utilidade." (30) É em face destas propostas que se desenha a necessidade de manter a tensão não partindo para análise social com uma análise de perfil totalizante, que desdenhe as subtilezas, e que por isso condene a comunicação a uma visão puramente homogenizadora.. Apesar de os novos mecanismos de diferença estarem insificentemente configurados, sendo legítimo desconfiar quer das tendências conservadoras que minam as comunidades, quer das perversos apelos do mercado que minam as afirmações das identidades, pode-se apesar de tudo admitir que o jogo político confinado aos quadros institucionais se transfira para esferas da vida quotidiana, fixando um novo sentido para o trabalho, para a política e para as formas de sociabilidade - eventualmente "um sentido mais partilhado, que procura reabilitar contextos comunicacionais deteriorados, e aspira, assim, a a firmar a vontade colectiva em termos intercompreensivos." (31) Na mesma medida convirá estar atento a a que o processo de construção de mensagens pelos media, designadamente o jornalismo, conheceu desde a década dos vídeos ligeiras e das rádios pirata até à constituição dos grandes grupos multimédia, desde o new journalism à nova dramatização das narrativas noticiosas, alterações que passaram por caminhos que incluiram, desde a alteração dos direitos de antena até ao reconhecimento de novos direitos dos leitores, espectadores e ouvintes, até a transformação da própria narrativa ao nível de um registo de maior abertura à subjectividade, a introdução do texto de autor e o reconhecimento dos factos noticiáveis como elementos de uma intriga jornalística. Tratam-se de elementos que indiciaram a possiblidade de uma superação do carácter impessoal da narrativa, adequados à recuperação da subjectividade e, simultaneamente, adequados à espectacularização da informação.
Na relação dos media com o tratamento da diferença identitária tal como se manifesta contemporaneamente no espaço público, dir-se-ia assim que se vislumbra, também, uma certa ambiguidade, desenvolvida em dois planos: por um lado, são os media que tornam possível a afirmação da diferença como uma possibilidade de diversidade que constitua um aprofundamento democrático das sociedades; por outro lado, são frequentemente eles que reduzem a luta pelo reconhecimento dessas identidades a uma mera exploração de segmentos de mercado, multiplicados até ao infinito, através da intensificação consumista dos desejos individuais. Este tema terá que ser abordado em dois planos: a visibilidade das identidades, por um lado, e a própria constituição da subjectividade, por outro:
No que respeita ao plano da visibilidade dos referentes identitários caberá lembrar o seguinte :
presentemente, assisti-se a uma situação em que é ao nível da própria luta simbólica que se constituem formas de exclusão que se traduzem pela existência de fracturas socais. Ora esta noção de fractura social passa pela existência de sectores inteiros da população que são excluídos, ocultos, fragilizados, precarizados no seu emprego e no seu futuro. Esta precarização tem a componente simbólica da sua ocultação, da sua ausência de reconhecimento, ou seja da impossibilidade de acesso ao espaço público. A inexistência de espaços públicos aonde sejam reconhecidas as pretensões de identidades ocultas que se desenvolvem na penumbra social conduz à existencia de um universo de estigamatizados de que as minorias étnicas, as mulheres, e doentes de diversa ordem podem constituir exemplos evidentes. Desde os anos 80 torna-se difícil dissociar o tema do desemprego ou do trabalho precário, da pobreza e da crise das cidades do tema da fragmentação cultural, no sentido em que este se relaciona com a consolidação das desvantagens sociais de minorias excluídas.
Apesar de tudo, a emergência da diferenciação aparece marginalizada aos olhos do público. A verdade é que algum do olhar que os media lançam sobre a proliferação de identidades, para as quais, aliás eles decisivamente contribuem, é, ainda, um olhar feito, muitas das vezes, a partir do que é aceite como normal ou consensual: o próprio conceito de actualidade está profundamente relacionado com o que é tido por adquirido. Sem ser necessário fazermos um estudo empírico, constatamos que os muitos milhares de africanos que hoje vivem em Portugal aparecem referidos como dados estatísticos ou, são citados, a propósito de situações de racismo, marginalidade, pobreza quando não são identificados como causa principal de insegurança. Por outro lado, as mais diversas orientações sociais que emergem à margem do que é socialmente consensual são objecto de um tratamento que oscila entre o irónico e o fascínio pelo bizarro, sendo por isso, remetidos pelos media para o domínio vasto do "fait divers" ou das histórias de interesse humano, as quais, quando tocadas pelo excesso, descaem facilmente no sensacionalismo. Ora, o sensacionalismo, apesar do seu ar aparentemente transgressor, é, apesar de tudo, uma forma de denunciar a transgressão, desempenhando, por isso, um papel socialmente conservador. Nesse sentido, convém lembrar que até alguns dos melhores jornais portugueses continuam a inserir reportagens que dizem respeito à identidade sexual no mesmo caderno onde se referem assuntos tão diversos como as tendências da moda, as pequenas maldicências entre políticos ou as desventuras da família real britânica.
Por outro lado, qualquer que seja a apreciação dos critérios de qualidade da programação comercial das televisões privadas, em relação aos quais tenho reservas ao nível ético, cultural e político, não podemos deixar de admitir que elas traduzem vários fenómenos que ajudam à reconfiguração, à dissolução para uns, à transformação para outros, do espaço público: em vez da concentração das notícias em umas poucas e reduzidas figuras que apareciam para produzir discursos de natureza oficial verifica-se o acesso à programação e até à informação por parte de camadas sociais que finalmente adquirem alguma visibilidade pública assumindo os seus gostos e até o seu desprezo ou desencanto por aqueles que eram os "grandes projectos colectivos." Os "fait divers" e as chamadas estórias de rosto humano, para além dos concursos e reality-shows, traduzem a chegada a um espaço de visibilidade pública de gostos, gestos e formas de estar que não eram socialmente exibíveis. Porém, defrontamo-nos com um paradoxo: as novas franjas sociais a que nos referimos conquistam a visibilidade, mas parecem, afinal, confrontadas com diversos processos de dominação cultural. Ou seja, a pura afirmação da diferença parece, afinal, um pretexto para a generalização do conumismo. As massas, como diria Benjamin, ascendem à sua visibilidade mas parecem continuar arredadas dos seus destinos. (32) Ora este paradoxo, não pode deixar de ser relacionado com o segundo plano a que que nos queremos referir e que diz respeito ao papel dos media na constituição da subjectividade, em relação ao qual importa fazer as seguintes observações: verifica-se como a tematização de assuntos de natureza privada pode ser promovida pelos media atarvés de formas de sensacionalismo que, na maior parte das vezes, conduzem uma malha apertada de vigilância que se exerce sobre a intimidade. Os media surgem, muitas vezes, como uma das instâncias onde a personalização da política privilegiou os temas individuais em detrimento da acção colectiva. Apesar de tudo, esta avaliação tem a ver apenas com uma das faces do problema.
Os media e as suas relações com as atitudes individuais têm oscilado através de sucessivas hipóteses ora mais eufóricas, ora mais apocalípticas. Se até aos anos 50 e 60, a comunicação de massa parece feliz no seu papel de conseguir o melhor desempenho democrático ao mesmo tempo que oferece o entretenimento aceitável, colocando o enfâse na função socializadora e integradora que tanto suscitou a ira dos críticos da cultura de massa, a partir dos anos 80 e 90, o papel de entretenimento, de evasão, de sonho torna-se hegemónico, sendo frequentemente relacionado com a proliferação do conformismo quer social quer político. A disfunção narcotizante, de que falavam Lazersfeld e Merton, parece mesmo assumir uma dimensão central de uma função, ou seja uma missão perfeitamente reconhecida e assumida. A apatia perante o espaço público assume-se quase como um "direito legítimo" ao repouso por parte do cidadão, de que o consumismo televisivo constitui parte essencial. (33) Esta componente tem que ser problematizada e não permite uma resignação acomodada, tanto mais quanto existem perspectivas imediatas que indiciam potencialidades por parte dos media em determinarem cada vez mais novos segmentos das nossas vidas, baseadas precisamente na ideia de que a função de entretenimento é não só legítima como necessária. Apesar de tudo, esta enfâse na realização individual, no lazer e na fruição pessoal de que os media fazem eco através da generalização do espectáculo e de entretenimento, não deve ser objecto de uma pura condenação que não tenha em conta o facto de que na afirmação de alguns direitos se encondem desejos de afirmação, de reconhecimento e de auto-afirmação que tem de ser pensadas à luz das transformações verificadas nas relações entre público e privado. Em vez da pura condenação castigadora e moralista do gosto das audiências pelo entretenimento, deve-se também, reflectir sobre o significado da "fome de imaginário" que se esconde por detrás do consumismo desenfreado por histórias de rosto humano, do sensacionalismo e da invasão da privacidade, tentando, por exemplo, perceber em que medida uma certa paixão pela personalização das notícias, para além de ser uma clara aposta na rentabilização de um certo conceito circense de espectacularização do quotidiano, não esconde também um desencanto por um espaço público desenraizado da vida e afastado desse quotidiano. Ou seja, importa ser preciso e descobrir a diferença ( e a semelhança) de lógica social que se inscreve entre as notícias sobre a família real britânica ou Bill Clinton - caracterizadas por uma lógica de espectáculo e de entretenimento que contém um apelo intrínseco ao populismo e o aumento de notícias sobre a violência doméstica. Ambas se inscrevem numa lógica de personalização do espaço público. Onde começa a denúncia da dominação que se oculta no privado e a brutal colonização do espaço público pelo puro voyerismo?
A recente proliferação da diferença tem, por outro lado, potencialidades críticas e normativas que se prendem com o devir do próprio estado de direito e da modernidade social que não tem necessidade absoluta de serem identificadas com um inevitável "despotismo soft". Há uma vontade de realização que se articula com a luta pelo reconhecimento e que não se identifica apenas com o escapismo, o hedonismo e o abstencionismo político. Haverá a ter em conta que nem tudo é igualmente perigoso ou alienante e admitir a possibilidade que todo o processo de enfatização por parte dos media da fruição individual e de concentração numa agenda menos dedicada às questões públicas não deve ser julgado, de forma apressada, com resignação, colocando-nos neste ponto de vista ao lado da máxima adorniana: "entretermo-nos é estar de acordo." Assim, se é verdade que os momentos de afirmação do mercado coincidem quase sempre com a explosão da infortainment, da informação-espectáculo e do sensacionalismo - aconteceu assim com a penny press e a yellow press e o desenvolvimento do capitalismo contemporâneo, acontece hoje com a privatização generalizada da comunicação- a verdade é que esses momentos devem também ser aproveitados para a compresnsão de outras formas de estar e a afirmação de novos direitos. Por isso, há ainda um trabalho crítico da racionalidade que não pode ser perdido de vista mas que não se pode reduzir a tudo considerar como pura manifestação da dominação. Se é verdade que a análise destas transformações é feita com base em premissas que implicam uma atitude crítica, não deixa de ser também verdade que a afirmação da individualidade não deve ser objecto de uma leitura apocalíptica. A acentuação da diferença está relacionada com a afirmação unilateral do mercado. Porém, também se prende com um movimento generalizado de regresso do sujeito. A recusa da homogeneização tanto assume os contornos de uma certa exploração mercantil e subjugante da diferença como coexiste com a busca genuína da identidade, afirmando mecanismos de ruptura e de afirmação individual e identitária que podem constituir autênticas vias de aprofundamento dos mecanismos de vivência democrática e do espaço público. Mais uma vez, esta opção ir-se-á jogar no plano do social e do político e, mesmo assim, de uma forma que nunca é totalmente planificável ou previsível, pelo que nunca será absolutamente resolvida a tensão entre as alternativas possíveis.
Entre estas possibilidades que não se devem extremar mas, que contrário implicam uma análise atenta das nuances e possibilidades intermédias, fica mais uma vez a pergunta: de que forma, a defesa da diversidade se equaciona com o agir mediático. A publicidade - entendida enquanto possibilidade de ascender ao público - articula-se de forma definitiva com a questão da visibilidade mediática. O acesso das novas identidades ao o espaço público que temos - completamente mediatizado- tem que ver com a disputa do poder simbólico e de afirmação cultural. O acento que hoje se coloca no ulticulturalismo tem a ver com o facto de a fragmentação social se ter deslocado em grande parte de uma explicação que tinha apenas em conta as posições ocupadas pelos diversos grupos em relação à produção - e pela divisão do corpo social que procede do trabalho e da produção capitalista- para uma situação em que a cultura ocupa um lugar central nas pretensões de validade dos diversos grupos e em que a existência de fracturas resulta também da possibilidade de acesso que esses grupos disponham em relação aos mecanismos de produção simbólicas, seja como como consumidores seja como produtores. (34) Ou seja, têm ainda a ver com com o facto de haver um conjunto de desigualdades de oportunidade que tem a ver com a visibilidade relativa dos diversos actores sociais. Assim, sendo, importa, todavia, recuperar uma ideia de publicidade, que passa pela intervenção dos cidadão e que implica exigência da criação de novos e múltiplos espaços públicos, aonde se leve a efeito e interpretação dos significados, normas e sensibilidades a partir do ponto de vista dos grupos que hoje constituem identidades excluídas. Assim, é a própria diferença entre publicidade e visiblidade mediática, que nos parece adquirir uma diferença ética e normativa de natureza substancial.
Nesse sentido, a revitalização do espaço público prende-se ainda com o próprio agir dos media, o que remete para a deontologia dos jornalistas e para as próprias condições de produção de mensagens. Pode a linguagem jornalística, mantendo a sua forte identidade que a condiciona, ser compatível com uma pluralidade de discursos e de significações que se tornam eles próprios novos possíveis para o devir do mundo, ou pelo contrário, a linguagem do jornalismo só pode, graças à sua sobrecodificação, cingir-se a um discurso: o da realidade que existe, que celebra, ritualmente, a sua própria existência e se recusa ela própria a mudar? Colocando de novo a questão sob o ponto de vista normativo, como pode uma linguagem institucionalizada, caracterizada pela presença de fortes convenções narrativas e sujeita a fortes constrangimentos organizacionais - económicos, técnicos, etc. - significar a existência de outros possíveis ? A linguagem dos media pode ser um factor de desestabilização de ordens dominantes, chamando para o espaço público, elementos de avaliação que permaneciam obscuros aos olhos do público e que se constituam como elementos nodosos no seio da sociedade, que contribuam para a sua reificação. Pelo contrário, ela pode precisamente reproduzir os compromissos estabelecidos, impedindo a problematização crítica dessa realidade.
A resposta ao papel dos media na formação de um consenso social, onde predomine a ordem democrática e o respeito pela diversidade, passa necessariamente pela orientação crítica que referi, pelo que remete para a ética e para deontologia, não podendo ser posta em causa a responsabilidade que os próprios agentes são levados a ter em conta neste domínio. A falência das grandes narrativas, a forma como tudo o que parecia sólido se desfez no ar, influencia de tal forma as análises recentes que, por vezes, se confunde a semelhança entre as alternativas mais visíveis no actual espaço público com a absoluta ausência de alternativas, veiculando alternativas pessimistas que constituem uma forma de desvincular os agentes das consequências da própria acção. Ora a enfâse no regresso da participação individual implica que a responsabilidade impessoal do «sistema» deve pois, ser substituída pela responsabilidade, individual e colectiva, dos jornalistas. Tudo o que permite limitar a relação media - receptor em benefício de uma relação activa, na qual o receptor não é apenas um comprador mas um indivíduo reconhecido na pluralidade dos seus papéis sociais, contribui para acelear o aprofundamento democrático da sociedade. (35) Porém, remete também para um olhar sobre os media que não pode privilegiar o liberalismo puro. Assim, o próprio regresso da política sugere uma perspectiva em que os direitos da comunicação não pode ser apenas encarados como puros direito individuais, mas como possuindo uma dimensão pública. Neste sentido, a fundamentação social, política e filosófica da especificidade do direito de comunicação só são possíveis em homenagem a uma ideia de soberania democrática que norteie a prática dos media e as atitudes dos Estados relativamente a esses mesmos media. Nesse domínio, os movimentos dos próprios redactores que defendam a responsabilidade social dos jornalistas e a opinião pública são factores de intervenção que devem ser tidos em conta.



Bibliografia

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1-Cfr. Michel Wievorka (ed.), Une societé fragmenté - Le multiculturalism en débat, Paris, La Découverte, 1997, p. 5.

2-Raymound Boudon, V. Entrada Consenso in Dicionário Crítico de Sociologia, São Paulo, Editora Ática, p. 97.

3-Segundo Augusto Comte, o principal problema humano "consiste em levar a prevalecer gradualmente a sociabilidade, sobre a pessoalidade, ainda que esta seja espontaneamente preponderante." Cfr. Augusto Comte, Catecismo Positivista, Lisboa, Europa América s/d, p. 40. Assim, "a pessoalidade" é tida como dotada de "uma impoetência radical para construir qualquer unidade autêntica e duradoura." Idem, p. 41. Ver em especial Comte, Catecismo Positivista, p. 93-116.

4-Boaventura Sousa Santos, Modernidade, Identidade e Cultura de Fronteira in Pela Mão de Alice: O Social e o Político na Pós-Modernidade, Lisboa, Afrontamento, 1994, p. 54.

5-John B Thompson, The Media and modernity - a social theory of the media, Cambridge Polity Press, 1995, p 81-2.

6-"(…) a base étnica das nações torna-se cada vez mais evidente e o Estado-Nação, lomge de ser uma identidade estável , começa a ser visto como uma condensação temporária dos movimentos que caracterizam a modernidade política (…)Portugal é talvez o único Estado-nação uni-étnico da Europa e está adeixar de sê-lo à medida que aumentam a imigração africana e asiática e o fluxo de turistas residentes, reformados da vida activa, vindos da Europa ou do Japão." (Boaventura Sousa Santos, idem op. cit., p. 127.)

7-Sobre este tema ver nomeadamente, Moisés Lemos Martins, Para Uma Inversa Negação: o discurso da identidade, Porto, Edições Afrontamento, p. 96-97. Com efeito, apesar do sentimento de pertença ao catolicismo já ali, se dá a conhecer que se "confirma uma significativa diminuição das práticas religiosas católicas, evidenciando uma tendência imparaável desde os anos 70."

8-Finalmente, podemos dizer como Boaventura Sousa Santos: "Sabemos hoje que as identidades culturais não são rígidas nem muito menos imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação. Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas, como a mulher, homem, país africano, país latono-americano ou país europeu, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades em constante processo de transformação, responsáveis em última instãncia pela sucessão de configurações hermenêuticas que de época para época dão corpo e vida a tais identidades. Identidades, são pois identificações em curso." Santos, Boaventura Sousa, idem op. cit., p. 119.

9-Mosés Lemos Martins, idem op. cit.., p. 48.

10-Giddens, Modernidade e Identidade Pessoal, 1977, 7.

11-Heller, The Contigent Person and Existential Choice, 1990, in Michael Kelly (Ed. ), Hermeneutucs and Critical Theory in Ethics and Politics, pp.55-56.

12-Taylor, Ethics of Autenticty, 1994, 11.

13-Taylor, idem op. cit. 1994, 31,

14-Taylor, Sources of the Self, 1989, 14.

15-Taylor, idem op. cit., 1994, 23-24.

16-Taylor, idem op. cit., 1994,31-33.

17-Taylor, idem op. cit., 1994, 23-24

18-Taylor, idem op. cit. 1994, 38-45.

19-Cfr. Michel Wieviorka, idem. Op. cit., p. 15.

20-Alain Touraine, O Retorno do Actor: ensaio sobre sociologia, Lisboa, Piaget, 1996, p. 10.

21-Kant, A Paz perpétua e outros Opúsculos, Lisboa, RBA Editores, 1996, p. 10.

22-Alexis de Tocqueville, De La Démocracie en Amérique, Paris Calman -Lévy , 1888, 3ª parte, Capítulo 21 in Manuel Braga da Cruz, Teorias Sociológicas- Os Fundadores e os Clássicos, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p 271.

23-John Stuart Mill, On Liberty, apud Gabriel Cohn , Sociologia da Comunicação, São Paulo, Livraria Pioneira Editora, s/d, p 48

24-Leo Lowenthal, , Perspectivas históricas da cultura popular,in Gabriel Cohn (org), Comunicação e Indústria Cultural, São Paulo, TA Queiroz, p 303.

25-Cfr. José Luís Dader Garcia, El Periodista en el Espacio Publico, Barcelona, Bosch, 1992, pp 81-92 e 152-53.

26-João Pissarra Esteves, Novos Desafios Para Uma Teoria Crítica da Sociedade, in Revista de Comunicação e Linguagens, "Comunicação e Política", Lisboa, Cosmos, 1995, nº 21-22, p 99.

27-João Pissarra Esteves, idem op. cit. , p. 101.

28-Adorno e Horkheimer, Dialectic of Enlightment, Londres, Verso, 1995, p. 129.

29-Alain Touraine,A Crítica da Racionalidade, Lisboa, Instituto Piaget, 1994, p. 290.

30-Ibid, p 290.

31-João Pissarra Esteves, idem op. cit.. , p. 94.

32-Walter Benjamin, A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica in Obras Escolhidas, São Paulo, Editora Barsiliense, 1987, p. 195.

33-Paul Lazarsfeld e Robert King Merton, Comunicação de massa, gosto poular e acção social organizada in Gabriel Cohn, Comunicação e Indústria Cultural, São Paulo, TA Queiroz, 1987, p. 230-31. No texto em causa, Merton e Lazarsfeld referiam-se a funções da comunicação de massa com a tribuição de status e a reiteração das normas, precisando a propósito da disfunção narcotizante: "Ao invés de funcional, o conceito de disfuncional baseia-se no pressuposto de que a existência de amplas massas da população politicamente apáticas e inertes não é do interesse da sociedade moderna." E acrescentavam: "Ao que parece, todavia, este amplo suprimento de comunicações (fornecida pelos meios de comunicação de massa) é capaz, tão somente, de fazer surgir uma preocupação superficial com os problemas da sociedade, superficialidade que muitas das vezes encobre a apatia de massa. ( o cidadão bem informado) considera os seus contactos secundários com a esfera da realidade política, suas leituras, seus programas de rádio, suas reflexões, como um desempenho substitutivo." Neste momento, os media, em particular a televisão, assumem, com muitos menos má consciência, a sua vocação de entretenimento.

34-Cfr. Michel Wievorka, idem op. cit., p. 12.

35-Sobre alguns dos mecanismos censurantes que impedem que, muitas das vezes, os jornalitas assumam este papel deve pode ler-se o excelente texto de João Maria R. Mendes, Mudança Vigiada no Discurso da Imprensa, in Revista de Comunicação e Linguagens nº 1, Porto, Afrontamento, 1985, pp. 79- 89.