João Carlos Correia, Universidade da Beira Interior
Introdução - Os Novos desafios do espaço público
I - Comunidade, identidade e movimentos sociais
II - As novas relações entre o público e o privado
III - O papel dos media. Visibilidade mediática e publicidade:
a recuperação da ideia de público.
Introdução - Os novos desafios do espaço público: reconhecimento de tendências e apresentação do problema
Os principais problemas que pretendo questionar na minha intervenção
são os seguintes: a) qual é a possibilidade da mediação
de subjectividades, tendo em conta os desafios que as sociedades complexas
enfrentam em face da crescente diferenciação e multiplicação
de identidades? b) de que forma, essa preocupação se equaciona
com o agir mediático, sabendo nós que a ligação
entre a experiência política e a experiência comunicacional
é um dado adquirido, desde o Iluminismo? c) Por último, de
que forma as possibilidades das novas identidades assumem uma dimensão
emancapatória de respeito crítico pela pluralidade ou apenas
se esgotam numa exploração mercantil dessa mesma diversidade,
reproduzindo os desejos do mercado? As questões não são
simples, sobretudo, se tivermos em conta que olhar para a diferença
identitária supõe uma forte componente normativa e crítica:
o problema da integração da diversidade implica que nos questionemos
acerca de como decidir entre multiplas pretensões de validade que,
de forma crescente, competem na luta pelo seu reconhecimento pela possibilidade
de alcançarem visibilidade pública. O problema chave é
saber se a transformação dos "eu quero" individuais num "eu
devo" colectivo pode ser concretizada especialmente quando se sabe que
os critérios de fundamentação e avaliação
das pretensões à validade são apreciados por padrões
circunstancialmente fundados. Importa, por isso, que lancemos esta questão
incómoda: que significa vivermos juntos com as nossas diferenças?
(1)
Ao colocar-se esta questão é o próprio problema
do alcance de um consenso social que é posto em jogo. Sendo o consenso
a forma de mediação de vontades individuais e colectivas,
que permite o assentimento e a convergência de todos na adopção
de uma certa orientação social (2) a verdade é que
existem diversas formas de mediação dessas vontades no que
diz respeito ao grau de participação que os actores possuem.
Numa particular deriva do pensamento social, supôs-se uma socialização
tão uniforme dos membros da sociedade que se acreditou que estes
só possam querer o que lhes foi prescrito, que só possam
agir de acordo com o programa inscrito na consciência colectiva.
(3) Ora o problema que se coloca é, precisamente, o de garantir
que a assimilação de vontades se faça com o participação
dos actores sociais no decorrer de um processo no qual se garanta o reconhecimento
da legitimidade da diferença, não reduzindo, porém,
tal diferença nem a um mero factor de perturbação
da eficácia do sistema, nem a uma simples manifestação
das exigências do mercado, exigências estas cada vez mais subtis
na forma como se apropriam no desejo de reconhecimento das identidades
para as reduzirem a «simples tendências». Nesse sentido,
os consensos que aqui se desejam supõem uma dimensão normativa,
implicando a existência de um debate, no qual os participantes, com
o recurso ao uso da argumentação, adoptam uma orientação,
de acordo com o exame crítico efectuado no decorrer da troca dialógica
de argumentos. Não significa isto a existência de uma consensualidade
ideal: não existe sociedade sem conflitos e diferendos nem nos devemos
esquecer dos interesses contraditórios e plurais dos actores sociais,
investidos em diferentes relações de poder. O que se defende
é que os consensos que as sociedades vão formando no sentido
de mediar as vontades individuais têm a possibilidade de se constituir
ou numa lógica de fechamento absoluto, ou, pelo contrário,
numa lógica de abertura à introdução de novas
possibilidades. A possibilidade de um consenso desta segunda ordem, de
natureza democrática e aberto à pluralidade, supõe
a existência de uma instância mediadora independente do poder
estatal e refractária às formas de regulação
que emanam do mercado. Neste sentido, parece-me que só no espaço
público democrático, é possível garantir a
visibilidade e, desde logo, o debate aberto das pretensões e desejos
colocados pelos grupos minoritários e pelas identidades excluídas,
de uma forma que se traduza numa afirmação de cidadania.
Finalmente, só nesse tipo de instância se pode inscrever uma
lógica de resistência às seduções mais
comerciais da cultura de massa, as quais ferem, muitas das vezes, o cerne
do próprio debate democrático.
O percurso que se segue passará por assinalar de forma mais
particularizada, alguns traços de diferenciação e
fragmentação, incidindo,em particular na transformação
das relações entre público e privado (I e II). Em
seguida, como tema fundamental, debruçamo-nos sobre o papel dos
media e da cultura de massa, tentando interrogarmo-nos sobre o seu papel
eventual na recuperação de um conceito dinâmico de
espaço público. (IV)
I- Comunidade, individualidade e novos movimentos sociais
Desenha-se presentemente, a nível da Europa, uma tensão
forte entre o o que é tido como garantido e pertence ao universo
do que se supõe consensual e as novas propostas identitárias
que se fazem sentir nas sociedades modernas, aonde é cada vez mais
visível a luta pelo reconhecimento de novos referentes que, por
vezes, trazem atrás de si, diversas concepções do
mundo, diversas formas de vida e novas orientações socializadoras.
Trata-se curiosamente de um processo ao qual está ligado o mecanismo
que geralmente designamos por globalização. Com efeito, a
desterritorialização das relações sociais faz
com que as mesmas, até há pouco confinadas em nacionalismo,
estados e ideologias, possam cruzar fronteiras. O estado nacional deixa
de ser a única unidade privilegiada de interacção
e confronta-se com a multiplicidade de direitos de opção.
(4)
Com o desenvolvimento dos meios de comunicação social,
generalizou-se a "desespacialização" do tempo, que deixou
de ser medido pela experiência do trabalho e da natureza para se
tornar cada vez mais abstracto. O estudo da interacção tem
que atender, hoje, à contracção do tempo e ao mapeamento
do espaço que resultou em grande medida dos meios de comunicação:
"(…) o desenvolvimento de novos media de comunicação não
consiste simplesmente no estabelecimento de novas redes para a transmissão
e informação entre indivíduos cujas relações
sociais básicas se mantêm intactas. Pelo contrário,
o desenvolvimento dos media cria novas formas de acção e
de interacção e novas formas de relações sociais
- formas estas que são substancialmente diferentes das relações
de interacção face a face que prevaleceram na história
humana." (5) Esta globalização permite pois que as diferenças
identitárias possam emerger sem estarem associadas a um território
específico, ou pura e simplesmente, posasam emergir ligadas à
ideia de um território simbólico.
Portugal, apesar de um certo conservadorismo estrutural, não
é excepção Este país ao longo de 25 anos, conheceu
profundas transformações. De uma imagem profundamente ruralizada
de um país dotado de uma segura identidade cultural, passou-se a
uma realidade nova que integra diversos espaços de fragmentação:
sem sequer entrar em polémicas de natureza identitária, que
se relacionem com a conjuntura política mais imediata - refiro-me
à regionalização - todos constatamos que, desde há
vinte e cinco anos, Portugal sofreu o choque do regresso forçado
de numerosos portugueses de diversas raças, etnias e costumes, decorrente
das atribulações do processo de descolonização;
a imigração de cidadãos de diversos países
lusófonos, onde predominam culturas distintas da dominante; a migração
interna dos campos para as cidades, e, finalmente, as transformações
culturais do espaço público produzidas na paisagem mediática,
nomeadamente audiovisual. (6) Finalmente, vale a pena recordar que ao nível
daquele que constituia o principal suporte de uma certa imagem tradicional
de Portugal - a Religião - também se abriram algumas fissuras,
com conteúdos e objectivos muito diversos: a Igreja Católica
viu disputado o monopólio que detinha, em Portugal, no domínio
das relações com o sagrado e, em especial, alteraram-se profundamente,
as formas efectivas de vivência quotidiana da religião. (7)
Nesse sentido, podemos talvez concordar que nenhuma dos elementos das da
trilogia em que assentou a visão do nosso Mundo- Deus, Pátria
e Família - ficou absolutamente incólume. A imagem de "Português,
branco, católico e crente em Fátima" vê-se confrontada
com uma realidade social dinâmica que supera esse estereótipo.
Assim, e um país fortemente homogéneo que se caracterizava
por caminhos unívocos no que respeita a questões como sejam
a religião ou a etnia, passou-se a uma situação em
que crescentemente se insinuam novas questões que desafiam a noção
tradicional da nossa identidade: as condições institucionais
que asseguravam o unanimismo político foram, felizmente, derrubadas;
ao unanimismo religioso, sucedeu-se um relativo pluralismo confessional,
a uniformidade étnica e cultural deu lugar à pluralidade
e diversificação de culturas, etnias, raças e costumes,
que especialmente se fazem notar na Grande Metrópole. A estabilidade
dos costumes - protegida por uma certa hipocrisia oficialista - dá
lugar a uma realidade em que são cada vez mais o número de
famílias monoparentais, assitindo-se, já mesmo, como acontece
noutros países mesmo a uma questionação acerca de
questões tão sensíveis como a própria identidade
e orientação sexual. (8) Nesse sentido, apesar de tudo isto
apresentar contornos ainda tímidos e pouco nítidos, podemos
já afirmar que "a nossa actual experiência da identidade não
se revê na imagem de uma realidade estável, fixa ou permanente.
Revê-se antes na imagem de um diálogo relacional que se joga
no acontecimento, no consenso, no diálogo e de igual modo nos conflitos
de interpretação, na luta simbólica." (9) Na modernidade
tardia, o projecto de auto-identidade, ocorre num contexto de escolha múltipla,
em que a noção de estilo de vida ganha um significado particular.
Vive-se assim numa tensão entre as influências padronizadoras
e homogeneizantes, de que os mecanismos mercantis podem constituir um elemento
decisivo e as influências fragmentadoras onde a abertura da vida
social, a pluralidade de contextos de acção e a diversidade
de mecanismos institucionais e autoridades desempenham um papel decisivo.
(10) A reflexividade constante em que se envolveu a construção
da identidade pessoal atinge os mecanismos psiquicos e o corpo, através
de um conjunto de decisões no qual moldar o corpo, controlá-lo
ou, inclusivamente construir formas determinantes de alterar as regularidades
biológicas que se tinham por mais adquiridas (a fruição
da sexualidade ou a reprodução) passam a fazer parte das
possibilidades abertas pelo "estilo de vida". Agnes Heller clama a propósito
pelo conceito de contigent person para se referir à indeterminação
em que se encontra o sujeito moderno, na medida em que a pessoa moderna
não recebe o destino ou o telos da sua vida no momento do seu nascimento
como acontecia nos tempos pré-modernos onde se nascia para fazer
isto ou aquilo, para se viver desta ou desta forma, morrer desta ou daquela
maneira. A pessoa moderna nasceu com um conjunto de possibilidades que
não a confronta com a exiastência de uma qualquer telos que
dê um sentido unificador a essas probabilidades. De uma certa forma,
a pessoa moderna, escolhe-se a si própria, o seu enquadramento,
o telos que coloca no centro da sua vida. ..(11)
As sociedades de consumo, caracterizadas pelo individualismo intenso,
centradas nas satisfações do desejo e na realização
do prazer terão, para alguns, perdido o sentido do ideal, a perspectiva
de um fim pelo qual valesse a pena morrer. É neste sentido que Taylor
citando Tocqueville, evoca os pequenos e vulgares prazeres que as gentes
procuram na era da democracia. (12) A satisfação do desejo
individual na sociedade de consumo, surge, nesta perspectiva, associada
à face sombria do individualismo, que induz ao fechamento em nós
próprios, empobrece o sentido e nos afasta dos outros e da sociedade.
A exploração do desejo pode mesmo ser entendida como um recurso
ao dispor de uma tirania que já não será como dantes
fundada no terror e na opressão, mas antes na gestão e programação
das atitudes individuais, consolidada através dos diversos processos
de sedução ao seu dispor. (13) Apesar de tudo, a forma como
o eu se afirma não implica apenas questões de natureza utilitária:
há interrogações acerca de como viver a minha vida
de uma forma que seja digna de ser vivida, ou acerca de que tipo de vida
devo levar para realizar as minhas competências e aptidões
particulares, ou acerca do que constitui uma vida rica de sentido que se
oferecem como sendo merecedoras de um tratamento particularmente delicado,
uma atenção particular, aquilo a que Taylor chama uma "strong
evaluation." (14) A autenticidade, tal como é pensada por Charles
Taylor é um conceito que implica, assim, uma afirmação
de subjectividade que não se esgota no escapismo nem no hedonismo,
tendo, pelo contrário um significado de realização
pessoal que se identifica com a afirmação do sujeito num
horizonte social que admite a existência do Outro, enquanto realidade
concreta e próxima geradora de de enormes potencialidades éticas.
Assim, por detrás desta aparente generalização do
hedonismo, esconde-se uma ideia de autenticidade susceptível de
ser considerada como um ideal moral ou ético e que tem implícita
a ideia "de uma existência melhor e mais elevada, aonde a própria
ideia de melhor e de mais elevado não se definiria em função
dos nossos desejos e necessidades, mas com vista a um ideal ao qual devíamos
aspirar". (15)
Taylor considera que a autenticidade é um ideal válido;
que os ideais morais podem ser discutidos racionalmente, o que implica
uma recusa do subjectivismo; e que estas discussões podem trazer
consequências para a actuação dos sujeitos e para o
destino da vivência colectiva. Esta posição nega as
perspectivas que nos consideram como prisioneiros de um sistema económico
ou de qualquer "gaiola de aço" burocrática. (16) A autenticidade
inscreve-se no subjectiv turn da modernidade na qual a interioridade tem
implicita a ideia de que cada um tem a sua maneira própria de ser
humano. Este último raciocínio surge relacionado com a ideia
de de que as diferenças entre os seres humanos tem significado moral.
Ser sincero consigo mesmo significa ser fiel à minha própria
originalidade, a qual eu sou o único a poder descobrir, realizando
uma potencialidade que é propriamente minha.
Porém, simultaneamente, a autenticidade implica o reconhecimento
do carácter dialógico da existência humana. "Não
é possível descobrir isoladamente a nossa identidade: ela
é negociada num diálogo, em parte exterior, em parte interior,
com o outro." (17) Tornamo-nos agentes humanos, capaz de nos compreender-nos
a nós próprios, e logo de definir uma identidade graças
à aquisição de uma linguagem, a qual todavia só
é adquirida e dominada graças ao intercâmbio que realizamos
com os outros que contam para nós, aqueles a que George Herbert
Mead refere como "outros significativos".. A descoberta da autencidade
não é um processo monológico mas resulta de um encontro
com outro. Definimo-nos num diálogo, por vezes por oposição
ou em conflito, com as identidades que os outros que contam reconhecem
em nós. (18) A constituição da diferença e
da originialidade só é passível de ser entendida num
horizonte de intercompreensão. O processo de escolha das opções
individuais deixa de ser uma mera afirmação de relativismo,
no qual tudo pode ser ecolhido por possuir um valor idêntico. Uma
tal concepção de igualdade tornaria toda a escolha trivial.
Ora a ideia de uma escolha livre não faz sentido senão no
caso de certos critérios possuirem mais valor do que outros. Não
é possível definir a identidade a não ser situando-me
em relação ao que conta. Essa ideia de uma escolha livre
fundada numa razão que se move dentro de um horizonte de intercompreensão,
permite que nos munamos de argumentos susceptíveis de ser opostos
aos que fazem uma interpretação mais fútil da cultura
de autenticidade. Sem um horizonte de intercompreensão, a razão
revela-se impotente para exercer o seu sentido critico.
Taylor considera, finalmente, que sem a noção de bem
comum a autenticidade não se traduz também na transferência
da energia política para agrupamentos minoritários, cada
vez mais incapazes de mobilizar as maiorias democráticas em torno
de programas e políticas comuns. O agir político implica
uma comunidade que seja simultaneamente mobilizadora e unificadora, conferindo
um sentido último à própria afirmação
da autenticidade num contexto moderno. A afirmação da subjectividade,
no sentido moderno, surge relacionado com uma ideia de cidadania. A subjectividade
afirma-se em articulação com o público.
Se este enquadramento teórico configuraa diversas possibilidades
diversas para a subjectividade seria interessante referir-nos em passagem
às diversas possibilidades da sua afirmação concreta.
Em primeiro lugar, destaca-se a afirmação da individualidade.
Depois de uma ética centrada nas relações de produção,
hoje o afecto e o imaginário, as ordens implícitas da construção
da subjectividade, tornaram-se centrais na modulação da linguagem
institucional. As categorias do prazer, do consumo e da liberdade individual
parecem misturar-se de acordo com uma lógica em que a busca da pluralidade
de caminhos se multiplica ao infinito. A escolha de percursos individuais
parece ter-se tornado uma espécie de obsessão absoluta: generaliza-se
a ideia de uma espécie de atitude de bricolage perante as escolhas
individuais - faça você mesmo- sendo, porém, que o
leque de escolhas é pré-determinado. A ética moderna
centra-se, de certa forma, em torno da categoria do desejo. Isto tanto
pode significar uma apetência crescente pelo consumismo individual
como um autêntico desejo de realização da subjectividade.
Em segundo lugar, distingue-se uma tendência para a revalorização
da comunidade que se dá a conhecer de formas diversas: a ) a revalorização
do passado e a insistência em formas de sociabilidade pré-moderna;
b) o agrupamento de novas identidades em antigas formas de sociabilidade,
desenvolvendo-se uma consciência de "nós" num plano de ruptura.
Existem alguns sintomas de reafirmação de identidades culturas,
que se dão a conhecer na revalorização de elementos
tradicionais, como sejam um aumento do interesse pela religiosidade popular
e a recuperação de dialectos. Reconhecem-se dificuldades
na integração de comunidades que se formam de uma certa forma
á margem do espaço público que julgamos reconhecer
como nosso. Para além do caso mais evidente dos ciganos, somos obrigados
a reconhecer a existência de fenómenos crescentes de presença
étnica que não ascendem ao espaço público.
A presença, no últomo processo eleitoral de candidatos que
representam as diversas minorias oriundas dos PALOPs', apesar de ser aspecto
positivo, serviu mais para demonstrar a forma como algumas comunidades
se encontram alheadas do nosso espaço público, do que propriamente
para resolver dificuldades.
Em terceiro lugar, desde os anos sessenta e setenta que se assiste
na Europa e nos Estados Unidos ao lançamento de movimentos sociais
em que os actores (militantes pacifistas, ecologistas, regionalistas, feministas)
que transportam orientações culturais em ruptura com as sociedades
industralizadas (19), chamando a atenção do público
para elementos que dizem respeito à vivência diária:
ambiente, consumo, direitos da mulher, mobilizações anti-racistas
ou de defesa de novas minorias, como é o caso recente dos infectados
com SIDA. Já não se trata da defesa dos direitos típicos
da modernidade - os direitos ligados ao trabalho e à posição
na produção. Porem, esta substituição não
é evidente nem deve ser olhada sem suspeita: nem deve despertar
qualquer forma de euforia pós-moderna nem fazer acreditar os modernos
que a política regressa sobre a forma de interevenções
mais ligadas ao quotidiano. Muitas das vezes, quando não estão
realizados os direitos tradicionais que se identificam com a modernidade,
os novos direitos parecem substituí-los. Este processo tanto pode
significar uma pura insistência na fruição individual
ligada aos processos de consumo - ou seja, um sintoma da vitória
dos mecanismos de mercado - como pode estar relacionado com a reconfiguração
entre público e privado, sendo por isso uma manifestação
de dinamismo da sociedade civil e de cidadania. A resposta encontrar-se-
á numa tensão entre ambas as possibilidades entre ambas.
Perante um certo triunfo unidimensional das forças reguladoras do
mercado e em face da crise de ideologias seguras que apresentem soluções
mobilizadoras, os ciadãos recorrem a uma insistência na sua
liberdade individual que é, ao mesmo tempo, uma afirmação
contra os excessos do Estado e do mercado, chamando a atenção
para a dimensão pública de problemas que até aí
se reduziam ao privado: a identidade, a família, a educação.
III- A reconsideração das relações entre público e privado
1. Diversas tradições intelectuais propuseram no passado
o seu próprio conceito de oposição entre o público
e o privado: ou seja, entre a vida pessoal e a vida colectiva, entre o
trabalho e a família, entre o individual e o colectivo. De uma forma
necessáriamente reducionista, podemos distinguir dois modelos teóricos
fundamentais, de análise dessa articulação: assim,
no espaço público grego, tal como é descrito por Hannah
Arendt, havia uma clara divisão em relação ao mundo
da domesticidade, ao universo privado: o espaço público identificava-se
com a agora. No espaço público iluminista, pensado por Habermas
pelo contrário, verifica-se uma relativa articulação
entre o público e o privado, já que os próprios espaços
de reunião dos públicos passa pelo próprio interior
das casas, em volta dos salões. Hoje, a crítica ao espaço
público exige o ponto de vista dos excluídos, reclamando
que há identidades e temas com ele relacionados que devem poder
ascender à publicidade, abandonando os cantos sombrios da domesticidade:
trata-se de reclamar pelo acesso ao espaço público de todos
os protagonistas que não tinham acesso ao debate racional e de todos
os temas que não diziam respeito, pelo menos directamente, ás
relações com o poder polítco.
Ao mesmo tempo, a nova configuração das relações
entre público e privado deve associar-se também a uma crise
de socialização que deve muito às indústrias
dos media e à penetração do mercado no universo da
cultura, de uma forma que organiza cada vez mais a nossa vida segundo a
repartição de segmentos de consumidores. Neste caso, estaremos
perante uma utilização da categoria do privado, que resulta
de o tentar reduzir á exploração comercial do desejo,
como elemento em torno do qual se ergue a nossa subjectividade. Neste caso,
"a procura do prazer, mas também da diferença, do efémero,
do encontro e não tanto da relação, a ideia de uma
sociedade puramente «permissiva» dão ao pensamento e
às condutas sociais do nosso tempo um brilho, uma excitação
algo forçada que lembram os entrudos que reaparecem justamente no
meio dos nossos invernos, após uma ausência secular." (20)
Nesse sentido, as imagens dos media correspondem ao desejo desse brilho
com um império de pequenos estremecimentos, de simulacros que preenchem
o nosso isolamento cada vez mais radical: a aventura, o risco e a participação,
o jogo arriscado dos afectos foram substituídos pela fugacidade
luminosa das emoções em segunda mão. Em qualquer dos
casos aos media haverá que lançar um forte questionamento
crítico.
IV - O papel dos media. Visibilidade mediática e publicidade: a recuperação da ideia de público.
O espaço público desde sempre foi um espaço medietizado,
onde se revelou desde sempre, de forma muito clara a relação
entre a experiência comunicacional e a experiência política.
Primeiro, assitiu-se a emergência de uma esfera pública que
colocou, ainda que em termos ideais, a hipótese de comunicar o pensamento,
de forma racional e igualitariamente repartida, no cerne da própria
actividade política. Para Kant, "o uso público da razão
deve sempre ser livre e só ele pode levar a cabo a ilustração
entre os homens." (21) Seguidamente, verificou-se o devir espectacularizante
das mensagens e o aparecimento, no lugar do público, dessa forma
de sociabilidade heterogénea e indiferenciada que designamos por
massa. Ao contrário do público, que admite o exercício
dialógico da razão por parte dos indivíduos que o
integram, a massa, caracteriza-se por uma mera contiguidade dos actantes
geralmente passivos. Tocqueville descreve a massa como uma multidão
inumerável de homens todos semelhantes e iguais, "ocupados incessantemente
na busca dos pequenos e vulgares prazeres com os quais saciam as suas vidas."
(22) Para Stuart Mill, na sociedade de massa, todos "lêem, ouvem
as mesmas coisas, vão aos mesmos lugares, têm as suas esperanças
e temores orientados para os mesmos objectos, e os mesmos meios para enunciá-los
(…)" (23) Contemporaneamente, num ponto de vista que segue o percurso da
crítica de Nietzsche e a análise do desencanto do mundo de
Weber, a Escola de Frankfurt teoriza uma lógica, inerente à
massa, que jamais permite a descoberta de uma alternativa que se traduza
numa efectiva transformação social. A cultura dos media,
denominada indústria cultural, prolonga a norma que prevalece na
empresa e na produção em série. Na indústria
cultural, os homens "negam tudo o que transcende a realidade dada." (24)
Nesta perspectiva, a forma de opinião veiculada pelos media prescinde
da crítica e da reflexão aderindo facilmente aos esterótipos
e preconceitos dominantes ou julgados como tal. As normas relacionadas
com a simplificação do estilo, com a objectividade confinada
à mera descrição, com a temática do interesse
humano centrada no entretenimento seriam a manifestação mediática
de uma vontade de produzir uma escrita conforme uma opinião considerada
dominante e identificada pelos preconceitos e estereótipos, que
constituiria o máximo denominador comum entre todos os cidadãos
médios. (25)
Por último, hoje são as redes que quebram, no espaço
e no tempo, as fronteiras convencionais: "(...) dão a exacta medida
do espaço público contemporâneo: já não
um espaço essencialmente topológico e físico, mas,
cada vez mais, um espaço simbólico, virtual e reticular."
(26) Em relação às condições de exercício
da cidadania, e de dinamização do espaço público
as redes oscilam entre a convicção no que respeita às
suas possibilidades democráticas e o receio da multiplicção
de novos mecanismos de vigilância. Assim, "não restam hoje
dúvidas de quer o desenvolvimento tecnológico favoreceu a
implantação de redes altamente centralizadas, e que isso
comporta perigos (…); por outro lado, assistimos também à
progressiva banalização dos dispositivos ao (ao nível
da sua difusão) e da sua sofisticação (técnica),
factores que favorecem a "comunicação de troca /interacção"
(…) E se ideiais como as de "pluralismo videográfico", "democracia
televisual" ou "ideografia dinâmica" (Guattari, 1991) não
passam, por enquanto, de meras hipóteses de trabalho de mediana
credibilidade; parecem mesmo assim, existir novas potencialidades desconhecidas
não perfeitamente avaliadas (ou sequer avaliáveis) nesse
imenso potencial tecnológico cada vez mais sofisticado, individualmente
acessível ou gerível, graças ao qual o pensamento
de todos nós se transforma a um ritmo inusitado e se criam possibilidades
até há pouco impensáveis." (27) A relação
entre os media e o espaço público aparece assim mergulhada
numa teia de contradições quanto às possibilidades
de aprofundamento de uma ideia de cidadania : por um lado, os media são
vistos como um mecanismo indispensável para que essa ideia se concretize:
a experiência política democrática é ligada
com uma comunicação livre. Por outro lado, acredita-se que
desempenham um papel de difusão e de reforço dos valores
estabelecidos e institucionalizados, interiorizando rotinas, normas, valores
e géneros discursivos que correspondem ao máximo denominador
comum, rejeitando o que se desenvolve na periferia e tudo o que ambiciona
a mudança. Neste sentido, as teorias críticas da cultura
de massa, designadamente, a violenta análise desenvolvida por Adorno
e Horkheimer associam a comunicação com a integração
social considerada, simplesmente, como forma de violência que visa
a integração dos indivíduos na sociedade de troca.
Numa análise que antecipa de forma pessimista, a relação
da cultura de massa com a configuração da identidade e a
análise da subjectividade, os próprios desvios em relação
à norma são olhadas como metamorfoses calaculadas que servem
todas para confirmar mais fortemente a valiodade do sistema. (28) Num raciocínio
que contem algo de semelhante, Alain Touraine recorre ao conceito de sociedade
programada para se referir "à sociedade onde a produção
e a difusão maciça dos bens culturais ocupam o lugar central
que havia sido o dos bens materiais na sociedade industrial." (29) O poder
de gestão nesta forma de sociedade traduz-se em "prever e modificar
atitudes, comportamentos, em modelar a personalidade e a cultura, em entrar
directamente, portanto, no mundo dos valores, em vez de se limitar ao domínio
da utilidade." (30) É em face destas propostas que se desenha a
necessidade de manter a tensão não partindo para análise
social com uma análise de perfil totalizante, que desdenhe as subtilezas,
e que por isso condene a comunicação a uma visão puramente
homogenizadora.. Apesar de os novos mecanismos de diferença estarem
insificentemente configurados, sendo legítimo desconfiar quer das
tendências conservadoras que minam as comunidades, quer das perversos
apelos do mercado que minam as afirmações das identidades,
pode-se apesar de tudo admitir que o jogo político confinado aos
quadros institucionais se transfira para esferas da vida quotidiana, fixando
um novo sentido para o trabalho, para a política e para as formas
de sociabilidade - eventualmente "um sentido mais partilhado, que procura
reabilitar contextos comunicacionais deteriorados, e aspira, assim, a a
firmar a vontade colectiva em termos intercompreensivos." (31) Na mesma
medida convirá estar atento a a que o processo de construção
de mensagens pelos media, designadamente o jornalismo, conheceu desde a
década dos vídeos ligeiras e das rádios pirata até
à constituição dos grandes grupos multimédia,
desde o new journalism à nova dramatização das narrativas
noticiosas, alterações que passaram por caminhos que incluiram,
desde a alteração dos direitos de antena até ao reconhecimento
de novos direitos dos leitores, espectadores e ouvintes, até a transformação
da própria narrativa ao nível de um registo de maior abertura
à subjectividade, a introdução do texto de autor e
o reconhecimento dos factos noticiáveis como elementos de uma intriga
jornalística. Tratam-se de elementos que indiciaram a possiblidade
de uma superação do carácter impessoal da narrativa,
adequados à recuperação da subjectividade e, simultaneamente,
adequados à espectacularização da informação.
Na relação dos media com o tratamento da diferença
identitária tal como se manifesta contemporaneamente no espaço
público, dir-se-ia assim que se vislumbra, também, uma certa
ambiguidade, desenvolvida em dois planos: por um lado, são os media
que tornam possível a afirmação da diferença
como uma possibilidade de diversidade que constitua um aprofundamento democrático
das sociedades; por outro lado, são frequentemente eles que reduzem
a luta pelo reconhecimento dessas identidades a uma mera exploração
de segmentos de mercado, multiplicados até ao infinito, através
da intensificação consumista dos desejos individuais. Este
tema terá que ser abordado em dois planos: a visibilidade das identidades,
por um lado, e a própria constituição da subjectividade,
por outro:
No que respeita ao plano da visibilidade dos referentes identitários
caberá lembrar o seguinte :
presentemente, assisti-se a uma situação em que é
ao nível da própria luta simbólica que se constituem
formas de exclusão que se traduzem pela existência de fracturas
socais. Ora esta noção de fractura social passa pela existência
de sectores inteiros da população que são excluídos,
ocultos, fragilizados, precarizados no seu emprego e no seu futuro. Esta
precarização tem a componente simbólica da sua ocultação,
da sua ausência de reconhecimento, ou seja da impossibilidade de
acesso ao espaço público. A inexistência de espaços
públicos aonde sejam reconhecidas as pretensões de identidades
ocultas que se desenvolvem na penumbra social conduz à existencia
de um universo de estigamatizados de que as minorias étnicas, as
mulheres, e doentes de diversa ordem podem constituir exemplos evidentes.
Desde os anos 80 torna-se difícil dissociar o tema do desemprego
ou do trabalho precário, da pobreza e da crise das cidades do tema
da fragmentação cultural, no sentido em que este se relaciona
com a consolidação das desvantagens sociais de minorias excluídas.
Apesar de tudo, a emergência da diferenciação aparece
marginalizada aos olhos do público. A verdade é que algum
do olhar que os media lançam sobre a proliferação
de identidades, para as quais, aliás eles decisivamente contribuem,
é, ainda, um olhar feito, muitas das vezes, a partir do que é
aceite como normal ou consensual: o próprio conceito de actualidade
está profundamente relacionado com o que é tido por adquirido.
Sem ser necessário fazermos um estudo empírico, constatamos
que os muitos milhares de africanos que hoje vivem em Portugal aparecem
referidos como dados estatísticos ou, são citados, a propósito
de situações de racismo, marginalidade, pobreza quando não
são identificados como causa principal de insegurança. Por
outro lado, as mais diversas orientações sociais que emergem
à margem do que é socialmente consensual são objecto
de um tratamento que oscila entre o irónico e o fascínio
pelo bizarro, sendo por isso, remetidos pelos media para o domínio
vasto do "fait divers" ou das histórias de interesse humano, as
quais, quando tocadas pelo excesso, descaem facilmente no sensacionalismo.
Ora, o sensacionalismo, apesar do seu ar aparentemente transgressor, é,
apesar de tudo, uma forma de denunciar a transgressão, desempenhando,
por isso, um papel socialmente conservador. Nesse sentido, convém
lembrar que até alguns dos melhores jornais portugueses continuam
a inserir reportagens que dizem respeito à identidade sexual no
mesmo caderno onde se referem assuntos tão diversos como as tendências
da moda, as pequenas maldicências entre políticos ou as desventuras
da família real britânica.
Por outro lado, qualquer que seja a apreciação dos critérios
de qualidade da programação comercial das televisões
privadas, em relação aos quais tenho reservas ao nível
ético, cultural e político, não podemos deixar de
admitir que elas traduzem vários fenómenos que ajudam à
reconfiguração, à dissolução para uns,
à transformação para outros, do espaço público:
em vez da concentração das notícias em umas poucas
e reduzidas figuras que apareciam para produzir discursos de natureza oficial
verifica-se o acesso à programação e até à
informação por parte de camadas sociais que finalmente adquirem
alguma visibilidade pública assumindo os seus gostos e até
o seu desprezo ou desencanto por aqueles que eram os "grandes projectos
colectivos." Os "fait divers" e as chamadas estórias de rosto humano,
para além dos concursos e reality-shows, traduzem a chegada a um
espaço de visibilidade pública de gostos, gestos e formas
de estar que não eram socialmente exibíveis. Porém,
defrontamo-nos com um paradoxo: as novas franjas sociais a que nos referimos
conquistam a visibilidade, mas parecem, afinal, confrontadas com diversos
processos de dominação cultural. Ou seja, a pura afirmação
da diferença parece, afinal, um pretexto para a generalização
do conumismo. As massas, como diria Benjamin, ascendem à sua visibilidade
mas parecem continuar arredadas dos seus destinos. (32) Ora este paradoxo,
não pode deixar de ser relacionado com o segundo plano a que que
nos queremos referir e que diz respeito ao papel dos media na constituição
da subjectividade, em relação ao qual importa fazer as seguintes
observações: verifica-se como a tematização
de assuntos de natureza privada pode ser promovida pelos media atarvés
de formas de sensacionalismo que, na maior parte das vezes, conduzem uma
malha apertada de vigilância que se exerce sobre a intimidade. Os
media surgem, muitas vezes, como uma das instâncias onde a personalização
da política privilegiou os temas individuais em detrimento da acção
colectiva. Apesar de tudo, esta avaliação tem a ver apenas
com uma das faces do problema.
Os media e as suas relações com as atitudes individuais
têm oscilado através de sucessivas hipóteses ora mais
eufóricas, ora mais apocalípticas. Se até aos anos
50 e 60, a comunicação de massa parece feliz no seu papel
de conseguir o melhor desempenho democrático ao mesmo tempo que
oferece o entretenimento aceitável, colocando o enfâse na
função socializadora e integradora que tanto suscitou a ira
dos críticos da cultura de massa, a partir dos anos 80 e 90, o papel
de entretenimento, de evasão, de sonho torna-se hegemónico,
sendo frequentemente relacionado com a proliferação do conformismo
quer social quer político. A disfunção narcotizante,
de que falavam Lazersfeld e Merton, parece mesmo assumir uma dimensão
central de uma função, ou seja uma missão perfeitamente
reconhecida e assumida. A apatia perante o espaço público
assume-se quase como um "direito legítimo" ao repouso por parte
do cidadão, de que o consumismo televisivo constitui parte essencial.
(33) Esta componente tem que ser problematizada e não permite uma
resignação acomodada, tanto mais quanto existem perspectivas
imediatas que indiciam potencialidades por parte dos media em determinarem
cada vez mais novos segmentos das nossas vidas, baseadas precisamente na
ideia de que a função de entretenimento é não
só legítima como necessária. Apesar de tudo, esta
enfâse na realização individual, no lazer e na fruição
pessoal de que os media fazem eco através da generalização
do espectáculo e de entretenimento, não deve ser objecto
de uma pura condenação que não tenha em conta o facto
de que na afirmação de alguns direitos se encondem desejos
de afirmação, de reconhecimento e de auto-afirmação
que tem de ser pensadas à luz das transformações verificadas
nas relações entre público e privado. Em vez da pura
condenação castigadora e moralista do gosto das audiências
pelo entretenimento, deve-se também, reflectir sobre o significado
da "fome de imaginário" que se esconde por detrás do consumismo
desenfreado por histórias de rosto humano, do sensacionalismo e
da invasão da privacidade, tentando, por exemplo, perceber em que
medida uma certa paixão pela personalização das notícias,
para além de ser uma clara aposta na rentabilização
de um certo conceito circense de espectacularização do quotidiano,
não esconde também um desencanto por um espaço público
desenraizado da vida e afastado desse quotidiano. Ou seja, importa ser
preciso e descobrir a diferença ( e a semelhança) de lógica
social que se inscreve entre as notícias sobre a família
real britânica ou Bill Clinton - caracterizadas por uma lógica
de espectáculo e de entretenimento que contém um apelo intrínseco
ao populismo e o aumento de notícias sobre a violência doméstica.
Ambas se inscrevem numa lógica de personalização do
espaço público. Onde começa a denúncia da dominação
que se oculta no privado e a brutal colonização do espaço
público pelo puro voyerismo?
A recente proliferação da diferença tem, por outro
lado, potencialidades críticas e normativas que se prendem com o
devir do próprio estado de direito e da modernidade social que não
tem necessidade absoluta de serem identificadas com um inevitável
"despotismo soft". Há uma vontade de realização que
se articula com a luta pelo reconhecimento e que não se identifica
apenas com o escapismo, o hedonismo e o abstencionismo político.
Haverá a ter em conta que nem tudo é igualmente perigoso
ou alienante e admitir a possibilidade que todo o processo de enfatização
por parte dos media da fruição individual e de concentração
numa agenda menos dedicada às questões públicas não
deve ser julgado, de forma apressada, com resignação, colocando-nos
neste ponto de vista ao lado da máxima adorniana: "entretermo-nos
é estar de acordo." Assim, se é verdade que os momentos de
afirmação do mercado coincidem quase sempre com a explosão
da infortainment, da informação-espectáculo e do sensacionalismo
- aconteceu assim com a penny press e a yellow press e o desenvolvimento
do capitalismo contemporâneo, acontece hoje com a privatização
generalizada da comunicação- a verdade é que esses
momentos devem também ser aproveitados para a compresnsão
de outras formas de estar e a afirmação de novos direitos.
Por isso, há ainda um trabalho crítico da racionalidade que
não pode ser perdido de vista mas que não se pode reduzir
a tudo considerar como pura manifestação da dominação.
Se é verdade que a análise destas transformações
é feita com base em premissas que implicam uma atitude crítica,
não deixa de ser também verdade que a afirmação
da individualidade não deve ser objecto de uma leitura apocalíptica.
A acentuação da diferença está relacionada
com a afirmação unilateral do mercado. Porém, também
se prende com um movimento generalizado de regresso do sujeito. A recusa
da homogeneização tanto assume os contornos de uma certa
exploração mercantil e subjugante da diferença como
coexiste com a busca genuína da identidade, afirmando mecanismos
de ruptura e de afirmação individual e identitária
que podem constituir autênticas vias de aprofundamento dos mecanismos
de vivência democrática e do espaço público.
Mais uma vez, esta opção ir-se-á jogar no plano do
social e do político e, mesmo assim, de uma forma que nunca é
totalmente planificável ou previsível, pelo que nunca será
absolutamente resolvida a tensão entre as alternativas possíveis.
Entre estas possibilidades que não se devem extremar mas, que
contrário implicam uma análise atenta das nuances e possibilidades
intermédias, fica mais uma vez a pergunta: de que forma, a defesa
da diversidade se equaciona com o agir mediático. A publicidade
- entendida enquanto possibilidade de ascender ao público - articula-se
de forma definitiva com a questão da visibilidade mediática.
O acesso das novas identidades ao o espaço público que temos
- completamente mediatizado- tem que ver com a disputa do poder simbólico
e de afirmação cultural. O acento que hoje se coloca no ulticulturalismo
tem a ver com o facto de a fragmentação social se ter deslocado
em grande parte de uma explicação que tinha apenas em conta
as posições ocupadas pelos diversos grupos em relação
à produção - e pela divisão do corpo social
que procede do trabalho e da produção capitalista- para uma
situação em que a cultura ocupa um lugar central nas pretensões
de validade dos diversos grupos e em que a existência de fracturas
resulta também da possibilidade de acesso que esses grupos disponham
em relação aos mecanismos de produção simbólicas,
seja como como consumidores seja como produtores. (34) Ou seja, têm
ainda a ver com com o facto de haver um conjunto de desigualdades de oportunidade
que tem a ver com a visibilidade relativa dos diversos actores sociais.
Assim, sendo, importa, todavia, recuperar uma ideia de publicidade, que
passa pela intervenção dos cidadão e que implica exigência
da criação de novos e múltiplos espaços públicos,
aonde se leve a efeito e interpretação dos significados,
normas e sensibilidades a partir do ponto de vista dos grupos que hoje
constituem identidades excluídas. Assim, é a própria
diferença entre publicidade e visiblidade mediática, que
nos parece adquirir uma diferença ética e normativa de natureza
substancial.
Nesse sentido, a revitalização do espaço público
prende-se ainda com o próprio agir dos media, o que remete para
a deontologia dos jornalistas e para as próprias condições
de produção de mensagens. Pode a linguagem jornalística,
mantendo a sua forte identidade que a condiciona, ser compatível
com uma pluralidade de discursos e de significações que se
tornam eles próprios novos possíveis para o devir do mundo,
ou pelo contrário, a linguagem do jornalismo só pode, graças
à sua sobrecodificação, cingir-se a um discurso: o
da realidade que existe, que celebra, ritualmente, a sua própria
existência e se recusa ela própria a mudar? Colocando de novo
a questão sob o ponto de vista normativo, como pode uma linguagem
institucionalizada, caracterizada pela presença de fortes convenções
narrativas e sujeita a fortes constrangimentos organizacionais - económicos,
técnicos, etc. - significar a existência de outros possíveis
? A linguagem dos media pode ser um factor de desestabilização
de ordens dominantes, chamando para o espaço público, elementos
de avaliação que permaneciam obscuros aos olhos do público
e que se constituam como elementos nodosos no seio da sociedade, que contribuam
para a sua reificação. Pelo contrário, ela pode precisamente
reproduzir os compromissos estabelecidos, impedindo a problematização
crítica dessa realidade.
A resposta ao papel dos media na formação de um consenso
social, onde predomine a ordem democrática e o respeito pela diversidade,
passa necessariamente pela orientação crítica que
referi, pelo que remete para a ética e para deontologia, não
podendo ser posta em causa a responsabilidade que os próprios agentes
são levados a ter em conta neste domínio. A falência
das grandes narrativas, a forma como tudo o que parecia sólido se
desfez no ar, influencia de tal forma as análises recentes que,
por vezes, se confunde a semelhança entre as alternativas mais visíveis
no actual espaço público com a absoluta ausência de
alternativas, veiculando alternativas pessimistas que constituem uma forma
de desvincular os agentes das consequências da própria acção.
Ora a enfâse no regresso da participação individual
implica que a responsabilidade impessoal do «sistema» deve
pois, ser substituída pela responsabilidade, individual e colectiva,
dos jornalistas. Tudo o que permite limitar a relação media
- receptor em benefício de uma relação activa, na
qual o receptor não é apenas um comprador mas um indivíduo
reconhecido na pluralidade dos seus papéis sociais, contribui para
acelear o aprofundamento democrático da sociedade. (35) Porém,
remete também para um olhar sobre os media que não pode privilegiar
o liberalismo puro. Assim, o próprio regresso da política
sugere uma perspectiva em que os direitos da comunicação
não pode ser apenas encarados como puros direito individuais, mas
como possuindo uma dimensão pública. Neste sentido, a fundamentação
social, política e filosófica da especificidade do direito
de comunicação só são possíveis em homenagem
a uma ideia de soberania democrática que norteie a prática
dos media e as atitudes dos Estados relativamente a esses mesmos media.
Nesse domínio, os movimentos dos próprios redactores que
defendam a responsabilidade social dos jornalistas e a opinião pública
são factores de intervenção que devem ser tidos em
conta.
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2-Raymound Boudon, V. Entrada Consenso in Dicionário Crítico de Sociologia, São Paulo, Editora Ática, p. 97.
3-Segundo Augusto Comte, o principal problema humano "consiste em levar a prevalecer gradualmente a sociabilidade, sobre a pessoalidade, ainda que esta seja espontaneamente preponderante." Cfr. Augusto Comte, Catecismo Positivista, Lisboa, Europa América s/d, p. 40. Assim, "a pessoalidade" é tida como dotada de "uma impoetência radical para construir qualquer unidade autêntica e duradoura." Idem, p. 41. Ver em especial Comte, Catecismo Positivista, p. 93-116.
4-Boaventura Sousa Santos, Modernidade, Identidade e Cultura de Fronteira in Pela Mão de Alice: O Social e o Político na Pós-Modernidade, Lisboa, Afrontamento, 1994, p. 54.
5-John B Thompson, The Media and modernity - a social theory of the media, Cambridge Polity Press, 1995, p 81-2.
6-"(…) a base étnica das nações torna-se cada vez mais evidente e o Estado-Nação, lomge de ser uma identidade estável , começa a ser visto como uma condensação temporária dos movimentos que caracterizam a modernidade política (…)Portugal é talvez o único Estado-nação uni-étnico da Europa e está adeixar de sê-lo à medida que aumentam a imigração africana e asiática e o fluxo de turistas residentes, reformados da vida activa, vindos da Europa ou do Japão." (Boaventura Sousa Santos, idem op. cit., p. 127.)
7-Sobre este tema ver nomeadamente, Moisés Lemos Martins, Para Uma Inversa Negação: o discurso da identidade, Porto, Edições Afrontamento, p. 96-97. Com efeito, apesar do sentimento de pertença ao catolicismo já ali, se dá a conhecer que se "confirma uma significativa diminuição das práticas religiosas católicas, evidenciando uma tendência imparaável desde os anos 70."
8-Finalmente, podemos dizer como Boaventura Sousa Santos: "Sabemos hoje que as identidades culturais não são rígidas nem muito menos imutáveis. São resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação. Mesmo as identidades aparentemente mais sólidas, como a mulher, homem, país africano, país latono-americano ou país europeu, escondem negociações de sentido, jogos de polissemia, choques de temporalidades em constante processo de transformação, responsáveis em última instãncia pela sucessão de configurações hermenêuticas que de época para época dão corpo e vida a tais identidades. Identidades, são pois identificações em curso." Santos, Boaventura Sousa, idem op. cit., p. 119.
9-Mosés Lemos Martins, idem op. cit.., p. 48.
10-Giddens, Modernidade e Identidade Pessoal, 1977, 7.
11-Heller, The Contigent Person and Existential Choice, 1990, in Michael Kelly (Ed. ), Hermeneutucs and Critical Theory in Ethics and Politics, pp.55-56.
12-Taylor, Ethics of Autenticty, 1994, 11.
13-Taylor, idem op. cit. 1994, 31,
14-Taylor, Sources of the Self, 1989, 14.
15-Taylor, idem op. cit., 1994, 23-24.
16-Taylor, idem op. cit., 1994,31-33.
17-Taylor, idem op. cit., 1994, 23-24
18-Taylor, idem op. cit. 1994, 38-45.
19-Cfr. Michel Wieviorka, idem. Op. cit., p. 15.
20-Alain Touraine, O Retorno do Actor: ensaio sobre sociologia, Lisboa, Piaget, 1996, p. 10.
21-Kant, A Paz perpétua e outros Opúsculos, Lisboa, RBA Editores, 1996, p. 10.
22-Alexis de Tocqueville, De La Démocracie en Amérique, Paris Calman -Lévy , 1888, 3ª parte, Capítulo 21 in Manuel Braga da Cruz, Teorias Sociológicas- Os Fundadores e os Clássicos, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p 271.
23-John Stuart Mill, On Liberty, apud Gabriel Cohn , Sociologia da Comunicação, São Paulo, Livraria Pioneira Editora, s/d, p 48
24-Leo Lowenthal, , Perspectivas históricas da cultura popular,in Gabriel Cohn (org), Comunicação e Indústria Cultural, São Paulo, TA Queiroz, p 303.
25-Cfr. José Luís Dader Garcia, El Periodista en el Espacio Publico, Barcelona, Bosch, 1992, pp 81-92 e 152-53.
26-João Pissarra Esteves, Novos Desafios Para Uma Teoria Crítica da Sociedade, in Revista de Comunicação e Linguagens, "Comunicação e Política", Lisboa, Cosmos, 1995, nº 21-22, p 99.
27-João Pissarra Esteves, idem op. cit. , p. 101.
28-Adorno e Horkheimer, Dialectic of Enlightment, Londres, Verso, 1995, p. 129.
29-Alain Touraine,A Crítica da Racionalidade, Lisboa, Instituto Piaget, 1994, p. 290.
30-Ibid, p 290.
31-João Pissarra Esteves, idem op. cit.. , p. 94.
32-Walter Benjamin, A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica in Obras Escolhidas, São Paulo, Editora Barsiliense, 1987, p. 195.
33-Paul Lazarsfeld e Robert King Merton, Comunicação de massa, gosto poular e acção social organizada in Gabriel Cohn, Comunicação e Indústria Cultural, São Paulo, TA Queiroz, 1987, p. 230-31. No texto em causa, Merton e Lazarsfeld referiam-se a funções da comunicação de massa com a tribuição de status e a reiteração das normas, precisando a propósito da disfunção narcotizante: "Ao invés de funcional, o conceito de disfuncional baseia-se no pressuposto de que a existência de amplas massas da população politicamente apáticas e inertes não é do interesse da sociedade moderna." E acrescentavam: "Ao que parece, todavia, este amplo suprimento de comunicações (fornecida pelos meios de comunicação de massa) é capaz, tão somente, de fazer surgir uma preocupação superficial com os problemas da sociedade, superficialidade que muitas das vezes encobre a apatia de massa. ( o cidadão bem informado) considera os seus contactos secundários com a esfera da realidade política, suas leituras, seus programas de rádio, suas reflexões, como um desempenho substitutivo." Neste momento, os media, em particular a televisão, assumem, com muitos menos má consciência, a sua vocação de entretenimento.
34-Cfr. Michel Wievorka, idem op. cit., p. 12.
35-Sobre alguns dos mecanismos censurantes que impedem que, muitas das vezes, os jornalitas assumam este papel deve pode ler-se o excelente texto de João Maria R. Mendes, Mudança Vigiada no Discurso da Imprensa, in Revista de Comunicação e Linguagens nº 1, Porto, Afrontamento, 1985, pp. 79- 89.