Sob o Rosto da Europa
Um signo ou, se se preferir,
uma actividade ou manifestação que é comunicável no quotidiano, é sempre
significada através do seu uso (conforme as circunstâncias, a informação
adquirida e as codificações da comunidade). A interpretação de signos é, pois, não uma
panaceia para estudiosos, mas sim uma prática do dia a dia; uma prática de cada
momento da vida. Diante de alguém que me olha, eu sei que esse olhar não é apenas esse olhar; ou seja, eu sei
(ainda que ambiguamente) que esse olhar significa algo, porque está ali,
naquele momento preciso, em vez de qualquer outra coisa (que pode ser uma
ameaça, uma interrogação, uma atitude de expectativa ou de sedução, etc.). É por
isso que tudo pode ser encarado como
signo, desde que o intérprete (cada um de nós) o tome como tal, mesmo se de
modo não consciente (o que normalmente
acontece quase sempre).
A
semiótica é a área do saber que estuda os signos. Embora a sua história se
perca nos confins da Antiguidade, a verdade é que foi, mais ou menos, há apenas
um século, que, nos Estados Unidos (com C.S.Peirce) e na Suiça (com F.de
Saussure), este novo saber se instituiu autonomamente como tal. A sua evolução
até aos dias de hoje é complexa e variada, tendo-se cruzado episodicamente com
outras ciências (desde a filosofia à lógica; desde a linguística à
cibernética), mas, apesar das diversas tendências que tem percorrido, tornou-se
na contemporaneidade numa peça essencial para entender este nosso mundo da
informação, do excesso de oferta, da permuta de imaginários, numa palavra: da
comunicação “transbordante” (para utilizar a feliz expressão de H.-P. Jeudy).
Geralmente,
os estudos semióticos analisam linguagens particulares, sejam de ordem estética
(pintura, arquitectura, literatura, cinema ou dança), sejam de ordem lógica
(modelos matemáticos, informáticos, códigos de estrada ou alfabetos), sejam de
ordem social (comunicação gestual, ritos, modas ou publicidade). Cada uma
destas múltiplas linguagens, compostas por signos determináveis que se
actualizam (expressões e conteúdos associados a cores, movimentos de corpo,
números, pensamentos, palavras, emblemas, imagens, etc), produzem mensagens que
quotidianamente trocamos ou comunicamos. É, no entanto, o facto de - a cada
momento - interiorizarmos ou dominarmos os mais diversos códigos (ou seja,
corpos de regras de valor mais ou menos definido que nos são conferidos pela
nossa “comunidade” (A. Mchoul) e, também, em termos mais vastos, pela nossa
“cultura” (U.Eco)) que nos permite interpretar as inúmeras mensagens que -
também a cada momento - nos chegam (e que, quase instantaneamente,
descodificamos).
É
um sub-título do presente ensaio que me obriga a tecer estas breves
considerações muito generalistas, pois, ainda hoje em dia, o termo “Semiótica”
continua a suscitar questões, querelas, desconfianças. Nada melhor, portanto,
do que desmistificar, tentando esclarecer, mesmo se de forma sucinta. Mais
estranho pode ainda parecer a perífrase
que estabalece o referido sub-título, na sua totalidade: “Semiótica da
cultura”. Digamos que, em semiótica, apesar da existência de diferentes
acepções, a cultura é entendida como um sistema particular de unidades
semânticas que, de uma determinada forma, segmenta todo o possível universo
perceptível, pensável e imaginário da espécie humana. Isto quer dizer que cada
cultura organiza os conteúdos que comunica através de pertinências que, apesar
da globalização nascente, as diferenciam de outras (e tal reflecte-se nas
linguagens que utiliza, nas semantizações que privilegia, no tipo de mensagens
que transaciona e até, de certo modo, nos média com que as ditas mensagens se
produzem e, sobretudo, se veiculam).
Neste
contexto, a “Semiótica da cultura” deverá ser entendida como um estudo
polifórmico que avança por tentativas e conjecturas, na medida em que
selecciona signos particulares por abdução (inferência realizada a partir de
hipóteses não aleatórias e, portanto, sujeitas a condições). Como C.S.Peirce
referiu, a abdução é a único método capaz “de apresentar uma ideia nova, pois a
indução nada faz além de determinar um valor, e a dedução meramente desenvolve
as consequências necessárias de uma hipótese pura” (1990:220). Os signos
particulares com que (por abdução) tabalharemos no nosso ensaio provêm, assim,
das mais variadas linguagens (literatura, ritos, paisagem, história,
arquitectura, mito, música, artesanato, etc), embora se concentrem todos numa
dado cronotopo, isto é, são oriundos
de um determinado espaço e tempo
(vistos, não como o locus de
uma grande narrativa - ou história - que liga a origem a um propósito qualquer situado no futuro,
mas antes como um conjunto de continuidades ou isotopias que pretendemos
sublinhar). Como J.-L.Nancy referiu : “History (...) does not belong primarily to time, nor
to succession, nor to causalty, but to community, or to being-in-common”. É esta ideia de ser-em-comum,
mais do que uma equívova ideia de região ou de história, que melhor define a
amplitude dos conteúdos que analisaremos e que, como corpus do nosso ensaio, corresponde às topografias do sul de
Portugal (Lezírias, Região de Lisboa, Alentejo e Algarve).
A semiótica da cultura -
enquanto entendimento de mecanismos de comunicação e significação reguladores
de uma auto-imagem colectiva - terá, provavelmente, uma das suas origens nas
descrições de Heraclito dos oráculos de Delfos: “the lord, who has the oracle
in Delphi, neither discloses nor hides his thought, but reveals it through
signs” (Plutarco, cit. in M.Herzfeld,1982:169). Para os gregos, com efeito, não
consultar antecipadamente o oráculo profético era tido como causa para futuros
desastres. Aliás não se conhecem narrativas que descrevam uma negligência do
oráculo em si; pelo contrário é sempre nos mortais - e jamais nos Deuses - que
recaía a responsabilidade do que, na vida, eventualmente não corresse bem. Como M.Herzfeld referiu, “presumption of oracular wisdom is thus a fixed
feature (..), a self-fulfilling prophecy in its own right” (ibid:172). Esta ideia, segundo
a qual um propósito transcendente anima o próprio curso do tempo (e da história
- muitas das colónias gregas foram fundadas de acordo com um comando oracular),
prolongando o presente de acordo com um sopro
das origens, encontramo-la também no profetismo judaico. De facto, a grande
recompilação textual-profética que se dá no período pós-exílico (após 560 A.C.)
é entendido como reparador de negligências anteriores face à palavra
profeticamente revelada (L.Carmelo,1995). Também aqui a história adquire um
sentido, no seio do qual o homem se debate com a “self-fulfilling prophecy” que
M.Herzfeld caracteriza como um problema crucial “for the semiotics of culture” (ibid.: 172).
Num caso e noutro, toda a cultura no seu todo, bem
como as comunidades particulares nos seus micro-cosmos, dependiam,
ou melhor, conviviam com um saber interpretativo de cariz eminentemente
semiótico. O presente ensaio deixa ver que, nas sociedades actuais, o grau das
manifestações, por um lado, e o das suas significações profundas, por outro
(inseridos numa respiração ainda comum nos casos acima descritos), se terão
aparentemente afastado - ou até fracturado
- o que reforça a necessidade de uma análise transversal e abdutiva (e
não exaustivamente histórica, como
vimos) do “being-in-common” concreto
que nos propomos observar.
Entendemos,
deste modo, que a semiótica pode também explorar, no seu conjunto, esse grande
organigrama criador de significações que é uma cultura. Entendemos igualmente não dever fechar ou limitar o nível
de continuidades que formos concluindo, mas antes deixar em aberto o espaço
interpretativo que um campo de estudo tão vasto naturalmente sugere.
Privilegiaremos ainda uma lógica de exploração metonímica (por contiguidade)
das realidades sígnicas que fomos observando, não deixando que, com isso, o
texto do nosso ensaio desvirtue características de natureza conotativa e,
portanto, poéticas - normais numa abordagem que se quer transversal, ou seja,
capaz de atravessar a espessura do ser-em-comum
acima descrito, aproximando as manifestações aos seus eixos significativos
profundos (mas sem jamais criar matrizes ou ordenações lógicas que, de algum
modo, os orientassem).
Por
fim, resta-nos uma palavra para o título e último dos sub-títulos. O título
retoma a famosa metáfora pessoana de Portugal enquanto “rosto da Europa”.
Estranhamente pouco utilizada nos tempos que correm (agora que a Europa se
transformou no culminar da própria história, senão já na sua suspensão), a dita
metáfora é sobretudo a figuração feliz de um perfil saliente, através do qual a
Europa (e porque não a Eurásia ?) se despediria do mundo, ou seja, do mar e das
lendas que ele prolonga (Atlântida e outras). Este olhar inebriado para o gravitas do fim do mundo - esse outro vestido de águas em toda a linha
do horizonte (território tão camoniano e, mais uma vez, pessoano) - é,
justamente, um dos pontos nevrálgicos focados neste ensaio.
“Sob o rosto do Europa”,
enquanto título, define, portanto, o cronotopo
meridional português que este ensaio analisa. Por sob o rosto, ou, se se quiser, na parte de baixo desse rosto, nesse lugar onde a boca (a voz) se torna num dos seus elementos
de ouro. O sub-título “Antologia de textos sobre o sul”, por seu turno, refere,
como um mero índice, a existência de uma série de textos escolhidos
criteriosamente e que, no seu todo, legitimam a abordagem, o método e as
conclusões sempre provisórias a que fomos chegando ao longo deste breve ensaio.
Esperemos,
pois, que “Sob o rosto do mundo” constitua um novo ponto de partida para
discussões posteriores sobre o sul, a silhueta de uma semiótica da cultura, a
ideia de ser-em-comum, ou ainda sobre
toda a antropologia sobretudo literária que lhe é adjacente.
Bibiografia
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Ecai´96 workshop on abductive and inductive reasoning
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La
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Eco, Umberto
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Semiotic Investigations
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Semiótica
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