As
portas do Paraíso
(Resumo da tese de doutoramento na Universidade de Utreque, Holanda, 1995)
Luís Carmelo, Universidade
Autónoma de Lisboa
O presente ensaio centra-se
no estudo de literatura profética ibérica do século XVI. Incidindo nos
cristãos-novos que, após 1426, constituem o último legado da secular
civilização islâmica na Península - os mouriscos[1]
- este estudo tenta relevar, a um título mais geral, a importância das
comunidades minoritárias que, a seu modo, igualmente contribuem para
caracterizar o (outro lado do) século de
ouro ibérico.
Ao fazer confluir
idealidade, abismo e uma decisiva fé no mundo do Divinatio e na guerra final escatológica, o género literário
profético é, na época, em toda a Península Ibérica, um dos mecanismos
comunicacionais e de disputa do devir e do saber essenciais. Através do seu
estudo, é possível aproximarmo-nos cautelosamente de uma dada radiografia desse
tempo fabuloso de mudanças e expectativas que é o século XVI ibérico.
Tendo recorrido a uma
metodologia de ordem semiótica, foi possível decompor e decantar a visão do
mundo, os temas e a simbologia base que se espelham em textos proféticos da
época. Este método, que tenta recuperar nos alicerces do texto o universo dos
seus enunciadores, geralmente anónimos e manipuladores, institui-se, pois, como
alternativo à perspectiva eminentemente historico-liguística. No entanto, a
contextualizar a presente investigação, vários são os capítulos onde nos
debatemos com a história e modalização do género literário profético, com a
recepção de profecias na época e, por fim, com as complexas relações existentes
entre as ortodoxias dominantes e a própria raíz do profético.
Curioso é o facto de, nas
profecias estudadas (basicamente provenientes de Aragão), se fazerem reflectir
“dialogismos” e intertextos de foro intimamente ibérico, nomeadamente os que se
referem, por exemplo, à figura do “Encoberto”. Surgindo em finais de trezentos
no Levante; fazendo a sua aparição mais fantástica na crise valenciana da crise
das Germanías (1518-21); transposto para Portugal a partir do final da década
seguinte e, por fim, reencontrado entre os mouriscos
aragoneses, quer nos anos trinta, quer na turbulenta década de sessenta do
séc.XVI, a figura salvadora do “Encoberto” - embora correspondendo a uma
semantização do género profético bem mais antiga - torna-se, contudo, um dos
objectos imaginários mais genuínos do género literário profético
delimitadamente ibérico.
*
A mouriscologia é o campo essencial de trabalho da presente
investigação. Dentro dessa vasta área de estudos, foi nosso objectivo delimitar
uma projecção da visão do mundo (ou da representação do real) que os moriscos aragoneses não-arabófonos
configuram, durante a sua curta existência enquanto povo (de 1526 a 1609),
sobretudo nas duas primeiras gerações - tendo em conta os horizontes temporais
do corpus que adoptamos (cuja
enunciação poderá atravessar dois períodos-chave da vida morisca: de 1524-26 à década de trinta e, por outro lado, os
decisivos anos de 1560/70).
Categorizamos a noção de real (ou de
visão do mundo) em torno de três aspectos distintos, que orientam a nossa
análise e que são também construtores das nossas conclusões, a saber: qual a
visão que os moriscos têm da sua
própria identidade; qual a visão que os moriscos
têm da sua existência, enquanto ser colectivo que se debate com o (fim do seu
próprio) tempo; qual é (ou quais são) o(s) significado(s) profundo(s) que
permite(m) aos moriscos atribuir um
sentido (ou uma lógica) à sua identidade e existência pressentidamente
ameaçadas.
O material com que trabalhamos nesta
tese enquadra um corpus literário
aljamiado-morisco do género profético
(i.e., um texto contendo quatro profecias, enunciado por moriscos anónimos da região de Aragão, copilado no Ms.774 da
Biblioteca Nacional de Paris, entre os Fols. 278r e 308v, e publicado por
M.Sánchez Alvarez - 1982:239-253).
A escolha do género profético,
enquanto modelo discursivo que o nosso corpus
actualiza, decorre da sua particular eficácia para responder ao que nos
propomos questionar. Por outras palavras, o género profético reflecte (desde as
suas origens) as ansiedades e esperanças de uma comunidade face ao futuro, bem
como o desejo de dominar o tempo e o curso da história. Por outro lado, o
género é assumido na época de modo dialógico, circulando entre comunidades, criando
alteridades sucessivas e institucionalizando-se enquanto veículo privilegiado
de propaganda de guerra. Além disso a profecia, num mundo dominado ainda pela Divinatio, é também (e sobretudo) um
saber, reflectindo uma ligação à Divindade e portanto aos desígnios
escatológicos que administram o sentido (profundo) do destino e do tempo neste
mundo.
A metodologia seguida no presente
ensaio assenta, por seu turno, em pressupostos teóricos de ordem semiótica.
Partimos assim do princípio que um texto decorre de um processso complexo de
enunciação,construindo-se a dois níveis: de um lado através do inevitável
processo de combinações e selecções de signos linguísticos e de apoios de
linguagem (fonemas e grafemas), gerando eixos sememáticos que tornam possível a
sua compreensão ao nível de uma primeira leitura (é a fase da significação); do
outro lado, através de uma estrutura profunda de ordem simbólica e temática que
involuntariamente importa para o texto, no momento da sua enunciação, as
grandes tematizações e arquétipos originais de uma dada unidade cultural. Esta
representação (fragmentária e filtrada) do real, que se incrusta no texto a
nível profundo, pressupöe uma segunda leitura (é a fase da significância).
No contexto desta perspectiva
metodológica, é nosso propósito proceder a uma análise das variadas fases da
construção semiótica do texto do nosso corpus.
No quadro da primeira leitura, centramo-nos sobretudo na lógica que preside à
sequência narrativa das profecias, tentando mostrar quais os topic e as linhas de coerência que
enquadram a primeira leitura (Cap.V.2). No quadro da segunda leitura, e após um
registo da sintaxe dos índices (Cap.V.3.1) presentes no corpus (signos que funcionam como vectores de atenção face ao real
descrito), centramo-nos na análise das configurações discursivas presentes no
texto e nos eixos simbólicos mais pertinentes que o enquadram (a nível do
tempo, espaço e da sucessão e articulação das ocorrências narradas - Cap.V. 3.2
e 3.3). Para registarmos uma conclusão final, recolhemos posteriormente todo o
material que fomos ordenando, ao longo das diferentes etapas da construção
semiótica do texto.
*
As
conclusões do nosso trabalho apontam, deste modo - e tendo em conta a
categorização do real acima rerferida -,
para as seguintes grandes linhas:
a) Identidade -
Os
signos mais reiterados, ao longo da nossa análise definem uma identidade morisca sobrevivente (a nível físico,
material, mas também espiritual ereligioso). No entanto é patente uma
consciência de corpo, ou seja, os moriscos
entendem-se como uma comunidade ciente do espaço que ocupa, crente numa
legitimidade (e verdade anteriores) e, sobretudo, fiéis a um determinado devir
escatológico. Mas o fundo da carência identitária situa-se numa consciência de
perda irremediável (da sua memória cultural, linguística, prescritiva e
religiosa) e, muitas vezes, esta hibridez cultural é mesmo consciente,
constituindo-se até num alvo a ultrapassar.
Nostálgicos do passado islâmico ibérico, os moriscos toldam também a sua identidade
através de um grande vazio ou (desprotecção divina) neste mundo terrestre. A
causa para tal situa-se na negligência religiosa que terão praticado, enquanto
comunidade. Um grande complexo de culpa colectivo é assim assumido, muitas
vezes através da auto-flagelação e do castigo divino aceite (mesmo se
materializado nas perseguições a que são sujeitos pelos cristãos). Mas a lógica
e prática do sofrimento encontra aqui mesmo a sua legitimação: se se violaram
os laços de ligação com a Divindade, há que pagar por tal neste mundo (a
recompensa, essa, será apenas escatológica).
b) Existência -
Dividimos
a relação entre o tempo e o ser colectivo morisco
(tentando desesperadamente subsistir na História) em signos do presente e do
futuro. Os primeiros constroem-nos um cenário múltiplo: presente como simples
passagem, presente dependente de uma intervenção divina salvadora, presente
identificado com uma postura de imploração da salvação, presente identificado
com martírio recorrente e, por fim, presente identificado com a necessidade de
afirmar (ou de exigir) o assegurar de uma existência na continuidade histórica.
Os signos do futuro, categorizados em quatro distintos horizontes, apontam para
um optimismo tímido (ou seja, sujeito a mudanças de que os moriscos nunca são os sujeitos operadores), negatividade face ao
discurso das ocorrências do mundo, ultrapassagem do presente como puro desejo
(materializado em delírio literário) e, finalmente, uma plena consciência de
fim.
c) Significado(s)
profundo(s) que atribuem uma lógica (ou sentido) à identidade e existência moriscas -
Entendemos,
sob esta designação, os parâmetros (ou critérios) mais ou menos fixos, a partir
dos quais os moriscos equacionam o
estado de coisas do seu ser colectivo, bem como a (sua) relação com o tempo e o
destino. O primeiro desses parâmetros é a vontade divina e o filtro
escatológico; tudo decorre daqui e tudo pode e é aceite a partir deste
"grand code". O segundo diz respeito às tentativas de dominar o tempo e, também, à necessidade de
adequar a contingência disfórica morisca
com um sentido global da História. Estas duas características apocalípticas que
o nosso corpus intertextualiza (e até
desmistifica na profecia 4) reflectem a insegurança da comunidade e a urgência
em criar uma arqueologia futura para a sua cultura. Este parâmetro tem,
implícito, a consciência perfeita de uma morte colectiva.
O terceiro parâmetro diz respeito ao segno, i.e., tudo o que, na época, escapa à ordem natural das coisas. A noção de casta, imputada insistentemente aos moriscos (e presente no universo simbólico e auto-flagelador do nosso corpus), é assumido como uma catarse permanente, sempre latente no modo de encarar a identidade e existência dos moriscos. Por fim, a idealização da terra ibérica converte-se no último dos parâmetros que, mais insistentemente, legitimam um legado identitário e existencial morisco. É a terra ligando a idade de ouro que já foi e a idade do futuro que se prevê não (vir a) ser (idealidade); é a terra convertida numa das secções do paraíso, portanto separada da disforia deste mundo e associando-se à única certeza - a escatológica (a mistificação); é a terra imaginada como terra prometida (e portanto mitificada).
*
Tendo na sua origem
constituído uma tese de doutoramento (Universidade de Utreque, Holanda, 1995),
esperamos que este ensaio possa contribuir, na sua interdisciplinaridade, para
uma maior compreensão das fissuras próprias da nossa identidade profunda que,
em terras ibéricas, se foi constituindo através de um híbrido e lento processo de absorção de mundovisões e de aculturações
sucessivas, face às quais o ser português é, na sua espessura centenária,
intrínseca parte.
[1] O lexema designa as
comunidades mudéjares, depois de confrontadas com as sucessivas leis de
conversões obrigatórias que, na Península, oscilaram entre finais do século XV
e o mês de Dezembro de 1525 (caso de Aragão, de que, basicamente, nos
ocupamos). Utilizamos o lexema “morisco”
em itálico, para evitar o português “mourisco”, cujo espectro semântico
particular poderia induzir em ambiguidades e falácias. Em francês, a própria
designação “morisque”, ao retomar a expressão castelhana original, adapta-se
assim ao termo que a comunidade científica utiliza para traduzir, com rigor, as
comunidades cristãs-novas de origem islâmica.