Três
perfis do controlo do destino: o profético, o político e o mediático
Luís Carmelo, Universidade
Autónoma de Lisboa
Para evitar ambiguidades
acerca da conotação inevitável que o termo suscita, definamos destino, desde o
início desta comunicação, como um horizonte que forja um certo sentido de fim,
tendo em conta a própria finitude humana, de tal modo que a visão de futuro que
se impõe no centro desse ‘forjar’, acaba por instituir uma ordem para o passado
e uma definição para o presente. É pois normal que a ancestral actividade
humana de controlo do destino, ou seja, de antecipação e definição de visões de
futuro, tenha sempre sido motivo daquilo que, nos dias de hoje, caracterizaríamos
por desafio cívico, embora apenas na modernidade, o homem, já investido
enquanto sujeito autónomo, operador e transformador, o tenha de facto protagonizado.
No discurso político
moderno, os destinos das nações foram quase sempre evocados a partir de uma
racionalidade essencial, tendo em conta factos como a legitimidade, o
bem-estar, a própria cidadania e a afirmação de identidades (e inerentes
diferenças e antagonismos). Na modernidade democrática, não existe, pelo menos
como elemento determinante, uma imanência que legitime o dado político, ou
sequer uma transcendência que defina o fio condutor da sua actuação (ainda que
alguns vestígios simbólicos dessas práticas se manifestem em cerimoniais
ritualizados).
Apesar das muitas
aberrações, mais ou menos ascéticas ou satânicas,
criadas no seio da modernidade (fascismos, nazismos, totalitarismos informes de
todo o tipo), pode dizer-se que o universalismo racional assente na ideia de um
estado democrático, articulado com a prática livre da decisão, conflito e
participação, chega ao fim do século XX com uma certa maturidade que, por
natureza própria, não exclui perplexidade. As comunidades, nos dias de hoje,
debatem-se, sobretudo, com problemas onde tensionalmente interagem, por um
lado, a racionalidade fundadora do político e, por outro lado, quer a ilusão
(de génese liberal) do apagamento de conflitos, quer a emergência de novas
formas de comunicação que ameaçam - ou põem em causa - as próprias matrizes
modernas e iniciais do político.
Pelo contrário, no estádio
pré-moderno, aquilo que correspondia ao que hoje apelidamos de político
centrava-se na actividade de um número reduzido de homens que, instituídos por
sinais de uma transcendência fundadora, levavam a cabo a consecução repetitiva
dessa tradição, gerindo o destino do seu ser-em-comum
através de uma crónica mediação profética. Isto significa que, para além das
grandes revelações que, sob a forma de livro, instituiram e legitimaram grandes
códigos escatológicos totalizantes, também, ao nível do quotidiano, a
actividade interpretativa desse mesmo desígnio superior divino sempre se
assumiu como uma prática de controlo do destino.
Não há uma fronteira fixa entre o profético e o político. Ambas as esferas, porventura, já muitas vezes se sobrepuseram e multiplicaram; já muitas vezes conviveram e convivem ainda de modo híbrido, no planeta, na construção e controlo de destinos. De qualquer modo, o que determina o político é basicamente o reatar de uma concepção grega antiga - o agir livre de todos no seio da comunidade - em articulação com um destino, tal como o definimos, cujo futuro resulte, não de uma teosemiose, mas sim de uma qualquer racionalidade.
A polis aristotélica (e da
República de Platão) definia-se, com efeito, enquanto complexo de cidadãos
que, em liberdade e igualdade, eram dotados de discurso (neste inventário não
cabiam, portanto, os bárbaros). Por outras palavras, era o próprio agir livre e
a capacidade discursiva de todos os membros da comunidade que determinava a
essência da polis; do viver-em-comum.
Esta tradição, recompondo-se sempre com novos dados, viria a reatar-se no
Ocidente à medida que a natureza do profético foi perdendo importância
matricial na reflexão sobre o político. Em Hobbes, o Leviatã (1651) é ainda ubiquamente dominado pela esfera profética[1],
do mesmo modo que, em O Príncipe de
Maquiavel, a questão nem se chega a colocar, apesar da (parcial) autonomia
humana ser aí, por um instante, aflorada[2].
Já em ... do Governo civil de John
Locke, apesar da obsessão pela propriedade[3]
- o que determina até a sua definição de Estado -, é muito mais patente uma
tendência pragmático-racionalizante (que chegará mesmo a influenciar a
Constituição norte- americana[4]):
“O estado
natural tem uma lei natural para governar, a qual obriga a todos: e a razão,
que constitui essa lei a todos os homens, que a consultarem, que sendo todos
iguais e independentes, ninguém deveria ofender a outro na sua vida,
propriedade, liberdade e saúde. Porque sendo todos os homens obra de um criador
omnipotente, e infinitamente sábio; todos criados de um Soberano Senhor,
mandados para o mundo por sua ordem, e para o seu trabalho, são sua
propriedade, visto que são sua obra, feitos para durar segundo o seu prazer, e
não segundo o prazer um do outro. E sendo todos dotados das mesmas faculdades,
gozando todos da mesma comunhão da natureza, não se pode supor entre nós uma subordinação
tal, que nos autorize a destruir um ao outro, como se nós fôssemos feitos para
uso um do outro, como acontece às criaturas de ordens inferiores em relação a
nós. Todo o homem, assim como é obrigado a conservar-se, e a não abandonar
voluntariamente o seu posto, assim também pela mesma razão, todas as vezes que
a sua própria conservação não correr risco, deve, tanto quanto lhe for
possível, preservar os outros homens, e não pode, salvo se for para punir o
transgressor, tirar, ou pôr em perigo, a vida, ou o que diz respeito à sua
conservação, liberdade, saúde, membros, ou bens de outrém”
J.Locke, Ensaio sobre a verdadeira origem extensão e fim do governo civil, CapítuloII & 6-1689/90 (1999:36)
Neste registo do Ensaio... de Locke, a razão é equiparada
à necessidade de suprir a lei natural que, não existindo enquanto lei escrita,
só pode existir na “cabeça dos homens”. Deste modo, o autor mobiliza a
comunidade em torno da sua própria conservação, factor que elege como base de
uma volição colectiva necessária.
Apesar de, noutros textos, Locke se referir à religião como uma área
específica, designando-a mesmo como “tendência íntima da alma”[5],
o certo é que o fundamento da passagem citada do Ensaio... é a própria obra divina, de que o ser humano é objecto.
Tal não obsta ao compromisso sugerido, por um lado, entre autonomia da
comunidade, identificada com o agir em direcção ao futuro, sob a forma de uma
legalidade que aponta para a auto-conservação e, por outro, lado, a inevitável
e persistente imanência divina.
Para Hobbes[6],
no Leviatã, para além da consideração
sobre a natureza dos estados - por aquisição se resulta da força natural, e por
instituição se os seus membros, aceitam submeter-se “a um homem, ou a uma
assembleia de homens” (Cap.XVII e XX; 1999:146/7-167) -, é, contudo, vital a
reversibilidade entre lei natural e civil (XXVI/219), embora, na relação entre
ambas, mais harmoniosa do que problemática, a providência divina se constitua
como o ditame inalienável de controlo do futuro. Neste autêntico corpo que é o Leviatã tudo parece, de facto, trabalhar de forma mecânica e
“...Deus (assume) um duplo reino, natural e profético: natural, quando governa pelos ditames naturais da justa razão todos aqueles homens que reconhecem a providência; e profético, quando, tendo elegido uma nação específica (os judeus) como seus súbditos, os governa e a nenhuns outros além deles, não apenas pela razão natural mas também por leis positivas, que lhes dá pela boca dos seus profetas” (XXXI/1999:280).
“Quer os homens queiram, quer não, têm de estar sujeitos ao divino poder. Negando a existência, ou a providência de Deus, os homens podem perder o seu alívio, mas não libertar-se do seu jugo” (ibid.:1999:279)
O controlo do destino é,
portanto, supra-humano, auto-suficiente e
autoregula-se teosemioticamente, através de mecanismos sobretudo
proféticos. Aliás, a própria noção de eternidade, atirada para os itinerários
da indeterminação, assume-se como trave mestra de uma vontade que a comunidade
humana não pode dispor:
“Quanto ao significado de eternidade, não querem que seja uma infindável sucessão de tempo, pois nesse caso não seriam capazes de apresentar uma razão acerca de como é que a vontade de Deus e a preordenação das coisas que estão para vir não deveriam vir antes da sua presciência delas, tal como a causa eficiente antes do efeito, ou o agente antes da acção; nem acerca de muitas outras atrevidas opiniões a respeito da natureza incompreensível de Deus.”
(Ibid.:XLVI,1999:500)
Independentemente do carácter
adquirido ou instituído, o estado de Hobbes é definido, no início do capítulo
XVII do Leviatã, como uma instância
cuja finalidade é a segurança e a conservação dos homens. Contudo, para Hobbes,
a liberdade “significa, em sentido próprio, a ausência de oposição”(...)“e não
se aplica menos às criaturas irracionais e inanimadas do que às racionais”
(Ibid.:XXI,1999:175). Neste quadro de aparente restrição, o soberano só se
encontra sujeito às leis da natureza; nada o pode substituir ou enfrentar. A
génese deste arbitrário estatismo de Hobbes reside na própria metáfora do
Leviatã, qual super-organismo que se identifica com a comunidade, como se
tivesse razão, alma e membros. Aliás, ao contrário de Locke, o estatuto da
propriedade chega a ser colectivo, na medida em que apenas cabe ao soberano
decidir se os súbitos podem ou não possui-la.
A prefiguração moderna desta máquina-metropolis (pouco moderna
apenas, dada a radical omnipresença profética) tem, ainda que não seja no fundamento científico, alguma semelhança
com Vico; digamos que a ciência de Hobbes é a geometria e a matemática, de onde
extraiu a ideia da sua prótese social total, enquanto a nova ciência de Vico, a
história, procede antes de uma prefiguração muito moderna do que viriam a ser
as ciências sociais. No seu De nostri
studiorum ratione (1708-9[7]),
uma espécie de introdução à sua obra principal, Scienza Nuova (P.Verene,1984:XVII), Vico refere-se aos juízes do
seguinte modo: “Let them avail themselves of their oratorical powers (que os
juízes tirem belo proveito das fraquezas dos advogados de defesa...) against
the lawyers of the defense so as to give precedence always to public interest
over private claims” (1994:69).
Esta curiosa noção de
‘interesse comum’ deve ser inserida dentro da concepção mais vasta do autor,
segundo a qual o auto-conhecimento do homem se baseia na análise do processo
histórico. Nesse palco, governado por secretas e fixas leis, todos “agem” e a
“economia, o direito, a ciência e a arte”, constituem produções específicas da
humanidade, transformadas já numa prefiguração da ideia racional de “história”
(M.Horkheimer1984:94); deste modo, a actividade humana vai-se convertendo na
objectivação do ser-em-comum - ou
seja, na elementar consciência de que a obra autónoma, material ou imaterial, dos humanos é seu
património - o que G. Bueno traduz, recorrendo a Herder ou Mirabeau, como base
para a noção também moderna de cultura. Todavia, no que diz respeito à decisiva
questão da construção e controlo do destino, Vico, na Scienza Nuova[8],
recorre a uma espécie de conciliação entre a providência e as ‘provas’ da (sua)
nova ciência histórica:
“...once these institutions have been established by
divine providence, (já o curso da instituição das nações, enquanto processo...)
the course of the institution of the nations had to be, must now be and will
have to be ( ...é e será, em qualquer caso, tal como a nossa ciência demonstra,
mesmo se... oque não decerto o caso) such as our Science demonstrates, even if
infinite worlds were born from time to time through eternity, which is
certainly not the case”
G.Vivo,Scienza Nuova,1725 (1968-III:348)
Poderíamos dizer, como L. Pompa avançou, que “Vico plainly takes himself
to be offering a theory whereby the institucional pattern of a nation´s history
can be predicated”(1990:103). De facto, a teoria preditiva de Vico, não se opondo aparentemente à providência,
acaba, no entanto, por antecipar-se ao devir que esta suporia. De algum modo,
neste ponto, Vico assemelha-se a Locke, apenas e na medida em que este também
soube pactuar a razão humana com a subordinação à esfera divina.
Deste modo subtil e
sobretudo ardiloso, diferentes racionalidades vão-se consolidando lentamente,
tentando manifestar um certo controlo do destino, - admitido já em Maquiavel
como autonomia parcial do livre-arbítrio humano; pensado em prótese por Hobbes,
atrás da sua ainda espessa capa profética e, de certa forma, deslindada em
Locke e Vico, de modos díspares, através do desafio lançado à providência,
através, respectivamente, ou da legalidade do “bem comum” conferida pelo
estado, ou da predição (ou antecipação) de certos padrões históricos relativos
ao “interesse público”.
Neste quadro de uma
racionalidade que vai tentanto gerir, a pouco e pouco, o agir (livre) de todos
em comunidade, Rousseau, em O contrato
Social (1762) prescreve com clareza uma dissociação entre o estado
(“enquanto pessoa moral cuja vida consiste na união dos seus membros”- Livro
II/ cap.IV/ 1989:37), por um lado, e a religião encarada já como uma actividade
específica, no seio sociedade:
“Agora, que já não há, nem pode haver, religião nacional exclusiva, devem tolerar-se todas as que toleram as outras, enquanto os seus dogmas não tiverem nada de contrário aos deveres do cidadão. Mas alguém que ousa dizer: ‘Fora da Igreja não há salvação’, deve ser expulso do Estado; a não ser que o Estado seja a Igreja e que o príncipe seja o pontífice. Tal dogma só é bom num governo teocrático, em qualquer outro é pernicioso.”
(Livro IVCap.VIII/1989:137)
Além deste facto
clarificador do político, enquanto agir de todos em articulação com o destino,
tendo em conta uma mediação racional[9],
é inevitável mencionar uma outra ideia desenvolvida por Rousseau, em O Contrato social, ou seja, a “Vontade
geral”. Esta ideia traduz-se não apenas como agregado ou soma da vontade de
muitos ou todos os membros de uma comunidade, mas antes como a vontade de uma
“verdadeira” comunidade:
“Há muitas vezes grande diferença entre a vontade de todos e a vontade geral; esta não olha a outra coisa quie não seja o bem comum, enquanto a outra olha ao interesse privado e não é mais do que uma soma de vontades particulares: mas tiremos destas mesmas vontades os mais e os menos que se anulam, e, como produto das diferenças que restam, fica a vontade geral.”
J.Rousseau,O Contrato Social,1762 (1989:35)
É, de facto, peculiar esta forma de contratar a acção subjectiva particular com o todo da comunidade, sem que este pudesse ser, de alguma forma, lesivo, qual leviatã, da volição autêntica de cada um. Por trás desta ideia surge o fantasma dos acordos entre interesses privados numa sociedade, ou melhor, a identidade que preside a esse tipo de acordo privado, a qual implica sempre um terceiro elemento, extrínseco, que se opõe a este acordo. Quer isto dizer que, na lógica de Rousseau - citando, em nota, o Marquês d´Argenson (ibid.:35) -, não se podem conceber acordos parciais sem oposições, no âmbito de uma sociedade. Todavia, para que se verifique uma afirmação genuína de cada um no todo, há que denegar essa inevitável lógica de oposições e criar, portanto, condições para um agir livre total:
“É pois necessário, para que se manifeste a vontade geral, que não haja sociedades parciais dentro do Estado e que cada cidadão manifeste apenas a sua opinião própria.
J.Rousseau,O Contrato Social,1762 (Livro II,Cap.II/1989:36)
Este princípio ideal e mesmo
utópico da afirmação de cada um, no contexto da diferença e mútua paridade
entre todos, parece projectar-se num futuro em que a modernidade já
subalternizou a providência, em nome da iniciativa humana, autónoma e
factualmente ascendente. De facto, segundo E.Barker (1960:XXXII), o Contrato Social de Rousseau é...
“...congenial to the Germany of
twenty and thirdy years later (the Germany of Fichte and Hegel), than its
interpreters guessed”(...)”It marks the transition from natural law to na
idealization of the national state. It may begin with Locke. But it ends by
going back to the idealization of th Polis proclaimed in Plato´s Republic
(that, and not ‘ a return to nature is the real return of Rousseau), and in
that act of going back to Plato it also goes forward into the future and
becomes the praeparatio evangelii
Hegeliani”
A ‘vontade geral’, tal como Rousseau a funda - e entendida enquanto expressão de uma nova legalidade -, surgirá também inscrita na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (art. VI), tornada pública em Agosto de 1789. Esta ‘vontade geral’, determinada pelo desejos de todos, constitui, ao mesmo tempo, a pescrição de uma agência subjectiva, ou de um macro-sujeito permanentemente livre (art. I), assente na nação (artigo III) e imune, nesse ser livre de nascença, devir e comunicação (art. XI), a quaisquer imanências divinas.
A transição do profético ao político torna-se assim efectiva, embora gradual, na tradição dos ‘contratos sociais’ que unem Locke e Rousseau, passando pelo ciclo revolucionário francês e acedendo aos idealismos (utópicos e metafísicos) do século XIX. Neste horizonte de controlo do destino, levado a cabo por diversas racionalidades ainda em gestação, convirá também referir a representação continuista do futuro que virá a ser traduzida - de modo corrente, em meados de oitocentos - através do lexema “progresso”. A ideia é já lentamente modalizada por Kant, tal como V. Soromenho Marques demonstrou em estudo específico sobre o tema, tendo concluído: “Padrão do sentido oculto do aparente caos das contradições, dilaceracões e conflitos, o progresso é, simultaneamente, o que permite pensar as mediações de um processo e antecipar os resultados previsíveis do mesmo”(1998:523)
No entanto, essa tradição tem já, atrás de si, uma extensa genealogia que procede sobretudo da organização dos códigos escatológicos anteriores, como adiantou B. McGinn “the Christian view of history has always been eschatological in the sense that the course of ages was believed to make sense only in terms of its beginning and its end” (1979:XVII). Esta visão monocentrada, rectilínea e linear do tempo, como que povoada por estruturas imanentes que lhe atribuiriam um persistente sentido “taumatúrgico” (B.Wilson,1973:25), viria, pois, a rer recuperada, no advento - já em maturação oitocentista - da modernidade, no momento em que o grande código, gradativamente, deixava de ser escatológico para passar a ser, ou utópico (sobretudo quando, nos finais do século XVIII, o cenário deste tipo de narrativas ancorou no espaço-tempo terrenos), ou ideológico, sobretudo a partir de meados do século XIX.
Esta visão ascendente, linear e continuista, viria a confrontar-se, no século XX, com uma nova arena de ocorrências geradora de adiamentos, neutralizações e mal-entendidos. O destino, ao fim e ao cabo, escapar-se-ia, quase sempre, ao controlo das gandes-narrativas neo-escatológicas da modernidade, já que as visões, mediações e antecipações do futuro desenvolvidas nunca se viriam a harmonizar com uma ordenação do passado e, em primeiro ligar, do presente (sobretudo os mitos da felicidade perpétua e do igualitarismo radical, ou da paz[10], que constituem um verdadeiro legado ancestral da humanidade, mantiveram-se enquanto tal, ou seja, enquanto puros mitos).
As
enunciações de crença na inelutabilidade do progresso, projectado num mundo
futuro perfectível, acabariam por explodir, logo que uma primeira Modernidade
tomou conta de si, ou seja, logo que a modernidade transformou o controlo do
destino numa ilusão muito bem
dissimulada e teorizada; os exemplos seguintes falam por si:
“Encontramo-nos na primeira fase, na idade da incoerência ascendente que precede o acesso aos Destinos” (vivido cinco a seis mil anos entre os oitenta mil previstos, “este número é calculado, como todos os cálculos relativos ao movimento social”) – C. Fourrier (Teoria dos quatro movimentos e dos destinos gerais,1828;1997:385);
“Chegará, com certeza, uma altura em que todos os povos da Europa sentirão que é preciso resolver as questões do interesse geral antes de abordar os interesses nacionais” - Sain-Simon (Sobre a reorganização da sociedade europeia,1814;ibid.:387);
“E este ideal, que a humanidade viva exala, é exalado, invencivelmente, porque soou o momento de o velho mundo se renovar” - V. Considerant (O Socialismo perante o velho mundo ou o vivo diante dos mortos, 1848; ibid:404-5);
“Se, na sua luta contra a burguesia, o proletariado se vê forçado a unir-se numa classe”(...)”e como tal procede à abolição violenta das antigas relações de produção - o proletariado ao mesmo tempo que destrói esse sistema de produção, põe termo às condições que permitiam os antagonismos de classe; quando estas desaparecem, as classes, em geral, desaparecem igualmente e, consequentemente, desaparece a sua própria dominação enquanto classe” (Manifesto do Partido Comunista,1848;ibid.:408);
“A futura organização social deve nascer unicamente de baixo para cima, através da livre associação e federação dos trabalhadores” - M. Bakounine,1872 (ibid.:409)[11]
Os vários destinos construídos na modernidade, articulados com diversas categorias émicas (T.Bruneau,1980:102), ou seja, com distintas conceptualizações específicas do tempo desenvolvidas no interior das comunidades, definiram sobretudo horizontes perfectíveis ou paradisíacos, tendentes a reactualizar e sublimar a salvação divina perdida.
Estas racionalidades constituíram basicamente desafios ao continuum temporal. Nesse acto de desafio histórico, não apenas reconstruíram o sentido de fim, como propuseram, quando não impuseram desastrosamente, diversas noções de futuro, cujas consequências, na ordenação do passado e presente, acabariam - ao longo do século XX - por pôr em causa as próprias escatologias da modernidade, isto é, as próprias ideologias (pelo menos, enquanto factores determinantes da mobilização social). Os anos oitenta do século XX constituem a ponte que liga um mundo monocentrado às grande narrativas, como disse Lyotard, a um outro mundo onde o mediático e a instantaneidade dão as mãos com o estreitamento espacial do universo - a globalização - e sobretudo com a pluralidade ou fragmentação de códigos, referências e valores.
Entendemos por ‘mediático’ o
atributo característico de todas as entidades, cuja existência é determinada
por uma rede, ou conjunto de circuitos, que actualiza, em permanência, o que no
nosso ensaio Órbitas da modernidade traduzimos por “as áreas da quase
imediação” (ou seja - (1) a ficcionalidade da experiência corporizada pelos média;
(2) a área de propagação ciberespacial; (3) o agir livre do sujeito impelido
por um desejo instantanista; (4) a compulsão interactiva circundante face ao
sujeito e, por fim, (5) a propriocepção, ou seja, os novos limites que advêm da
expansão do sujeito tecnológico)
O mediático impõe-se numa
época nova em que os grandes códigos totalizantes deixam de mobilizar as
sociedades, como referimos, e, no momento em que, por outro lado, despontaram
novos moldes de interacção, espaços ciberespaciais e telecráticos, do mesmo
modo que o acentrado passou a dominar as relações entre destinatários e
emissão.
A actualidade é, pois, caracterizada por uma ilusão e desejo de tempo instantâneo, daí a perífrase ‘quase-imediação’, assim como por uma assinalável ficcionalidade da experiência, corporizada pelas redes pelos mediáticas e ainda por uma reconfiguração radical do agir livre do sujeito e do objecto que se tornaram globais. Mas talvez a característica mais fundamental da nova época se centre na ideia de que o futuro já não é mais um lugar de salvação, ou seja, o receptáculo de todas esperanças de controlo do destino, no que constituía - no que sempre foi - o cerne da atitude ideológica, escatológica e, também, apenas em parte, de alguma tradição utópica.
De facto, a figura da instantaneidade - como analisámos em no
ensaio Anjos e Meteoros - neste novo quadro, deixou de ser o móbil através do qual se reivindicaria
um horizonte salvífico para se tornar no elemento central de um sistema de vida que recolocou na arena
do presente, e só, uma espécie de consecução cabal do agir humano, ou seja, do
preenchimento do seu próprio ser. Por isso mesmo, a instantaneidade deixou de
se submeter à clássica fractura entre o presente e um futuro inacessível e
refluiu em direcção ao presente, arrastando consigo a imaginação exilada desse
mesmo futuro. Este regresso ao presente da instantaneidade - que dantes
(durante as eras dominadas pelo ditame escatológico e neo-escatológico) se
baseava na pura reivindicação de cumprimento agora e aqui de horizontes perfectíveis situados no futuro - é
também o regresso ao presente da ilusão do controlo do destino, hoje e aqui.
Talvez por isso mesmo se possa dizer que a ilusão é uma das
características centrais da nova época, e não só já um atributo lateral do
controlo do destino. Por outras palavras, - se nos quadros profético e
político, através de teosemioses ou de diversas racionalidades, se manietava um
horizonte distante de modo a legitimar um presente, agora, na era mediática, o
futuro já está sempre legitimado através da ilusão, ou do controlo quase
absoluto, que se cumpre no presente.
O mediático torna-se assim
numa espécie de compulsão sobre o agir livre de todos que, ao transpor o
cumprimento ilusório do destino sobre o presente, projecta, por sua vez, no
futuro, uma espécie de esperança sem conteúdo. Do mesmo modo que Sartre dizia
que a consciência por si só não tem conteúdo (1943:23), também esta esperança
actual deixou, pelo menos aparentemente, de mergulhar em traves imaginárias que
se propagassem com substância em direcção ao futuro; ou seja, a esperança
tornou-se numa forma expressiva que subitamente não dispõe de conteúdos
adequados e que correspondessem à tradição anterior de quem sempre esperou - no
sentido de que acreditou - de modo escatológico
ou ideológico.
Resta perguntar: se o futuro
desceu ao presente e este, por sua vez, se transfigurou na ilimitada rede do
mediático, através da mise en abyme
de ilusões sucessivas, quais são as possibilidades que ainda restam de efectiva
construção ou controlo de um destino ?
Se o destino foi
anteriormente postulado como horizonte que forja um certo sentido de fim, tendo
em conta a própria finitude humana, isso significa que, no seu cumprimento
ilusório, esse mesmo sentido de fim está, em cada momento, agora e aqui, a ser
forjado pelo presente (que se passa, também, a confundir-se com horizonte e
referência). Por outro lado, o destino pressupunha também uma visão de futuro
que, dominando a própria ideia de ‘forjar’, acabava por atribuir uma ordem ao
passado e ao presente. Mas justamente porque o futuro se passou a identificar
com o presente, ele não pode mais, por consequência, instituir o que já é.
Sobra o passado que, tal como a esperança sem conteúdo, se torna agora numa
memória sem graus, ou seja, sem a ordenação que as escatologias lhe haviam
atribuído, devido às implicações da sua necessária linearidade.Como Bertoluci
disse vivemos,pois, no quadro progressivo de uma amnésia colectiva. Tendo em
conta estes factos, a resposta à questão será a seguinte: não pode,
definitivamente, conceber-se um efectivo controlo do destino, tal como se
postulava no tempo das escatologias e das neo-escatologias; apenas é possível,
através do possível agir livre de todos, repor novos conteúdos para a
esperança, por forma a sair, como hipótese, do campo actual dominado pelas utopias defensivas.
Com efeito, as formas de
conteúdo que dominam, no tempo actual, os contornos da esperança (ou do futuro,
como dizem certos autores) são, no mínimo, obscuras e enigmáticas. Sigamos,
para o confirmar, alguns raciocínios. P. Breton, por exemplo, no final de Utopia e comunicação (1994:140)
refere-se a quatro diferentes representações que temos acerca “do que será o
futuro”. As primerias três (as chamadas ideologias de exclusão, as utopias
verdes e as teorias do liberalismo - entre elas a de F.Fukuyama) ficam-se,
segundo o autor, pelo presente e apenas a quarta parece iluminar o fosco e
ténue caminho de um futuro pressentido: “A única imagem do futuro de que ainda
dispomos é justamente a de uma sociedade de comunicação hipertecnológica”. De
facto, se é verdade que os mecanismos da novas ‘áreas de quase imediação’ se
parecem converter num fim em si mesmos, agora, segundo P.Breton, eles até
acabam por surgir com que esboçando rasgos utópicos. No entanto, e como se
depreende, por exemplo, da leitura das últimas páginas de As consequências da modernidade de A.Giddens (1998:120), a época
actual “está cheia de altos riscos”, o que faz com que as utopias do presente -
se é que existem - se tornem, de facto, defensivas;
quer isto dizer que escolhem o próprio presente como inevitável arena de acção
e não, portanto, a esperança.
Os quatro exemplos referidos
por A. Giddens (ibid.:120) são, em jeito de círculo fechado, - o desastre
ecológico, o conflito nuclear, o totalitarismo procedente da globalização (já
que esta gera “eventos onde o risco e o acaso assumem uma nova natureza”;
ibid.:125) e, finalmente, os potenciais colpasos dos mecanismos económicos. Com
efeito, o realismo utópico de A.Giddens, cruzando o local e o global com a
liberdade (“política da vida”) e a “política emancipatória”, assenta
essencialmente na convicção de que “a história não está do nosso lado, não tem
uma teleologia e não nos dá garantias”; por outras palavras, - a história parece
ter refluído, de vez, para poder salvar a própira esfera do presente, ou, como
adiantou, de modo mais convincente, J. Baudrillard, - a história parece ter-se
tornado no “nosso referencial perdido”, isto é, no “nosso mito” (1981:59).
De facto, esta resistência,
ou agir livre de todos, contra a inércia das
utopias defensivas e, portanto, também, contra a ilusão de controlo do
destino, conferido pelo mito, desejo e seduções da instantaneidade, apenas
poderia ser levado a cabo pelo que C. Mouffe em O regresso do político designou por estabelecimento de “uma nova
fronteira política” (1996:17-18), ou seja, a noção de que “uma cidadania
democrática radical” se revela “fundamental”, hoje em dia, o que, por sua vez,
implica necessariamente a denúncia das ilusões de consenso e de unanimidade,
dentro da tradição de C.Schmitt (para quem o político se baseia num princípio
permanente de hostilidade.). De facto, os processos de compulsão mediática que
envolvem o agir do sujeito global, na actual comunidade hiper-massificada,
parecem determinar a anulação de diferenças, sobretudo dada a acção dos
“fluxos”, e, com esse facto, a própria anulação de identidades específicas que
se possam antagonizar no espaço público. C.Mouffe situa este dado importante:
“Se aceitamos que todas as identidades são relacionais e que a condição de
existência de qualquer identidade é a afirmação de uma diferença, determinação
de um outro que desempenhará o papel de elemento externo constitutivo, torna-se
possível compreender a forma como surgem os antagonismos”. Por outras palavras,
apenas através da permanente turbulência causada pelas identidades
diferenciadas, no seio dos espaços públicos democráticos, é que as novas raízes
utópicas - ou de preenchimento do conteúdo da esperança, acrescentaria - podem
ser fundadas.
A questão da ‘cidadania
radical’, coexistente com o actual sistema
de vida das ‘áreas da quase imediação’ põe, inevitavelmente, uma outra
questão sucedânea, ou seja - qual é a margem de manobra do agir livre de todos,
num tal quadro?
Analisámos em alguns ensaios
a questão tendo como pano de fundo a existência dos ‘fluxos’, isto é, o conjunto de preenchimentos, mais
automatizados do que autonomizados, no seio dos quais a liberdade é quase
anulada por uma vontade prévia que é objectivada pelo instantanismo. No reverso
da omnipotência dos fluxos, considerámos a existência da indiferença que
caracterizámos “como uma atitude, ou melhor, como uma situação em que o
sujeito, ao agir, não cumpre senão uma vontade aparente. A indiferença, mais do
que um tédio específico, é a displicência com que o sujeito se prende e
desprende, a todo o momento, nos actos enquadrados em fluxos instantanistas com
que está comprometido. No fundo, a indiferença é uma espécie de má-consciência
da liberdade sempre-actual que, de qualquer modo, não se conforma com as
consequências do actos que está a praticar”. Neste âmbito, caracterizámos a
vontade como uma determinação que é motivada pelo desejo do sujeito. No
entanto, o sujeito, cuja vontade é determinada através de um desejo - que não
seja o puro ‘desejo pelo instantanismo’ -, pode escapar-se à indiferença. O
sujeito pode, por exemplo, partir de um desejo que designámos por ‘casual’, ou
seja, que transforma num caso bem
definido o seu momento de partilha com a instantaneidade, de tal modo que a sua
vontade, ou determinação, não é a do fluxo, embora a sua liberdade possa optar
por estar casualmente na companhia desse fluxo. Casualmente, ir ver um programa
sobre o tema y e abrir a televisão apenas para tal; casualmente, participar num
abaixo-assinado electrónico com um objectivo bem definido, acedendo à rede
apenas para tal; casualmente, deixar-se
ir num qualquer fluxo (de consumir, de ver, de viajar), mantendo a
possibilidade de decidir acerca da saída do mesmo, de acordo com uma vontade
própria e bem delimitada - eis três exemplos em que um desejo particular, que
não se dilui no ‘desejo cego pelo instantanismo’, cria a determinação, ou a
vontade própria e autónoma do sujeito, de tal modo que, por liberdade ‘auto-imputada’,
o mesmo sujeito partilha as realidades instantanistas sem - inevitavelmente -
recair num estado de indiferença.
Esta possibilidade de, em
conjunto, uma dada identidade poder
‘participar nos fluxos’, munida de vontade e autonomia específicas, coloca o
agir livre nos antípodas do clássico e muito eborense Molinismo que, como se
sabe, identificava indiferença e liberdade. Escolher casualmente no seio do
grupo, ou participar afirmativamente de acordo com a vontade desse grupo,
demarcando-se, quanto possível, do estado displicente da indiferença, eis uma
condição essencial da prática de “novas fronteiras políticas”, tal como Mouffe
as considerou.
No momento em que as hostilidades de Schmitt parecem ter-se
evaporado do planeta (pós-guerra fria, pós fascismo-anti-fascismo, etc), este
“estilo contestativo”, como lhe chamou M.Perniola, terá a tendência a
estender-se “a todos aqueles espaços que lhe estavam tradicionalmente vedados:
não só as relações económicas e as de trabalho; mas sobretudo as privadas e as
científicas tornam-se objecto de uma crítica radical” (...)”contestar quer
dizer- neste sentido - abrir um
debate público” (M.Perniola, 1991:52). Esta contestação, para Perniola, nada
tem a ver com a oposição tradicional schmittiana
que traduz a essência do político; ela significa, antes de tudo, um conjunto de
efeitos de reversibilidade, entre opiniões, decisões e acusações, no espaço
público, de tal forma que o inimigo de ontem é amigo amanhã e assim
sucessivamente, numa lógica de acentrado e não de carga ideológica unívoca e
perpétua. Ou seja: é por estas razões que “o estilo contestativo não é
violento, mas apenas pedagógico: ele acredita na infinita maleabilidade do
homem.” (Ibid.:1991:53)
Concluamos, referindo que o
controlo do destino não pode conceber-se no seio da actual era das instância
mediáticas, como se concebia em eras dominadas pelas instâncias proféticas ou
pelas autonomias racionais do político puro e duro. O refluxo do futuro em
direcção ao presente e as duplas ilusões que conduzem a um esvaziamento da
esperança sustentam esse facto, aparentemente irredutível. No entanto, e tendo
em conta que esse mesmo esvaziamento é sinónimo do próprio refluir das utopias
em direcção ao presente, tornando-as defensivas, a única saída possível que se
nos afigura no sentido de reenformar os conteúdos sociais da esperança é, por
um lado, a prática da casualidade contra a indiferença nos fluxos e, por outro
lado, a reposição da hostilidade de identidades e valores, no seio do espaço
público democrático, de acordo com a ideia de “cidadania radical” de Mouffe e
do “estilo contestativo” de Perniola.
Contudo - e para terminar -
digamos que, exactamente porque não existem momentos-zero
da história, nós acreditamos que esta “cidadania activa” preconizada por
Perniola e que o “estilo contestativo” de Mouffe constituem sobressaltos a
motivar nos espaços públicos abertos (alguns diriam pós-modernos) de hoje, mas
necessariamente sempre fundidos, com a hibridez própia dos nossos dias, isto é,
com lógicas e tradições dicotómicas anteriores, fundadas ainda em referências
pesadas e monocentradas em códigos fixos e verticais. É por isso que Haider,
Timor ou os marroquinos de Almeria ainda constituem, nos dias que vão correndo,
parte da realidade que os média decidem desocultar, ao lado do caudal dos
fluxos de que somos todos vítimas de delicada hipnose.
[1] Tal verifica-se em Leviatã (1651/ Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, Lisboa,1999), na I parte, capítulo XII, ‘Da religião’ e sobretudo em
toda a III e IV partes (cerca de metade da obra), principalmente no que
respeita ao dilema verdadeira/ falsa profecia (1999:292-3,329 e 441) ou à visão
de futuro baseada na profecia (ibid.:336 e 500).
[2] No início do
capítulo XXV de O Príncipe de
Maquiavel (Guimarães Editores, Lisboa,1997:117), pode ler-se: “Não me é
desconhecido que muitos tiveram e têm a opinião de que as coisas do mundo sejam
governadas pela fortuna e por Deus, que os homens com a sua prudência não
possam emendá-lo, e que assim não haja por isso remédio algum; e, por isto, poderia
um príncipe julgar que não deveria afadigar-se muito, antes deveria
consentir-se o governo à sorte”(...)”Todavia, porque o nosso livre arbítrio não
desapareceu, julgo poder ser verdadeiro que a fortuna seja árbitra de metade
das nossas acções, mas que também nos deixe governar a outra metade, ou quase.”
[3] No Ensaio
sobre a verdadeira origem extensão e fim do governo civil (1689/90),
porventura dada a situação pós-revolucionária inglesa, todo o capítulo V em
exclusivo se dedica ao tema, para além da corrente isotopia transversal a toda
a obra como, por exemplo, se verifica no Capítulo IX/&124: “...o grande e
proncipal fim dos homens se unirem em sociedade, e de se constituírem debaixo
de um governo, é a conservação da sua propriedade; para cujo fim se exigem
muitas coisas que faltam no estado natural” (Edições 70, Lisboa,1999:105).
[4] “ Constituição
americana de 1787 foi a prova que a doutriona de Locke não se esgotava nas
especificidades do sistema muito particular do king-in-Parliament da Grã-Bretanha, mas poderia sugerir novas e
republicanas fórmulas de governação.
Para a posteridade,
ficou o conceito central e de , qualquer que seja a forma de governo, o poder
legislativo e o executivo não devem ser controlados simultaneamente pelos
mesmos indivíduos. Todo o contrato social deve estipular as garantias e os
equilíbrios (checks and balances) indispensáveis à sociedade civil ou política”
(M.Castro Henriques/M.Araújo Costa, ‘Apesentação’ in Ensaio sobre a verdadeira origem extensão e fim do governo civil (1689/90-999:14).
[5] Cit. in
F.Baumer,1990-I:130 (O pensamento moderno
europeu, Vols.I e II,Edições 70, Lisboa
[6] Já em Maquiavel ,
tal princípio era manifesto:“Devemos, então, saber que há dois géneros de
combate: um que se serve das leis, outro que se sevre da força: o primeiro é
próprio do homem, o segundo dos irracionais: mas porque o primeiro muitas vezes
não basta, convém recorrer ao segundo. A um príncioe é necessário, portanto,
saber severas usar ou o animal ou o homem que estão dentyro dele. Foi este
princípio dissimuladamente ensinado aos príncipes pelos escritores antigos”O Príncipe de Maquiavel (1997:84).
[7] Trabalhamos com a tradução de D.Verene, On the Study Methods of Our
Time (1708-9), Cornell Un.Press, Ithaca/London,1994.
[8] Trabalhamos com a edição
de T.Bergin/M.Fisch, Scienza Nuova (1725), Cornell Un.Press,
Ithaca/London,1968.
[9] o que determina o
político, tal como o caracterizámos, é basicamente o reatar de uma concepção
grega antiga - o agir livre de todos no seio da comunidade - em articulação com
um destino - definido no iníco deste ponto -, cujo futuro resulte, não de uma
teosemiose, mas sim de uma qualquer racionalidade.
[10]A paz surege em Kant
como a grande “cúpula de todo o edifício legal” (V.Soromenho Marques 1998:495)
perseguido pelo autor. Nesta óptica, o “arbítrio” da lei deveria sobrepor-se a
todos os conflitos, basicamente porque a paz consubstancia “uma essência
racionalizante”(ibid.:495). A própia “economia do mal”, defendida por Kant como
uma espécie de providência que pressupõe a existência e manifestação do mal, é
uma realidade que não impede a realização do progresso - e portantop do desejo
de paz - baseado na razão que é, por natureza, natureza
“transformista”(ibid.:328).
[11] Extractos cuitados
de Antologia de textos in J.Delumaeau Mil
anos de felicidade-uma história do paraíso, Terramar, Lisboa,1997:385-414
(Cap.XX: ‘A crença no progresso’)