Órbitas
da Modernidade: Introdução
Luís Carmelo,
Universidade Autónoma de Lisboa
No presente ensaio, o sujeito não é senão uma entidade singularizada e autónoma que age de modo livre. Homem, personagem, algoritmo imaterial posto em errância num circuito electrónico, tudo pode, com efeito, ser sujeito. Nesta óptica, o sujeito converte-se sobretudo em fórmula que nos permite analisar, numa perspectiva funcional, o comportamento dos mais diversos actores que, a partir do advento da modernidade, no seu agir já autónomo, se dissociam da esfera teosemiótica da interpretação. Deste modo, o nosso ensaio começará a orbitar em torno da modernidade - a circum-navegação sempre foi uma metodologia muito cara à descoberta -, tentando delimitar a emergência do sujeito no despontar de seiscentos. Com efeito, os aparelhamentos, as inovações experimentais, a subjectividade pensante de Descartes e o perspectivismo de Leibniz inserem-se dentro dessa primeira infância pós-parto.
Este medir de forças com as
leis do mundo que é a aventura de auto-enunciação do sujeito moderno
desenvolveu-se, no século das Luzes, através da lenta metamorfose da
representação original - onde tudo era ainda manifestação de um discurso divino
- numa rede construída de efeitos. A definição de Hume do homem como mera súmula
de percepções, ou a ‘esquematização’ e o próprio ‘conceito empírico’ de Kant
integram essa desconstrução. Subitamente, como disse Foucault, no século XIX, o
homem, e também as linguagens, emergiam à superfície e tornavam-se no motivo de
todos os olhares e estudos indiscretos. Não mais, um e outro, continuariam a
ser vistos como algo que Deus distribuira serenamente ao mundo, no quadro de
uma ordem e harmonia indiscutíveis e inomeáveis. A partir de agora, a
representação passava a ser uma construção, uma maquinação, um produto complexo
e quase industrial, movido pelo esforço transformador e criativo do próprio
homem. O sujeito moderno cumpria assim o termo de uma iniciação algo espartana,
rude, mas proveitosa.
A liberdade desse sujeito
neófito, entretanto, só poderia ser ponderada, na medida em que o seu agir se
tornasse, de alguma forma, realmente visível no palco ou boca de cena, ainda
que incipiente, da modernidade. Este teatro de sombras da liberdade começa a
dar que falar, com avidez e problematização, na boca de Locke, Hume ou
Voltaire, apesar das denegações, por razões superiores e distintas, de Espinosa
ou Leibniz. Todavia, em Kant, a liberdade plasma-se já como uma nitidez que
chega a pactuar com a natureza (e com a história), por razões que ligam a
espontaneidade humana à ausência de quaisquer constrangimentos causais; o
próprio autor o disse de modo, aliás, pouco labiríntico: “Quando agora por
exemplo me levanto da cadeira, completamente livre e sem a influência
necessariamente determinante de causas naturais”(...)“inicia-se absolutamente
uma nova série, embora quanto ao tempo seja apenas a continuação de uma série
precedente”[1].
O percurso do nosso ensaio
enveredará, de seguida, pelos caminhos - ainda que laterais - dos grandes
macro-sujeitos (humanidade comteana, classe marxista, ou espírito hegeliano),
no seio dos quais a liberdade subjectiva se confrange ou relativa. É a partir
desse istmo, ou entreposto, constituído por inevitáveis cortes, adversidades e
por uma emergente iluminação neo-escatológica, que avançaremos para a decisiva
crise do sujeito moderno. De facto, por natureza, a modernidade é e foi, de
modo continuista, um patamar de turbulências; ou seja, à partida, a modernidade
conformou-se sempre, no seu ser, com a própria produção de clivagens; com a
estufa da crise perpetuada; com a reinvenção absoluta do tempo; senão mesmo com
a tentação de recomeço total da humanidade.
Nessa medida, a figura do
sujeito autonomizado, livre e dotado de racionalidades - ou seja, justamente
aquilo que poderia ter sido a obra mais genuína da origem da modernidade -
passará a submeter-se ao crivo de uma rigorosa inspecção periódica do seu
próprio existir e legitimação. Desmultiplica-se e polariza-se entre
heteronímias, rupturas freudianas e demandas de identidade; é posto em causa
por uma linha que une Tocqueville (talvez o primeiro profeta do esvaziamento do
sujeito moderno) a Nietzsche, Unamuno, Ortega Y Gasset, ou Heidegger; e, por
fim, projecta-se no decantar moderno que se inicia na década de oitenta do já
quase finalizado século XX. Da emergência à autonomização do sujeito e da
liberdade à crise do sujeito, eis o traçado que nos encaminha, finalmente, para
uma teoria do sujeito global.
Com efeito, o sujeito
global, enquanto adaptação da tradição subjectiva à actualidade, tem a sua
origem num ensaio anterior, Anjos e
Meteoros[2].
Aí o caracterizámos como uma entidade que age sobre a “instantaneidade
tecnológica, subitamente transformada no objecto, ou sistema de vida, que recolocou na arena do presente uma espécie de
consecução plena da acção humana, ou seja, do preenchimento do seu próprio
ser”. Quer isto dizer que a liberdade do sujeito - ou o próprio preenchimento
do ser em cada acto autónomo praticado - se confronta, agora, com uma nova era
em que o futuro neo-escatológico deixou de existir, e em que, por outro lado,
os grandes códigos totalizante também deixaram de mobilizar os imaginários
sociais.
Neste quadro, subitamente
dominado pela aparência do fim da mediação e pelo desejo de instantanismo, o
sujeito tende a expandir-se e a confundir-se com o objecto-globo-simulacro,
tornando-se também escravo de verdadeiros fluxos (consumir, viajar, ver, etc) e
de um novo logos (entendido como
encontro entre os algoritmos imateriais em que o homem se revê, ao pensar e ao
pensar-se e, por outro lado, os algoritmos da atomística artefactual
tecnológica em que o homem se crê, ao rever-se e ao imaginar-se). Neste quadro
da relação entre sujeito global e fluxos, proporemos, for fim, dois conceitos
operativos: a indiferença (enquanto modalidade de apagamento do agir livre
subjectivo) e a casualidade (enquanto distanciação face aos fluxos e controlo
possível do instantanismo dominante).
Na segunda parte deste
ensaio dedicamo-nos ao locus colectivo
onde o sujeito, na sua autonomia relativa, se torna animal social, político,
intersubjectivo: a comunidade. Na sequência de Sob o rosto da Europa[3],
começaremos por caracterizar a noção de ser-em-comum,
ou comunidade, advogada por A McHoul e J.-P.Nancy, que relega o organicismo histórico
e a topografia enquanto parâmetros fundadores da vida em comum, para passar a
realçar o global-acentrado como geografia e o curso de actividades particulares
como componentes sociais fundamentais (surfistas da net, marginalizados das
grandes cidades, praticantes do culto de seitas, veraneantes e praticantes do
bronze, clientes de hipermercados, etc). De seguida, passaremos revista aos
factores semióticos que pressupõem a identificação e auto-imagem de uma
comunidade (comunicação e significação), sem esquecer os factores que
possibilitaram, desde a génese moderna, a própria auto-consciência do ser-em-comum: dos costumes e “verdades
gerais” de Vico à definição de alteridades culturais,
em Montesquieu; da fundação da ideia cultura, que se inicia em Herder e tem
elos em Voltaire e Mirabeau, às novas semantizações de lexemas como ‘povo’ e
‘nação’.
Veremos que, neste âmbito, a
‘nação’ se torna no corpo abstracto e imaginário que enforma a totalidade do ser-em-comum moderno (a partir de
factores como a língua, as normas tradicionais e uma certa espiritualidade
caracterológica); que o ‘povo’ se torna numa forma expressiva, bruta e pura,
que passa semantizar a dimensão humana, capaz de actualizar o ser mesmo da
nação; veremos que a ‘cultura’, recolhe a ideia objectualizada e total de
‘construção humana’, quer na sua versão imaterial, quer na sua versão material,
física e transformadora (a obra visível). Para além destes factores
constituintes da génese da vida moderna em comum, verificaremos também o modo
como, complementarmente, a (re)invenção da literatura e a instituição da
história, como pretensa ciência, contribuiram para este auto-olhar orgânico das
comunidades (sobretudo a partir do Romantismo).
Após esta visita guiada pela
identidade e auto-consciência das comunidades modernas, dedicar-nos-emos à
análise do controlo do futuro, enquanto múltipla perspectiva de uma simulação
que legitima, quer os poderes, quer a taumaturgia de todo o ser-em-comum. Verificaremos, neste
contexto, como é que o jogo político moderno e os fundamentos da interacção
actual se adaptam ao que já foi o controlo do destino na antiga tradição
profética. Definiremos destino, na sua relação com o ser-em-comum, como o horizonte que forja um certo sentido de fim,
tendo em conta a própria finitude humana, de tal modo que a visão de futuro que
se impõe no centro desse ‘forjar’, acaba por instituir uma ordem para o passado
e uma definição para o presente. O desenvolvimento desta análise ilustrará, num
primeiro momento, o modo como o destino é controlado, e mesmo construído, ao
longo do eixo - profético/ político/ mediático -, enquanto intâncias produtoras
de significado, respectivamente, no mundo pré-moderno, moderno e actual; num
segundo momento, verificaremos como é que esta construção do destino é
performada e activada, ao longo de um eixo
homólogo ao anterior, composto pelas entidades - “self-fulfilling prophecy” (auto-cumprimento profético) / jogo
político/ interacção.
Por fim, ao encerrar este
estudo relativo ao locus colectivo do
sujeito, concluiremos o presente ensaio com um pequeno capítulo sobre a arte e
a estética. Criações cruciais da modernidade, onde desabrocham tensionalmente,
num aparente caos criador de sentidos, conteúdos latentes pré-modernos e novos
conteúdos abertos, a actividade artística e o seu discurso estético acabariam,
de modo silencioso, por ressacralizar uma época em que o sujeito se havia
dissociado duma tácita teosemiose. Este procedimento eminentemente criativo,
modalizado e lento, conduziria a arte a transformar-se numa nova forma de
intimidade, onde sempre terá soado, na surdina da denegação, essa outra luta
nietzscheana entre Apolo e Dionísio que as antigas catedrais, afinal, já
escondiam por trás de uma completude quase transcendente e milenária. Dentro
deste quadro de análise, proporemos, a terminar, a noção de desconotação - por
oposição, apenas formal, a conotação - entendida como operação que permitiu à
actividade artística, na origem da modernidade, recortar com uma dada
singularidade as suas formas, a partir do continuum[4]
(ou totalidade dos possíveis), respectivamente de conteúdo e de expressão.
Ao
ligar uma teoria do sujeito global ao nostrum
do ser-em-comum, onde se reflecte
identidade, controlo do destino e resíduo de uma transcendência perdida, foi
nossa intenção, ao longo do presente ensaio, contribuir para pôr a nu diversos
caminhos com que a modernidade se olha a si própria, num momento em que -
sobretudo após os anos oitenta - ela
mesma decidiu constituir-se como obsessivo e narcísico objecto de análise.
Já não é apenas o homem que emergiu e morreu, ao declarar-se, ou vencedor, ou
impossível redentor de uma nova vida. Agora são as mil esferas dessa grande
máquina ainda chamada modernidade - a mesma que criou, com autonomia, o homem
redentor, perfectível ou desiludido - que se questiona. Esse gigantesco
objecto, qual neo-Leviatã, hoje em
dia animado por instantanismos e êxtases logotécnicos, apenas agora começou a
interrogar-se e, contudo, ao fazê-lo terá já criado o seu próprio sujeito
(global). A nostalgia deste novo sujeito é, porventura, feita e sobretudo
moldada pelo cândido olhar com que é levado a devorar a magia toda-poderosa da instantaneidade. A
mesma que, ontem, apenas rara ou imaginariamente, lhe deu a ver Deus, agora e aqui; a mesma que, hoje, apenas
rara ou fragmentariamente lhe deu a ver a perfeição, agora e aqui, a não ser através de simulacros, fantasmagorias
tecnológicas e desabridas experiências ficcionais.
No
fundo, felizmente, o novo sujeito da actualidade continua à procura. Provavelmente,
já não à procura do tempo perdido, ou do tempo épico para evocar; mas antes à
procura de uma comunidade ou esperança ideais, onde o escháton[5] não se
situe num depois sempre inatingível,
mas antes no coração, ainda que ilusório e instantâneo, do seu próprio e único
presente.
[1] I.Kant,Crítica da Razão Pura (1781-1787), Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa (A/450/B478-1994:410).
[2] L.Carmelo, Anjos e meteoros, Editorial Notícias, Lisboa, 1999.
[3] L.Carmelo, Sob o rosto da Europa, Editorial Pendor,
Évora,1997.
[4] Os signos, enquanto
modalidades formais de expressão que transmitem e cooperam com conteúdos, são
devedores da famosa noção hjelmsleviana de “mening”, ou seja, de continuum. Em cada comunidade, as
variadíssimas formas de conteúdo utilizadas, no dia a dia, constituem,
portanto, recortes ou moldes que, no seu conjunto, enquanto substância de
conteúdo, se projectam no referido continuum
universal de conteúdo, de acordo com a famosa parábola do “filet tendu” que
projeta “son ombre sur une face ininterrompue” (L.Hjelmslev,1968/71:75). O
mesmo se passa com as formas de expressão, na sua relação com o continuum e com a substância de
expressão, sendo que, naturalmente, não há entidade de expressão desprovida de
conteúdo e vice-versa. Segundo a teoria da desconotação avançada, propomos que,
na sua génese, a forma de expressão das obras de arte terá incorporado formas
de expressão e de conteúdo previamente existentes (respectivamente, suportes
pictóricos, escultóricos ou sonoros; e instrumentos imateirias de teosemiose),
libertanto, ao mesmo tempo, novos conteúdos que mimetizam os aparelhamentos e
própria a crise do sujeito modernos. Ao contrário da conotação temos, portanto,
em síntese, uma forma de expressão e uma forma de conteúdo que geram
historicamente uma nova forma de expressão que, por sua vez, naturalmente, cria
a sua própria forma de conteúdo (cf.II.4).
[5] O acontecimento
final salvífico ou não; o termo do percurso linear das escatologias e
neo-escatologias (ideologias, por exemplo); destino último da vida humana,
individual ou colectiva. Salvação, sociedade sem classes, ponto-ómega são, em
contextos radicalmente diferentes ilustrações do escháton.