A catástrofe dos moriscos
hispânicos, ou uma memória sem memória
O enunciado profético é, por
natureza, um enunciado instável, caprichoso, porque nem denuncia o real, nem o
anula; antes o filtra. Como referiu A. Berthelot (1987), o enunciado profético
condiciona o leitor simultaneamente a desconfiar e a postular sentidos
escondidos que extravasam o próprio texto. Isto quer dizer que o texto
profético se insere num tipo de universo interpretativo pré-moderno, dominado
por uma semiose em que o emissor é sempre entendido como entidade que se situa
no coração do mistério, seja na imanência, seja na transcendência.
De qualquer modo, as
singularidades do profético acabam sempre por cooperar com uma realidade que o
enunciou e com um auditório também real a que se destinou. O pano de fundo
desta cooperação situa-se no facto de os textos proféticos resultarem quase
sempre de simulações e modos forjados de manipular o futuro, tendo como
objectivo idealizar as condições do presente, à luz do desejo de quem os
enunciou. É por isso que a produção prófética oscila entre real e imaginário,
colocando-se a sua compreensão nessa região mista e ambígua do sempre possível
e do quase exacto.
Os cristãos-novos de raíz
islâmica de Aragão, os chamados moriscos
que apenas depois de 1526 são confrontados com conversões obrigatórias,
produzem alguns textos clandestinos de género profético, descobertos há pouco
mais de cem anos dentro de paredes de casas rurais da região do Ebro. Esta comunidade,
dominada pela catástrofe da sua própria degenerescência cultural, acabaria por
ser expulsa em 1609 de Espanha. Estes textos clandestinos que o acaso deu a ler
aos intérpretes da actualidade constituirão assim o testamento, ou melhor, o
legado último de toda uma civilização que tinha iniciado a sua vida, na
Península Ibérica, quase há um milénio antes. A nossa comunicação irá, embora
muito sinteticamente, abordar o modo com a identidade destes moriscos surge reflectida em algumas das
suas profecias (Ms.774,B.N.P.) de que me ocupei em doutoramento (Universidade
de Utreque, Holanda, 1995).
Uma das obsessões que é
transversal às profecias moriscas do
nosso corpus diz respeito à imensa
consciência de perda, nomeadamente em relação à compreensão do próprio Alcorão.
Este signo, fatal para uma comunidade que interiormente se quer islâmica, é
ainda acrescido por outros, tais como a perda da língua-mãe, a perda do
simbolismo místico e literário islâmicos; a substancialização dos comparantes
utilizados em processos metafóricos (a olla
- panela - como símbolo de crise e a fragu(w)a
- brasa -como símbolo de unidade) e ainda a própria perda da consistência
familiar e social, sempre explicitada ns textos com mágoa.
O problema linguístico dos moriscos (dominados por uma língua na
transição entre o antigo Aragonês e o Castelhano, e povoado ainda por formas
substantivas árabes) é apenas um sintoma exterior de muitos outros que, no seu
conjunto, se traduzem pela intraductibilidade de toda uma cultura, a que os moriscos acreditam ainda ilusoriamente
pertencer. A degenerescência familiar e a quebra de codificação social
reflectem, por um lado, a descontinuidade de um antigo modelo de vida numa
situação nova e, por outro lado, a pressão e a opressão a que são quotidianamente
sujeitos, nessa situação e que é a de obrigatoriamente convertidos e também
oprimidos.
Incapazes de traduzir o
mundo cultural genealogicamente anterior, e não dispondo sobretudo de uma
estrutura profunda (semiótica e também linguística) para a expressar, estes
enunciadores moriscos denunciam uma
verdadeira identidade sitiada. A
situação de autêntica hibridez em que vivem - a todos os níveis – é, de facto,
a metáfora de um fim anunciado, de uma catástrofe pressentida. Curiosamente, no
reverso do século de ouro ibérico, esta morte lenta de toda uma comunidade
hispânica é contemporânea de outras mortes no continente sul americano.
A ligação com o passado, ou seja, com a genealogia islâmica específica - e que assentaria num esquema imaginário Ibérico-magrebino de raíz almóada, segundo Miquel de Epalza - apresenta características do que poderíamos designar por hierofania. Isto significa que, embora exista um reconhecimento e uma nostalgia do passado por parte dos moriscos, por outro lado, estes manifestam uma simultânea impossibilidade de o actualizar de modo centrado na sua memória colectiva. A prova mais evidente desse facto é a própria literatura aljamiada que os moriscos criaram nas suas mourarias, no seio da qual não se vislumbra qualquer parentesco genético entre os grafemas (do alfabeto árabe) e a língua românica que utilizam. Para além disso, o texto morisco está sobrecarregado de descontinuidades semânticas e sintácticas (tipificáveis), repetições, e de uma miscelânea de conteúdos sem norte que, por certo, são originárias de uma pressão (ainda que não completamente consciente) da sua cultura perdida.
É curioso, neste contexto,
verificar que a recorrência a lexemas árabes, nas nossas profecias, privilegia
os sistemas de nomeação (sobretudo de povos e lugares), mais ao nível de res (objectos) do que de modus (acções), o que demonstra um total
desfasamento face ao sistema línguístico-comunicacional em causa. O vernáculo
utilizado - que, apesar de tudo, acusa determinadas constantes - ocupa,
portanto, uma espécie de meio termo entre o domínio do universo românico (a que
os próprios moriscos recusam
assimilar-se) e as pressões reminiscentes do Árabe. Este meio termo linguístico
e intersemiótico é, porventura, a imagem ao espelho da própria identidade sitiada a que nos referimos,
ou seja, situada entre dois destinos impossíveis: o do passado irrecuperável e
objecto de nostalgia, por um lado; e, por outro lado, o do presente, cujo
denominador comum assenta no carácter definitivamente inassimilável dos moriscos.
A auto-consciência de
progressiva decadência cultural (e até de ignorância) é um facto explicitamente
enunciado em diversos textos da literatura aljamiado-morisca. No nosso enunciado, esse aspecto do real também surge
representado. Um tal deficit de identidade é, no corpus profético que analisámos, quase sempre associado à ausência
ou "vazio de ser" de que os moriscos
se sentem investidos. São exemplo desse vazio certos elementos simbólicos como
os "corações”, descritos numa das profecias, ora vazios, ora removidos,
conforme o espírito divino animava ou não o mundo interior dos moriscos; ou ainda, por exemplo, o
"ano de seis" e as "72 senhas", associados noutra profecia
à catástrofe do esvaziamento dos moriscos face à Divindade. O "vazio do
ser" sublinha a própria infidelidade dos homens face à Divindade, o que
seria sinónimo de uma primeira morte, a espiritual. Por outras palavras, uma
identidade islâmica, no sentido pleno, só seria compatível com uma vivência
interior religiosa, também plena. Este aspecto vital da degenerescência dos moriscos surge justificada como tendo a
sua origem em antigas negligências face aos deveres religiosos, comparando-se
os próprios moriscos, nesta acepção,
aos judeus dos tempos exílicos. Neste sentido, constata-se, a nível da organização
narrativa, que os registos da violência cristã, do anúncio dos “males que
hão-de vir” e até das catástrofes naturais são interpretados como constituindo
parte de um castigo divino, de que os moriscos
seriam objecto por via da sua negligência anterior. A infidelidade e uma
obsessiva culpabilidade tornam-se, deste modo, num dos aspectos identitários
mais relevantes dos enunciadores moriscos,
o que, por sua vez, justifica o estado de "vazio de ser" referido.
Apesar de os enunciadores moriscos se reverem neste radical vazio
identitário, a verdade é que eles denotam uma forte consciência do campo (ou da
barricada) que ocupam. A tendência demarcadora dos moriscos face aos cristãos é, pois, na literatura aljamiado-morisca, um marco muito insistente. Por
exemplo, aspectos como o da higiene ritual ou da irrepresentabilidade do divino
sobressaem nas perífrases com que nomeiam os cristãos (“comedores de porco” e
“adoradores de cruzes”), do mesmo modo que, a um nível mais simbólico, os moriscos reivindicam com exclusividade a
purificação e a incorruptibilidade como atributos. Revelador, neste âmbito, é o
modo como S. Isidoro de Sevilha é instrumentalizado como pseudo-narrador das
profecias. Num dos textos, o santo associa-se à unicidade divina islâmica (tawhíd),
à natureza não divina de Cristo e ainda à impossível partilha existente entre
Deus e o homem, tudo isto constituindo, como se sabe, verdadeiras linhas de
fronteira teológica entre o Islão e o Cristianismo.
Apesar das negligências e do
castigo divino de que os moriscos se sentem alvo, estes mantêm, contudo, a
contraditória certeza de herdarem o que designam por via recta - em contraste
com a “depravada” via cristã. Uma das mais reiteradas denúncias moriscas, neste âmbito, incide no trauma
histórico dos juramentos ("las juras") traídos, ou seja, a mudança de
política cristã que, entre 1492 e 1501, haveria de conduzir, pela primeira vez,
a conversões obrigatórias.
Também na análise das
descrições, da paisagem, da semiótica do espaço, é possível constatar a consciência
de campo dos moriscos. Não só porque
mitificam a terra ibérica (chegando a afirmar, numa das profecias, que a
Espanha é “um dos planos do paraíso” onde corre mel nos rios...), mas também
porque se sentem como sujeitos que se opõem de corpo e alma aos cristãos em
nome da posse - mais escatológica do que terrena - do território ibérico.
Aliás, os itinerários de conquista, ao longo da narração, actualizam essa
matriz de uma já clássica guerra escatológica que, em terras ibéricas, tem a
sua origem no séc.VIII. O espaço simbólico, recortado nas nossas profecias, é,
deste modo, duplo: por um lado, repõe as grandes rotas de conquista (do
passado), por outro lado, reconstrói-as, no presente, sob o signo do desejo de
uma restauradora invasão otomana (para a qual chegam a descrever a rota
adequada).
Esta fractura ou alteridade
islamo-cristã manifesta-se igualmente na construção de personagens, ou melhor,
de actantes de cariz simbólico. É nesta medida que, por exemplo, S.Tiago de
Compostela, o cometa da Bretanha ou a cavalaria de França, de um lado, se opõem
irredutivelmente ao Alhambra, à aura de Córdova ou à cavalaria de Ronda numa
das profecias. É deste tipo de oposições, entre outras simbólicas e temáticas
da estrutura profunda do texto, que irradiam outras mais superficiais que
constroem a própria lógica da narração. Diríamos, a nível estritamente
simbólico e bachelariano, que os elementos ‘terra e ar’ (o céu), representados
no nosso corpus, apontam para a
disputa central das histórias relatadas, isto é, a questão escatológica. Por
seu lado, os elementos ‘fogo e sangue’, constantes e hiperbólicos nas
descrições de batalhas, sinalizam, quer a irredutibilidade das partes, quer a
redenção que nasce do perpétuo confronto.
Faz igualmente parte da
natureza dicotómica deste real literário (real onde onde os moriscos projectam, ainda que amputada,
a sua identidade) a visão que os cristãos têm dos próprios moriscos. É nesse
contexto que surge a ideia de casta, enfatizando a necessidade de
"limpar" as terras de Espanha de todo o "fermento" que
corrói a unidade nacional (religiosa e cristã). Numa das profecias, os moriscos preenchem este terrível aspecto
semântico, através da figura do Encoberto
que é, na tradição dos personagens proféticos do tipo “último imperador salvador”,
o decisivo agente da premonitória expulsão dos moriscos de Espanha.
Curiosamente, a Península Ibérica está cheia de Encobertos mitificados,
islâmicos e cristãos, desde o século XIV. Portugal fez dessa figura um mito da
restauração da sua independência, no Séc. XVII, e acabaria até por exportar a
expressão desse mesmo imaginário para o Brasil.
A profecia 3 em que surge a
figura cristã do Encoberto é claramente um texto que foi transformado ou
manipulado, a dada altura, por mão cristã. Trata-se de um enxerto forjado, como
muitos outros, na altura da guerra Alpujarras. Contudo, o significado dessa
intervenção num corpus morisco
clandestino não é um detalhe, mas antes uma questão de bastante interesse,
porque nos permite compreender algo mais sobre a complexa identidade dos moriscos. Por mais díspares que sejam as
análises sobre a natureza da profecia em causa, há um facto relevante que urge
interrogar, isto é: foi, ou não, um morisco
quem forjou a dita profecia ? Há um conjunto de dados que, em princípio, nos
permitem concluir afirmativamente:
a) embora a profecia
resulte de enxertos de outras (umas cristãs, outras não, e, nomeadamente da
própria profecia 2 do mesmo corpus),
são claras as hesitações que indiciam que o seu enunciador não tem (como qualquer
morisco) o Castelhano como
língua-mãe;
b) o recurso a palavras
árabes - como por exemplo adarbes
(portas das cidades) ou a designação do monstro Jabarín - decorre do mesmo tipo de desfasamento semântico que surge
nas restantes profecias do corpus;
c) verificam-se
decalques sintácticos idênticos aos das outras profecias que sinalizam a
presença de um modelo linguístico exógeno ao vernáculo românico utilizado,
assumindo, portanto, características comuns à textualização mais geral da
literatura aljamiado-morisca;
d) o autor demonstra
conhecer bem os símbolos islâmicos e cristãos, recorrendo até à mitificação e
mistificação das terras de Espanha, característica morisca sempre presente nas outras profecias do corpus;
e) em último lugar, é
patente o recurso a recorrentes ameaças e pragas, o que denota um sentido
manipulador apurado de quem, conhecedor do seus destinatários, depois de criar
ambiguidades no início do texto, através de um discurso reconhecível no meio
aljamiado-morisco, subitamente o
encerra com uma inesperada vitória do Encoberto cristão.
Deste modo, é bem possível que um
enunciador morisco (a soldo de cristãos) utilizasse esta arma
de guerra - que, na época, é a profecia - no próprio terreno textual de
enunciação morisca. Um tal dado pode
permitir-nos concluir, com cuidado, que a comunidade morisca, a par das suas inúmeras fragilidades e inconsistências
identitárias, é permeável à enunciação auto-flageladora. Se a auto-mutilação, a
nível terreno, é um atributo admitido numa outra profecia, a quarta - de clara
enunciação morisca, de resto como as
restantes do corpus -, é também
possível interpretar a presença da profecia enxertada e forjada no meio das
restantes, pelo menos em parte, nesse mesmo sentido (o que, aliás, está de
acordo com as investigações de J. Hawkins sobre "a morisco philosophy of suffering" - 1988). Uma tal asserção
poderá ser formulada, independentemente de a referida profecia 3 ter sida
inserida na sintaxe das restantes três profecias, numa data posterior à
enunciação destas (possivelmente aquando da última recopilação do presente Ms.,
todo ele, uniformemente, redigido com caracteres magrebis e, segundo tudo leva
a crer, seguindo o gesto e o gosto de um mesmo copista). No entanto, refira-se
que a presença da profecia enxertada no nosso corpus corresponde à lógica hermenêutica da época; de facto, a
presença de versões contraditórias num mesmo texto do género é então normal, já
que as práticas de manipulação
intertextual eram imensas e constituíam mesmo parte do jogo comunicacional e
político da produção profética.
Esta é, em breves linhas, a
silhueta do real identitário morisco,
tal como nos surge representado na construção semiótica do corpus profético do Manuscrito 774 da Biblioteca Nacional de Paris.
Sobrevivência, crença no devir escatológico, consciência de perda irremediável,
luta contra a hibridez (de que se sentem conscientes), nostalgia do passado, vazio de ser como castigo pela
negligência religiosa (de que se sentem responsáveis), auto-flagelação - e
ainda uma nítida consciência do campo cultural que é o seu (embora sem uma
linguagem consistente que o possa traduzir, o que revela a natureza do drama
identitário morisco) - configuram
traços do real moriscos que deram
entrada no texto, aquando da sua enunciação. Estamos diante do que poderíamos
designar por monólogo interior de uma comunidade em profunda crise identitária
e, além disso, à beira do abismo - ou da catástrofe - da sua própria
existência, enquanto comunidade, na história. De outro modo: estamos diante de
uma memória sem memória.
Como L.Cardaillac refere nas
conclusões do seu clássico Morisques et
Chrétiens - un affronttement polèmique (1977:389), os moriscos não têm história, na medida em que a própria História
pressupõe a existência "d'un groupe humain en évolution"; daí que o
problema morisco, para além do método
histórico, careça inevitavelmente de outros, e, de modo particular, o
“sociológico” (ibid.:389). Esta nossa via alternativa de prospecção
semiótico-textual, por seu lado, poderá contribuir complementarmente para
situar modalidades de representação da realidade que, de algum modo, possam
enriquecer o estudo de minorias terminais como os moriscos. Realidade essa que, infelizmente, é, ainda hoje em dia,
muito mais actual do que possa parecer.
Berthelot, Anne
Discours prophétique et fiction in Poétique, nº 70,
Avril, Paris, 1987: 181-191.
Cardaillac, Louis
Morisques et Chréthiens - Un
Affrontement polèmique, Librairie Klincksieck, Paris, 1977.
-
Le prophétisme, signe de l´identité morisque in Actes
du II Symposium International du CIEM sur Religion, Identité et Sources
Documentaires sur les Morisques Andalous, Pub. ISD,1984:138-146.
Carmelo, L.
La représentation du réel dans des textes prophétiques de la
littérature aljamiado-morisque
1995,Universiteit Utrecht, Utrecht
-
1999, Editorial Notícias,Lisboa
(de) Epalza, Mikel
El
problema morisco, visto desde las aljamas mudéjares precedentes in Les Moriscos
et leur temps, Éd. Du CNRS, Paris, 1983:29-42.
-
A modo
de introducción: el escritor Ybrahim Taybili y los escritores musulmanes
aragoneses in El cántico islámico del morisco hispanotunecino Taybili,
Bernebé Pons, Zaragoza, 1988: 5-26.
Kontzi, Reinhold
Aspectos
del estudio de textos aljamiados in thesaurus, Tom.XXV, nº 2, 1970:196-213.
-
Calcos
semânticos en textos aljamiados in Actas del Coloquio Internacional de
literatura aljamiada y morisca, Gredos, Madrid, 1978-II:315-355.
Hawkins, John P.
A morisco philosophy of suffering: an anthropological analysis os an
Aljamiado text in The Maghreb Review, Nº 13, 1988:199-217.
Sánchez Alvarez, Mercedes
El Manuscrito misceláneo 774
de la Biblioteca Nacional de París, Gredos,
Madrid, 1982.