Luís Carmelo, Universidade
Autónoma de Lisboa
1. Construir o tempo.
Os signos, enquanto
modalidades formais de expressão que transmitem e cooperam com conteúdos, são
devedores da famosa noção hjelmsleviana de “mening”, ou seja, de continuum. Em cada comunidade, no
sentido de A. McHoul (1996:41-53), as variadíssiamas formas de conteúdo
utilizadas, no dia a dia, constituem, portanto, recortes ou moldes que,
enquanto substância de conteúdo, se projectam no referido continuum universal de conteúdo, de acordo com a famosa parábola do
“filet tendu” qui “projette son ombre sur une face ininterrompue”
(L.Hjelmslev,1968/ 71: 75).
Entre os conteúdos
retalhados do continuum de conteúdo
existe um fulcral que corresponde ao conjunto de sememas que as nossas línguas
designam, de diversos modos, por “tempo”. Curioso é até o facto de o conceito
denotado através do lexema dinamarquês “mening” significar, entre outras
virtualidades, a ideia de “sentido”, mas, como refere U.Eco no seu Kant e l´ornitorinco (1997:39), “nel
senso di direzione”(...)”come a dire che nel magma del continuum ci sono delle
linee di resistenza”(...)”che rendano più agevole tagliare in una direzione
piuttosto che nell´altra”. Nesta linha de ideias, diversos modos de designar o
tempo, nas línguas naturais, remeteriam, em última análise, para um mesmo e
único fenómeno anterior, isto é, para o próprio continuum temporal.
Deste modo, cada conceptualização específica do tempo, desenvolvida no
interior de uma comunidade, corresponde, entre outros, ao tempo émico de
T.Bruneau (1980:102), ou aos tempos “formal” e “informal” de E.Hall (1959:127),
para além das categorias mesuráveis do tempo que correspondem, utilizando a
terminologia dos mesmos autores, ao tempo “ético” ou “técnico”. Porque estas últimas
categorias, isto é, as “possibilidades de datação” constituem um primeiro
“momento do tempo ocupado” (M.Heidegger,1997,2-II:234), interessa-nos mais
compreender as grandes balizas émicas com que sempre se representou o tempo,
pelo menos, na génese do mundo euro-ocidental.
Tais balizas corresponderam
quase sempre ao estabelecimento de cosmogonias e de escatologias, ligadas
inevitavelmente por um fluxo de indução narrativa, mais ou menos elaborado
conforme as eras e as topografias geo-imaginárias em causa. No final da sua Introdução à Metafísica (1997,1:223),
M.Heidegger refere que o tempo é a essência da presença, não entendido, no
entanto, enquanto entidade “desdobrada” e “desdobrável”; é só a partir de
Aristóteles - continua M.Heidegger - que a reflexão sobre a essência do tempo o
tornará em algo presente, passando a ser concebido “a partir do agora do
respectivo e único presente actual” (ibid.:223). Esta lógica é retomada do
seguinte modo, no final do Ser e Tempo
(1997,2-II:235): “Os agora passam e os agora que passaram constituem o passado.
Os agora advêm e os agora que advirão delimitam o futuro”. Ou seja, na
temporalidade irreparavelmente humana, convertida num sentido ontológico do
“sorge” (cuidar de), o futuro tornar-se-á sempre no pilar fundamental, já que é
a única instância que se antecipa à morte, sendo, portanto, capaz de enquadrar
e ratificar a finitude.
De facto, os princípios e os relatos míticos que os
semantizam, assim como os fins, com
as suas homólogas grandes narrativas, abrem e fecham o horizonte com que
codificamos e legitimamos a instância ‘actual’ do tempo: o presente. Franz
Kermode no seu Sense of Ending
refere mesmo que “os homens”(...)”precisam de concordâncias fictícias com
origem e fim, daquelas que dão significado à vida e aos poemas” (1997:25). A
comparação literária é interessante, já que é da literatura - neste caso dos
textos proféticos do Antigo Testamento - que a escatologia, de modo consistente
se indicia, sobretudo entre o advento da Realeza (século XI A.C.) e a grande compilação
pós-exílica (século VI A.C.). Ainda não assente na mediação angélica, confinada
a um intimismo da primeira pessoa e ligando o presente a um futuro próximo,
esta actividade mantém-se harmoniosa - como se fosse uma leitura “du dessein
dans le trame des événements” (B.Chenu,1997:22) - até que, a certa altura, se
tornam audíveis os alarmes, por exemplo, do profeta Habacuque. Aí se pressente
já o Apocalíptico, ou seja, a atitude de queixa e questionamento geral, tendo
em conta o desfasamento entre a observada disforia terrena e um - cada vez mais
distante - plano divino superior. As grandes viagens pelos sete céus, a
necessidade de narrar e contextualizar a história passada no seu todo, bem como
as visões de Deus, através das quais o homem traduz a sublimação da ansiedade
terrena, sucedem, entre os séculos II A.C. e II D.C., à fase profética que N.
Frye (1982) descrevera como sendo eminentemente prospectiva (orientada para o
futuro).
Esfumada na literatura
apocalíptica judaica, em benefício da tensão entre o presente e o “rather
prosaic acconunts of the whole of history” (C.Rowland,1982:189), a escatologia
surge subitamente reinaugurada com a revelação cristã. Com efeito, a
escatologia enuncia-se já como parte da própria história, sendo o escháton dominado por uma salvação que
se cumpre, quer no agora-aqui, quer no próprio futuro. Ainda que a primeira
corresponda à discutida noção de “métanoia”
dos evangelhos (N.Frye,1982:192), segundo a qual os cristãos “sont déjà
vainquers”, grace à la parole de Dieu qui est en eux (1Jn, 4.2-4), a segunda
corresponde a um devir que sendo “veículo de eternidade manter-se-á História”
(J.Le Goff,1984:437). Neste âmbito propriamente histórico, todavia, a
ignorância do plano divino de salvação, traduzido em Lc,20 - “Vous n´avez pas à
connaitre les temps et les moments que le Père a fixés de as propre autorité”
-, acabaria por gerar, ao longo de séculos, as mais diversas atitudes, desde os
milenarismos aos montanismos; desde o milénio espiritual de Orígenes às
calendarizações émicas de Joaquim de Flora.
Seja como for, e seguindo o raciocínio de B. McGinn “the Christian view
of history has always been eschatological in the sense that the course of ages
was believed to make sense only in terms of its beginning and its end” (1979:XVII).
E
apesar das rupturas efectuadas no seio da própria história, o facto é que esta
visão monocentrada, rectilínea e linear do tempo, como que povoado por
estruturas imanentes que lhe atribuiriam um persistente sentido “taumatúrgico”
(B.Wilson,1973:25), acabaria por ser retomada, no advento da modernidade,
quando o grande código, gradativamente, deixa de ser escatológico para passar a
ser, ou utópico (sobretudo quando este tipo de narrativas ancora no espaço e no
tempo terrenos, isto é, nos finais do século XVIII), ou ideológico, a partir de
meados do século XIX. Esta visão ancestral, linear e continuista, viria a
confrontar-se com o nosso século ainda actual que, por sua vez, se
transformaria numa - muitas vezes amarga - arena de todas as experiências,
decepções e mal-entendidos.
O recente colapso dos
grandes códigos, assentes numa semantização temporal monocentrada e rectilínea
em direcção ao futuro, pelo menos enquanto factores de mobilização das
comunidades, repôs, de certo modo, a ideia de “actual” e de “presente”, como
contra-peso ao tradicional futuro perfectível, sempre anunciado - desde as
escatologias às ideologias - e jamais cumprido. J. Bragança de Miranda
(1997:32) compara mesmo o caracter “decisivo” da actualidade, na tradição do
“instante” de Nietzsche, do “transitório e efémero” de Baudelaire, do “jezzeit”
de Walter Benjamin, do “inzwischen, o entre” de Heidegger ou do próprio
“imortal agora” de Fernando Pessoa. Todas estas noções, aliás, subjazem a uma
ideia de história policentrada, descontínua, contingente, ou seja, como propôs
Alec McHoul (1996:8) - “History – as the condition and medium of semiosis – is
not so much something that is to be described and explained”.
Concluindo: sem querer
atrair para esta exposição a clivagem discursiva sobre o pós-moderno, a verdade
é que a indução narrativa criada pela linha que une cosmogonias e escatalogias
- no fundo, as balizas émicas fulcrais da nossa cultura euro-ocidental - parece
ter entrado num momento histórico de franca crise. Numa altura em que os
referentes da modernidade se esvairam, as grandes tarefas do mundo parecem ter
regresado, de vez, ao agora-aqui do presente, em prejuízo de um taumatúrgico e
salvífico futuro. Numa recente entrevista, V. Soromenho Marques (1999:3), autor
de uma tese sobre Kant e a racionalidade, identifica essas tarefas como sendo:
“a crise ambiental”; a “diluição dos estados sem alternativa no mar da
globalização”; “a falta de um efectivo sistema internacional baseado na lei” e,
por fim, os próprios “déficites democráticos”. Todas estas tarefas conferem ao
tempo - simultaneamente émico e etico - do presente a sua maior prioridade. O
que significará este estado de coisas ? Por outras palavras: Em que direcções
do continuum temporal estamos, hoje
em dia, a prospectar o nosso próprio futuro ?
2. O fim é sempre uma metamorfose ?
Raramente, a espécie humana
concebeu o fim como um fim absoluto e real. Um caso de excepção terá sido o das
tribos da Arábia pré-islâmica que acreditavam numa divindade, o Dahr, que fazia coincidir a morte com a
própria razão de ser do ser humano. Aliás, o Alcorão - que, ao revelar-se,
trouxe a estas comunidades uma compreensível libertação escatológica -,
combatendo esse passado, refere-se, na surata XLV/22-23, aos adoradores do Dahr do seguinte modo: “Ils disent: Il
n´y a point d´autre vie que la vie actuelle”. Curiosamente, Dahr, em Árabe, quer, hoje em dia, dizer
‘tempo’ e a forma substantivada da mesma raíz, ad-dahriyyah, ‘ateísmo’. Nada mais esclarecedor do que a condenação
perpetrada por um língua natural à memória daquilo que, um dia, ousou
auto-representar-se com um fim consumado.
De qualquer mdo, o fim, mais
do que um ponto absoluto, é quase sempre representado como um tornar-se em qualquer coisa. As últimas
etapas das escatologias e das ideologias consubstanciavam a própria perfeição
como uma espécie de relato de outra
vida que se auto-regularia, dilatando, de certa forma, o tempo efémero e sempre
conturbado do presente. Jean-Claude Carrière chegou a caracterizar o fim dos
tempos como “la fin de l ´insupportable contradiction” entre “le temps divin
(surpême, absolu) et le temps humain (limité, relatif)”. Num tal quadro, apenas
este esbater entre o que S.N.Eisenstadt designou pelas ordens “transcendente” e
“mundana”, criadas durante cerca de um milénio pelas “civilizações axiais”
(1997:4), é que poderia, com efeito, evitar que o fim continuasse a ser
representado como uma metamorfose.
Certas formas clássicas de
compreender o tempo inserem-se claramente nesta estratégia de manutenção do
fim, enquanto estádio simultaneamente afastado e durável. Lendo F. Kermode,
apercebemo-nos de que a crise é indubitavelmente um dessas formas que é
“central no nosso empenho em prol do entendimento do mundo” (1997:98). A teoria
cíclica das decadências é uma outra forma, porventura subliminar, de doce
preservação do fim. Tal é claro na teoria de Spengler, segundo a qual cada
cultura realiza um ciclo vital (correspondendo a civilização à fase amadurecida
da velhice); ou na teoria ideológica de Lukács, ou ainda na noção de
“breakdown” (declínio físico e espiritual) e “disintegration” de Toynbee. Um
terceira forma é “a teoria do complot”, referida por U.Eco - de acordo com uma
reactualização de Karl Popper - enquanto versão mitológica da explicação causal
do acaso. Quer isto dizer que a tentação de explicar todos os factos
inexplicáveis ou inesperados conduz o intérprete a inseri-los em esquemas que
M.Herzfeld definiria como de “self-fulfilling prophecy” (1992:35), ou seja,
pretensamente ordenados num cronograma que salvaguardasse e protelasse o fim
bem para longe do presente.
Esta congénita dificuldade
em dispor e clarificar o fim - nos fins dos tempos - pode também ligar-se à
própria perspectiva com que o homem recorta as delicadas formas de conteúdo -
com que se representa - do continuum
temporal. Creio que Martin Heidegger e Jorge Luis Borges respondem um ao outro,
quando põem o dedo na ferida; o primeiro por afirmar que a “finitude do tempo
só se torna plenamente visível quando se explicita o ‘tempo sem fim’ para contrapô-lo
à finitude” (1997,2-II:125); o segundo por afirmar complementarmente que
“ninguna de las eternidades que planearon los hombres”(...)”es una agregación
mecánica del pasado, del presente y del porvenir. Es una cosa más sencilla y
más mágica: es la simultaneidad de esos tiempos” (1979-I:223). Conclusão: a
eternidade - ou a infinitude - é uma espécie de negativo da finitude e
vice-versa, razão pela qual, no seu dicotomismo, o fim não pode nunca ser uma
ruptura, uma falha, ou um deslize para o abismo irrepresentável, mas sim um
espaço derradeiro onde se contém o tempo, ou seja, - onde se contém um dos
lados da insuperável contradição, atrás referida, por Jean Claude Carrière.
Em última análise, esta tese
que enforma o fim como uma metamorfose necessária pode ainda encontrar
legitimação numa recente reflexão de Pierre Bourdieu (1998:214/5) onde cooperam
“três factos antropológicos indispensáveis e indissociáveis” da finitude, a
saber: “o homem é e sabe-se mortal, o pensamento de que vai morrer é-lhe insuportável
ou impossível e, votado à morte, fim que não pode ser tomado por fim, (...) o
homem é (torna-se) um ser sem razão de ser, habitado pela necessidade de
justificação, de legitimação, de reconhecimento”. Esta busca de justificações -
“segundo Pascal”(...) “a única instância capaz de concorrer com Deus”
(ibid.:215) - conforma-se quase sempre com um relato onde o mais obscuro (o
‘depois do fim’) tende imaginativamente a ser representado através de mais um -
e sempre de mais um - relato que o prolonga. Até porque o ‘depois do fim’ (o
actual mundo do ‘pós-qualquer coisa’)
é, sempre, e também, a varanda de onde se observa um qualquer fim; ou seja, a
continuação sine die do relato que
está em vez do fim. Até a própria semiose ilimitada de C.Peirce representa uma
teoria em que os fins se convertem sempre em fins, - mas em fins que se
prolongam indefinidamente no seu próprio relato. Não fora o exemplo do Dahr pré-islâmico e a própria ideia de
fim constituiria um autêntico “mise en abyme” (L.Dallenbach, 1977) da espécie
humana, praticamente sem excepções.
3. O tempo da instantaneidade e a silhueta de
Deus.
Neste terceiro e último
ponto da presente reflexão, tentaremos responder às perguntas que estão, até
agora, em suspenso, isto é, - adiada a ordem de um futuro perfectível, com que
formas de conteúdo estamos, no tempo actual, a prospectar o futuro ? E - que
relato se contém na actual configuração do fim, num tempo muitas vezes
designado de ’pós-qualquer coisa‘ ?
Para responder a ambas as perguntas, avançaremos com uma relação entre dois
termos, os quais nos fornecerão material para eventualmente poder pensar em
possíveis e necessárias respostas.
A narração de
milagres, pode dizer-se, constitui um sub-género literário. Diferirá do nível
da alegoria (e da parábola) pelo facto de esta emprestar ao contexto o seu
próprio sentido, enquanto os milagres são, basicamente, significados pelo
contexto (G.d'Entrevernes,1977:206). Por outro lado, (ibid.:207) "le miracle est l'objet d'une demande emanant
d'un auteur étranger...", isto é, funciona como prova e testemunha de algo
para alguém que está de fora. Em
síntese, as duas características da recepção a este sub-género podem ser assim
definidas: por um lado, um contexto que, à partida, se quer transformado e, por
outro lado, a identificação que se verificará com a adesão do actante que está de fora e que passará a estar, no
discorrer narrativo, também, por dentro.
Mudança de situação e idealização da
figura da conversão de um outro
configuram, pois, a pragmática do milagre. Se este parece ser o objectivo
locutório, ilocutório e perlocutório dos milagres (quer na emergência
revelatória cristã, quer na sua tradição profética posterior - por exemplo nos Diálogos de Sulpice Sévère), em termos
semióticos poderíamos, numa lógica clássica de aliquid pro aliquo, acrescentar que os milagres ‘estão ali’ em vez da omnipresença e
potência divinas. Além disso, Deus omnipotente e potente manifesta-se
basicamente para se revelar como o grande código, a partir do qual as
expressões e conteúdos do mundo se articulam como significado primeiro e
anterior. Já vimos que este código assenta basicamente numa historização linear
e continuista da salvação.
Passemos agora a descrever
um segundo termo a relacionar com esta sintaxe que enquadra ‘milagre-Deus-enunciação
de um grande código escatológico’. Imaginemos, pois, o universo telemático
contemporâneo no seu crónico imediatismo comunicacional (televisão, internet,
mecanismos celulares, relés, etc...) e, porque este universo existe para criar
novos contextos, sobretudo ampliando os nossos limites físicos, enquanto exige
de nós uma permanente e involuntária adesão, ele acaba igualmente por traçar
uma correspondência homológica com a pragmática dos milagres. Ou seja, a dupla
função de ‘mudança de situação’ e de ‘conversão’ opera-se automaticamente neste
exemplo como no caso dos milagres, analisado que foi, há mais de vinte anos,
pelo Groupe d´Entrevernes (1977). Em segundo lugar, podemos também, em termos
semióticos, concluir que esta realidade telemática não resiste necessariamente
a inferências que se orientam de acordo com uma mesma lógica de aliquid pro aliquo. Nesse sentido, as
ocorrências telemáticas ‘estarão ali’, não por si sós, mas antes criando, em
vez delas e inevitavelmente, uma qualquer coisa imaterial e superior que as
rege. Não lhe chamaremos Deus; designá-la-emos apenas por ‘Existente F’. Esse
‘Existente F’ manifesta-se com homológica ubiquidade e poder globais, enquanto
é também natural que propague, ainda que subliminarmente, um certo número de
regras que todos assimilamos de modo involuntário e através das quais
refiltramos o próprio entendimento do mundo.
Esta relação entre os
milagres de ontem e o universo telemático de hoje repõe-nos na irreparável
relação entre a cultura da instantaneidade que nos domina - e através da qual somos falados - e as formas de conteúdo
que, potencialmente, preenchem uma adormecida teo-semiose. De facto, os mecanismos da instantaneidade tecnológica
prescrevem, hoje em dia, verdadeiros valores (U.Eco identifica “le succès
éthique, le Bien” com o combate pela visibilidade e pressente a ética condenada
ao simulacro de modelos, cujo objectivo é “mettre en scène sa propre normalité
dans l´univers médiatique”1998:316); os mecanismos da instantaneidade
preservam-nos também a memória, do mesmo modo que a igreja o faria na Idade
Média e, como adiantou D.de Kerckhove (1997: 194) em relação à topografia das
decisões universais, as actuais “multinacionais são como a ideia de Deus
durante a Renascença”, ou seja, “o seu centro está em todo o lado e a sua
periferia não está em lugar algum”. Silencioso e imaterial, este poder variado
e geral acaba por coadunar-se com o que o autor, em entrevista dada em Lisboa
aquando da Expo 98, descreveu com sendo a necessidade “de uma consciência
pública comum global” (1998:13). Seja no futuro pela internet, seja no presente
ainda dominantemente pela televisão, este “forum” global integrado decorre de
uma necessidade do espaço público e, no entanto, requer o que Jean Baudrillard
caracterizou como “tempo real” (1996:54), enquanto conceito-chave do acting-out mediático que o gera.
O tempo real implica, pois,
a proximidade instantânea do evento e a sua virtualidade generativa, ou seja, a
meta-ocorrência. Quer isto dizer que o evento ‘está lá’, mas é transposto
ficcionalmente como um duplo, ou como um simulacro que Jean Baudrillard, no seu
Simulacros e simulação (1991:75)
afirma ser muito mais eficaz do que o real. Estamos no reino do meta-real, onde
a simulação governa e é anterior ao mundo, do mesmo modo que, para os
medievalistas platónicos, os universais precediam o real de acordo com a famosa
fórmula - universalia sunt ante res.
O espectro de Deus cruza-se, assim, com o locus
ocupado, hoje em dia, pelo nosso ‘Existente F’, ou seja, por essa fissura
espantosa que a instantaneidade tecnológica provocou para se tornar, talvez,
num fim em si mesma. Tudo isto se passou demasiado rapidamente, sem tempo para
grandes acomodamentos, como se tivéssemos atravessado, sem dar por isso, uma
ponte entre o ‘sentido imanente da história’ e o ‘sentido imanente da
instantaneidade’. Provavelmente, a divindadade terá morrido no dia em que o
‘sentido imanente da história’ se tornou na ‘razão imanente da história’, mas
volta, agora, a impor-se na sua imaterialidade mais insuspeita e sobretudo
indescritível.
Respondamos agora,
finalmente, às perguntas que ficaram em suspenso, já que os termos comparados
(mediação divina e mediação da instantantaneidade tecnológica) parecem traçar
homologias e até analogias consideráveis e necessariamente interessantes em
futuras reflexões.
Comecemos pela segunda
pergunta, acerca do relato que se contém na actual configuração do fim. Já
entendemos que os mecanismos telemáticos criaram, nos últimos anos, um
novíssimo tempo instantâneo, a partir do qual a metáfora do milagre nos
condiciona à adesão invitável a um certo devir ‘actual’ da vida. Essa adesão,
quase incondicional e hipnótica, descobriu o que dantes era o futuro no seio do
próprio presente, já que a instantaneidade tecnológica parece ter-se convertido
num fim em si mesma, enunciada hoje, no agora e no aqui globais. Dir-se-ia que
esta resposta traduz uma absoluta subversão face à tradição escatológica e
ideológica e que, em vez dela, um novo “sujeito global passou a entrever o mundo
como uma arena irreal, quase transcendente, mas que é, ao fim e ao cabo,
imaginariamente sua” (L.Carmelo:1999:49).
Completando a resposta à
pergunta sobre a configuração do fim, cumpre ainda registar que o fim, aliás na
continuidade, mantém-se, ainda hoje em dia, em estado de permanência ad eternum. Como se fosse possível
sustê-lo e dominá-lo, do mesmo modo que uma auréola prolongaria, na Idade
Média, a luz divina no limiar dum corpo santificado. U.Eco, nas epístolas
trocadas com o Cardeal Carlo Maria Martinio, em In cosa crede chi non crede ? (1997:99) recorre a uma analogia
entre a mediação tecnológica e a miragem do fim (a morte), acabando
involuntariamente por ilustrar, de modo exemplar, esta necessidade de suspender
o próprio fim, como se este fosse uma espécie de permanente meta-relato:
”Aujourd´hui, l´univers électronique nous apprend que peuvent exister des
séquences de messages se transférant d´un support à un autre sans perdre leur
caractéristiques uniques, et semblant même survivre comme pur algorithme
immatériel à l´instant où, abandonné par un support, ils ne se sont pas encore
imprimés sur l´autre. Et qui sait si la mort, au lieu d´être implosion, n´est
pas explosion et impression, quelque part , parmi les tourbillons de l´univers,
du logiciel (que d´autres appellent âme)”. Esta impressão é porventura a
impressão com que o relato do fim se desdobra, em conotações sucessivas, até,
quem sabe, se transformar em eternidade. É caso para dizer que ‘o princípio da
contradição’ de Jean Claude Carrière está
plenamente correcto.
No que diz respeito à
primeira pergunta, acerca das formas de conteúdo com que vamos, no tempo
actual, prospectando o futuro, tudo, de facto, se torna subitamente mais
obscuro e enigmático. Pierre Breton no final do seu Utopia e comunicação (1994:140) refere quatro diferentes
representações que hoje temos “do que será o futuro”. As primerias três (as
ideologias de exclusão, as utopias verdes e as teorias do liberalismo - entre
elas a de F.Fukuyama) quedam-se, segundo o autor, apenas pelo presente e apenas
a quarta parece iluminar o fosco caminho de um futuro pressentido: “A única
imagem do futuro de que ainda dispomos é justamente a de uma sociedade de
comunicação hipertecnológica”. De facto, se é verdade que os mecanismos telemáticos
se parecem converter num fim em si mesmos, agora, segundo P.Breton, até acabam
por surgir, de forma isolada, esboçando rasgos utópicos. Todavia e como se
depreende, por exemplo, da leitura das últimas páginas de As consequências da modernidade de Anthony Giddens (1998:120), a
época actual “está cheia de altos riscos”, o que faz com que as utopias do
presente sejam sobretudo defensivas; quer isto dizer que escolhem o próprio
presente como quadro de acção e não tanto a esperança, ou o futuro. Os quatro exemplos
referidos por A. Giddens (ibid.:120) são, em jeito de círculo fechado, - o
desastre ecológico, o conflito nuclear, o totalitarismo procedente da
globalização (já que esta gera “eventos onde o risco e o acaso assumem uma nova
natureza”; ibid.:125) e, por fim, os potenciais colpasos dos mecanismos
económicos. Com efeito, o realismo utópico de A.Giddens, cruzando o local e o
global com a liberdade (“política da vida”) e a “política emancipatória”,
assenta essencialmente na convicção de que “a história não está do nosso lado,
não tem uma teleologia e não nos dá garantias”; por outras palavras, - a
história parece ter refluído, de vez, para poder salvar a própira esfera do
presente, ou, como adiantou J. Baudrillard, a história parece ter-se tornado no
“nosso referencial perdido”, isto é, no “nosso mito” (1981:59).
No seu artigo Interpretação e história (1993:29-44),
U.Eco referiu que a tentativa de buscar um sentido final, inalcançável, leva à
aceitação de uma flutuação ou de um deslizar sem fim de sentido”(ibid.:36).
Talvez esta flutuação se conforme com as duas respostas que ficámos por
desvendar ao longo deste texto. Flutuação na durabilidade perpétua de um fim
desejado e sempre protelado; flutuação ao sabor da história tornada em mito, ou
seja, tornada na memória invisível que povoa e filtra o nosso presente
irreparavelmente centripeto. O que poderemos nós ver, para além desse nevoeiro
centripeto e flutuante, “sem fim de sentido” ? Decerto que veremos o futuro,
mas vemo-lo com esse misto de tentação que terá levado, um dia, Orfeu a olhar
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