Breve crónica de uma primeira nostalgia do cinema

 

Luís Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa

 

            Como em tudo na vida, também o cinema tem direito a uma cosmogonia. Não existirá porventura uma narração ou um génesis primordial que enuncie e delimite a origem desta nova linguagem. O que talvez, a seu tempo, tenha existido foi o relato do espanto e da aventura cinematográficos que se exprimiu através das imagens com que os seus inventores, muitas vezes involuntariamente, pareciam descobrir um imprevisto e deslumbrante fogo. Esta proto-história cinematográfica - ou este embate entre pedras ígneas no fundo de uma gruta escura - só se tornou possível devido à conjugação de vários factores que a precederam, entre eles a própria fotografia, a stroboscopia do princípio de Joseph Plateau (ou a simulação do movimento, de acordo com as leis da persistência retiniana) e, por fim, a lógica da projecção que advinha da tradição já longínqua e secular da lanterna mágica.

Salientaria, no quadro da descoberta original deste fogo de imagens sucessivas e desmedidamente potenciais, quatro marcos que descrevem, de algum modo, a silhueta da sua cosmogonia. Por outras palavras, proponho que façamos uma breve visita guiada a quatro lugares da infância do cinema, num momento em que este ainda não se havia auto-constituído como linguagem dotada de retórica e códigos próprios. São estes quatro rios do paraíso inicial do cinema - o ‘deslumbramento face ao real quotidiano’, a ‘redescoberta do efeitismo imediato’, as ‘metamorfoses inevitáveis da iniciação’ e, por fim, o que designarei por ‘mudez narrativa’. Esta escolha não pretende ser exaustiva, nem totalizante; tão-só augura alguma ubiquidade de perspectivas cruzadas sobre esta realidade que terá sido a da infância do cinema.

O deslumbramento face ao real quotidiano é, em primeiro lugar, uma das características talvez mais marcantes dos enunciadores e espectadores das primeiras imagens móveis. As chegadas de comboio, as saídas das fábricas, as tomadas de vista de Picadilly Circus ou as regatas de Henley; os areias da praia de Brighton, as vistas ferroviárias do porto de Liverpool ou até o Alasca de Robert Bonine geraram uma vaga fotogénica original que se traduziu por um fascínio sugerido pelo imprevisto espectáculo que é a aparência dos lugares perceptivos do dia a dia. De certa forma, a realidade via-se agora ao espelho; ou revia-se, pela primeira vez, na sua autenticidade mais infantil, movendo-se com a omnipresença e a intemporalidade de um novíssimo olhar que, de fora, nos parecia voltar a olhar,- relevando detalhes, desocultando mistérios, reeternizando sorrisos, passos, sombras e gestos.

Em segundo lugar, a redescoberta genuína dos efeitismos imediatos só pode ser entendida no âmbito da tradição prestidigitadora, própria das feiras e do universo da lanterna mágica. Esta actividade corresponde a um locus de subúrbio, de arrabalde, de periferia e é na nuvem de poeira dos seus terreiros algo mágicos - tão bem traçados no Sorriso ao pé das escadas de Miller ou em Les enfants du paradis de Carné - que o cinema nascente irá seduzir o seu primeiro público. Sobretudo no meio circence de Méliès, a procura de efeitos imediatos capazes de fazer rir, tremer, aterrorizar, fugir, deliciar ou comover - arrastam estas primeiras imagens móveis para um certo tipo de arrumação, ou sintaxe, de que é cúmplice inevitável a tradição da catarse fantasmagórica. O homem que se transforma em caveira, a guilhotina que corta cabeças; o rosto que se sobrepõe à parede para depois rebentar, ou a mulher que desaparece sob o pano branco de um palco teatral e ilusionista - constituem experiências que desencantam a primeira construção de planos e, com eles, não ainda uma retórica comunicacional consistente e de fôlego, mas sim, e antes de tudo, a elementar fruição de efémeros efeitos imediatos, dotados de uma infância, às vezes maravilhosamente inocente.

 Em terceiro lugar, o que foi designado por ‘metamorfoses inevitáveis da iniciação do cinema’ podia antes traduzir-se através da simples perífrase - ‘aprender a andar’. Com efeito, os pioneiros do cinema foram, muitas vezes por acidente, descobrindo gradualmente o que viria a ser o sistema (e o processo) sígnico cinematográfico, mediante sucessivas aparições que a nova tecnologia lhes ia devolvendo. Por outra palvras, do mesmo modo que uma criança aprende a andar através de quedas, corridas e sortilégios imprevisíveis, também, por exemplo, Albert Promio desvendou, um dia, o primeiro travelling, como mera consequência de um passeio de barco em Veneza; também, por exemplo, uma prodigiosa avaria da máquina de filmar de Méliès, junto à Opéra, contribuiu decisivamente para esboçar uma primeira gramaticalização do continuum visual. Com o tempo, a apreensão de diversas lógicas, tais como a autonomização do tempo ficcional face ao tempo real; a renovadíssima ubiquidade do olhar da câmara; a interiorização da existência de diferentes tipos de planos; o ritmo ainda balbuciante e experimental do que viria a ser, mais tarde, a montagem; ou o domínio das sobreposições e trucagens - terão contribuído decisivamente para a conversão do primeiro cinematógrafo em escorço cinematográfico.

Em quarto lugar, refira-se o que acima traduzi por ‘mudez narrativa’. Entenda-se esta qualidade intrínseca do início do cinema, enquanto incapacidade dos pioneiros em decifrarem a indução narrativa como um dos pilares essenciais do que, no futuro, viria a ser a leitura e o leitmotiv semiótico do cinema. Para os irmãos Lumière, por exemplo, ‘a nova máquina’ mais não era do que um microscópio ao serviço da observação da sociedade, com fins, portanto, apenas laboratoriais. Méliès, por seu lado, já se aprestava a contar histórias rudimentares, mas que, no fundo, não eram senão evocações de imaginários mágico-juvenis ou de fabulosas visões fantasmáticas e de entretenimento. É do seio da Pathé e da Gaumond, já na primeira década do nosso século, e de nomes prefiguradores como Edwin Porter de The Great Train Robbery, no outro lado do Atlântico, que o cinema ameaça tornar-se num simulacro pronto a cumprir uma função de narrar. E é, sobretudo, já no início da segunda década do século, a partir de Itália, de Griffith ou de Ince, entre outros, que o cinema parece finalmente reencontrar-se com o seu destino quase incontornável de linguagem narrativa.

 

Quando a guerra de 1914-18 acabou, surgiu uma primeira geração que já poderia ter saudades deste maravilhoso início do cinema. Trata-se de uma geração que nasce com o próprio cinema, que o acompanha, com homologia aliás, na sua infância e juventude tratando-o por tu; trata-se de uma geração que igualmente acompanha o esgotamento das fórmulas cinematográficas europeias no pós-guerra, sobretudo quando a invasão do novo ‘cinema americano de produtor’ quase domestica irreversivelmente o velho continente; trata-se de uma geração que, pela primeira vez, reflecte sobre o cinema, já que só se pode reflectir sobre uma dada linguagem quando esta existe, no seu todo, e não quando ainda está em fase de formação ou crescimento; trata-se de uma geração - como, na época, aconteceu com a literatura, com a arquitectura e com as artes plásticas e performativas - que traduz o seu próprio programa geracional através de uma corrosiva contra-cultura; trata-se, enfim, de uma geração que revolucionará uma Europa ainda a respirar a oitocentos e que, em suma, em termos temporais e de distanciamento relativo, já pode acusar uma certa nostalgia (ainda que implícita) do primeiro cinema fotogénico. Passamos a descrever o modo como esta geração, repartida por diversas vanguardas, recolocou e reactualizou, de modo eclético e nem sempre claro, os quatro marcos da génese do cinema acima referidos, no seio do novíssimo ‘cinema de fractura’ que praticou (e teorizou) após 1918.

            Em primeiro lugar, assinalemos o caso do impressionismo cinematográfico francês que, na expressão de um dos seus maiores teóricos, Louis Delluc, se dispôs a aliar a fotogenia (ou o aspecto poético das coisas e seres susceptíveis de serem postos à luz pelo novo meio de expressão) ao visualismo (transposição do estado de alma e das emoções, através de jogos de imagens). Esta corrente, sobretudo nos filmes de Germaine Dulac, parece querer voltar a abraçar a tendência inicial do cinema fascinado pelo real. Este real, no entanto, agora transfigura-se e acede à prospecção naturalista do ser humano (e do seu enigmatismo). Ao contrário do expressionismo alemão, jamais se porão, aqui, em causa as aparências - ainda que fluidas - do real perceptivo, havendo até alguns dos seus realizadores, como o Jean Epstein de Finis Terrae, que - distanciado da poética portuária de Marselha - chegou a prefigurar novos realismos que, mais tarde, viriam a ser apanágio, por exemplo, de um Rossellini.

Apesar do simbolismo ou da elaboração da montagem em Gance, das reedições esteticizadas do filme d´art (como em L´Inhumaine de Marcel l´Herbier) e dos vanguardismos abstractizantes e laterais face à corrente de Fernand Léger, o impressionismo cinematográfico francês - e a vanguarda que se lhe seguiu depois de 1925 – retomam o encantamento fotogénico inicial, como aliás Delluc referiu no seu Cinéma & Cie: “Nous assistons à la naissance d´un art extraordinaire: le seul art moderne peut-être parce qu´il est en même temps fils de la machine et de l´idéal humain (1929:37)”[1]. A defesa do cinema puro, como Germaine Dulac sublinhou na senda de Ricciotto Canudo - conceito que implicava a autosuficiência do cinema para dar conta do mundo e, por outro lado, a identificação entre a acção cinematográfica e a própria vida - é talvez o maior sinal de uma nostalgia, decerto não adquirida ou premeditada, mas, pelo menos, verificável e quase sempre pressentida.

            Se a ausência de planos - e por conseguinte de montagem - constituiu um dos estados puros do cinematógrafo, é curioso verificar os antípodas que ligam, nesta época, um Buñuel para quem a montagem é uma mera operação póstuma e sem grande significado face à decupagem simples e, por outro lado, um Eisenstein para quem a montagem é consequência de toda a história de arte e, através da qual, se torna agora possível condicionar a conotação de valores de um grande código – no caso, o ideológico - por sobre a denotação aparente do real, sempre segmentado, manietado e retalhado ao milímetro. Para Buñuel, a tradição da montagem griffithiana e o simbolismo épico de Gance não são senão processos retóricos que desvirtuam a natureza priomordial do cinema. Apesar do programa desconstrutor, metalógico e surreal de Buñuel, a verdade é que em L´Age d´Or, por exemplo, é recusada qualquer trucagem e artifício, enquanto as metáforas fantasiosas e sobretudo oníricas parecem, noutra dimensão e escala, é certo, corresponder à mesma matriz onírica das  recalcadas ‘fantasmagorias sociais’ do outrora imaculado George Méliès. Esta mesma nostalgia implícita - que parece querer desconstruir as metamorfoses com que o cinema se autoconstruiu - podia ser completada pela ubiquidade sonhadora do deslumbrante Paris qui dort de René Clair e pelo encanto feirante dos cenários do primeiro cinema que parecem, a todo o momento, eclodir em Entre´acte, também da autoria de Clair.

            Se a nostalgia, jamais denunciada mas sempre pressentida, é um apanágio latente desta geração do pós-Primeira Grande Guerra Mundial (quer pela reposição dos fascínios fotogénicos, quer pelo culto da linguagem pura ou ainda, em parte, pela depuração dos excessos de artifício), diga-se que o desenvolvimento dos processos narrativos, embora já constituísse a teia fundamental do futuro do cinema, é, nesta época, para alguns, motivo de alguma reserva. Neste sentido, ‘reserva’ significará retorno às origens, ou seja, retorno ao tempo dos pioneiros, - quando a expectação e a evocação imediatas ainda superavam a inevitabilidade da indução narrativa. É sobretudo nas complexas obras dos expressionistas alemães que a primeiria de todas as narrações, o mito, se transforma em tema, transfigurando assim a mais comum das narrações a que o cinema já havia,então, verosimilmente chegado.

O Fausto e Nosferatu de Murnau; Die Niebelungen e Metropolis de Fritz Lang constituem parte substancial desta galeria mitológica, com raízes e referentes muito diversos. Assente num regresso ao estúdio e na objectualização das emoções, o expressionismo alemão exprime a angústia e a catarse, quase apocalíptica, do homem moderno perdido numa rede global de aparências. Do mesmo modo como, no início, os pioneiros do cinema se sentiam perdidos na rede - ainda toda por explorar - desta novíssima linguagem, onde, no entanto, os objectos sempre riram e falaram e os seres humanos, ainda que sem o quererem, sempre espelharam, mesmo fora do grande plano, o caos, o infortúnio, ou até a beleza do universo. Cosmomorfismo e antropomorfismo, sempre de mãos dadas.

            Neste âmbito de diálogo subliminar com as origens cinematográficas, refira-se ainda a épica original de Turim - por exemplo, o Quo Vadis de Guazzoni ou o Cabiria de Fosco-Pastrone - que parece também ter-se constituído como matriz para novas tentativas futuras do género, como se solicitasse a retoma nostálgica de caminhos e devires próprios da revisitação histórica. Abel Gance com o seu majestoso Napoléon - o correspondente à alquímica catedral de Barcelona em moldes cinematográficos - e Carl Dreyer com a sua lancinante Passion de Jeanne D´Arc acedem a esta retoma do histórico, embora numa perspectiva simbólica, na qual a arena do mundo já não é o tempo, nem o mito, mas antes a grande alegoria da humanidade; a grande nostalgia da eternidade perdida, - facto que se respira, por exemplo, no olhar imóvel e muscularmente plástico de Bartolomeo Pagano, ante os grandiosos cenários do emblemático Cabiria.

 

Se no início do cinema era a mudez narrativa o que parecia querer enunciar a sequência das imagens, agora, já ao invés da tendência dominante, e por virtudes desta geração de pós-1918, estamos perante uma nova ‘mudez’ e interrogação das cronologias ficcionais que, na linha contemporânea de Proust, Woolf, Pessoa, Joyce ou Kafka, se torna nostalgicamente em verdadeira meta-narração. Tal acontece por artes de realização do mito em imagens, no caso sobretudo do expressionismo alemão; ou tal acontece por artes de realização da alegoria em imagens, no caso sobretudo do cinema de autor (de Gance a Dreyer). Por artes de redescoberta do cinema puro e da fotogenia original, não foi menos nostálgico o cinema impressionista francês, como vimos, assim como os surrealistas - sobretudo Buñuel - também parecem ter bebido algum do puro sangue da depuração radical dos primórdios.

Antes de terminarmos, adiantemos ainda que, quando Dziga Vertov percorria uma União Soviética onde toda a vida parecia de repente ter renascido do nada, o autor do famoso ‘cinema-verdade’ não era senão a imagem dos apóstolos da família Lumière, Albert Promio ou Félix Mesguich, quando partiram de Lion e de Paris, após o natal de 1895, para levar a boa nova a todo o mundo. Também nisto a revolução soviética da famosa ‘montagem-rei’ e da engenharia mística dos seus manifestos foi nostálgica, ainda que, porventura, sem o ter querido saber; Eisenstein disse-o claramente: “O nosso povo e o nosso tempo determinam a nossa visão dos factos(1970:9)”[2]; Talvez o autor de Outubro o tenha dito do mesmo modo que os primeiros planos de Un chien andalou de Buñuel possam, de algum modo, ter reflectido um efeito de compulsão onírica e de mistério idêntico ao das catarses alumbradas e fantasmagóricas de um George Smith.

Nostalgias caprichosas e silenciosas, numa palavra.

 

 

 



[1] Cinema e Cie, Grasset, Paris 1929.

[2] Ecrits d´Eisenstsein (10) – La non-indiferente nature/ Post-Scriptum in Cahiers du Cinema, nº 219, Avril, 1970:5-14.