ANJOS E METEOROS

Ensaio sobre a instantaneidade

 

Luís Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa

 

 “Tu remarquas, on n´écrit pas, lumineusement sur champ obscur, l´alphabet des astres, seul, ainsi s´indique, ébauché ou interrompu; l´homme poursuit noir sur blanc.”

Mallarmé

 

Indíce:

0-Introdução; 1-O quadro escatológico; 2-O quadro utópico; 3-Utopia e ancoragem no tempo; 4-O quadro ideológico; 5-O alter-ego da nova modernidade; 6-O quadro pós-moderno; 7-Percursos finais; 8-Adenda-limite, ou o mistério da “globalização”; Bibliografia

 

 

Introdução

 

 

            No meu doutoramento (Utreque, 1995), debati-me com as relações existentes entre a literatura profética (até ao séc. XVI) e o "Grande Código" (N. Frye, 1982) escatológico. Se este código legitimava o presente e, sobretudo, devolvia à imaginação humana um futuro perfectível (situado no além), já, nem sempre, esse absoluto se adequava às expectativas e interpretações que dele se criavam no quotidiano.

            É por isso que muita da literatura profética, a partir do séc. VI A.C., toda a literatura apocalíptica (até ao séc. II D.C.) e, na continuidade, uma parte significativa do intertexto profético (e da sua práxis) revelavam uma impaciência imensa, querendo ver hic et nunc, no agora-aqui terreno, cumpridas as prescrições de equilíbrio que o grande código prescrevia.

            Esta postura enunciadora de impaciência está na base das manifestações do que designo por cultura da instantaneidade, isto é, o desejo ilimitado de querer ver configurados, já e aqui, aquilo que as "grandes narrativas" (J.-F. Lyotard, 1989), sobretudo teleológicas, prometiam e garantiam. Outros "grandes códigos" totalizantes se seguiram ao escatológico, no limiar ou mesmo já no seio da modernidade, libertando a imaginação humana no sentido da enunciação de um nenhures absoluto e prefiguradamente liberto do divino (caso das utopias) e, por outro lado, da construção de programas sintacticamente arrumados e hierarquizados (caso das ideologias). No âmbito destes novos "grandes códigos", onde, de modo evolucionista e monocentrado[1], a história continua a ser revista como um todo, “reflectindo certos princípios de organização e de transformação” (A.Giddens, 1995:4), esta mesma cultura da instantaneidade continua, no entanto, a manifestar-se, ainda que sujeita a determinadas “modalizações" (A. Fowler,1982).

            Num momento em que, dominados pelo novíssimo paradigma global[2] da mediação tecnológica - após uma gradativa diluição dos "grandes códigos" totalizantes (em benefício da abertura à pluralidade de códigos e ao "acentrado" - G. Vattimo, 1991) -, vários autores se referem hiperbolicamente à instantaneidade, cumpre-me propor, ao longo do presente ensaio, que este valor sempre existiu em termos isotópicos, definindo mesmo os limites fluidos de uma cultura (decerto característica de uma necessidade humana de reivindicação).

 

            Sempre me agradou a óptica que observa uma dada cultura como sendo uma crisálida criadora de linguagens. Foi E. Cassirer quem disse que, sobre um alicerce de formas simbólicas específicas, cada cultura ia criando milenarmente as suas próprias linguagens: arte, religião, literatura, música e muitas outras formas (de expressão e conteúdo) criativas e criadoras da imaginação colectiva. De facto, a cultura judaico-cristã, com as suas imensas ramificações, é devedora de uma tradição profética (e pré e pós-profética) que acabou, lentamente, por codificar, de modo linear e historicista, o tempo, entendido como um devir coerente que sobretudo legitima a articulação entre o presente e a imagem de um futuro realizável, senão perfeito. Essa vasta tradição pode, pois, encarar-se como uma forma simbólica central, sobre a qual, longamente, diversas linguagens se instituíram e desenvolveram (independentemente de, já na modernidade,  e para além do debate pós-moderno, autores tão díspares como como Nietzsche[3], o Wittgenstein de Lectures e Philosophical grammar[4], Jean-Luc Nancy[5] ou Jacques Derrida[6] terem recusado uma visão continuista e quasi-científica da história).

            Numa tal linearidade continuista, das diversas visões do paraíso ao nenhures utópico de More; dos patamares últimos que as ideologias conceberam ao "ponto ómega" designado por Teillard Chardin, - nada nos faria escapar a esta fúria inelutável com que caminharíamos do aqui-agora até à compensadora extremidade do eskhaton. A nossa cultura euro-ocidental sempre, de facto, viveu abismada, senão inebriada, diante deste limite, na direcção do qual a história se transformaria numa foz tranquila diante do grande oceano da salvação. Este horizonte último sempre, de algum modo, legitimou o nosso próprio percurso colectivo e, por isso mesmo, sempre existiram prescrições diversas (conforme as descontinuidades da história passada) que nos moldaram posturas, princípios e imaginários; consideremo-los, na esteira de N.Frye (1982), como constituindo os "grandes códigos" totalizantes, destinados à humanidade no seu todo, fossem eles de natureza teleológica/escatológica, de natureza utópica (ancorada no tempo ou não), ou, por fim, de natureza ideológica (nas suas variadas matizes e matrizes de oitocentos) .

            O que hoje -  na “actualidade” (J. Bragança de Miranda,1997)[7] - profundamente se alterou foi, não a ideia de que as culturas são crisálidas criadoras de linguagens, mas sim a ideia de que uma forma simbólica central serviria de base a um corpo fixo de linguagens e, sobretudo, a um "grande código" global que as regesse. A mediação tecnológica e o advento da “ordem pós-moderna” na acepção (de A.Giddens, cf. Cap. 6) inflectiram efectivamente esta estabilidade, baseada na acessibilidade de um devir único inelutável. Mesmo se o desejo de instantaneidade levou, muitas vezes, a humanidade a disputar o código (porque ele situava a salvação sempre num depois, inacessível por natureza), nunca antes se havia concebido a pura realização da instantaneidade no agora-aqui. E se a nossa vida, hoje em dia, vive desse facto pacífico é, sobretudo, porque a tecnologia se transformou num fim em si mesmo de que, com ingenuidade recolectora, nos apropriámos[8] ( como a própria tecnologia fosse o simulacro simbólico de um qualquer "ponto ómega", antes só imaginável).

            Mas, sublinhemo-lo, este fim em si mesmo não é mais baseado num "grande código" abarcante, tendo-se antes disseminado em variadíssimas séries. E estas séries de sub-códigos acabaram mesmo por pôr em crise a ideia de um corpo fixo de linguagens que acabou, também ele, por se disseminar num horizonte, hoje, em plena expansão, embora essa mesma expansão seja fluida e sobretudo imprevisível. Tudo isto ocorreu, no fundo, porque a própria "forma simbólica" central que nos organizava o mundo (e que era baseada no culto linearista do devir) se foi esfumando, a pouco e pouco, no limiar do que diríamos ser a crise da nossa cultura euro-ocidental (privada agora do abismo ou da esperança absoluta num limite último, traduzido pela imagem de um qualquer esckaton que, ao fim e ao cabo, a significava).

            Tal não quer dizer que as convulsões tenham acabado. Muito, mas muito antes pelo contrário. Talvez precisamente para melhor compreender este novo mundo fundado na "iminência" - para utilizar a expressão de J. Derrida (1995:121) -, na errância e nos modos (e não na moda) é que, no quadro deste ensaio, me propus traçar uma linha de possível continuidade para o que, hoje, melhor definirá a nossa cultura presente: a instantaneidade. Até porque a instantaneidade deixou de ser uma fé ou um desejo imanente à história, ou até mesmo uma iluminação mística, para passar a ser, sobretudo, a concretização de um milagre, sob a forma do mais puro facto do quotidiano.

 

 

1- Quadro escatológico

 

            A escatologia, enquanto instância reguladora dos fins últimos do homem, tornou-se particularmente importante nos textos proféticos [9]. Antes demais, a escatologia configurou então um código que, ao definir as diversas etapas que estabelecem a ligação entre o futuro e a esfera imediata do presente, garantia ao homem uma legitimação do tempo, ou seja, assumia-se como um processo de totalização ao serviço do sentido interpretativo dos signos. Um tal macro-código escatológico permitia ao homem enquadrar as ocorrências da história no quadro de uma lógica em que (segundo um princípio messiânico dos primórdios do tempo profético) o termo último, e a sua razão de ser, era a salvação. A passagem do tempo encontrava, deste modo, um sentido intrínseco, bem como uma meta a atingir. A mediação que permitia descodificar, a cada momento, os factos terrenos (na sua relação com o "grande código" - N. Frye, 1984) era, na altura, exercida pela actividade dos profetas.

            Nos textos de Samuel (onde, por inspiração divina, a enunciação nomeia Saul, o desejado [10], como rei) inicia-se um debate em torno do rei-modelo e seu significado. No centro deste debate, o rei David (e o seu templo) acabará por enraizar-se como arquétipo do "servidor" (1R, 3, 6), delimitando o próprio paradigma do messianismo nascente. Este leitmotiv escatológico pressupõe, desde logo, uma entidade e um lugar simbólicos (o templo de Jerusalém) que virão posteriormente a desempenhar um papel decisivo aquando dos fins últimos (da salvação). Os textos do primeiro Isaías (6, 1-8 - do séc. VIII A.C.) denotam já claramente estes padrões escatológicos que, nos livros dos Reis (na sua terceira fase - do séc. VI A.C.) e sobretudo, durante a intensa actividade de recompilação textual pós-exílica (depois de 538 A.C.), serão bastante aprofundados.

            Se estes textos compatibilizam um horizonte final de salvação com o presente histórico (e resultam da constante actividade - na primeira pessoa - da Divindade junto ao profeta), já os textos atribuídos a Habaquq (1, 13 - séc. VI A.C.[11]) parecem reflectir uma outra postura face ao desenrolar da história. O profeta apela então a Deus (e, de certo modo, contra Deus), por crer que o código progressivamente se inadequa aos sentidos que a (conturbada) passagem do tempo deixa transparecer: "... tu ne peux accepter le spectacle de l'oppression;/ pourquoi donc acceptes-tu le spectacle des traitres,/ gardes tu silence quand un méchant engloutit plus juste que lui?/ Tu fais décormais les hommes à l'image des poissons de la mer, de ce qui grouille sans maitre..." (1987:1198)[12]. Este simbolismo da alteridade tende, de facto, a distanciar o homem face à instância divina (e portanto ao código) e começa a repor a questão da mediação nos moldes em que o período apocalíptico (Séc. II A.C. a séc. II D.C.) a irá enunciar. Ou seja, para além de, no fim do período profético, o próprio processo comunicacional homem-Deus se distanciar (já que a figura metafórica do anjo - e não mais o instantâneo verbo divino - passa a ser o novo veículo enunciador e simultaneamente agente mediador da natureza e aplicabilidade do código, cf. Zacarias ou Ezequiel 24-27), também os factos da história observados deixam, a partir de agora, de se equilibrar (ou de se articular) com os horizontes revelatórios (antes) anunciados pelo código.

            É por esse quadro de razões que o período apocalíptico (após o séc. II A.C.) nos trará inquietações novas e, ao invés de pôr o acento na promessa e na obsessiva esperança pelo futuro, passa antes a tentar compreender como é que "a história (no seu todo) pode ser encarada como sendo uma arena da actividade divina" (C. Rowland, 1982:122). As encantadoras viagens em direcção aos céus que as literaturas apocalípticas nos narram (por exemplo, o Livro etíope de Enoch e Os testamentos dos doze patriarcas - séc. II A.C.), no sentido de (instantaneamente) permitirem a directa visão de Deus e de, in loco, tentarem compreender o código e a sua regência (face ao gradativo caos terreno), apenas virão corporizar este novo tempo (em que até a própria natureza da escatologia se parece esfumar). Uma das características do período apocalíptico reside precisamente na teoria das duas idades: "the prophets foretold the future that should arise out of the present while the apocalyptists foretold the future that should break into the present" (H. Rowley, 1964:128).

            No centro desta disjunção emergente parece ter-se perdido o pé face à natureza do presente, na sua relação com uma ordem escatológica superior. A retórica simbólica e alegórica, as visões (com destaque para as de Daniel, 8) e o maior grau de abstracção, convocado pela já referida natureza mediadora dos anjos, contribuem, durante o período apocalíptico, para a criação de uma zona de sombra que separa, cada vez mais, os homens do "grande código" (N. Frye, 1982). Entre os factos e a interpretação cria-se, deste modo, uma mediação mais espessa, mais ambígua, afastadíssima da aparente instantaneidade comunicacional própria dos profetas da realeza (que antecedem em mil anos este período).

            A revelação cristã ocorre, entretanto, neste período conturbado. Embora as semantizações apocalípticas se inseminem na vulgata cristã (já que enquadram, em termos de género, o discurso literário dominante), são os conteúdos da nova mensagem que agora se tornam decisivos. É sobretudo no chamado Apocalipse de João que, através de uma retórica povoada de símbolos, surgirá uma nova noção globalizante do devir escatológico. Com efeito, a escatologia surge-nos, nesse texto, já inaugurada e a eminência dos fins enunciada parece adequar-se a esse facto, já que os novos tempos são descritos como o próprio aqui-agora iniciado com a vinda e, sobretudo, com a morte do Messias (Jesus). Apesar da redenção anunciada remeter para a emergência de um novo reino, este, no entanto, só se virá a cumprir no mistério e constituirá objecto de contínua (e histórica) revelação.

            Nesta linha de ideias, o Apocalipse de João recodifica a escatologia, nela descrevendo duas fases derradeiras (20, 1-15), objecto, aliás, de (futuras) visões milenaristas, por um lado, e simbólicas ou espirituais, por outro. A primeira corresponde a uma primeira ressurreição, a dos santos e mártires - que reinarão sobre a terra durante mil anos (paratexto de variadas profecias milenaristas); a segunda corresponde à ressurreição de todos os mortos, aquando do juízo final. O dramatismo dos acontecimentos caracterizará o período que precede a primeira ressurreição que culminará com a vinda do Anticristo; a segunda e derradeira ressurreição, encerrando a etapa dos fins últimos, culminará com o juízo final. Então Cristo reaparecerá sob o signo da parousia. Este modelo de representação baseia-se na erradicação de uma primeira criação e na sua substituição por uma criação nova.

            Enquanto doutrina dos fins últimos, a escatologia entra agora no seio da própria história e o futuro, harmonizando-se com o aqui-agora humano, legitima um sentido global para a vida - em direcção à eternidade e à salvação. Estamos perante uma revolução, a nível do grande-código, ou seja, o tempo ético (objectivo, mesurável) passa subitamente a compatibilizar-se, de modo inovador, com um reconfigurado tempo émico (conceptualização “cultural” do contínuo temporal - T. Bruneau, 1985:286). No entanto, e de acordo com algumas passagens das Actas dos Apóstolos que disso são índice (1,8 por exemplo), ficariam sempre por precisar, ao longo da revelação cristã, os momentos em que as grandes metas escatológicas se realizariam: "Vous n'avez pas à connaitre les temps et les moments que le Père a fixés de sa propre autorité".

Este "quando indeterminado", sempre ofuscado, sempre enigmático, virá a ser, justamente, um dos temas que a literatura profética (inspirada agora pelo novo código escatológico cristão) irá mais obsessivamente tratar. Grande parte desses textos, produzidos genericamente em (pelo menos) milénio e meio de cristandade, atestam, de modo ciclíco, a tendência para uma interpretação baseada numa cultura da instantaneidade. Ou seja, muitas serão as vezes em que a literatura profética é como que compelida por uma disforia do quotidiano e da vida (incompatibilizando-se com o que é mais obscuro e indeterminado no código prescrito), sendo levada a gritar e a exigir, para já, a realização das metas últimas de salvação, anunciadas por Cristo. Passamos a dar alguns exemplos desses momentos de uma cultura da instantaneidade que, de alguma maneira, retêm da primeira literatura apocalíptica (do séc. II A.C.) e dos últimos textos da literatura profética (sécs. V e IV A.C.) uma inquietação traduzida na impossibilidade de espera, devido à não concretização das promessas reveladas. É, portanto, da disjunção entre o código divinamente fixado e a corrente interpretação das ocorrências da vida que uma já embrionária cultura da instantaneidade acaba por manifestar-se.

            A partir da segunda metade do séc. IV (B.McGinn, 1979:42), independentemente do testemunho teológico entretanto emergente (caso de Santo Agostinho), é de salientar um reatar do espírito apocalíptico de cariz imediatista (onde a figura da instantaneidade se manifesta com uma atitude interpretativa humana). A profecia Sibila Tiburtina é desse período e introduz a figura do último imperador (espécie de manifestação visível de Deus na terra, ou teofania literária ligada às derradeiras batalhas escatológicas) que, a partir do original grego, foi sendo sucessivamente intertextualizado e manipulado até ao séc. XVI. Da mesma época, são exemplos desta eminência dos fins últimos (ou seja, da abdução ou indução do código a partir da leitura dos signos particulares terrenos) os Diálogos de Sepulcius Severus (360-420/5), O progresso do tempo de Quintus Julius Hilarianus e o Livro das promessas e predições de Deus, atribuído a Quodvultdeus[13]. Até ao cabo do primeiro milénio, de referir ainda duas manifestações importantes, no seio desta corrente do instantanismo milenário: As cartas (ou o registrum epistolarum) do Papa Gregório I (540-604) e a enigmática profecia bávara do séc. IX, designada por Mispuli (onde se narra a destruição do mundo através do fogo, na sequência de uma luta entre o Anticristo e Elias [14]).

            O segundo ciclo de instantaneidade escatológica coincide com a passagem do ano mil. Quer Abo de Fleury, quer Raul Glaber prevêem para o ano mil "a vinda do Anticristo" e um tempo derradeiro de "grandes atribulações" (G. Duby, 1986:22). A estas manifestações associam-se grandes peregrinações de massas à terra santa (à Jerusalém escatológica e eminente), quer no ano da paixão (1033), quer em 1064, quando uma segunda grande manifestação de exaltação popular antecedeu o novo tipo de actualização escatológica que o Papa Urbano II iria desencadear: as cruzadas. Os tempos dominadores de Gregório VII (que acompanham a polémica entre o Papa angélico e o último imperador - ambos encarnando um actante salvador-tipo da literatura profética), na passagem do séc. XI para XII, ou seja, na sequência da Concordata de Worms (1122) e do Concílio de 1123, constituirá, por si, uma travagem do que quase podemos considerar ser uma constante dos textos proféticos medievais: a obsessão do fim eminente. A tentação da instantaneidade escatológica imediata, ou, no quadro do presente época, - a súbita dilatação do tempo na eternidade.

            Num  mundo em que as semióticas do mundo natural coincidem com Deus, tudo é sinal, ou índice, ou vestígio de uma mensagem divina endereçada à humanidade. J. Kristeva em Recherches pour une Sémanalyse (1969) refere-se à transição que, lentamente, se efectua a partir deste mundo do "Divinatio" (O. Niccoli, 1990:13), segundo a fórmula da "transição do símbolo ao signo" (ibid.: 116-118) que teria durado do século XIII até aos alvores do século XVI. Para M. Foucault (1988:113), por seu lado, esta lenta transição entre uma prática semiótica cosmogónica e uma semiótica dependente de códigos puramente humanos só, de facto, se corporizará a partir do séc. XVII. Apesar das diferentes interpretações sobre a recolocação do paradigma escatológico, o certo é que este sistema globalizante atinge o seu auge, ou como referiu N. Daniel (1975:112) - "a last burst of apocalypticism" -, no período que precede (e sobretudo prolonga) a emergência otomana.

            Com efeito, e como ilustrou H. Schwartz (1992), a Europa de finais do séc. XV foi inundada por uma praga alarmante de inúmeros almanaques e Prognostica de condenação - "...os europeus estavam então decididamente convencidos do fim" (ibid.: 93). J.-Le Goff (1984:444) considera, por seu turno, que a tensão caracterizadora deste período tem como base uma digladiação entre expectativas optimistas e pessimistas que se desenham à entrada do séc. XVI. Por um lado, a crença (instantânea) do advento e da idade da paz que sucederia às atribulações dos diversos signos: a peste, os cismas, as sucessivas vitórias turcas; por outro lado, a enunciação da eminência do castigo e do fim do mundo. Mas este período de guerra profética, dominado por uma autêntica ars moriendi (povoada por híbridos monstros e por uma desabrida retórica do terror), opondo mundos escatológicos distintos (o Islão e a Cristandade) e mundos distintos do mesmo paradigma de natureza escatológica (refiram-se os cismas e as disenções romanas), não é senão a confluência de um longo caminho anterior que, como acima se disse, precede e prefigura a conquista de Constantinopla de 1453. Passemos, portanto, a exemplificar com algumas das manifestações da cultura escatológica da instantaneidade deste período.

            Teremos necessariamente que iniciar os nossos exemplos ainda numa data remota, ou seja - entre 1135 e 1202 -, tempo de vida de Joaquim de Flora. O autor concebeu um esquema tipológico, através do qual tentou recodificar o tempo histórico, ordenando-o de acordo com três grandes idades - a do Pai (de Adão ao séc. VII A.C.), a do Filho (em curso na época) e a do Espírito Santo (a do futuro escatológico) - que teriam relações homológicas e também substanciais entre si, no quadro das sete sub-divisões prescritas para cada uma. Esta necessidade de ordenação do tempo e da experiência - face ao "quando indeterminado" escatológico - acabou por não ser imune a súbitas visões eminentistas e instantanistas. Vivendo ainda no tempo da disputa regnum-sacerdotium, Joaquim de Flora acreditou na vinda para breve do Anticristo, reservando para a figura de um Papa Angélico e para grupos de espirituais e eremitas o protagonismo da vitória escatológica final (com que a terceira idade da história, entretanto, se entreabiria). Curiosamente, na conclusão do conhecido The Pursuit of the Millenium, N. Cohn (1980:231), ao tentar resumir as linhas de força que motivaram, entre os séculos XI e XVI, os movimentos milenaristas (incluindo os do milenarismo igualitário), referiu o facto de os "prophetae" terem construído "o seu aparato apocalíptico a partir dos mais variados materiais - O Livro de Daniel, o Livro do Apocalipse (de João), os Oráculos sibilinos, as especulações de Joaquim de Flora e a doutrina do Estado Natural igualitário - todos eles reinterpretados e vulgarizados". E, a rematar, o autor conclui: todo "esse aparato (profético) seria transmitido aos pobres - e o resultado seria ao mesmo tempo um movimento revolucionário e um despertar do salvacionismo quase religioso".

            Esse vasto movimento profético (escrito e veiculado oralmente através do continente europeu, mas também ligado à práxis mais imediata dos movimentos revolucionários) é vastíssimo e tem em comum uma apetência pela instantaneidade, na medida em que exigia e apelava hic et nunc pela absoluta justiça do fim dos tempos. Como exemplos apontaremos os Fraticelli (dissidentes dos franciscanos e adeptos de um apocalipticismo radical, - ligado à figura de S. Francisco de Assis), o Apocalipse taborita (no final do séc. XIV, na Europa Central), o Milenarismo igualitário alemão do século XV (sobretudo no sul e nas zonas confinantes com a Boémia), o movimento Hussita, as Seitas do livre espírito defensores do Estado Natural e a práxis das Revoltas camponesas (Jacquerie de 1358, a da Flandres Marítima de 1323 e 1328 ou o levantamento inglês de 1381), onde se aliaram reivindicações sociais a outras que postulavam uma predestinação inspirada no sentido de "guiar a humanidade através das convulsões dos últimos dias" (ibid.: 169). Inspirando uma mesma cultura da instantaneidade, contam-se entre as imensas profecias (escritas) neste período, por exemplo, o Pseudo-livro de Fiore (com uma edição de 1304 e uma outra da autoria dos Fraticelli, já de 1340); a Árvore da Vida de Ubertino de Casale (1259-1330) - segundo Leff Gordon "a complete franciscanizing of the apocalypse" (1967-I:65) -, onde o Papa angélico derrota na derradeira batalha escatológica o Anticristo; Várias reedições (manipuladas) da já referida Sibila Tiburtina e a própria Profecia do segundo Carlos Magno (de Guilloche de Bordéus, de finais do século XIV, - uma das mais difundidas e intertextualizadas no século seguinte, atribuindo a Carlos VIII de França um papel decisivo nas lutas finais eminentes).

            Poderíamos referir muitas outras profecias com idênticas tendências, analisadas noutra perspectiva, em estudo anterior (L. Carmelo, 1995). O. Niccoli em Prophecy and People in Renaissance Italy, por seu lado, descreve detalhadamente o percurso deste movimento profético de características pré-utópicas (já que define mundos imaginários, embora subordinados a um código escatológico determinado, recriando isotopicamente a reivindicação de uma salvação instantânea, imediata, como se o mundo subitamente se tornasse irrespirável). Para a autora, em Itália, o movimento (com estas características) acaba na década de trinta do século XVI. Não será esse o caso na Península Ibérica e na Europa Central, mas o século XVI verá, de facto, a escatologia distanciar-se, a pouco e pouco, da sua condição paradigmática - e até espistémica - de "grande código" (N. Frye, 1984). Outras modalidades globalizantes virão partilhar o seu espaço legitimador, remodelando o horizonte exclusivo, a partir do qual os imaginários sociais e históricos eram projectados. É disso que nos ocuparemos na secção seguinte.

 

 

2. O quadro utópico

 

            A Profecia do segundo Carlos Magno, acima referida como uma das mais importantes dos finais do séc. XV, viria a adequar-se, numa das suas realizações práticas (aliás como muitas outras), a um acontecimento importante do real histórico. Tratou-se, com efeito, da conhecida invasão do rei de França, Carlos VIII (1483-1498), ao Reino de Nápoles (1494), que, em terras transalpinas, acabria por ser interpretada como o primeiro passo para a conquista de Jerusalém e, portanto, como o início das várias etapas escatológicas conducentes aos novos tempos. O rei Carlos VIII viria, de facto, a ser recebido euforicamente na cidade de Florença como mito actualizado do último imperador predestinado. Savonarola, o conhecido porta-voz deste apocalipticismo instantâneo, esteve no centro da "self-fulfilling prophecy" (M. Herzfeld 1982:169)[15] que, durante alguns meses, conseguiu fazer da Florença humanista o centro escolhido "of divine illumination" (...) "not only to warn Italy of the tribulations which had now come, but also to lead her out of abdomination and desolation" (B. McGinn, 1979:278).

            Este terminalismo optimista colocou, no limiar do séc. XVI, a população inteira de uma cidade como Florença à espera do decisivo sinal, como se uma nova ordem igualitária pudesse subitamente descer dos céus para cumprir, de vez, as promessas prescritas pelo "grande código" escatológico. No entanto, Savonarola acabaria em desgraça e a sorte das suas profecias (e das de Guilhoche de Bordéus, entre outros) viria a ser igual às que, por exemplo, de modo massivo, até 1524, falharam no prognóstico do grande e derradeiro dilúvio universal (devido à conjunção planetária, no signo peixes, ocorrida em Fevereiro desse mesmo ano[16]). É evidente que, como atrás se disse, desde as Jacqueries do séc. XIV até ao início do séc. XVI, estes movimentos da instantaneidade escatológica eram simultaneamente movimentos envolvidos pelas conturbações da ordem económica e social (como também ocorreu na Florença de Savonarola). Não se nota, neles, com efeito, uma dissociação clara entre ambas as esferas, já que o imaginário social acaba sempre, em última análise, por projectar os decisivos parâmetros do "grande código" escatológico. No século XVI, todavia, constata-se uma alteração neste estado de coisas.

            O primeiro signo de uma autonomização efectiva do imaginário social, dissociando-se de um "grande código" marcadamente escatológico, surge - ainda que involuntariamente - com a Utopia de Thomas More (publicado em latim, na cidade de Lovaina, em 1516). Subitamente, imagina-se um nenhures, ou seja, um espaço insular idealizado, espécie de não-lugar onde a vida comunitária é perfeita, de acordo com uma expectativa de felicidade da existência e de abundância, segundo as responsabilidades de liberdade de culto religioso, de harmonia perfeita entre instituições e costumes e, por fim, de ausência de propriedade privada. A Utopia de More constrói, pela primeira vez na história (euro-ocidental), um cenário de vida ideal - dissociado de uma necessária imagem de Deus ou, pelo menos, das etapas divinamente consideradas como necessárias para se atingir um Eden. Subitamente, esse mesmo imaginário de paraíso é agora povoado pela autonomização absoluta da imaginação humana. Independentemente da pragmática e da hermenêutica do texto em questão, o certo é que ele institui uma nova arquétipa globalizante que parece corresponder a uma necessidade de ajustar a vida e o quotidiano a um devir que os transcenda, mas que, ao mesmo tempo, lhes atribua um significado, ou seja, uma legitimação última.

            Há autores que estabelecem uma relação directa entre More e o caso de Tomás Muntzer que, na década de vinte do séc. XVI, passou pelas cidades de Zwickau, Praga e Allsted (na Turíngia), apresentando-se como Mensageiro de Cristo e defendendo que os pobres eram os eleitos, tendo como missão "inaugurar o Milénio igualitário" (N. Cohn, 1970:199[17]). A diferença entre a mensagem de More e a de Muntzer é grande, no entanto. Para J.-M. Goulemot (1979:474), Muntzer cria a ideia de uma "cidade nova, revelada e oferecida pelo verbo", enquanto que, para More, a "representação da alteridade social" é já "inventada, instituída pelo acto da escrita que funda e constrói, simultaneamente, aquilo que existe no espaço ficcional da narrativa, esse centro a partir do qual se organizam todas as redes" (diegéticas) "que unem as ideias-utópicas às outras formas de imaginário" social, portanto, de características extra-textuais. Se houver homologias entre ambos os casos, elas decorrerão sobretudo da topografia e dos temas sonhados, ou seja, da alteração da ordem dominante; do igualitarismo anunciado e até do próprio regime de propriedade privada. Haverá eventualmente conotações históricas entre os dois fenómenos, mas, seja como for, Muntzer é ainda decisivamente inspirado pelo milenarismo escatológico, enquanto que More frui já uma nova forma de imaginação, desprendida de horizontes previamente estabelecidos (embora haja, naturalmente, no texto da Utopia, elementos simbólicos da Bíblia, mas que devem ser interpretados enquanto povoamento retórico-discursivo).

            O novo germe de paradigma globalizante - este recentíssimo espaço da utopia - contém, em si, uma identidade e uma modalidade de elocução novas que, percorrendo várias fases modalizadoras, nos conduzirá até à modernidade. Vamos seguir esse percurso, começando por delimitar um conceito para este novo lexema criado por Thomas More, a partir da imaginação de um nenhures. Para B. Baczko (1985:333), a utopia funda-se num desejo de recomeçar a história, reatando mitos ligados ao ideário do paraíso perdido, ou de uma idade de ouro a revisitar. Este olhar, criado a partir de um lugar inexistente referencialmente (tendo, portanto uma existência absolutamente imaginária) - o “nenhures”, para K. Mannheim (1936) - tende a transcender a realidade que - através dele - se alegoriza, tornando-se, no entanto, realizável, na medida em que pode "irromper a espessura da realidade". Correspondendo a uma suspensão do real (no quadro da “neutralização”[18] husserliana), a utopia é, para C. Geertz (1973), um "sistema simbólico abarcante" que, contudo, não obedece a um programa, ou seja a "um conjunto de sentidos directamente inteligíveis" (ibid.: 209).

            Quer E. Noel (na entrevista de F. Chatelet, em Uma história da razão -  1993:78), quer B. Braczko vêem em O Príncipe de Maquiavel um "esboço de utopia" (1985:345), não só pela contemporaneidade da sua escrita face a More (redigida em 1514, embora só publicada em 1532), mas também no que concerne, sobretudo, a projecção ideal de um estado criado na terra (através da imaginação) e não a partir de uma visão teleológica e celestial (como nos casos da Savonarola ou Muntzer). No entanto, foi K. Mannheim, no seu Ideology and Utopia de 1936, quem descobre, na história das utopias, uma continuada isotopia do que temos considerado ser uma cultura da instantaneidade. Procurando o início do facto utópico, não em More, nem em Maquiavel, mas antes em Muntzer, o autor sublinha um parâmetro teórico fundamental para a sua escolha, ou seja, - a "realização histórica" de um sonho de características utópicas (embora podendo conter filiações milenaristas-escatológicas) em associação a "estratos sociais oprimidos" (ibid: 58) é que acaba por conduzir ao cumprimento do  próprio desígnio utópico (ou seja, a construção desse nenhures imaginado, capaz de suplantar e inverter a própria ordem reinante, independentemente das presentes expectativas de transcendência).

            Numa das lições de P. Ricoeur (proferidas na Universidade de Chicago) sobre K. Mannheim (1991:445-466), o autor comenta e explica do seguinte modo a exequibilidade da tese do autor: "O que confirma a escolha deste ponto de partida é a sua influência contínua, e esta inclui a sua ameaça persistente às outras formas de utopia. A utopia quiliástica desperta contra-utopias, mais ou menos dirigidas contra a ameaça do ressurgimento desta utopia fundamental. As utopias conservadoras, liberais e socialistas encontram todas elas no anarquismo da utopia quiliástica um inimigo comum. Para Mannheim, há uma linha que pode ser traçada de Muntzer a Bakunine" (...) "o que é específico ao sentido nesta utopia, e talvez em todas as utopias que dela decorrem, é o repentino caminho aberto entre o absoluto e o imediato aqui e agora[19]" (ibid.: 455-456).          Estaremos no centro criador da cultura da instantaneidade e, sobretudo, na confirmação de que ela se propaga, não já só ao longo de mais de dois milénios escatológicos, mas também no germe da própria continuidade utópica (que, como se disse, virá, mais tarde, a ancorar no seio da modernidade). Por outras palavras: se K. Mannheim sublinha a existência de uma isotopia da instantaneidade, a partir das profecias quiliásticas (realizáveis e simultaneamente ligadas às conturbações sociais), então podemos dizer que essa linha isotópica já se encontrava instalada na produção de imaginários em períodos que antecedem, em muito, a exaltação do Anabaptista Muntzer (nomeadamente, como vimos, em três períodos mais importantes, antes e depois do ano mil e, em períodos mais remotos, nomeadamente durante o período apocalíptico e profético pré-exílico).

 

 

3. Utopia e ancoragem no tempo

 

            O fascínio de Descartes (1596-1650) pelos novos instrumentos ópticos que, no séc. XVII iam surgindo, - "levando a nossa vista muito mais longe do que costumava ir a imaginação dos nossos pais" e, portanto, abrindo "caminho para alcançar um conhecimento muito maior e muito mais perfeito do que eles tiveram" (La Dioptrique, 1963-I: 651) - foi interpretado por P. M. Frade como estando "nos limiares da posição moderna", já que o referente agora se instituía, de vez, no devir, e não no que fora ou "foi conhecido" (1992:30). O experimentalismo então emergente, e que leva Francis Bacon (1561-1626) a conceber que "a exploração sistemática dos recursos naturais do mundo deve ser um empreendimento cooperativo" (o que tem implícito uma configuração utópica), ao serviço de uma "perfeição terrestre" (cit. in A. Rosa, 1996:19), é o sinal de um optimismo muito racionalizante, levado ao extremo por Leibniz (1646-1716), já que, para o autor, o homem habita o melhor dos mundos possíveis (N. Abbgnano, 1994-VII:7-32). O espírito do séc. XVII pode ser sintetizado através de um comentário breve de E. Noel sobre o pensamento de Thomas Hobbes (1588-1679): "Diríamos hoje - e não se trata de uma deformação do pensamento de Hobbes - que o homem é desejo e que nada do que deseja lhe é vedado" (1992:83). Este conteúdo de ilimitado desejo, ligado ao devir e à racionalização progressiva da experiência e do saber, fazem do séc. XVII uma época importante de fermento utópico. Época criadora de uma nova idealização do próprio espaço, não só devido a inventos como o telescópio, mas sobretudo - através das prospecções de Galileu, Copérnico e Kepler -, da idealização de um novo sujeito que Descartes disse ser o sujeito cognoscente, ou seja, “o Eu penso” que a si próprio se concebe.

            No entanto, é no século XVIII que código utópico define novas direcções, novas semantizações e até novas perspectivas de domínio do tempo futuro. B. Baczko (1985:348) descreve, no seu ensaio Utopia, várias tentativas de reactualizar a actividade utópica, durante esse período. Louis-Sébastien Mercier propõe, por exemplo, o termo "fictionner" para o acto genérico de escrever utopias. Um dos tradutores (Nicolas Guedeville) de a Utopia de More chega mesmo a criar um neologismo no sentido de designar a "operação pela qual o real se transformaria em ideal" (1982:54). Mas um dos aspectos mais importantes do incremento das utopias é, de facto, a sua integração em narrativas, atribuindo-se-lhes dimensão diegética autónoma, embora susceptível de cooperar com os argumentos ficcionais propostos. É o caso de Candide de Voltaire (1759), da Nouvelle Héloise de Rousseau (1761), L'an 2040 de Mercier (1770), de Aline et Valcour de Sade (1788) e, claro está, das Viagens de Gulliver (1726). A expressão de Rousseau, no final do Deuxième Promenade de Les rêveries du promeneur solitaire (1770) - "Laissons donc faire les hommes et la destinée" (1994:32) - é talvez o melhor indicador para um outro aspecto, talvez o mais decisivo, das utopias, durante este século das luzes: a sua ancoragem no tempo.

            Isto quer dizer que, desde o paratexto inicial de More, a utopia era concebida como um nenhures, onde se idealizava uma outra ordem, - distante, imaginária, fruto de um sonho basicamente irreferenciado (embora pudesse constituir alegorizante para um dado alegorizado). A partir de agora, e como já acontece no livro de Mercier, L'an 2040, as propostas utópicas passam a recuperar um ajustamento com o devir, facto, aliás, já anteriormente pressentido; A. Ciaronesco traduz essa realidade do seguinte modo: “Pour mesurer utopiquement le progrès, l´accession du genre à l´avenir était indispensable. Le futurible, qui manquait aux dimensions de l´utopie, fit enfin son apparition en 1770, avec Louis-Sébastien Mercier” (1972:193). De certa forma, na teoria das idades da história de Giambatista Vico (1668-1744) - onde esta é subdividida em idade divina, heróica e da razão - pode reler-se a mesma ansiedade tipológica de Joaquim de Flora, embora, agora, inscrita no âmbito globalizante de uma utopia “futurible” (e não no do puro imanentismo escatológico), isto é, - num cenário idealizado, onde o homem espera "uma coisa superior que o venha salvar" (in Scienza Nuova, cit. in N. Abbagnano, 1994-VII:43). O tempo, e sobretudo o futuro, passa assim a constituir o referente, ou melhor, o "topic" (U. Eco, 1979:92), para os textos utópicos (que, portanto, a ele se passarão a adequar, numa franca recuperação do continuismo linear histórico).

            Esta modalização do modelo da utopia desembocará, no século XIX, como refere B. Baczko (1985:365), numa "grande massa de textos utópicos" (...) "constituída por livros, ensaios, jornais, etc., que expõem sistemas de reformas sociais apoiados numa crítica mais ou menos radical da sociedade contemporânea, numa filosofia da história, numa reflexão religiosa ou ainda em análises económicas". Contudo, há nestas novas tendências utópicas, do início do século XIX, ingredientes inovadores (e que nos remetem para a continuidade de uma cultura da instantaneidade): "as utopias são agora avançadas como outras tantas soluções a aplicar hic et nunc, a fim de responder à crise que aflige a sociedade e, designadamente, às consequências nefastas da urbanização crescente e da industrialização" (ibid.: 366). Tentando precisamente responder às novas relações criadas pela crescente industrialização, Saint-Simon agita, então, pela primeira vez, a ideia de fim de estado, - utopia que "é canalizada através do programa de Bakunine e (que) continuará a fazer parte do horizonte utópico do marxismo ortodoxo" (P. Ricoeur, 1991:484). Por seu lado, Fourrier, numa empatia com Rousseau (e até com Vico), é antes apologista da restauração de uma natureza inicial que teria sido subvertida, corrompida. A ideia de que são as paixões e o prazer que devem, num futuro de "deleite", governar a vida - no que P. Ricoeur designa como uma "antecipação" do id freudiano (ibid.: 494) - consagraria a restauração paradisíaca e a consagração de um estado puro e original, ao invés de Saint-Simon que se limita a projectá-lo no futuro, reinventando, para tal, o próprio sentido historicista e teleológico do Cristianismo.

            Apesar de o século XIX emprestar às utopias novas configurações - sendo a mais importante a sua incorporação em novos sistemas globalizantes, as ideologias -, não devemos prosseguir sem antes revermos, ao nível da práxis, algumas manifestações de instantanismo que, na continuidade, acompanham, com consistência, a lenta modalização utópica. Referir-nos-emos, assim, a três momentos históricos axiais, no sentido de compreendermos e relativarmos a progressão do que designamos por cultura da instantaneidade: as revoltas camponesas (em França) do séc. XVII, a emergência da revolução francesa e, finalmente, a emergência das utopias nacionalistas.

            Quanto às revoltas de seiscentos, contemporâneas do desenvolvimento do novo estado moderno, têm sobretudo como alvo imediatista a questão dos impostos (no quadro dos, então, novos paradigmas fiscais). No entanto, a par desta reacção mais imediata em relação às condições contingentes do quotidiano, estas revoltas abandonam rotundamente o leitmotiv milenarista e escatológico, recriando antes o imaginário de um reino diferente, considerado livre, sem impostos e dirigido por uma realeza justa. A imagem do príncipe - ou do rei - é respeitada, não se poupando, no entanto, os putativos assessores que o aconselhariam e, portanto, desenvolvendo-se uma quadro utópico onde se procura reactualizar (de acordo, por exemplo, com o que viriam a ser as nostalgias utópicas de Fourrier ou Rousseau) um estado puro e perfeito, situado algures no passado (sendo personificado, por exemplo, num Henrique IV). Estas revoltas exigem geralmente a realização imediata das suas reivindicações (sem grande sintaxe programática e, por isso, claramente utópicas) e remetem o protagnismo para figuras anónimas, caso da sublevação nus-pieds (1639), assim anunciado: “João Pé-Descalço é o vosso apoio./ Ele vingará a vossa disputa/ Libertando-vos do imposto" (...) "Para impôr na Normandia/ Uma perfeita liberdade" (cit. in B. Baczko, 1985-2:317). Desde os anos vinte do século XVII, com a revolta dos Croquants (Quercy, 1624), às de Périgord (1637) até, de novo, em Quercy (já em 1707), estas rebeliões retomam a tendência instantânea de recolocar hic et nunc a realização do "grande código" - neste caso o utópico.

            Quanto à Revolução francesa, não nos cabe senão assinalar um elemento particular que, no entanto, nos parece importante no âmbito que estamos a abordar. Trata-se da aplicação de um dos fundamentos definidores da utopia, de acordo com a noção de M. Eliade (1970:54 e 1963:121), ou seja, - a utopia como desejo de recomeçar a história e, portanto, de abruptamente reinstaurar um novo início. No caso vertente, o dia 14 de Julho, data da tomada da Bastilha, marca esse dia emblemático em que, ritualmente, se emprestou à sequência da sublevação (do Verão ao Outono de 1789) um sentido globalizante, afectando-o de único, irrepetível e, sobretudo, reiniciador. Não só a contagem do tempo adquire novo sentido a partir de então (sendo legalmente instituído através dos decretos de 5 e 24/10/1793 - E. Berl, 1965:5), como vários símbolos acompanham esse mesmo desejo de um recomeço radical e absoluto: a insígnia (cocarde), os altares da pátria ou a própria árvore da liberdade. Por seu turno, o domingo suprime-se e cria-se uma nova sintaxe para a noção de semana, assim como as comemorações dos primeiros anos pós-evento tendem a ritualizar (e a interiorizar colectivamente) uma nova ideia utópica de fraternidade geral.

            Este instantanismo dos chamados sans-coulotes - que se prolonga para além do 9 Thermidor (em Julho de 1794), assenta na ruptura temporal e no anseio de atribuir ao devir um horizonte utópico, mas sempre recriado na práxis mais imediata e presente. Estaremos talvez, e retomando um outro estudo de M. Eliade (1975), perante uma hierofania do recomeço (reatando, por exemplo, em termos de estrutura profunda, outros momentos ímpares e iniciadores do curso do tempo, como, as revelações de Cristo ou de Muhammad), mas agora libertas de um horizonte escatológico. Como M. Elchardus afirmou, a propósito dos sistemas de ordenação temporal, duas condições devem ser cumpridas para uma reavaliação do discurso sobre a duração: "Some potential unique events must be constituted as, or taken to be" e "These events must be ordered, at least by the elementar distinction before and after", já que "temporal meaning is a dimension of meaning that interprets reality by using these properties" (1987:12). De facto, quer o evento e a sua natureza ensimesmada, quer a reordenação temporal daí decorrente, quer até a nova dimensão significativa estão concomitantemente presentes neste reinício.

            A localização (idealizada) de um novo estado perfectível, equilibrado e justo, está agora claramente colocado neste planeta, no agora-aqui da "utopia realizável" - recorrendo à expressão de K. Mannheim, e não no além escatológico, após um inevitável e pressentido fim do mundo. Esta mudança paradigmática, no quadro dos "grandes códigos" totalizantes, é também aferida, em Portugal, anos antes da Revolução francesa. Com efeito, na sequência do terramoto de 1755, Pombal mandou fazer, ao longo do país, o que foi designado por Interrogatórios, no sentido de recolher informações sobre a duração do terramoto e sobre o número de réplicas sentidas. Das centenas de respostas (depositadas no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, M.R., maço 638 - e estudadas por A. Rentes Florêncio - 1988) apenas cerca de 5% revelam ter então acreditado numa (inevitável) eminência do fim do mundo.

            Da Revolução francesa emerge também um novo conceito de Pátria associada ao Estado-nação, acabando por imputar uma dimensão utópico-épica às comunidades (dir-se-ia hoje "às culturas"), levando-as a um novo esforço de inventário e pesquisa, ou seja, a uma inovadora auto-representação, capaz de sintetizar um (singular) percurso desde as origens remotas até a configurações actuais e idealizadas (situadas, portanto, num tempo presente e, também, futuro). As lutas pela independência da Grécia, o movimento nacionalista polaco (posterior à insurreição de 1830) e os tratados utópicos que desenvolvem visões de uma futura pátria judaica (caso de Roma e Jerusalém de Moses Hess (1862) e das utopias de Herzl relativas aos kibbutz) são disso exemplo. Como o são também o culto a Camões que ocupa os conturbados anos do início do Século XIX em Portugal: o Requiem de Bomtempo, o Camões de Garrett e a estátua do poeta no Chiado são signos desse novo sentido de partilha (e auto-reconhecimento colectivo). As utopias nacionalistas desenvolvem-se desde o início do século XIX - e, seguindo a proposta de F. Baumer (1990:23), - logo desde a primeira das suas quatro fases, ou seja, no "Mundo Romântico", onde esse imaginário é já claramente florescente: "Para a maior parte dos românticos, especialmente depois da Revolução, a nação ou o Estado-nação constituía a forma mais elevada de organismo social. Por isso" (...) "o Romantismo, de facto, contribuiu mais para a ascensão do nacionalismo, que se tornaria em breve um dos maiores mitos modernos, do que os Jacobinos ou Napoleão" (ibid.: 46). Com efeito, as guerras nacionalistas do séc. XIX (mas não só!) são, para além de outros desígnios ponderáveis, sobretudo grandes manifestações de instantaneidade utópica, pois exigem hic et nunc o cumprimento (às vezes semantizado de predestinação) do novo paradigma.

            Seguindo ainda a tipologia de F. Baumer (1990: 59-87), a segunda fase do século XIX prolonga-se, cronologicamente, até a uma linha divisória compreendida pelas datas de 1848 e 1859. Este é, segundo o autor, o período mais optimista do século - banhado pela decisiva esperança na sistémica científica - e, sobretudo, pautado pela consolidação da ideia de progresso; habitado pelo positivismo, pelos jovens hegelianos, pelos chamados realistas na arte e na literatura e ainda pelo novíssimo instantanismo fotográfico. Durante esta fase, Hegel morre, em 1831, e surgem as primeiras obras de Marx, escritas entre 1842 e 1848, bem como o Manifesto Comunista, publicado neste último ano. As ideologias batem-nos agora à porta e, por isso, cumpre-nos, antes de mais, descrevê-las e, num segundo momento, articulá-las com a proposição utópica (agora já com mais de quatro séculos de história), pois é no quadro dessa articulação polemizadora que o século XX irá emergir.

 

 

4. O quadro ideológico

 

            Para Karl Mannheim (1936:74-6), a teorização de Marx contribui decisivamente para uma concepção "abarcante" de ideologia (ou seja, "globalizante", no mesmo sentido em que o termo tem sido empregue quando aplicado aos outros "grandes códigos").  A ideologia deixa, assim, de se relacionar com o espírito dos idéologues franceses que, em setecentos, advogavam que a filosofia, ao invés de se fundar nas coisas, se devia apenas fundar em ideias. Pelo contrário, a ideologia, agora, passa a corporizar a ideia de uma visão global do mundo (por oposição ou dissimetria, criando, de raíz, uma alteridade essencial) e que se assume como estrutura total característica de uma "formação histórica concreta, incluindo uma classe". Estamos perante uma nova concepção de sistema geral de ideias e valores, isto é, um autêntico programa sintacticamente arrumado, hierarquizado e fundamentado que - retomando Max Weber (como Geertz e Mannheim muito citado por P. Ricoeur nas suas lições de Chicago (1991:83) - tem como papel legitimar uma autoridade, um poder. Nesse sentido, a ideologia é uma distorção (ou uma dissimulação) que, através da prescrição de um "grande código", faz (ou condiciona a) interagir, "não a relação" entre os homens, mas "a maneira como (eles) vivem a relação entre eles e as suas condições de existência" (L.Althisser, cit,in ibid refazer)

            Ao enunciar um discurso sobre o modo de relação entre os homens, a ideologia cria um conjunto de sentidos consistentes e coerentes (enformando semantizações, ou de esperança, ou de estabilidade, ou de desejo de retorno ao passado, ou de idealização radicalizada) que, por sua vez, se projectam em representações de mundos perfeitos (opondo-se à imperfeição histórica acumulada). Deste modo, as ideologias acabam, aliás como a escatologia e a utopia (embora, neste caso, o seu mundo perfeito seja sempre volátil, informe, quase absoluto), por se adequar à historicidade, legitimando o presente, através de uma batalha conducente ao derradeiro patamar da realização colectiva. Ao referirmos o lexema “batalha”, referimo-nos ao próprio berço da noção de ideologia, ou seja, continuando a citar K. Mannheim (1936), referimo-nos a uma das essências da própria modernidade: o progresso realizado por sucessivas oposições (no caso de Marx, opondo, em primeiro lugar, a construção hegeliana - ou, por exemplo, a ideia de religião - a um novo real, levando a cabo uma inversão, e, depois, em segundo lugar, opondo a noção de ciência, que adopta, ao que passa a designar por ideologia, embora, aqui, no sentido que lhe é atribuído pelas utopias de Saint-Simon ou Fourrier). Esta nova forma de mediação da acção social que é a ideologia, articulando uma representação da sociedade e as interacções que lhe são intrínsecas, acaba por assegurar um nível de integração social e imaginário, aliás vital, quer para o equilíbrio do próprio presente, quer para a projecção num futuro perfectível que enuncia.

            Para B. Baczko (1985-2:302) o "termo ideologia" apenas adquire o seu sentido actual por volta de 1850, como também a noção de “progresso” só é colectivamente apropriada, como tal, no terceiro quartel do século XIX (ibid., 1985-1:372). No entanto, a sua legitimação é muito anterior, já que, ao longo do mundo dominantemente utópico, e, também, ao longo do incremento da racionalidade, ela vai surgindo. Desde Maquiavel a John Locke e até Hegel, a visão da autoridade e do poder vai-se deslocando no sentido da inevitável inversão ideológica. K. Mannheim vai mesmo muito mais atrás, na captação de uma raíz para o modelo ideológico. Levado pela lógica da dissimulação acima descrita, ou seja, da falsa consciência derrogatória, o autor cita o profeta Baal do Antigo Testamento e, no âmbito da cultura moderna, refere-se a Maquiavel (por ter iniciado o "processo de suspeita sistemática" - opondo praça pública e palácio); a Bacon (a partir da sua teoria dos ídolos), a Hegel (já que, na Filosofia do espírito, se refere às distorções de linguagem para uso político) e aos já citados idéologues. Concluindo, e pesem as relativações possíveis, é um facto que, na segunda metade do século XIX - e talvez durante um pouco mais de um século -, a ideologia se converte num novo "grande código" (embora articulando-se intimamente, como veremos de seguida, com os outros "grandes códigos", até agora referidos e, a partir dos quais, aliás, é estruturalmente gerado).

            Segundo F. Baumer (1990: 248/9), entre as ideologias que, a partir do terceiro quartel do século XIX até ao século XX, se foram afirmando, contam-se o comunismo, o liberalismo e o fascismo. Como se disse, é num quadro de oposições, quase sempre irredutíveis, que estes sistemas ideológicos se desenham, embora concomitantes com outros que deles são sucedâneos (caso do liberalismo histórico associado aos ideários cristãos de Jacques Maritain, dos socialismos democráticos ou de casos particulares, híbridos e aberrantes, como o Nazismo, por exemplo). O final do século XIX - pautado pela dúvida, pelo agnosticismo, pela morte de Deus, mas sobretudo pela cultura do devir - reservava o século XX como receptáculo ideal das grandes esperanças e realizações do “progresso”. O domínio da natureza e do tempo, o incremento industrial, demográfico, científico e artístico disso eram garantias, aparentemente, credíveis. Embora a primeira modernidade e o próprio século XIX, na sua observância simbólica, só terminassem no final da primeira grande guerra mundial, o certo é que as manifestações da cultura da instantaneidade se foram sempre propagando (com mais intensidade, pelo menos, até ao limiar do grande conflito do século - a segunda grande guerra mundial). Antes de analisarmos a continuidade dessas manifestações, abordaremos, de seguida, as relações que a ideologia mantém, à época, com o ecletismo utópico (o qual persistirá ao longo das várias modernidades) e com o primeiro dos "grandes códigos" - a escatologia.

 

Comecemos por citar Y. Bonnefoy para referir que o Cristianismo (e também o Islão) são religiões "à temps orientés" (cit. in L. Carmelo, 1995:145). Ou seja, projectam o cenário ideal de salvação num futuro situado no além, legitimando o presente e o passado de acordo com uma estrita linearidade histórica. No entanto, e como adianta E. Noel (1993:125), "...estamos hoje numa civilização integralmente histórica" embora essa "consciência histórica seja um facto tardio" (...) "data do século XVIII". Este "elemento constitutivo do nosso ser", que é a historicidade, no entanto, é justamente o que se acopla ao "grande código" utópico quando, justamente no século das luzes, como vimos, (ele) se ancora à história (deixando de apenas configurar um nenhures ideal, para antes passar a imaginar um algures, capaz de povoar o futuro para que a humanidade inexoravelmente tende). Esta mesma visão, assente na linearidade histórica, virá a constituir o suporte de todas as ideologias, agora de acordo com programas sintacticamente "fundamentados, arrumados e hierarquizados" (tendo em vista integrar e legitimar poderes instituídos). Pode-se, portanto, dizer que todos os três "grandes códigos" decorrem de uma mesma representação baseada na linearidade temporal, desembocando, ou na eternidade, ou "num ponto de ómega" - segundo a expressão de Teillard Chardin - perfeitamente imaginário, ou ainda na padronização de um futuro (harmónico) tido como resultado de uma projecção real, irredutível e definida de forma (pretensa ou assumidamente) racional.

            Se esta estrutura continuista é, de facto, comum aos vários paradigmas até aqui observados, vejamos agora o tipo de relações que a ideologia e a utopia desenvolvem entre si. Por um lado, a utopia é incorporada nos vários sistemas ideológicos, na medida em que se torna na componente de crença ou de sonho que acompanha a racionalização do programa proposto. Nesta medida, a utopia torna-se num instrumento das ideologias, pois estas acabarão sempre - de modo complementar - por remeter para uma dimensão também imaginária e poética, mas sobretudo mobilizadora (entendendo-se, neste caso, a utopia com um puro prolongamento ou aditamento natural do sistema ideológico). Por outro lado, se é verdade que a ideologia tende a deter monopolisticamente, e de acordo com uma pré-definição dos limites, a própria inventividade utópica -, também não é menos verdade que, como reserva, a ideologia tende a reservar uma dada autonomia para a realização utópica. Este facto acentua-se particularmente em momentos de discussão ou de dúvida (possível) face ao funcionamento - ou deficiente exequibilidade - da ideologia. Por exemplo, num discurso que reoriente a firmeza ideológica, é possível clamar: - Não foi para isto que, durante tanto tempo, lutámos por tais ideais, pois, se nos lembrarmos, sempre defendemos x, y e z. Estes constituintes (x, y, z) - que deixo aqui em abstracto - traduzirão o elemento imaginário e autónomo que, agora, sustenta a própria revalidação (e reavaliação) do aparelho ideológico em crise. Uma tal autonomia é, pois, retoricamente, uma espécie de concordância parcial a que se sucederá a argumentação mais pertinentemente ideológica. Talvez, ao fim e ao cabo, seja apenas uma questão discursiva (em primeiro lugar, sintáctica e retórica) que estabelece a frágil e, por vezes, contingente fronteira entre ambos os códigos.

            Outra interpretação, com algumas correspondências com as anteriores, é a enunciada por K. Mannheim (1936: 195/197). Para o autor, enquanto a ideologia é (por razão de ser) "estéril" ou estática, já a utopia, por seu lado, é animada de uma dinâmica capaz de alterar o estado de coisas real, ou seja, - é essencialmente "realizável". A explicação para este facto é clara: se a ideologia se atém à lógica dominante de poder - e, portanto, a um certo imobilismo ou resistência - já a utopia, por seu lado, catalisa e potencia antes valores (não rigorosamente proposicionais), mas que acabam, mais cedo ou mais tarde, por vingar, isto é, por serem integrados - ou adequadamente filtrados - no sistema ideológico. Estaremos, assim, face a Janus bifronte: de um lado, a ideologia com a sua actividade preservadora e dissimuladora, velando por uma ordem de valores; por outro lado, a utopia com o seu dom de escape, de desejo, de crença construtiva. Se a própria ideologia liberal acredita num sistema maduro e equilibrado (desenhado, por exemplo, a partir do modelo da "sociedade aberta" de Karl Propper), é porque a utopia liberal se funda numa noção de tempo onde "a história é (vista) como a vida individual, com infância e maturidade, mas sem velhice e morte. A ideia é a de que há um crescimento no sentido da maturidade" (P. Ricoeur, 1991:457). O mesmo se poderia dizer da noção de liberdade (um conceito utópico desde o século XVI) que, a pouco e pouco, com resistências inevitáveis, foi sendo reinscrito nos vários aparelhos conceptuais ideológicos (embora com semantizações, às vezes, opostas - devido à monopolização que a ideologia opera sobre a inventividade utópica, como aliás  já acima se referiu).

            Finalmente, queremos ainda realçar as homologias que se estabelecem entre ideologias e utopias, no advento do pós-primeira guerra mundial. Se as primeiras se debatem irredutivelmente (na teoria, e também na práxis), no quadro da alteridade essencial que as criou, já as segundas, agora, se passam a desdobrar em utopias e anti-utopias (do mesmo modo que, na literatura, no cinema e até na pintura -, o anti-herói da nova modernidade subitamente salta para boca de cena da imaginação humana). É assim que o novo século emerge: articulando, como atrás se referiu, a polemização entre irreconciliáveis oposições - ideologias versus ideologias, de um lado, e utopias versus anti-utopias, do outro. Aldus Huxley, George Orwell, Fritz Lang ou Franz Kafka são, nesta medida, exemplos modelares. Todos eles redescobrem o homem anónimo, descrente, errante e fabricante de sonhos deformados e deformadores dos valores dominantes. A integração do sonho e do imaginário na ideologia passa, de repente, a ser também - desintegração, distância e dissimulação paralela (pois, frente à dissimulação que a ideologia é, forma-se agora uma nova barreira de dissimulação - imaginária - do real). À utopia construtiva opõe-se agora, igualmente, uma utopia devastadora - signo, aliás, dos tempos. Esta tendência de constituição do que designaríamos por alter-ego da nova modernidade vai ser fundamental para a delicada respiração do século XX que, no seu início, não o esqueçamos, - era ainda um território onde se depositavam todas as esperanças do "progresso". Voltaremos a esse alter-ego da nova modernidade (pós- 1918), mas apenas depois de nos referirmos às manifestações da cultura da instantaneidade do período que, até agora, temos estado a tratar: o do "grande código" ideológico.

            A cultura da instantaneidade deve, no presente contexto, ser compreendida como um conjunto de manifestações que exigem hic et nunc o cumprimento do código, muitas vezes sem programa e direcção claros, outras já com a assunção perfeita de um corpus ideológico, outras ainda prolongando lógicas anteriores (como é o caso das revoluções nacionalistas). Mistura de disputa utópico-ideológica, o mundo euro-ocidental, converter-se-á, após 1917/18, num súbito abismo de antíteses - onde as ideologias dirigem contendas, instrumentalizam (fragmentos de) utopias e onde estas se desdobram, como vimos, em anti-utopias.

            Começando pelas revoluções nacionalistas, o rissorgimento italiano, teórico e prático (sob o símbolo de Garibaldi), conduzirá a uma nova ordem pátria, segundo o modelo do estado-nação, a partir de 1861. Uma outra utopia realizável (aliás cantada amiúde pelos poetas), é a que culmina com a unificação da Alemanha, uma década depois, em 1871, através da célebre entronização imperial de Versailles de Guilherme da Prússia. Outros nacionalismos, Checos e húngaros, por exemplo, acompanham este mesmo plano de realização utópica. Entre 1848 e 1860, verifica-se, no entanto, um outro tipo de manifestações. Em Junho de 1848, quatro meses após a revolução de Fevereiro, Paris enche-se de barricadas e os revoltosos, constata-se - "n'ont pas de programme politique précis" (M. - L. Heers, 1974:35). Estes apenas exigem o "fim da miséria", mas são incapazes de definir programaticamente um alvo, - o que, aliás, virá também a acontecer na Alemanha, uma dúzia de anos depois (através do movimento que ficou conhecido pelo nome de "Nihilismo" - termo criado por Tourgueniev em Pai e filho - 1860 - ibid.:166/7). Estes nihilistas apresentam igualmente um horizonte de crença muitíssimo difuso: negam a religião, a moral, a família e a literatura dita "desinteressante". O programa que defendem, no limiar das futuras contra-culturas, parece consistir na remoção de toda a ordem vigente (um pouco como o que, noutro âmbito mais pós do que pré-moderno, acontecerá com a geração que sucede à segunda grande guerra mundial). Não se podem dissociar estes movimentos, no entanto, do anarquismo: Proudhon morre em 1864, mas a produção teórico-prática do movimento é assegurada pelos russos Bakunine, e Kropotkine, preconizando "uma acção imediata, contra a opressão marxista e o capitalismo liberal burguês" (ibid.: 28).

            A comuna de Paris, entre Março e Maio de 1871, é talvez o auge do instantanismo fin de siècle. Na sequência das humilhações sofridas pela França diante dos Prussianos, Paris fecha-se de novo sobre si mesma e, como em 1793, o levantamento de massas impõe a sua nova ordem. Durante dois meses, a revolta tenta recriar um estado nacional composto por várias comunas, acabando, no entanto, a cidade  de Paris por se ver irremediavelmente isolada. Uma mistura de Blanquistas, Anarquistas e Jacobinos compõem a dimensão sobretudo utópica da sublevação, já que a influência marxista é ainda diminuta. O mesmo já não acontece, em 1905, na Rússia, quando, por oposição à revolução democrática, os revolucionários marxistas já lutarão pelo desígnio da "ditadura do proletariado", numa declarada lógica (ideológica) de classe contra classe, desencadeando uma insurreição em Moscovo que, contudo, é derrotada.

            No entanto, doze anos depois, os acontecimentos de Outubro e Novembro de 1917, de novo na Rússia, constituirão, de vez, uma divisa do próprio século XX. Tal como na Bastilha, tudo se torna agora possível e, por isso mesmo, uma vasta onda de utopias envolve subitamente o programa ideológico que subitamente se tenta adequar a uma lógica de poder. Esta exaltação instantanista não é longa, mas percorre uma imensa zona do planeta. Os dez dias que abalaram o mundo de John Reed e o filme O Couraçado de Potemkine de Eisenstein (já de 1925) constituem dois marcos (ou, melhor, dois limites) metafóricos de purismo revolucionário, ou seja, - de um momento histórico em que o devir é contido por uma crença global. A miragem de um destino igualitário é então corporizado, como se se prefigurasse no imediato. No entanto, a guerra dos brancos, as progressivas indecisões da nova ordem institucionalizada, o fim dos sovietes livres (de que a revolta de Kronstad (1921) é signo já de anti-utopia) e sobretudo as depurações estalinistas - consumam este movimento instantanista. Como uma bola de neve, pela Europa e pelo mundo, o impacto da ideologia comunista é grande e, em consonância, os partidos aumentam, enquanto a vaga utópica (muito autonomizada face ao que no país dos sovietes realmente se passa) se impõe como libertadora e até inevitável. Os movimentos revolucionários tais como Spartacus, Rur (1920), Saxónia (1923), o soviete de Hamburgo nesse mesmo ano e a própria insurreição de Sófia, em 1525, entre muitos outros, são disso exemplo. Tudo se passa como se, numa reactivação dos milenarismos do limiar do século XVI, o hic et nunc de uma libertação e igualitarismo augurados estivessem prestes a anunciar-se.

            Mas a década de vinte produziu movimentos opostos, embora, nalguns casos, com participação popular muito grande. O fascista Mussolini, por exemplo, definiria nação como uma "multidão unida por uma só ideia, que é o desejo de existência e de poder" e o estado como "desejo ético universal" (1942:167). Os nacional-socialistas alemães, que vão perversamente transpôr as suas raízes a partir do "Volkish romântico", constituirão um radicalismo anti-civilizacional, levados que são por um aberrante determinismo racista e biológico. Uns e outros, de modo muitíssimo diferente, bem como uma série de países - Jugoslávia, Polónia, Espanha e Portugal, entre 1923 e 1926 - criam ideologias mais ou menos esquemáticas, mas todas enunciadas como eminentemente salvadoras e capazes de devolver ao mundo a instantânea redenção de todos os males (não só, mas sobretudo os causados pela nova ideologia vencedora em Moscovo). Mundo irredutível e de pura dissimulação, onde a utopia se renderia à tal ideia única que Mussolini, um dia, chegou a enunciar.

O liberalismo não constrói nenhuma utopia neste momento da história. Só depois da segunda grande guerra mundial (para "eliminar os vestígios de outra época, o medo mútuo e a protecção de pequenos mercados fechados" (J. Monnet, 1955:45), e, portanto, como reacção à hecatombe e, simultaneamente, como consequência do datado optimismo reconstrutor da Europa, é que uma utopia democrática e também liberal se constitui, na tradição do que poderíamos designar pela "sociedade aberta" de Propper. É claro que nos referimos à utopia da Comunidade Europeia que, como refere F. Baumer (1990:266), ao longo dos anos 70, perderá vigor. O instantanismo, neste quadro europeu do pós-guerra, decorre sobretudo de um horizonte de iminência que assola a Europa, agora subitamente arredada do seu papel de centro do mundo. J. Derrida, numa conferência realizada em Turim, em 1990, disse-o com clareza: "A eminência em 1939" (...) "foi também a de uma guerra e de uma vitória, depois das quais uma partilha da cultura europeia iria cristalizar-se" (...) "O dia de hoje, com a destruição do muro de Berlim" (...) "é a reabertura, a desnaturalização destas partilhas monstruosas. É hoje o mesmo sentimento de iminência, de esperança e de ameaça, a angústia diante da possibilidade de outras guerras com formas desconhecidas, o retorno a velhas formas de fanatismo religioso, de nacionalismo ou de racismo" (1995:121/2). Mas esta "iminência" (com o seu quê de profético) parece já não comportar uma anti-utopia que reagisse a uma utopia afirmativa anterior; neste momento, em que J. Derrida observa a queda do muro de Berlim, o paradigma moderno fundado em antíteses puras (utópicas ou ideológicas) já apresenta, de facto, claros sintomas de crise. Dir-se-ia que parecia diluir-se ante a instantaneidade das imagens da guerra do Golfo que, no ano seguinte, chegariam à Europa via CNN, ou seja, de longe, a partir do exterior (mas com o fascínio de estarem já e aqui).

            Fosse como fosse, o certo é que esta nova modernidade - que se prolonga desde 1917/18 - viria, entretanto, ao longo de anos, a criar, no seu interior, um consistente alter-ego (à sua própria consciência antitética, ainda e sempre inscrita pela modalizada noção de "progresso"), bem como inovadoras formas de instantanismo cultural - que não parecem, pela primeira vez, disputar a emergência imediatista de um "grande código" anunciador de futuras perfeições e harmonias humanas. De facto, o novo tempo - por muitos designado por pós-moderno - de que a Berlim de Asas do desejo de Wenders é metáfora - , já vinha, ainda que subliminarmente, a ser desenhado no seio da própria modernidade, desde o fim da própria Primeira Grande Guerra Mundial. Até porque o homem orwelliano, a catástrofe ambiental, a cultura da guerra, as novas demografias concentracionárias, a progressiva vacuidade dos "grandes códigos" globalizantes e a novíssima ordem tecnológica, para o bem e para o mal, a isso inevitavelmente pareciam conduzir. Por outras palavras: o que, por ratio difficilis, se acabou por traduzir através da polarizadora expressão “pós-moderno” é algo que, com toda a certeza, não acordou depois do meteoro moderno. Pelo contrário, sempre com ele terá coexistido, como se fosse uma vigília necessária, talvez mesmo vigilante.

 

 

5. O alter-ego da nova modernidade (pós 1918)

 

            Uma das primeiras manifestações deste alter-ego radica numa certa consciência do relativismo das coisas (ou na assunção de que "não existe uma natureza humana fixa" - F. Baumer, 1990:187) e, por outro lado, na percepção de que o homem parece, de alguma maneira, estar à deriva - após a súbita descolagem da nova modernidade. Por um lado, o violento debate entre ideologias, por outro lado, o choque entre utopias e anti-utopias acabariam inevitavelmente por gerar um novo estádio residual (teórico e sobretudo no domínio da práxis) animado de conteúdos disfóricos e cépticos. Como, em 1936, Karl Mannheim referira, "a unidade ontológica do mundo ruiu" (ibid.: 66),  já que  a nova modernidade, ao invés de projectar imaginários abertos e descentrados, antes se desdobrou numa pluralidade de oposições irreconciliáveis (nas quais, em todos os sub-sistemas, como até, por exemplo, no artístico, as vanguardas se sucediam, umas contra as outras, em derrogações sucessivas e liminares).

 Esta nova sociedade europeia - mergulhada agora no súbito espírito da velocidade fáustica e meteórica - era um produto das revoluções liberais e industriais do século XIX (embora o real agora adquirido escapasse, de facto, aos imaginários utópicos que antes o haviam sonhado). Ortega Y Gasset sentiu este desfasamento que, após a década de vinte, já se sentia entre um mundo mergulhado pela auto-mutilação das vanguardas, das ideologias, das visões utópicas (e ideológicas) que pareciam em vão realizar-se. Este era, de facto, o primeiro período da história que "nada reconhecia do passado como modelo", como afirmava o autor em A rebelião de massas (1930), rematando: “...o homem tornou-se num ser detentor de grande poder”, mas sem saber o que dele fazer, mergulhado num permanente "sentimento de perda e de insegurança" (ibid.:37). O expressionismo alemão, de regresso aos estúdios e à catárquica geometria das sombras, desenhou primorosamente este homem céptico e preso a um mundo que pareceria dirigido por uma organização oculta, ou por um qualquer móbil secreto. Uma tal fatalidade surge expressa, entre outros, em filmes de Fritz Lang como, por exemplo, Metropolis (1926) e Peste em Florença (filme de 1919, alegorizando o mundo de Savonarola e associando-o ao mundo decadente do próprio presente).

Para E. Cassirer, o autor da Filosofia das formas simbólicas, o que se havia perdido era sobretudo uma "energia central", fosse de ordem teológica, metafísica ou científica, - algo que funcionasse como um ponto de referência, ocupando o lugar de um "grande código" globalizante (que começava a esvanecer-se neste mundo de antíteses e vazios). Talvez, por isso mesmo, o homem se tornasse agora num ser inominável (é esse, também, o nome do romance de S. Beckett) e desconstruído numa pluralidade de buscas e errâncias, em torno de um qualquer espectro de referências (a heteronímia pessoana pareceria, aliás, reflecti-lo). O instantanismo dadaísta, a acção imediata do surrealismo (ao reinventar as sintaxes do mundo, ordenando elementos da irracionalidade, do inconsciente, criando uma anti-utopia religiosa - de que Buñuel é símbolo - e desenvolvendo a escrita automática), os movimentos construtivistas (ironizando a inteligência dos artefactos maquínicos), os futurismos fascinados com a velocidade e com o imediatismo dos manifestos e, por fim, Freud que, tal como Nietzsche, não opera revoluções, "mas deslocamentos de pontos de vista" (E. Noel, 1993:153) - constituem, no seu todo, uma sequência de recolocação do referente. Ou seja, o presente tornava-se, agora, no princípio e no fim; no momento da vertigem onde, por milagre ou metamorfose súbita, tudo poderia emergir (mesmo o que fosse meramente subliminar); fosse o melhor ou fosse o pior.

O triunfo do cinema é o grande símbolo deste "deslocamento" da instantaneidade para a arena absoluta do presente. A ficção torna-se, neste quadro, num rápido flash que há-de revelar as grandes metáforas do mundo e todos os desejos e desafios por realizar (dando corpo a um novo imaginário que se ancora na fruição de um agora-aqui, de que o star-effect do cinema americano de produção, pós-1918, é modelo). O fascínio, a violência, a cegueira e a desconstrução do real serão quatro fragmentos desta nova era, para a qual as grandes urbes construíram uma alternativa vida nocturna, feita para o prazer instantâneo (mas ainda não massificado). Este mundo, por um lado riquíssimo, mas abismado pela crise económica e pela eminência da guerra, já não é o mundo em que Mallarmé concebeu O livro insuperável, mas sim o mundo em que Kafka concebeu a Metamorfose que transforma subitamente o protagonista num insecto gigante. Para além de Kafka, também Sartre, já em 1937, na sua Náusea, comparava a liberdade do homem à morte e, dando corpo à imagem, Francis Bacon, como antes E. Schiele, pintou a desfiguração desse homem profundamente alérgico às regras da nova modernidade. No fundo, esse homem apontava já para os "não-lugares" (M. Augé, 1997:30) que o novo estádio moderno e antitético ia desencadeando. É por isso que, no vazio deixado pela digladiação das ideologias e das grandes utopias e anti-utopias, esta cadeia manifestatária (ao nível do pensamento, da arte e sobretudo do modus vivendi) traduz, cada vez mais, a ideia de um alter-ego vivo, actuante e profundamente corrosivo face à consciência errante e disfórica da modernidade.

            A guerra de 1939-45 é, de facto, o abismo real do novo paradigma. Nunca antes, numa tal escala, haviam morrido tantos civis. Nunca antes, numa tal escala, se haviam planeado tão terríveis genocídios. Em nome de ideários perfectíveis. Em nome de misticismos e de auto-representações do corpo social. Não apenas a partir da bizarra Alemanha hitleriana, mas também ao longo do ainda pouco conhecido condado de Estaline. A hecatombe correspondia - de facto - à abolição do mundo, na medida em que o mundo, o nosso, é um mundo dos homens (e da própria natureza). Desta guerra irrepetível saem algumas, novas, utopias: na Europa (já o vimos), a reconstrução reembala um novo optimismo, embora marcado por feridas dificilmente sanáveis; a leste, durante pouco tempo (até Budapeste ?), essa euforia ainda se veste de roupagens codificadas revolucionariamente e, nos continentes do sul, as descolonizações produzem utopias nacionalistas muito híbridas (já que mescladas com divisões étnicas, fronteiras artificiais e alteridades sócio-culturais muito complexas).

No entanto, é o debate entre a planificação marxista e a democracia liberal (ou social-democrata) que irá centrar o conflito ainda ideológico, no pós-guerra. Os Estados Unidos e a União Soviética, cujos exércitos se haviam encontrado em Berlim, em 1945, centram agora as atenções e, por sua vez, a Europa, desfocada na sua missão de vanguarda do globo, tornava-se numa arena inconstruída e artificialmente dividida. Em 1985, no último suspiro desta divisão e no momento em que os conflitos ideológicos pareciam ter dado lugar a meros conflitos de regime entre potências - da guerra fria às variadas guerras regionais -, M. Kundera escreveu: "A Europa não se apercebeu do desaparecimento do seu grande foco cultural porque, para a Europa, a sua unidade já não simboliza a sua unidade cultural. Em que bases assenta então a unidade da Europa ? Na Idade Média assentava numa religião comum. Nos tempos modernos, numa altura em que o Deus medieval se transformou em Deus absconditus, a religião cedeu o seu lugar à cultura, que passou a significar a concretização dos valores mais elevados" (...) "Da mesma forma que, em tempos passados, Deus cedeu o seu lugar à cultura, é agora a vez da cultura ceder o seu lugar. Mas a quê e a quem?" (1985:22).

            A resposta cabe, toda ela, na questão - muito actual - do definhamento real dos "grandes códigos" que Kundera pressente e traduz através da expressão "dos valores mais elevados". A perda de protagonismo, senão a quase anulação do debate ideológico (a par da inércia e da incerteza utópicas) levou A. Toffler, nos alvores da década de oitenta, a escrever uma (quase) utopia que designou por A terceira vaga. O autor fala, talvez pela primeira vez - com grande impacto - em poder acentrado: "... as forças da Terceira Vaga favorecem uma democracia de poder minoritário compartilhado; estão preparadas para experimentar uma democracia mais directa; favorecem tanto o transnacionalismo como uma devolução fundamental do poder" (...) "exigem um sistema energético renovável e menos centralizado. Querem legitimar as opções de alternativa à família nuclear" (...) "Reconhecem a necessidade de reestruturar a economia mundial numa base mais equilibrada e mais justa" (1984:435). Na sua obra, Toffler equipara a segunda vaga à nova modernidade e cria a imagem de destino para uma futura terceira vaga, onde um novo sentido de comunidade, de estrutura e de significado deverá ser readquirido, mas de acordo com o primado de que "uma única perspectiva do mundo não poderá nunca apreender toda a verdade. Só aplicando múltiplas e temporárias metáforas poderemos alcançar uma imagem razoável (ainda que incompleta) do mundo" (ibid.:375). Toffler vê na pluralidade e na desintegração social massificada crescente, não um alarme, mas uma "oportunidade de desenvolvimento humano" (ibid.: 417). A mediação entre o social e a sua representação já não se integra aqui no quadro ancestral imaginário dos "grandes códigos" totalizantes. Um novo sistema de códigos temporários e parcelares na sua adequação local, associado à reestruturação global dos modelos energéticos e ambientais, bem como a nova consciência produtora das minorias - constitui uma utopia, ou melhor, uma prefiguração de um mundo em que o instantâneo se torna pacífico e quotidiano (passando a advir da própria mediação tecnológica), e podendo mesmo contribuir para acabar com essa instituição pública da segunda vaga que é a solidão (e suas consequências, como a droga) através do que Toffler advoga ser a “telecomunidade” (que, aliás, descreve com optimismo) - ibid.: 368/9).

            Esta década de oitenta olha, de facto já, com alguma distância para a geração que foi gerada pela guerra e que, vinte anos antes, repunha uma derradeira anti-utopia - ou contra-cultura - colectiva (embora com uma característica singular: a forte marca geracional). Entre a catarse de Woodstock (1969) e o Maio parisiense do ano anterior, esta juventude agitou bandeiras mescladas onde se retratavam rostos de Mao ou de Che, fragmentos existencialistas do pós-guerra, silhuetas que reclamavam a imaginação ao poder ou o pacifismo absoluto e radical, quando não a simples purificação instantânea do novo star-effect do rock e dos paraísos artificiais dos alucinogéneos. É uma cultura que diz não à desintegração ou incumprimento do arqueo-progresso da modernidade e que, ao mesmo tempo, não encontra um lugar e imaginário claros onde se investir nessa mesma desintegração. Mas, ao contrário do que ocorrerá nos anos oitenta, é uma juventude que não consegue ainda saltar para esse novo nenhures imaginário, de onde - ainda que fragmentariamente - se pode já avistar a modernidade (e os seus variados "grandes códigos" globalizantes) como se de um passado consumado se tratasse.

            Sintoma desse olhar espectral (marcado pela tontura de um qualquer fim de história) foi o que a simbólica exposição-instalação, Les imatériaux (no Centro Georges Pompidou de Paris - 1984) no-lo sugeriu; sintoma mais alicerçado desse mesmíssimo olhar é, também, o que nos surgiria atavés das reflexões de J.-F. Lyotard e G. Vattimo. E não foi preciso esperar muito mais para ver que o muro de Berlim era removido e que as ideologias, enquanto programas demasiado uniformizados, já não correspondiam socialmente a um modelo mobilizável que ditasse um devir perfectível - ou um sentido que se adequasse à marcha inexorável e vitoriosa da humanidade. Ou seja, o que fora antes um quase indescortinável alter-ego do estádio moderno, convertia-se agora numa reflexão que interrogava, senão punha em causa, os últimos três séculos de domínio do tempo e da natureza. Isto é, a própria modernidade.

 

 

6. O quadro pós-moderno

 

a) Ponto prévio sobre a discussão pós-moderna.

 

            Antes de avançarmos na senda do “pós-moderno”, convirá, de algum modo, suspender a marcha e pensar. Lendo F.Merrell, no seu Semiosis in the Postmodern Age (1995:2-3), verificamos o que é, de facto, um espectro semântico vasto. Para tal, basta-nos seguir o percurso do autor que, antes de precisar a sua própria terminologia na obra, decidiu levar a cabo como que um balanço do uso actual da forma substantiva “pós-modernismo”. A conclusão é redundande, pleonástica quase - senão vejamos:

 

            ...”Postmodernism has consequently been at one and the same time characterized as (a)[20] a questioning of totalizing, hierarchized systems - though it remains incapable of destroying them” (Hutcheon,1988; Lyotard,1984); (b) intellectual containment limiting openess (Connor,1989); (c) an end to rugged individualism (via the “death of the subjet”)(Foucault,1970);(d) and na intersection, even a fusion, of scientific, artistic, and academic attitudes (Hassan,1987)”(...) (e) ”the ultimate extension of capitalist, consumerist societies (Jameson,1983-84); (f) a form of commercial coopted capitalism (Kroker and Cook, 1986); (g) a neoconservative reaction curtailing ‘unfinished project’ of Enlightment-modernist thought and reason (Habermas, 1983); (h) a break with, either an intensification of, certain characteristics of modernism (Foster,1983; Kaplan, 1988)”(...)” (i) a suspension of logocentric discourse of identity, presence and certainly in favor of pluralism, discontinuity, and indeterminacy (C.Scott,1990)”(...)”Furthermore, (j) it is variously modeled on architecture (Jencks,1977); (l) parody and paradoxes of literary form (Hutcheon,1988); (m) local narratives, which will ultimately triumph over monolithic grand narratives (Lyotard,1984); (n) pragmatically designed communities of interlocutors (Rochberg-Halton,1986); (o) and the sign´s elevation to the status of ‘hiperreality’, whereby it becomes more ‘real’ than the ‘real’ (Baudrillard,1983). It has even been seen to mirror (p) the decline of Western civilization (Toynbee 1954), thus presenting virtually notihng new (Graff,1979)”.

 

            Não vamos, agora e aqui, analisar as complexas variantes, associadas ao termo “pós-modernismo”. No entanto, - da denúncia do totalizante, à clausura do sujeito; da vitória dos modos sobre a moda, à contra-cultura moderna - de românticos a ecologistas, passando por Nietzsche; do não continuismo histórico a simples género, signo de decadência ou hipertrofia do real - tudo parece, com efeito, preencher o lexema “pós-modernismo”. Seja como for, o exemplo funcionará, pelo menos, como uma espécie de sintoma, a partir do qual nos será possível extrapolar, concluindo.

Quanto à natureza do sintoma, situemo-nos, desde já, no quadro das profundas mutações do mundo das últimas duas décadas e, por consequência, como refere A.Giddens (1995:2), na novíssima “desorientação” teórica que advém - “da sensação que muitos de nós experimentamos depois de ter sido apanhados num universo de acontecimentos que não compreendemos inteiramente e que parece, em grande medida, escapar ao nosso controlo. Para analisar como se chegou a esta situação não é suficiente a mera invenção de novos termos, tais como pós-modernidade”(...)”Para além da modernidade”(...)”podemos divisar os contornos de uma ordem nova e diferente, que é ‘pós-moderna’; mas isto é muito distinto daquilo que muitos chamam actualmente “pós-modernidade”. Mais do que continuar a problematizar a nível da expressão, o autor prefere, portanto, sublinhar uma série de “descontinuidades” de conteúdo que se operaram na ordem da modernidade, nomeadamente - a “rapidez da mudança”, a rede de “interligação global” criada e a errância no “campo das instituições” (caso do estado-nação, hoje em crise). É nesta ordem de ideia que, cremos, A. Giddens prefere a forma adjectiva pós-moderna  - ou seja, imputável a ocorrências particulares - e não qualquer forma substantiva abstracta (e universal) tal como “pós-modernidade” ou mesmo “pós-modernismo”.

Diga-se o que disser, na discussão que é ainda actual sobre a matéria, o facto é que, face a conteúdos corrosivamente novos que se construiram no mundo, a partir dos idos de 80, uma panóplia de novas formas expressivas surgiu no sentido de as tentar traduzir. É este o cerne da questão, em termos semióticos. Por outras palavras, e no quadro do que U.Eco definiu como “modos de produção dos signos” (1975), estaremos, neste caso, diante de um exemplo claro de ratio difficilis (isto é, de um “conteúdo para o qual não existe um tipo expressivo pré-formado” - 1994: 41) e, mais concretamente, no âmbito de uma “invenção” (caso limite de ratio difficilis), ou seja, - “expressão inventada no momento em que se procede, pela primeira vez, à definição do conteúdo; a correlação não é (então) fixada por um código, mas apenas com condenda” (ibid.:46). Mais do que uma discussão sobre as formas de conteúdo que redesenharam o mundo, nos últimos anos, com uma notável celeridade, a “questão pós-moderna” tem sido, antes de mais, portanto, uma disputa sobre as modalidades de produção sígnica. Dito isto, passemos então à análise do quadro que, apesar de tudo, designamos por “pós-moderno”; a mesma não será exaustiva, porque traçada ao serviço dos propósitos específicos do presente ensaio.

 

 

b) Do pós-moderno, explicado a si próprio.                                                             

 

            Assim como, na literatura apocalíptica, os personagens efectuam viagens aéreas para visitar os vários céus do mundo divino, retirando daí um modelo que deverão comunicar ao ici-bas humano, também J. F. Lyotard - de A condição pós-moderna -recorre uma instância segunda para a adequar, enquanto modelo, ao vínculo social da nossa sociedade, tida como pós-moderna. Essa instância segunda é (talvez paradoxalmente) a ciência. A razão é simples: ao contrário da lógica da modernidade, baseada em códigos que o autor define como "grandes narrativas" (entendamos aqui, no âmbito do que temos designado por "Grande código", ideias ou valores globais que legitimam o poder e se destinam a toda a humanidade, tais como a ideia de progresso ou de emancipação progressiva do homem), a ciência, de per si, tornou-se num sistema aberto "em que a pertinência do enunciado é que dá origem a ideias, ou seja, a outros enunciados e a outras regras de jogo".

Assim sendo, "na ciência não há metalíngua geral na qual todas as outras possam ser transcritas e avaliadas" (1989:128). A ciência, nesta perspectiva, seria um campo criador dos seus próprios códigos, nunca generalistas, mas sempre locais, nunca definitivos, mas sempre provisórios. É este "antimodelo" da "pragmática científica", baseado na "sistemática aberta" (ibid.: 120), e tendo como princípio a diferença e não o consenso ou a norma (opondo-se, portanto a quaisquer códigos globalizantes) que J. F. Lyotard descreve através da noção de "paralogia" (ibid.:121).

            Tentando adaptar a paralogia à dimensão social, o autor continua: "Embora a pragmática social não tenha a simplicidade da das ciências", o certo é que o modelo destas pode corresponder à evolução das "interacções sociais" da pós-modernidade, "onde o contacto temporário suplanta de facto a instituição permanente em matérias profissionais, afectivas, sexuais, culturais, familiares, internacionais, assim como nos assuntos políticos" (ibid.: 131).

Gianni Vattimo (1991), em a Sociedade transparente (1991), corroboraria estes mesmos facto, ligando-os à explosão das novas dimensões comunicacionais da contemporaneidade (aliás, tal como J. F. Lyotard que já relacionara as ciências cognitivas, as linguagens e a informação, para acentuar a crescente "incidência das transformações tecnológicas sobre o saber” - 1989:15-16). Estas novas dimensões comunicacionais, metaforizadas pelo epíteto “telemática”, teriam, segundo o autor, sido responsáveis pela dissolução dos "pontos de vista centrais" (ibid.:13), os quais terão sempre caracterizado a estrutura de todos os "grandes códigos". Estaríamos, assim, não só para além da modernidade, mas também para além da história (visto, neste caso, como algo unitário, submetido a um devir linear e unidireccional). G. Vattimo teorizará ainda a disseminação de centros (como Lyotard que opõe central e local), a noção de rede disseminadora de centros locais (de acontecimentos) e a sua imprevisibilidade no quadro do próprio sistema.

            De certa forma, Michel Serres (s/d:9) já o havia referido nos anos sessenta: "...da linearidade à tabularidade aumentamos o número de mediações possíveis, tornando mais flexíveis as últimas. Já não existe apenas um caminho, mas sim um dado número, ou uma distribuição provável". Esta não programação global, ou a inevitabilidade de as múltiplas ocorrências se sobreporem (na sua individualidade própria e efémera) a uma lógica geral pré-determinada (o "grande código"), - coloca-nos, assim, no limiar de uma nova era. As manifestações desta era já não se opõem a, como no alvor da modernidade (construído, então, a partir de auto-representações sucessivas de antíteses), mas apõem-se a. Dizemo-lo no sentido de agregar ou adaptar, pois a nova rede em que a pós-modernidade subitamente se redescobre - após o definhar gradativo dos grandes códigos, entre os quais as ideologias - é um território em que a cultura da instantaneidade também subitamente se descobre, a sós, sem ter já que disputar a natureza de um grande código superior, geral e universal (como acontecera em mais de três dezenas de séculos).

O hic et nunc pertence agora ao presente e a mediação tecnológica parece garanto-lo - ao nível do saber, da comunicação e até do afecto (do cinema à publicidade amorosa das nets) - neste mundo acentrado e mutável que estará por definir. O que o caracteriza, com efeito - além do cepticismo ou angústia latente a que J.Derrida se referia já em 1990 e da novíssima “invenção” (U.Eco, 1994) designada por globalização[21]-, é uma inovadora práxis da instantaneidade. É a esse aspecto que passamos a referir-nos, antes de nos aproximarmos dos nossos “percursos finais” (também eles, claro, provisórios).

 

 

c) Novos instantanismos.

 

            A identificação entre o absoluto e o imediato sempre caracterizou a cultura da instantaneidade. Mas, agora, o absoluto - tal como no início do cinema - passou-se a fundir com uma magia imediatista (já não sob a forma de pura ilusão visual e stroboscópica, mas antes sob a forma de formulação científica), que A. Bazin, de qualquer maneira, identificou com um desejo humano de “perpetuação” (1975:15). Nesta linha de ideias, a viagem de um buraco negro até outro poderia proporcionar a um qualquer e hipotético viajante encontros imediatos noutro espaço-tempo (ou época), de acordo com teorias como as de F. Durham e R. Purrington em The Frame of Universe: A History of Physical Cosmology (1983-I:230). Mas não só. Tal como é prefigurado na teoria matemática de René Thom (que H. Schwartz ironicamente analisa em Os finais de século, 1992), nos tempos que correm, - "parece razoável que as coisas e os seres possam aparecer (ou desaparecer) num piscar de olhos" (ibid.: 263).

            Este imediatismo, mergulhado no desejo absoluto do homem se rever no impossível (e que está na génese da própria ideia de fotogenia cinematográfica - E. Morin, 1956:25), encontra a sua forma, talvez mais realizadora, na noção de fractal, ou de "morfologia do amorfo", - que aposta na descoberta de uma ordem em "sistemas que parecem não ter nenhum tipo de ordem" (B. Mandelbrot, 1982:3). Como comenta H. Schwartz (1991:262-3), "em sequências não lineares de fenómenos", aparentemente aleatórios (como "o irritante gotejar de uma torneira, ou o drapejar de uma bandeira ao vento"), parece seguir-se uma "estética do caos", ou seja, a passagem da desordem à ordem seria gerada através de pontos de contacto instantâneos, imediatos, numa palavra: fractais.

            Esta lógica que irrompe na metamorfose cinematográfica e que se espelha, na ciência, através, por exemplo, desta miríade dos buracos negros, da ordem do fractal ou da "cúspide cósmica" de R. Thom consagra um lugar de realce para o instantanismo. Como se o absoluto tivesse encarnado na realidade que, subitamente, o saber científico revelou na sua essencialidade do real mais íntima; como se esta revelação da intimidade nos mostrasse que toda a natureza vive - na verdade - em estado de permanente e instantânea mutação; como se o absoluto e o instantâneo se tivessem finalmente reconciliado.

No momento em que tomamos a consciência da consumação de uma tal reconciliação histórica, deveríamos, no mínimo, apontar os responsáveis, no fundo, - os sucessores legítimos do "grande código". Dir-se-á, com toda a naturalidade que, quer o suporte, quer a linguagem, quer até o fim em si mesmo que ordena esta pesquisa actual tem um nome: a tecnologia. É do papel da mediação tecnológica na continuidade de uma cultura da instantaneidade, nas sociedades contemporâneas, de que trataremos, para já, na próxima secção - “percursos finais”.

 

 

7. Percursos finais

 

a) Primeiro percurso.

 

            A primeiro percurso remete-nos inevitavelmente para a relativização da própria noção de real que a nova era, dita pós-moderna, criou. Se, para Hegel, "o real era racional"[22] (quer isto dizer que perante a imensa quantidade de informações de que o passado histórico põe à nossa disposição, é necessário operar uma selecção baseada em critérios de "conceito" e "inteligibilidade"), logo a racionalidade exige que se faça do real, uma selecção, um recorte, uma amostra. Essa noção é também a que, numa outra perspectiva, a da semiótica pragmática de C.Peirce, apuramos a partir da noção de ground of representation (ou "atributo de um objecto, na medida em que este objecto é seleccionado de uma certa maneira e apenas alguns dos seus atributos são considerados como pertinentes ..." (1978-I:292) numa tal representação. Numa ou noutra óptica, ambas irremediavelmente díspares na acepção, tempo e metodologia que perspectivam, o real (tornado em simples fragmento relevante) é sempre uma representação (decorrendo esta, por sua vez, sempre de uma qualquer selecção).

            Para certos autores, caso de F. Gil, a assunção entre as ideias de real e de representação - ao "fornecerem o quadro formal da possibilidade de pensar o mundo", constituem mesmo um par de noções absolutamente “anteriores” a todas as outras (1984:38). Para A. Whitehead (1938:113), influenciado pelo discurso quântico, e, posteriormente, retomado por W. Iser (1978:68) -, os eventos são um paradigma da realidade, pois “designam um processo e não se constituem apenas como meras entidades discretas”. Cada evento representará, assim, o ponto de intersecção de uma variedade de circunstâncias, embora as circunstâncias igualmente alterem a natureza do evento. Este processo “transcende sempre”, seguindo um tal ponto de vista, as fronteiras que limitam o evento "in the continuous process of realization that constitutes reality". É patente, aqui, uma óptica de transitoriedade articulada com o “sinsigno” (segundo C.Peirce), ou seja, "combined with actual unity" (ibid.:113).

            Os critérios de selecção (do real) aqui aferidos são, ou racionais (porque baseados numa dada inteligibilidade, segundo Hegel), ou, de certo modo, naturais (porque fundados na natureza do próprio ground, teorizada por Peirce), ou ainda circunstanciais (por dependerem de um processo sintáctico muito complexo, segundo A. Whitehead). Transpondo agora para a mediação tecnológica, ou seja, para o mise-en-abîme que a representação (ou virtualização) tecnológica constrói a partir do real, verificamos que nos debatemos com uma questão quasi-ontológica. No recente livro de J. Derrida (1996:72) refere-se que num "mundo dominado pela lei da visibilidade mediática, o que foi reduzido à invisibilidade ou ao silêncio não tem outro regime de existência: pura e simplesmente não existe".

Ou seja, os critérios da representação levam a que o recorte das ocorrências se processe de acordo com intencionalidades imprevisíveis (e cada vez mais "acentradas", segundo a expressão de G. Vattimo), sendo essas mesmas ocorrências, depois, readequadas a uma ordenação e repetição determinadas, acabando por criar-se nos espectadores autênticos "horizontes de expectativas" (H. Jauss, 1978), não próprios de uma época (como se advogava na "teoria da recepção" de H. Jauss), mas de natureza corrosivamente efémera, às vezes com a duração de pouco mais de um dia. Tal explica-se, porque, após um período dominado pela "sociedade do espectáculo", em que a simulação mediática dos acontecimentos fez história, - os anos oitenta e noventa acabariam por mergulhar definitivamente numa tremenda inflação de discursos, imagens e eventos (embora criados a partir de eventos realmente existentes), de tal modo que acabaram por extravasar - ou transbordar (H.-P. Jeudy, 1995) - o próprio real (referencial), virtualizando assim, através da vertigem imediatista, a leitura do mundo.

            Por isso, é natural que, em cada dia que passe, a escolha de N eventos suscite uma catadupa de outros (por conotação e sobretudo por metonímia), acabando o referido flexível "horizonte de expectativas" por inevitavelmente se ajustar a um tal feixe (de eventos) de durabilidade mínima. Em cada dia é, pois, possível mobilizar uma vastíssima população à volta de um dado feixe N de eventos; e é o próprio artefacto tecnológico que, além de criar a expectativa, o facto e o discurso, acabará, no dia seguinte, por retomar o ciclo com um outro renovado feixe N de eventos. A ansiedade discursiva sobrepõe-se, deste modo, a uma imaginária ansiedade verificada na própria realidade que, cada vez menos, se revê na mediação tecnológica que diariamente sobre ela opera. Exemplo disso - entre muitos outros mais arojados - é o caso do aumento de crimes em Évora - em Janeiro de 1996 -, tratado obsessivamente durante cerca de 48h pela rádio, imprensa e por alguma opinião, a nível nacional, apenas porque dois repórteres locais de televisão decidiram colocar em noticiários de grandes audiências um passeio que realizaram através de um bairro da cidade, comentando um desfalque numa pequena loja e um episódico assalto a uma casa.

            A instantaneidade da visibilidade mediática, a simples propagação de um fluxo discursivo torna-se, deste modo, mais importante do que propriamente a (razoabilidade da) questão dos critérios objectivos de representação. Por outras palavras: a impulsão/compulsão diária (sobretudo das imagens disponíveis em centros emissores) tende a sobrepor-se à ponderabilidade da escolha, de modo que os critérios não se baseiam já, nem numa racionalidade (pura), nem em critérios ditos naturais e muito menos numa pré-determinada complexidade sintáctica. A realidade acaba assim por se converter numa selecção quase impulsiva/compulsiva, criada a partir da pressão de um múltiplo e aparentemente informe caudal de imagens, discursos e informações postos à disposição do suporte tecnológico.

Isto quer dizer que, da razão imanente da história hegeliana que, duma forma ou doutra, assistia ao historicismo do "grande código" - passamos agora à instituição do suporte tecnológico como um fim em si mesmo (independentemente do real existente que, ao deixar de existir, porque não seleccionado - cf. J. Derrida, 1996 -, se transforma numa espécie de "não lugar" - retomando a ideia de "simples passagem", tal como, por exemplo, um elementar viaduto ou aeroporto, na expressão de M. Augé - 1997:30). A ontologia deste "não lugar" será, hoje em dia, no fundo, o único espaço confinado por excelência à imaginação (pura), já que a realidade (virtual) do suporte tecnológico conduz-nos mais instantaneamente à vertigem da imagem, do que à imaginação.

            Depois de termos reavaliado a própria ideia de real, dir-se-ia que, hoje em dia, soçobram duas culturas do real: uma cultura instantânea (massificada, ligada à explosão da imagem e a uma compulsiva hermenêutica diária) e uma outra cultura ligada à afirmação dos sentidos que escapam à omnipresença da imagem material (e que se encontra nos tais "não lugares" a que nos referimos; é o caso de certa literatura, do intimismo dos afectos, da solidão e, como referiu J.-P. Chavent (1996), de noções como a saudade). A primeira destas culturas (que molda e renova, hoje em dia, a própria noção de real) prolonga a tradição de uma ancestral cultura da instantaneidade; a segunda prolonga antes uma dada cultura utópica (justamente a que antecede o fim do século XVIII - antes de a prática utópica ter ancorado no tempo - e que se caracteriza pela enunciação aberta de um nenhures puro).

Curioso é verificar que, de um lado, a reminiscência utópica e, do outro, a reminiscência instantanista, agora se libertaram uma da outra, tendo-se autonomizado, cada uma, em campos completamente à parte (diria, até mesmo, quase opostos). Assim sendo, a continuidade utópica deixa de ser auto-flageladora (como o havia sido na nova modernidade, após 1918, baseada que era no conflito utopia/anti-utopia), para agora se reencontrar no topic exclusivo da imaginação afirmativa. Por seu turno, a instantaneidade liberta-se agora da ansiedade (ou impaciência histórica) que sempre a ligou aos "grandes códigos" totalizantes, tornando-se pacífica, quotidiana e recriando a realidade como se esta fosse uma cascata em permanente mîse-en-abime.

 

 

b) Segundo percurso.

 

            O segundo percurso diz respeito a uma característica comum aos "grandes códigos": o facto de, todos eles, transcenderem a realidade humana (por a comandarem e projectarem - através da idealização ou do programa - ou, por outro lado, por a distorcerem com fins de legitimação). Perguntamos: o que nos restará, hoje, em tempo de múltiplos códigos e de regime acentrado, dessa transcendência específica?

            Vimos que imaginação (pura) e instantaneidade são dois devires - ou duas continuidades - que tendem, na  “pós-modernidade” dominada pela mediação tecnológica, a autonomizar-se. A imaginação, esse espaço de reserva que o sistema remete para uma espécie de utopismo de nicho, diverge, portanto, profundamente da imagem (móbil fundamental da instantaneidade realizada pela tecnologia contemporânea). Convém, de facto, estabelecer as diferenças entre o âmbito de ambas. Sigamos, então, o raciocínio de Husserl. A imaginação, segundo o autor da fenomenologia, é, com efeito, tripartida: pelo seu carácter intuitivo (porque a imaginação "fait voir l'object, qu'elle met en contact avec lui - d'une manière qui lui est propre et qui n'est certes pas la manière perceptive" - M. Saraiva, 1970:248); pelo seu carácter de presentificação (pois, à presença corporal e actual "de l'object perçu fait place, dans l'acte imageant, une quasi-présence dans laquelle s'établit une communication sui generis entre la conscience et ce qui a été antérieurement perçu" - ibid.: 248); e pelo seu carácter de neutralização (pois a imaginação é também concebida como "passage à l'irréalité"; ou seja, a imaginação desencadeia em nós uma consciência "qui opère le passage à l'irréalité, à condition de la considérer comme une conscience parmi d'autres - ibid.: 250/1). Ou seja, a imaginação, por natureza, consegue libertar-se da inevitabilidade do objecto que observa (pode até reinventá-lo, recriá-lo - como se fosse um nenhures puro) e, por isso, empreende uma fuga à realidade, neutralizando-a, mas nunca deixando, apesar disso, de constituir-se como uma das "essências" da consciência humana. A imaginação nada tem a ver, pois, nesta perspectiva, com níveis subliminares - inconscientes ou subconscientes - que nos povoem.

            A imagem, por seu lado, enquanto “duplicata icónica e actual das aparências do real” (L.Carmelo,1998b:1-2)[23], insere-se num mundo tecnológico que trabalha ou opera - como tendo um "fim em si" mesmo (E. Noel, 1993:159). Se é um facto que a realidade motiva a imagem, esta, por seu lado, reconstrói-a com um ritmo e uma sintaxe próprias, extravasando-a (como vimos). Ou seja, a noção de referente põe-se, neste âmbito, do mesmo modo que os teóricos da estética o conceberam: como sendo intrínseco e jamais exterior ao objecto estético (já que o objecto estético, embora possa reflectir o mundo, acaba sempre, e em primeiro lugar, por criar a sua própria realidade autónoma, bem como os seus referentes específicos - no que P.Guiraud designou por “imagem-objecto” - 1973:94). É por isso que se pode dizer que a sintagmática imagética que, hoje em dia, nos convive é, toda ela, esteticizada (já que objectivamente se assume como uma realidade paralela, garantindo-nos, por outro lado, a instantaneidade icónica e metafórica que nela - e apenas nela - reside, e não na realidade quotidiana e factual que nos envolve).

            A. Rodrigues, no seu capítulo sobre a esteticização da experiência (em Comunicação e cultura - a experiência cultural na era da informação - 1993:112) refere que, na arte, hoje em dia, o que conta é o "seu valor-efeito, o seu valor de puro acontecimento, a performatividade de uma acção estrategicamente desencadeada que se esgota na sua própria realização" (embora aí se jogue com reminiscências "da mais arcaica experiência estética"). O mesmo poderia ser dito em relação aos mecanismos difusores de imagem, rarefeitos na sua referencialidade, esteticizados na sua autonomia em relação ao real, ou seja, - existem, tão só, para (instantaneamente) se esgotarem, no início e no fim de cada feixe de eventos que, diariamente, nos devolvem. É evidente que, postas assim as coisas, a imagem acaba por inevitavelmente reter alguma dose de neutralização, de acordo com o pressuposto de Husserl, ou seja, - uma irrecusável passagem à irrealidade.

            Este imediatismo tout court é, no entanto, filtrado por parâmetros da imaginação, embora estes, naturalmente, acabem por ter dificuldades em resistir à compulsão, ou melhor, ao fim em si, de que a tecnologia é, hoje em dia, paradigma (como dantes o foram todos os "grandes códigos" totalizantes). O que, no presente, transcenderá a realidade humana, no sentido de a legitimar ou de a sonhar, - era essa a nossa questão - é, em primeiro lugar, a imaginação pura (ou o já referido utopismo de nicho) e, por outro lado, o próprio referente intrínseco que a imagem veicula, já que, na sua indizibilidade e opacidade, ele, de qualquer maneira, nos reata e actualiza domínios simbólicos antiquíssimos (tal como hierofanias e teofanias acumuladas pelas comunidades). Aliás, como K. Mannheim há muito adiantou (1936:262), a completa eliminação de elementos transcendentes à realidade humana conduzir-nos-ia a um objectivismo (“Sachlichkei”) que “significaria, em última análise, o declínio da vontade humana". O que seria impensável, diga-se.

 

 

c) Terceiro percurso.

 

            O terceiro percurso remete-nos, não já para o presente, mas sim para o futuro. Vimos que a cultura da instantaneidade convivia muito de perto com o "grande código" no início dos grandes ciclos. Por exemplo, durante o período profético (no início da realeza judaica) a voz de Deus chegava, na primeira pessoa, ao profeta que, quase instantaneamente, comunicava a Sua mensagem a interlocutores terrenos privilegiados (legitimando-se assim o presente, sempre em ligação com o futuro). A impaciência face a este estado de coisas viria, no entanto, a aumentar nas vésperas do período apocalíptico. Um outro exemplo remete-nos para a primeira fase da modernidade (depois dos finais do século XVIII), quando o nenhures utópico, ao ancorar no tempo histórico, desencadeou uma cultura da instantaneidade "realizável" (K. Mannheim, 1936) - até ao momento em que os códigos ideológicos programáticos a manipularam e acabaram por monopolizar, de acordo com as suas lógicas específicas.

            Nos tempos que correm, verifica-se que a instantaneidade, fundada e enformada agora na difusão tecnológica de imagens (e dos mais diversos sinais não taductíveis em imagem) - convive, não já com o "grande código" (porque a sua razão de ser se esfumou), mas antes com uma pluralidade de códigos que regem o actual estado acentrado da comunicação universal. Sem querer enunciar premonições, é bem possível que, no futuro, esta excessiva proximidade entre a cultura da instantaneidade e os códigos que a regem se venha a alterar (como também aconteceu nos exemplos acima transcritos, isto é, nas vésperas do período apocalíptico e no advento das ideologias).

            Um tal (possível) estado de coisas faria com que o actual desejo de realização instantânea - que a tecnologia hoje permite, de modo aberto e só aparentemente democrático - amanhã se viesse a fechar plural e gradativamente, através da crescente intervenção de vários códigos e regras particulares (a tendência na internet, aliás, já se vai notando: há cada vez mais acessos que dependem de assinaturas, enquanto se nota um nítido incremento de intra-nets fechadas - tendência essa que é similar no caso dos satélites e canais difundidos). É possível que, a breve trecho, a revolta e a impaciência venham a adquirir novos moldes, até porque, em certas culturas híbridas actuais (onde se constata o convívio entre desfasadas realidades escatológicas e ideológicas e, por outro lado, a linha da frente das tecnologias), como acontece no sudoeste asiático e nas Coreias, essa disforia e essa revolta são já claramente notadas no quotidiano.

 

 

d) Quarto percurso.

 

            O quarto percurso é o mais óbvio, sobretudo para quem leu (sintagmaticamente) este ensaio, ou seja, - sempre existiu uma cultura da instantaneidade. Não é, pois, apenas na presente época, dominada pelo episteme da mediação tecnológica (e de onde as "grandes narrativas" e os "grandes códigos" foram removidos, em benefício do local, da "sistemática aberta", da pluralidade de códigos e dos itinerários e objectivos divididos), que se pode reivindicar o exclusivo de uma cultura da instantaneidade. Entendo esta asserção quase conclusiva no sentido de propor que a instantaneidade seja definida como um "elemento modalizador" (A. Fowler, 1982) que foi sendo lentamente intertextualizado no discurso totalizante das escatologias, das utopias e das ideologias, embora salientando-se de modo relevante, devido ao ensimesmamento dos suportes, no presente paradigma da mediação tecnológica.

            Podê-lo-emos mesmo comparar a outros "elementos modalizadores", como, por exemplo, as reiteradas figuras salvadoras (que saltam das profecias escatológicas para o utopismo, caso do último imperador, do papa angélico, do príncipe ideal de Maquiavel, do Madhi islâmico e das suas reminiscências simbólicas em casos como os de John Kennedy, Sidónio Pais ou Garibaldi) e a própria ideia de liberdade (modalizada, desde o século XVI, através do quadro utópico, dos programas ideológicos e no âmbito, claro, da dificilmente designável “era da actualidade[24]”).

            Por outras palavras: enquanto, ao longo dos sucessivos "grandes códigos" totalizantes, a instantaneidade foi um elemento modalizador (na sua conflitualidade com aqueles), - na actual era da mediação tecnológica passou a ser, para além de elemento modalizador, sobretudo um elemento estruturante (e pacificamente funcional) da nova cultura.

 

 

8. Adenda-limite, ou  o mistério da “globalização”.

 

a) O mistério da globalização.

 

A “globalização” corresponde ao que, na Idade Média, se designaria por um “universal”. Isto quer dizer que a globalização é um termo que designa uma pura abstracção e que, portanto, nada ou pouco tem a ver com a realidade, entendida enquanto permanente articulação de factos (empíricos) concretos e particulares. Para os nominalistas de então, e de agora, a globalização seria, portanto, um mero nome e não uma realidade. No entanto, se apenas se admite que a globalização corresponda a um facto (ou a uma ideia) particular, dever-se-ia, em consequência admitir que ela se pudesse tornar geral, apenas e tão só na medida em que - como diria Berkeley - conseguisse representar todas as outras ideias particulares da mesma espécie.

 Este raciocínio obriga-nos a compreender que o atributo “global”, sempre que é imputado a um facto qualquer, acaba por construir mais uma das variantes particulares daquilo que a globalização, em última análise, irá representar. Assim sendo, deve perguntar-se o que significa o dito atributo “global”, hoje em dia. A resposta, curta, conduz-nos necessariamente a seleccionar algumas das entidades mais óbvias que se repercutem no “globo” actual, como por exemplo, - as linguagens de suporte electrónico, as modalidades de transação económica, os satélites, a informação das meta-ocorrências, etc. Contudo, fosse qual fosse o inventário exemplificado - mais inexgotável do que possível, diga-se - acabaríamos por nunca caracterizar adequadamente a própria globalização, talvez por esta resistir a constituir-se como uma qualquer soma de partes.

Deste modo, é possível afirmar que se pode saber (indexicalizar) o que é - e o que não é - “global”, enquanto mero atributo de coisas identificáveis, mas continuar-se-à a desconhecer, de qualquer maneira, a que imaginário corresponde, ao fim e ao cabo, a reiterada palavra mágica - “globalização”. Se, com efeito, os nominalistas antigos e modernos parecem ter alguma razão, cumpre insistir e voltar a questionar, no meio de tanto pressagiado mistério: o que é, afinal, a globalização ?

 

 

b) A globalização revela-se apenas em mensagens particulares.

 

            Ultimamente, confrontámo-nos com duas noções interessantes de globalização. Uma de Carlos Zorrinho (1998:2) e uma outra de Fernando Ilharco (1998:19). A primeira define a globalização como um “quadro ideológico”, e a segunda identifica a globalização, não com “algo que está aí” (“que vemos e entendemos”), mas antes com “a forma como hoje vemos e entendemos o que está aí”.

No primeiro caso - e por me parecer extemporâneo discutir aqui a própria arqueologia ideológica - parece instituir-se uma ideia de moldura, ou de diagrama global, através d(a)os qua(l)is se veiculam e processam valores, indicações, enfim, - sintaxes sígnicas devidamente orientadas. No segundo caso, envolvido pela ideia heideggeriana de “dasein” (o que “está aí”), o autor recoloca o olhar para fora do “quadro” referido - onde se processam as transações de valores e de bens -, para, de seguida, se referir à “forma”, ou melhor, aos modos, através dos quais a subjectividade contemporânea encara o que, à partida, se sabe ser global. Conclusão: para Zorrinho, a globalização reside sobretudo no objecto observado - e na semantização que a sua organização suscita; para Ilharco, a globalização estará sobretudo no sujeito que observa - e no modo como este é levado a observar.

Há todavia uma nuance que convém não esquecer: se a noção de sujeito e de objecto amiúde se confundem, do mesmo modo que a enunciação e o referente só existem e coexistem em mensagens concretas, onde é que se manifestará, afinal de contas, a globalização ? Talvez a resposta se esconda no seio da própria pergunta, já que, é na produção particular de mensagens que a ideia de globalização acaba sempre, inevitavelmente, por se revelar. Por um lado, porque surge oriunda de um sujeito - ainda que indeterminado - que a cria, através dos valores (de “conteúdo” e “expressão” - L.Hjelmslev) que enuncia na mensagem e, por outro lado, porque surge reflectida e projectada em objectos concretos - físicos ou imateriais - que a mensagem institui (o referente, entendido na perspectiva de U.Eco, segundo a qual este jamais se pode confundir com o significado da mensagem).

Por exemplo, quando as agências internacionais editam material visual, este é recebido em todo o mundo como sendo basicamente denotativo e “objectivo”. As parcas palavras, introduzidas localmente sobre as imagens, não alteram essa aparente denotação, embora, desse material, se acabe, em última instância, sobretudo por conotar variadíssimos valores implícitos (imagens cruas de luta na Faixa de Gaza ou no Kosovo jamais são imunes a tal). Os valores enunciados transpõem assim as fronteiras ditas locais, impõem-se com aparente naturalidade e fabricam o seu adequado objecto (neste caso imaterial). Além disso, a TV global produz os seus próprios códigos - do mesmo modo que qualquer média emergente os constrói - e, como refere Jonathan Bignell, estes são silenciosamente “partilhados pelas mais díspares instituições” telemáticas do globo. Numa palavra: através de uma expressão electrónica e de conteúdos sucessivamente conotativos (que significam a mensagem), a globalização acaba por projectar-se, quer na dimensão fática do média utilizado, quer na ordem dos referentes criados e que são sobretudo imaginários, actuais e, claro, algo impositivos. O sujeito enunciador dilui-se neste processo e o objecto referenciado torna-se numa pura imaginação tendencialmente única, mediana, uniformizadora.

 

 

c) Globalização: capacidade anterior de um novo tipo de sujeito ?

 

Não existe, pois, globalização fora do mundo criado pela hemorragia de mensagens que são “actuais”. O adjectivo “actual” designa o momento, ou melhor, a instantaneidade em que a mensagem se torna acessível à comunidade (ou “being in common”- A. McHoul), próxima ou longínqua, que a significa e/ou descodifica. Se o domínio de alguns grandes meios-chave que produzem a mensagem global estão na mão de poucas instâncias, é preciso não esquecer que, sobretudo a nível da internet e do aproveitamento dos satélites, a acessibilidade ao que é global se tornou num dado quase generalidado. Este novo espaço de cruzamento de mensagens universais corresponde, ainda que apenas metaforicamente, ao conceito medieval islâmico de Dar al-Islâm. Este conceito delimitava o território não apenas físico do império, mas sobretudo o espaço da salvação humana que consubstanciava e que, por sua vez, se contrapunha, por exemplo, ao espaço cristão. Esta apropriação simbólica do espaço evoluiu, na passagem dos grandes códigos escatológicos para os ideológicos, para o conceito do chamado mundo libertado (correspondendo, ou à esfera soviética, ou à americana, conforme era visto e difundido pelas partes durante a guerra fria).

A novíssima apropriação do território que habitamos na actualidade é, pela primeira vez na História da humanidade, de cariz mundial. Depois de Deus, depois dos programas ideológicos, mas provavelmente reinsuflando ainda a génese utópica (“de nicho” - cf. Cap. 7) que nasce com T.More -, a instantaneidade tecnológica define agora o mundo como uma arena, não para descrever, não para explicar (de acordo, respectivamente, com o pendor aristotélico e cartesiano), mas sim para reimaginar. A forma desta arena talvez possa corresponder à ideia que Carlos Zorrinho traduziu por “quadro”, ou seja, uma estrutura produtora de conotações, transmitidas a partir de aparentes denotações, que visa a permanência e a instantaneidade, nos quatro cantos do mundo. Este ensimesmamento  da informação é paralelo (e proporcional) ao nexo do próprio consumo, ou seja, - tornou-se decisivo ter e receber, independentemente da necessidade do que se tem e do que se recebe; tornou-se mais importante o fluido ou a torrente do que se recebe e do que se pode consumir, do que os objectos ou as imagens, propriamente ditos, que se recebam ou se detenham. Esta avidez geral incontrolada define a ubiquidade da própria arena em que vivemos, e o seu simbólico zapping caracterizará o ritmo do fluido e da torrente que, por sua vez, se transformam no fim último da própria comunicação.

Quando Fernando Ilharco se refere à globalização, não tanto pelo que está diante de nós (a grande arena), mas antes à “forma como” vemos e conhecemos o que está diante de nós, creio que estará, algures, a tocar na ferida. Ou seja : menos interessará o “ser” que anima a arena e, bem pelo contrário, mais interessarão os “modos de ser” (C. Peirce) com que a arena se molda diante de nós. Talvez seja por isso que a globalização, em princípio, é - enquanto ocorrência - algo indefinível, senão mesmo irreal, como antes se referiu a propósito dos nominalistas. Se os três “modos de ser” - concebidos por C. Peirce - definem, não as ocorrências, mas as possibilidades de manifestação das ocorrências, a globalização inserir-se-à, então, no primeiro dos três que o semiótico americano criou, ou seja, - a “firstness“ (a “primeiridade”, entre outras traduções portuguesas). Nesta medida, a globalização não seria senão uma qualidade potencial e traduziria, por isso mesmo, a ideia de fundamento de tudo o que  é - ou pode vir a ser - global (do mesmo modo que o vermelho é apenas uma qualidade potencial que legitima tudo o que, num dado momento, diante dos nossos olhos, efemeramente, adquire essa cor).

Assim sendo, a globalização converter-se-ia definitivamente numa espécie de capacidade anterior que o sujeito global deteria, na actualidade, para poder olhar o mundo, - seu objecto, sua arena, sua ilha utópica ilimitada; sua indefinida imaginação.

 

 

d) Globalização[25] em vez dos símbolos deque a modernidade foi amputada ?

 

Desde o final do século XVIII até aos dias de hoje, um certo conjunto de símbolos-chave passou-nos a estruturar e filtrar a ideia de realidade. Desde o tenro início da modernidade, alicerçando já os fundamentos do paradigma em que hoje vivemos, registemos, entre outros, o estado-nação como símbolo dos limites naturais da comunicação; a liberdade e, por outro lado, os grandes códigos que imaginaram um futuro perfectível (as ideologias, por exemplo), enquanto símbolos de futuro e também da concretização do progresso; o sujeito tecnológico enquanto símbolo da ordenação do mundo, da natureza, além de magno cultor da velocidade; e, por fim, a contra-cultura, enquanto símbolo do conflito permanente que haveria de nutrir os vários sub-sistemas da modernidade (o político, o social, o artístico, o económico, etc), numa lógica de instabilidade necessária (ao contrário da cristalização sistémica pré-moderna, no seio da qual as várias actividades sociais integravam um esfera única e aparentemente estável).

            No entanto, o desenvolvimento tecnológico e o quase esgotamento ou lenta degenerescência de alguns destes símbolos-matriz (nomeadamente os grandes códigos sobretudo ideológicos e, noutros moldes, o próprio estado-nação), desencadeada de modo particularmente célere nas últimas duas décadas, haveriam de conduzir a uma inevitável superação dos limites naturais da comunicação que se instituiram no início, já longínquo, da modernidade. A grande rede simbólica da actualidade que, nos últimos anos, passou a reabsorver os símbolos modernos, já algo vagos e dispersos, é agora  designada e pressentida através de um termo enigmático e sempre repetido, mas nem sempre da melhor forma - a “globalização”.

 

 

e) A ideia de um globário: um globo-aquário visto apenas de (e por) dentro.

 

A globalização é, ao fim e ao cabo, a forma como imaginamos simbolicamente o mundo de hoje. Não sabemos bem onde ela está e, até mesmo, o que é (a globalização). Sentimos, no entanto, que ela se manifesta e isso chega-nos. Talvez, um dia, o nosso mundo se transforme num globário, ou seja, numa espécie de oceanário transparente como o da Expo 98, mas que apenas conseguimos ver de (e por) dentro. A globalização é, porventura, passe a ordem metafórica, esse espaço transparente que nos envolve e onde cabem todos os continentes, espécies e luzes do universo; é como que uma aldeia que mais parece obra-prima instantânea em rápida e imprevista comemoração. Por outras palavras, a globalização é uma espécie de rede simbólica geral, onde todos os nossos símbolos particulares da actualidade encaixam e, instavelmente, se harmonizam.

 Aquele que imagina a globalização imaginará - portanto - o mundo actual e todos os seus símbolos particulares que, por definição, lhe estruturam a própria realidade. Aquele que imagina a globalização é ainda um sujeito, mas não já o “sujeito cognoscente” cartesiano, nem tão pouco o sujeito kantiano que não aceita o mundo dado e adquirido. Aquele que imagina a globalização é apenas e tão só um sujeito global que projectou no todo (que encara sob o símbolo prometeico do globo) o individual, efémero e talvez universal que, de facto, é.

O sujeito global é aquele, em última instância, que passou a entrever o mundo como uma arena que é sua. Tal acontece, na medida em que os símbolos - com que a nova realidade se ordena - se conformam com novos limites espaço-temporais da comunicação. É por isso que a justiça deixou de ser um assunto fechado de um estado-nação, para passar a ser subitamente global (veja-se o caso Pinochet e aquilo que o futuro Tribunal Criminal Internacional de Roma prenuncia); é por isso que, como vimos, os valores enunciados pela TV global transpõem as fronteiras ditas locais, impondo-se com aparente naturalidade e acabando por construir os seus próprios códigos, “partilhados” pelas mais diferentes instituições (J.Bignell,1997:131) telemáticas do globo; é por isso que o tempo instantâneo é cada vez mais comum a locais tão díspares como a Tailândia, o Peru ou a Arménia e, por seu lado, o espaço cibernético faz explodir e expandir a espacialidade do espaço público original da modernidade.

Seria difícil e arriscado descrever a ordem simbólica particular que move e serve de êmbolo à grande e presente máquina da globalização. No entanto, os seus suportes estão diante de nós, todos os dias. São telemáticos, informáticos, digitais; envolvem-nos através dos chips dos satélites e das estações orbitais; são construídos por imagens fugazes, rápidas, pouco fixas, antes traduzindo-se na torrente (de ver, de imaginar, de consumir); são de errância e de desordem, quer na ordem dos valores e do pensamento estatuído, quer no desmedido liberalismo económico, quer nos verificáveis desequilíbrios sociais e demográficos do globo.

 

 

f) Similaridades óbvias entre o Deus do ano 1000 e o globário do ano 2000.

 

Digamos que “a imagem do oceanário da Expo 98 visto por dentro”, referida mais acima, corresponde a um bom modelo comparativo entre épocas e paradigmas tão diferentes como são, por exemplo, o ano 1000 e o ano 2000. Se, como disse, a globalização corresponde à rede simbólica que rege o nosso olhar actual para o mundo, ela é, por outro lado, basicamente, um enigma, uma incerteza, um nexo de imprevisibilidades. Existe, de facto, no homem do limiar do segundo milénio, uma franca incapacidade de descrever a relação que existe entre essa vasta rede simbólica global e os símbolos particulares que ordenam a vida quotidiana. Uma tal incapacidade traduz-se na difícil estruturação do próprio real em que vivemos, já que o papel dos símbolos é, ou deveria ser, precisamente, o de estruturar essa realidade, entendida como um processo complexo de descontinuidades e circunstâncias.

O homem do início da modernidade, sonhando-se um subliminar continuador de Deus, ainda imaginou mundos perfeitos, paraísos na terra, - um autêntica e futura idade de ouro que o progresso humano inevitavelmente atingiria. Hoje em dia - talvez porque o estádio dito pós-moderno só já mantenha algumas das características matriciais da modernidade inicial - o homem parece sentir-se apeado de uma consistência simbólica que lhe permitiria, a cada momento, explicar o mundo, definir o espaço e o tempo em que respira, esboçar convictamente um optimismo desafogado.

Curiosamente, o homem do ano 1000 olhava também, de dentro, para um edifício fechado e tão transparente como o alegórico oceanário da Expo 98. Esse seu globário invísivel, representado simbolicamente na figura da grande catedral, configuraria a ideia de uma rede simbólica geral onde cada símbolo particular repousava e partilhava os seus próprios dons. A globalização do homem do ano 1000 confundia-se com a magnitude que se pressentia em Deus, e sobretudo com o anúncio de uma respeitada e desejada salvação final. Esta estrutura, semelhante (apenas enquanto estrutura fechada e algo inomeável) à da globalização pós-moderna, é, no entanto, diversa, no que respeita à evidência do devir, e não tanto ao optimismo humano.

A diferença situa-se no facto de o homem do ano 1000 crer, sem margem qualquer onde se pudesse inscrever uma dúvida que fosse. O homem do ano 1000 é, com efeito, um homem que crê no concerto global da criação original e da salvação final, reservando a vida para uma lenta e repetitiva aprendizagem que acata e aceita, do mesmo modo que aceita que os raios solares se espalhem sobre o pico de uma montanha. Para o homem que cruza o próximo milénio, convoca-se, por constraste, não o optimismo de há um século atrás, por exemplo, mas antes a instabilidade, talvez criativa, assente nos suportes telemáticos e ciber-tecnológicos da grande máquina da actual globalização.

Por outras palavras, talvez soçobre em tudo isto um certo paralelismo acutilante, mas sempre silencioso, ou seja, - o globário em que vivemos é tão potente e está de tal forma em expansão que apenas o sentimos na razão directa da sua própria invisibilidade. Como o Deus do ano 1000, também o globário do ano 2000 é invisível e omnipresente. O que nos faltará, para além da crença e da dúvida metódica ou hiperbólica, é, porventura, distinguir os limites e as configurações exteriores deste nosso globário, do mesmo modo que protagonista do recente filme, The Truman Show - A vida em directo de Peter Weir (1998), o desvendou, depois de muita e persistente pesquisa.

 

 

Epílogo breve

 

Disse Frank Kermond que - “na nossa crise perpétua, temos, nas épocas próprias, talvez sob a pressão do nosso próprio fim, perspectivas entontecedoras sobre o passado e o futuro, numa liberdade que é a liberdade da realidade discordante”(1997:172-3[26]). É bem possível que o exacerbado desejo humano de instantaneidade corresponda a uma tal “perspectiva entontecedora”, mas, neste caso, incidindo no coração do presente.

 Os anjos, que terão sido os primeiros agentes mediadores a dificultarem um contacto imediato e instantâneo com o “grande código” omnipresente e total - Deus -, surgem, no título do presente ensaio, ao lado de figuras tão profanas quanto o são, por natureza, os meteoros. Entendamos estes últimos como uma metáfora física da velocidade que, sobretudo, escapa à raíz da própria voluntariedade humana.

Fugazes, céleres, surpreendendo o homem, os meteoros devolvem-nos a inocência perdida com que olhamos, extasiados, para uma aparição luminosa e efémera, quase como se fora milagre. Nada já, de facto, hoje em dia, nos diz que um destino marcado se irá, no futuro, cumprir - seja ele teleológico, ou definido através de um cerrado programa ideológico -, e, porque a expectativa de tais auguradas metas se esfumou, por enquanto, resta-nos, portanto, entrever a instantaneidade com que vamos metamorfoseando a realidade.

Aparentemente pacífica, embora plena de ruído - do mesmo modo que os anjos nos segredavam os sigilos divinos -, a instantaneidade actual é como uma espécie de película frágil e transparente. Por baixo dessa película, vemos asas de anjos desfocadas, escapando-se de nós, a todo o momento. Por cima dessa película, vemos verdadeiras chuvas de estrelas, carregadas de meteoros, alumiando-nos a infância do olhar. No meio, num equilíbrio cada vez mais frágil - coincidindo afinal com a película -, somos nós que, sem darmos por isso, nos descobrimos através dessa verdade antiga que é a “realidade discordante”.

            Assim seja. Assim possa deixar de o ser.

 

 

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s/d                          Rés-Ed., Porto

 

Thibault, P.           História universal - 12

1981                       D. Quixote, Lisboa

 

TOB                       Traduction Oecuménique de la Bible, Ancien Testament - I, A.Testament-II

1987                       Les Éditions du Cerf-S.B.F., Paris

 

Toffler, A.             A terceira vaga

1984                       Livros do Brasil, Lisboa

 

Vattimo, G.            A sociedade transparente

1991                       Ed. 70, Lisboa

 

Voltaire, M.           L'ingénu et autres contes

1995                       PML, Paris

 

Zorrinho, C.           Visto do Alentejo in Diário do Sul

                              2-11-98, Évora.

 

Whitehead, A.     Science and Modern World

1938                       Pelican Books, London-Aylesbury

 

 



[1] Ao contrário das visões predominantes na actualidade (cf.,por exemplo, A.Giddens,1995 ou A.McHoul,1996, onde, no seu Semiotic Investigations -Towards an Effective Semiotics, se pode ler: ”To think history in a Nietzschean mode is to avoid a metaphysical conception of history based on the identity and presence of each event with respect to an underlying and necessary structure, system, telos, Spirit, or grammar. It is, to evoke Derrida, to think history without a particular center - which is to say, a history with many candidate centers” (ibid.:7).

[2] Desde o final do século XVIII (cf. Cap. 8), até aos dias de hoje, um certo conjunto de símbolos-chave passou-nos a estruturar e filtrar a ideia de realidade. Desde o tenro início da modernidade, alicerçando já os fundamentos do paradigma em que hoje vivemos, registemos, entre outros, o estado-nação como símbolo dos limites naturais da comunicação; a liberdade e, por outro lado, os grandes códigos que imaginaram um futuro perfectível (as ideologias, por exemplo), enquanto símbolos de futuro e também da concretização do progresso; o sujeito tecnológico enquanto símbolo da ordenação do mundo, da natureza, além de magno cultor da velocidade; e, por fim, a contra-cultura, enquanto símbolo do conflito permanente que haveria de nutrir os vários sub-sistemas da modernidade (o político, o social, o artístico, o económico, etc), numa lógica de instabilidade necessária (ao contrário da cristalização sistémica pré-moderna, no seio da qual as várias actividades sociais integravam um esfera única e aparentemente estável).

                No entanto, as transformações tecnológicas e a lenta degenerescência de alguns destes símbolos-matriz (nomeadamente os grandes códigos sobretudo ideológicos e, noutros moldes, o próprio estado-nação), desencadeada de modo particularmente célere nas últimas duas décadas, haveriam de conduzir a uma inevitável superação dos limites naturais da comunicação que se instituiram no início, já longínquo, da modernidade. A grande rede simbólica da actualidade que, nos últimos anos, passou a reabsorver os símbolos modernos, já algo vagos e dispersos, é agora  designada e pressentida através de um termo enigmático e sempre repetido, mas nem sempre da melhor forma - a “globalização”.

Nesta medida, a globalização seria sobretudo uma qualidade potencial e traduziria, por isso mesmo, a ideia de fundamento de tudo o que  é - ou pode vir a ser - global (do mesmo modo que o vermelho é apenas uma qualidade potencial que legitima tudo o que, num dado momento, diante dos nossos olhos, efemeramente, adquire essa cor). Ou seja, a globalização  é aqui encarada como uma espécie de capacidade anterior que o sujeito global deteria, na actualidade, para poder olhar e construir o mundo, enquanto seu objecto.

[3] Friedrich Nietzsche, The Use and Abuse of History, Indianoplis, Bobbs-Merrill,1949.

[4] Ludwig Wittgenstein, Wittgenstein´s Lectures: Cambridge 1930-1932, Oxford, Blackwell,1980.

[5] Jean-Luc Nancy, Finite History in The States of Theory, Bloomington, Indiana Un.Press,1993.

[6] Por exemplo em Jacques Derrida, O outro cabo, Coimbra, A Mar Arte, 1995.

[7] José A.Bragança de Miranda, Política e modernidade, Lisboa, Colibri, 1997:32 (aí se compara o caracter “decisivo” da actualidade na tradição do “instante” de Nietzsche, do “transitório e efémero” de Baudelaire, do “jezzeit” de Walter Benjamin, do “inzwischen, o entre” de Heidegger ou do próprio “imortal agora” de Fernando Pessoa.

[8] A novíssima apropriação que partilhamos na actualidade é, pois, pela primeira vez, na História da humanidade, de cariz mundial. Depois de Deus, depois dos programas ideológicos, mas provavelmente reinsuflando ainda a génese utópica que nasce com T.More -, a instantaneidade tecnológica define agora o mundo como uma arena, não para descrever, não para explicar, mas sim para reimaginar. A forma desta arena talvez possa corresponder a uma estrutura produtora de conotações, transmitidas a partir de aparentes denotações, que visa a permanência e a instantaneidade, nos quatro cantos tememáticos do mundo. Este ensimesmamento da informação é paralelo (e proporcional) ao nexo do próprio consumo, ou seja, - tornou-se decisivo ter e receber, independentemente da necessidade do que se tem e do que se recebe; tornou-se mais importante o fluido ou a torrente do que se recebe e do que se pode consumir, do que os objectos ou as imagens, propriamente ditos, que se recebam ou se detenham. Esta avidez geral incontrolada define a ubiquidade da própria arena em que vivemos, e o seu simbólico zapping caracterizará o ritmo do fluido e da torrente que, por sua vez, se transformam no fim último, também, da própria comunicação.

[9] Referência aos textos do Antigo Testamento que sucedem ao Deuterónimo e antecedem Os (outros) escritos (Ketouvom). A obra unicamente utilizada é a Traduction Oecuménique de la Bible (TOB), 1987:403-1251.

[10] "... demandé" (...) "c'est le sens de son nom en Hébreu" (ibid.: 1987:509).

[11] "Le témoignage de la prophétie de Habaquq est d'abord celui du fidèle qui, bien que - ou parce que - désemparé, en appelle à Dieu contre Dieu lui-même dont l'action dans l'histoire est devenue incompréhensible" (ibid.:1987:1194).

[12] Todas as citações bíblicas que serão feitas, a partir de agora, têm a sua origem na Traduction Oecuménique de la Bible, édition intégrale (TOB) , Les Editions du Cerf/ Les Bergers et les Mages, Ancien Testament (AT),1987, Paris (Comité d´Edition; O.Béguin, J.Bosc, M. Carré, P.Ellingworth, G. Ferrier, P.Fueter, A.Kopf, G.Makloff e J.Maury); Les Editions du Cerf/Societé Biblique Française, Nouveau Testament (NT), 1989, Paris, Pierrefitte (Comité d´Edition: O.Béguin, J. Bosc, M.Carré, G.Casalis,P.-Ch Marcel. F.Refoulé, R. Ringenbach). A lista de abreviaturas dos Livros Bíblicos passará a ser a seguinte:

                Antigo Testamento: Ab (Abdias), Ag (Aggée), Am (Amos), 1ch (1r.Livro de Crónicas), 2Ch (2e.Livro de Crónicas), Ct (Cântico dos Cantos), Dn (Daniel), Dt (Deuterónimo), Es (Isaías), Esd (Esdras), Est (Ester), Ex (Êxodo), Ez (Ezequiel), Gn (Génese), Há (Habaquc), Jb (Job), Jg (Livro dos Juízes), Jl (Joel), Jon (Jonas), Jos (LIvro de Josué),, Jr (Jeremias), Lm (Lamentação), Lv (Levítico), Mi (Michée), Ml (Malaquias), Na (Nahoum), Ne (Néhémie), No (Números), Os (Osée), Pr (Provérbios), Ps (Salmos), Qo (Qohéleth - Eclesiasta), 1R (Primeiro Livro dos Reis), 2 R (Segundo Livro dos Reis), Rt (Rute), 1S (Primeiro Livro de Samuel), 2S (Segundo Livro de Samuel), So (Sophonie) e Za (Zacarias);

                Novo Testamento: Ac (Actas dos Apóstolos), Ap (Apocalipse), 1Co (Primeira Epístola aos Coríntios), 2Co (Segunda Epístola aos Coríntios), Col (Epístola aos Colossiens), Ep (Epístola aos Ephésiens), Ga (Epístola aos Galates), He (Epístola aos Hebreus), Jc (Epísyola a Jacques). Jn (Evangelho de João), 1Jn (Primeira Epístola de João), 2Jn (Segunda Epístola de João), 3 Jn (Terceira Epístola de João), Jude (Epístola de Jude), , Lc (Evangelho de Lucas), Mc (Evangelho de Marcos), Mt (Evangelho de Mateus), 1P (Primeiro Epístola de Pedro), 2P (Segunda Epístola de Pedro), Ph (Epístola aos Philippiens), Phm (Epístola à Philémon), Rm (Epístola aos Romanos), 1Th (Primeira Epístola aos Tessalonicienses), 2 Th (Segunda Epístola aos Tessalonicienses), 1 Tm (Primeira Epístola à Timothée), 2 Tm (Segunda Epístola à Thimothée) e, finalmente, Tt (Epístola a Tite).

[13] Apesar das posições de Santo Agostinho, "even more important than the ambiguous witness of the theologians, however, was the revival of apocalypticism evident in the latter part of the 4th century, especially in the case of the Sibylline tradition" (B. McGinn,1979:42). Registe-se, portanto, na época, uma certa continuidade da visão eminente dos fins que se propagará muito para além da tradiçäo da tradição profética da própria Sibila Tiburtina; exemplos dessa continuidade são os Diálogos de Sepulcius Severus (360-420/5), O Progresso do tempo de Qiuntus Julius Hilarianus (do fim do séc.IV) - estar-se-ia, então, a um século dos fins últimos - e, atribuído a Quodvultdeus, O livro das promessas e predições de Deus. O Papa Gregório I (540-604), sobretudo nas suas cartas e oratória, dá igualmente relevância à urgência dos fins últimos, embora o conciliasse com a tradição de Santo Agostinho. Mais a Norte, proveniente da Baviera, a profecia enigmática Muspili (séc.IX) corrobora a sucessão de signos que antevêem a urgência apocalíptica.

Santo Agosinho, em De civitate Dei, ataca, de facto, o paganismo romano, na primeira parte, e expöe a doutrina das duas cidades, numa segunda parte, onde, no Livro XXII, dá continuidade à semana, enquanto divisão essencial do tempo. As grandes fases correspondem (30,5) aos intervalos entre Adão e Noé, Noé e Abraão, Abraão e David, David e o cativeiro da Babilónia; do cativeiro ao nascimento de Cristo e daqui ao fim do mundo. O fim do mundo, por sua vez, subdividir-se-á em três partes: a vinda do Anticristo, o regresso de cristo e o juízo final.(A..Cayré,1953-I:722-3 e J. Le Goff, 1984:327).

A obra citada de Sepulcius Severus enquadra três diálogos, escritos em 404 e que recriam episódios da vida de São Martinho. De cursus temporum, de Quintus Julius Hilarianus, por seu turno, é uma obra considerada do âmbito "Crhonographique"(A.Cayré,1953-I:639). Por fim refira-se que Quodvultdeus foi aluno de Santo Agostinho e bispo de Cartago durante a invasão dos Vândalos.

[14] A referida profecia (in F. Von Leyen, Deutsche Dichtung des Mittelalters, Frankfurt, 1962:58-60) evoca a destruição do mundo através do fogo, depois de uma luta entre o Anticristo e Elias. Pressupõe-se a existência de um sincretismo devedor da escatologia das tribos germânicas e da escatologia cristã, recém-adoptada (ibid.:80). O texto original data de meados do século IX.

[15] Expressão de M. Herzfeld,(1982:169)que, no seu artigo, refere que a relação entre a realidade e a profecia que a gera (e de que é gerada), é fundamental para o estudo da semiótica da cultura. O paradigma inicial de um tal processo enontra-o o autor no Oráculo de Delfus:"The oracle seemed to provide the ideal paradigm of the calculating self-fullfilling prophecy". Esta reflexão é, claro, susceptível de ser actualizada noutros contextos em que uma comunidade interpreta a sua relação com o tempo, naturalmente ambígua e mutuamente geradora de profecia e realidade e vice-versa.

[16] A previsão da conjunção planetária de 1524 (registada, pela primeira vez, por Johann Stofller, em 1499) irá originar um intertexto profético denso e variado de cariz verdadeiramente catastrófico. Como O.Niccoli demonstrou (1990:140-166), a própria Igreja contribuiu, e muito, para a difusão destas profecias que prediziam um dilúvio derradeiro. O significado do mesmo era, segundo as interpretações avançadas na época, duplo: castigo de Deus pela corrupção da Igreja ou, noutra interpretação, pela rebelião luterana. O. Niccoli conclui que, passada a fatídica data de 1524, - "the figure of the astrologer emerged much diminished by the way popular culture had received the supposed deluge"(ibid.:167).

[17] A propósito, refira-se João de Leiden (Jan Bockelson), um dos mentores da reviravolta que Munster, assiste a meado dos anos trinta (no século XVI). Num ambiente dominado pelo crescendo dos Anabaptistas, e pelas visões apocalípticas, a cidade foi profetizada como a Nova Jerusalém, enquanto o resto do mundo seria destruído liminarmente. João de Leiden chegaria mesmo a ser coroado como o Messias dos ûltimos Dias e "rei de todo o mundo"(N.Cohn,1981:214-229).

[18] A neutralização, ao lado da presentificação e da intuição, é uma “categoria fundamental” que intervém na imaginação husserliana e que se traduz como sendo “une conscience qui opère le passage à l´irréalité” (M.M.Saraiva, L´Imagination selon Husserl, Martinus Nijhoff, Le Haye,1970:250-1)

[19] Sublinhado nosso.

[20] As diversas alíneas são criadas para nós, no sentido de ordenar a lógica taxinómica da citação.

[21] Ver Adenda-limite sobre esse novo produto do ratio difficilis actual: “a globalização”.

[22] Cite-se Émile Noel em entrevista a François Châtelet (Uma História da razão,1992/3):”Afirmar que ‘o real é racional’ é dizer: diante da massa de informações prodigiosa de que dispomos a respeito do passado da humanidade, somos obrigados a operar uma selecção, selecção que se efectua graças ao instrumento do conceito e à busca da inteligibilidade, afastando os acontecimentos sem importância para deixar subsistir apenas como acontecimentos reais os únicos que contam, os que entram no âmbito do conceito” (133)”’O racional é real’  - a afirmação recíproca - significa que, a partir do momento em que um acontecimento se impõe com força suficiente, como causa de outros acontecimentos, deixamos de poder pô-lo de parte. Devemos tentar dar a sua razão. Para isso, diz-nos Hegel, retomando uma frase da sua juventude, precisamos de forjar conceitos inconcebíveis, ou seja, inventar conceitos novos. Tal é, essencialmente, a função da dialética.”(ibid.:133). Interpertemos esta citação, no entanto, tendo em conta que, para Hegel, a história da humanidade é guiada por uma razão “imanente”, nada tendo a ver, contudo, com a “Providência divina”.

[23] “Não é possível falar em imagem, sem entender que a imagem é uma coisa e que o seu fundamento - legitimador e anterior - é uma outra coisa bem diferente. Vamos por partes e utilizemos, para já, a leitura que U.Eco faz da vastíssima obra de C.Peirce, o fundador da semiótica, no seu último livro, aliás ainda não traduzido em Português, Kant e l´ornitorinco (1997). Para C.Peirce, retoma U.Eco na sua interpretação, o ícone é um fenómeno que funda em nós a capacidade de nos apercebermos da existência de semelhanças. Esta capacidade anterior que nos possibilita a apreensão do que é semelhante pode subdividir-se, por sua vez, em diagramas (relações entre elementos, através do reconhecimento proporcional das partes); em metáforas (relações entre elementos, através do reconhecimento de similaridades entre constituintes essenciais das partes) e, por último, em imagens (relação entre elementos, criada pela duplicata das aparências do real, através de modelos). Isto quer dizer que o reconhecimento de um gráfico ou de alguns traços rupestres (diagrama), do verso de Camões - “Amor é fogo que arde sem se ver” (metáfora) e, por fim, da imagem fotográfica ou mental de um pinguim só se tornam possíveis porque, enquanto seres humanos, estaremos munidos de uma capacidade designada  por icónica que é anterior.

A definição de ícone poderá, portanto, assumir duas interpertações: uma cognitiva, vista na sua natureza pura, primária, como potencialidade de “likeness” e uma, relativa ao ser, que C.Peirce traduziu como sendo a disponibilidade, também potencial, de qualquer coisa a “incastrasi” noutra coisa. Quando falamos de capacidade anterior, falamos de tudo o que nos povoa sem que, no momento, esteja activo ou seja actual; por outras palavras, ao referirmo-nos a capacidade anterior, referimo-nos, claramente e tão só, a tudo o que é potencial em nós, seres humanos. Este conjunto de potenciais corresponde ao que C.Peirce designa por “firstness”, do mesmo modo que tudo o que é actual e está agora, neste momento, a ocorrer, corresponde ao que o autor designa por “secondness”.

No entanto, à medida que a espécie humana acumulou experiência e conhecimento da natureza e de si própria, verificou que as ocorrências actuais se repetem e podem até, naturalmente, tornar-se previsíveis. Esta capacidade de prever eventos - a maior parte das vezes de modo involuntário - atavés do reconhecimento de modelos, designa C. Peirce por “thirdness”. Deste modo, podemos dizer que o ícone é uma modalidade potencial - portanto, da “firstness” - que nos permite reconhecer a semelhança, enquanto que, por outro lado, a imagem só poderá existir na medida em que é actual e presente, na nossa consciência perceptiva, ou seja, quando corresponde à “secondness”.

Por outras palavras, tentando sintetizar, uma imagem apenas existe quando está diante de nós, na sua actualidade existencial e, por outro lado, na medida em que comporte elementos reconhecíveis - devedores de modelos anteriores já experimentados - através de uma complexa duplicata das aparências do real. Por exemplo, se olho para uma pessoa, ou se vejo, num filme, árvores, céu e estrelas, enquadrados em linhas e planos adquiridos (codificados), sei reconhecer o que vejo - ainda que não ponha intelectualmente essa questão - justamente porque existem modelos culturais que o possibilitam. Na obra de U.Eco do passado Outono, o autor chega a provar o modo como Montezuma percepcionou um cavalo, pela primeira vez, ou como é que os ocidentais, em 1799, encararam, também pela primeira vez, um ornitorinco; pela descrição, minuciosa e apurada, verifica-se, de facto, que, face à inexistência de prévios modelos de experiência que os enquadrassem imageticamente, quer o cavalo para os índios, quer o ornitorinco para os ingleses acabariam por ser descritos, através da sua inscrição noutros modelos contíguos existentes e possíveis. Curioso é o facto de esta interiorização perceptiva de objectos, até então desconhecidos, por via da convocação de modelos tidos como os mais ajustados e próximos, acabar por ser consequência de um inevitável estabelecimento de semelhanças que percorre o homem; ou melhor ainda: que é característica essencial do homem.

De facto, antes de os protótipos da experiência acumulada e da categorização actuarem, ou seja, antes de se dizer que o sol é um astro, ou um planeta do género tal e tal; ou um corpo imaterial que gira em torno da terra ou da lua ou de si próprio, - já lhe pré-existia a percepção de um mero e simples corpo luminoso, de forma circular, que se move no céu, constituindo-se como objecto familiar, antes mesmo de se converter em objecto liguística e retoricamente designado. Esta evidência é, ao fim e ao cabo, a mãe do momento icónico, isto é, - o reconhecimento autêntico, anterior, verdadeiro, íntimo, não baseado ainda em fundamentos adquiridos, e identificando-se com algo que está ali como é -, mas indescritível ainda no discurso humano.

Conclusão: a imagem é uma forma de reconhecimento actual, baseada quer na aptidão potencial, anterior e icónica de estabelecer semelhanças, quer nos modelos com que a reprodução aparente do real é interpretada. Extrapolações paralelas poderíamos estabelecer para o caso do diagrama e da metáfora - igualmente sub-divisões dos ícones, segundo C.Peirce - mas não é esse o objecto com que, hoje e aqui, nos ocupamos (L.Carmelo,1998b:1-2)

[24] Cf. Nota 7.

[25] Cf. nota 2, onde, para traduzir a expressão “paradigma global, recorremos a parte desta alínea d).

[26] De A sensibilidade apocalíptica, Século XXI, Lisboa, 1997 (The Sense of na Ending).