ANJOS E METEOROS
Ensaio sobre a instantaneidade
Luís Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa
“Tu remarquas, on
n´écrit pas, lumineusement sur champ obscur, l´alphabet des astres, seul, ainsi
s´indique, ébauché ou interrompu; l´homme poursuit noir sur blanc.”
Indíce:
0-Introdução;
1-O quadro
escatológico; 2-O quadro
utópico; 3-Utopia e
ancoragem no tempo; 4-O quadro
ideológico; 5-O alter-ego
da nova modernidade; 6-O quadro
pós-moderno; 7-Percursos
finais; 8-Adenda-limite,
ou o mistério da “globalização”; Bibliografia
No
meu doutoramento
(Utreque, 1995), debati-me com as relações existentes entre a literatura
profética (até ao séc. XVI) e o "Grande Código" (N. Frye, 1982)
escatológico. Se este código legitimava o presente e, sobretudo, devolvia à
imaginação humana um futuro perfectível (situado no além), já, nem sempre, esse
absoluto se adequava às expectativas e interpretações que dele se criavam no
quotidiano.
É
por isso que muita da literatura profética, a partir do séc. VI A.C., toda a
literatura apocalíptica (até ao séc. II D.C.) e, na continuidade, uma parte
significativa do intertexto profético (e da sua práxis) revelavam uma
impaciência imensa, querendo ver hic et
nunc, no agora-aqui terreno, cumpridas as prescrições de equilíbrio que o
grande código prescrevia.
Esta
postura enunciadora de impaciência está na base das manifestações do que
designo por cultura da instantaneidade, isto é, o desejo ilimitado de querer
ver configurados, já e aqui, aquilo que as "grandes narrativas"
(J.-F. Lyotard, 1989), sobretudo teleológicas, prometiam e garantiam. Outros
"grandes códigos" totalizantes se seguiram ao escatológico, no limiar
ou mesmo já no seio da modernidade, libertando a imaginação humana no sentido
da enunciação de um nenhures absoluto e prefiguradamente liberto do divino
(caso das utopias) e, por outro lado, da construção de programas sintacticamente
arrumados e hierarquizados (caso das ideologias). No âmbito destes novos
"grandes códigos", onde, de modo evolucionista e monocentrado[1],
a história continua a ser revista como um todo, “reflectindo certos princípios
de organização e de transformação” (A.Giddens, 1995:4), esta mesma cultura da
instantaneidade continua, no entanto, a manifestar-se, ainda que sujeita a
determinadas “modalizações" (A. Fowler,1982).
Num
momento em que, dominados pelo novíssimo paradigma global[2] da
mediação tecnológica - após uma gradativa diluição dos "grandes
códigos" totalizantes (em benefício da abertura à pluralidade de códigos e
ao "acentrado" - G. Vattimo, 1991) -, vários autores se referem
hiperbolicamente à instantaneidade, cumpre-me propor, ao longo do presente
ensaio, que este valor sempre existiu em termos isotópicos, definindo mesmo os
limites fluidos de uma cultura (decerto característica de uma necessidade
humana de reivindicação).
Sempre
me agradou a óptica que observa uma dada cultura como sendo uma crisálida
criadora de linguagens. Foi E. Cassirer quem disse que, sobre um alicerce de
formas simbólicas específicas, cada cultura ia criando milenarmente as suas
próprias linguagens: arte, religião, literatura, música e muitas outras formas
(de expressão e conteúdo) criativas e criadoras da imaginação colectiva. De
facto, a cultura judaico-cristã, com as suas imensas ramificações, é devedora
de uma tradição profética (e pré e pós-profética) que acabou, lentamente, por
codificar, de modo linear e historicista, o tempo, entendido como um devir
coerente que sobretudo legitima a articulação entre o presente e a imagem de um
futuro realizável, senão perfeito. Essa vasta tradição pode, pois, encarar-se
como uma forma simbólica central, sobre a qual, longamente, diversas linguagens
se instituíram e desenvolveram (independentemente de, já na modernidade, e para além do debate pós-moderno, autores
tão díspares como como Nietzsche[3], o
Wittgenstein de Lectures e Philosophical grammar[4],
Jean-Luc Nancy[5]
ou Jacques Derrida[6]
terem recusado uma visão continuista e quasi-científica da história).
Numa
tal linearidade continuista, das diversas visões do paraíso ao nenhures utópico
de More; dos patamares últimos que as ideologias conceberam ao "ponto
ómega" designado por Teillard Chardin, - nada nos faria escapar a esta
fúria inelutável com que caminharíamos do aqui-agora até à compensadora
extremidade do eskhaton. A nossa
cultura euro-ocidental sempre, de facto, viveu abismada, senão inebriada,
diante deste limite, na direcção do qual a história se transformaria numa foz
tranquila diante do grande oceano da salvação. Este horizonte último sempre, de
algum modo, legitimou o nosso próprio percurso colectivo e, por isso mesmo,
sempre existiram prescrições diversas (conforme as descontinuidades da história
passada) que nos moldaram posturas, princípios e imaginários; consideremo-los,
na esteira de N.Frye (1982), como constituindo os "grandes códigos"
totalizantes, destinados à humanidade no seu todo, fossem eles de natureza
teleológica/escatológica, de natureza utópica (ancorada no tempo ou não), ou,
por fim, de natureza ideológica (nas suas variadas matizes e matrizes de
oitocentos) .
O
que hoje - na “actualidade” (J.
Bragança de Miranda,1997)[7] -
profundamente se alterou foi, não a ideia de que as culturas são crisálidas
criadoras de linguagens, mas sim a ideia de que uma forma simbólica central
serviria de base a um corpo fixo de linguagens e, sobretudo, a um "grande
código" global que as regesse. A mediação tecnológica e o advento da
“ordem pós-moderna” na acepção (de A.Giddens, cf. Cap. 6) inflectiram
efectivamente esta estabilidade, baseada na acessibilidade de um devir único
inelutável. Mesmo se o desejo de instantaneidade levou, muitas vezes, a
humanidade a disputar o código (porque ele situava a salvação sempre num
depois, inacessível por natureza), nunca antes se havia concebido a pura
realização da instantaneidade no agora-aqui. E se a nossa vida, hoje em dia,
vive desse facto pacífico é, sobretudo, porque a tecnologia se transformou num
fim em si mesmo de que, com ingenuidade recolectora, nos apropriámos[8]
( como a própria tecnologia fosse o simulacro simbólico de um qualquer
"ponto ómega", antes só imaginável).
Mas,
sublinhemo-lo, este fim em si mesmo não é mais baseado num "grande
código" abarcante, tendo-se antes disseminado em variadíssimas séries. E
estas séries de sub-códigos acabaram mesmo por pôr em crise a ideia de um corpo
fixo de linguagens que acabou, também ele, por se disseminar num horizonte,
hoje, em plena expansão, embora essa mesma expansão seja fluida e sobretudo
imprevisível. Tudo isto ocorreu, no fundo, porque a própria "forma
simbólica" central que nos organizava o mundo (e que era baseada no culto
linearista do devir) se foi esfumando, a pouco e pouco, no limiar do que
diríamos ser a crise da nossa cultura euro-ocidental (privada agora do abismo
ou da esperança absoluta num limite último, traduzido pela imagem de um
qualquer esckaton que, ao fim e ao
cabo, a significava).
Tal
não quer dizer que as convulsões tenham acabado. Muito, mas muito antes pelo
contrário. Talvez precisamente para melhor compreender este novo mundo fundado
na "iminência" - para utilizar a expressão de J. Derrida (1995:121)
-, na errância e nos modos (e não na moda) é que, no quadro deste ensaio, me
propus traçar uma linha de possível continuidade para o que, hoje, melhor
definirá a nossa cultura presente: a instantaneidade. Até porque a
instantaneidade deixou de ser uma fé ou um desejo imanente à história, ou até
mesmo uma iluminação mística, para passar a ser, sobretudo, a concretização de
um milagre, sob a forma do mais puro
facto do quotidiano.
A
escatologia, enquanto instância reguladora dos fins últimos do homem, tornou-se
particularmente importante nos textos proféticos [9].
Antes demais, a escatologia configurou então um código que, ao definir as
diversas etapas que estabelecem a ligação entre o futuro e a esfera imediata do
presente, garantia ao homem uma legitimação do tempo, ou seja, assumia-se como
um processo de totalização ao serviço do sentido interpretativo dos signos. Um
tal macro-código escatológico permitia ao homem enquadrar as ocorrências da
história no quadro de uma lógica em que (segundo um princípio messiânico dos
primórdios do tempo profético) o termo último, e a sua razão de ser, era a
salvação. A passagem do tempo encontrava, deste modo, um sentido intrínseco,
bem como uma meta a atingir. A mediação que permitia descodificar, a cada
momento, os factos terrenos (na sua relação com o "grande código" -
N. Frye, 1984) era, na altura, exercida pela actividade dos profetas.
Nos
textos de Samuel (onde, por inspiração divina, a enunciação nomeia Saul, o
desejado [10],
como rei) inicia-se um debate em torno do rei-modelo e seu significado. No
centro deste debate, o rei David (e o seu templo) acabará por enraizar-se como
arquétipo do "servidor" (1R, 3, 6), delimitando o próprio paradigma
do messianismo nascente. Este leitmotiv
escatológico pressupõe, desde logo, uma entidade e um lugar simbólicos (o
templo de Jerusalém) que virão posteriormente a desempenhar um papel decisivo
aquando dos fins últimos (da salvação). Os textos do primeiro Isaías (6, 1-8 -
do séc. VIII A.C.) denotam já claramente estes padrões escatológicos que, nos
livros dos Reis (na sua terceira fase - do séc. VI A.C.) e sobretudo, durante a
intensa actividade de recompilação textual pós-exílica (depois de 538 A.C.),
serão bastante aprofundados.
Se
estes textos compatibilizam um horizonte final de salvação com o presente
histórico (e resultam da constante actividade - na primeira pessoa - da
Divindade junto ao profeta), já os textos atribuídos a Habaquq (1, 13 - séc. VI
A.C.[11])
parecem reflectir uma outra postura face ao desenrolar da história. O profeta
apela então a Deus (e, de certo modo, contra Deus), por crer que o código
progressivamente se inadequa aos sentidos que a (conturbada) passagem do tempo
deixa transparecer: "... tu ne peux accepter le spectacle de
l'oppression;/ pourquoi donc acceptes-tu le spectacle des traitres,/ gardes tu
silence quand un méchant engloutit plus juste que lui?/ Tu fais décormais les
hommes à l'image des poissons de la mer, de ce qui grouille sans
maitre..." (1987:1198)[12].
Este simbolismo da alteridade tende, de facto, a distanciar o homem face à
instância divina (e portanto ao código) e começa a repor a questão da mediação
nos moldes em que o período apocalíptico (Séc. II A.C. a séc. II D.C.) a irá
enunciar. Ou seja, para além de, no fim do período profético, o próprio
processo comunicacional homem-Deus se distanciar (já que a figura metafórica do
anjo - e não mais o instantâneo verbo divino - passa a ser o novo veículo
enunciador e simultaneamente agente mediador da natureza e aplicabilidade do
código, cf. Zacarias ou Ezequiel 24-27), também os factos da história
observados deixam, a partir de agora, de se equilibrar (ou de se articular) com
os horizontes revelatórios (antes) anunciados pelo código.
É
por esse quadro de razões que o período apocalíptico (após o séc. II A.C.) nos
trará inquietações novas e, ao invés de pôr o acento na promessa e na obsessiva
esperança pelo futuro, passa antes a tentar compreender como é que "a
história (no seu todo) pode ser encarada como sendo uma arena da actividade
divina" (C. Rowland, 1982:122). As encantadoras viagens em direcção aos
céus que as literaturas apocalípticas nos narram (por exemplo, o Livro etíope
de Enoch e Os testamentos dos doze patriarcas - séc. II A.C.), no sentido de
(instantaneamente) permitirem a directa visão de Deus e de, in loco, tentarem compreender o código e
a sua regência (face ao gradativo caos terreno), apenas virão corporizar este
novo tempo (em que até a própria natureza da escatologia se parece esfumar). Uma
das características do período apocalíptico reside precisamente na teoria das
duas idades: "the prophets foretold the future that should arise out of
the present while the apocalyptists foretold the future that should break into
the present" (H. Rowley, 1964:128).
No centro desta disjunção emergente parece ter-se perdido o pé face à
natureza do presente, na sua relação com uma ordem escatológica superior. A
retórica simbólica e alegórica, as visões (com destaque para as de Daniel, 8) e
o maior grau de abstracção, convocado pela já referida natureza mediadora dos
anjos, contribuem, durante o período apocalíptico, para a criação de uma zona
de sombra que separa, cada vez mais, os homens do "grande código" (N.
Frye, 1982). Entre os factos e a interpretação cria-se, deste modo, uma
mediação mais espessa, mais ambígua, afastadíssima da aparente instantaneidade
comunicacional própria dos profetas da realeza (que antecedem em mil anos este
período).
A
revelação cristã ocorre, entretanto, neste período conturbado. Embora as
semantizações apocalípticas se inseminem na vulgata cristã (já que enquadram,
em termos de género, o discurso literário dominante), são os conteúdos da nova
mensagem que agora se tornam decisivos. É sobretudo no chamado Apocalipse de
João que, através de uma retórica povoada de símbolos, surgirá uma nova noção
globalizante do devir escatológico. Com efeito, a escatologia surge-nos, nesse
texto, já inaugurada e a eminência dos fins enunciada parece adequar-se a esse
facto, já que os novos tempos são descritos como o próprio aqui-agora iniciado
com a vinda e, sobretudo, com a morte do Messias (Jesus). Apesar da redenção
anunciada remeter para a emergência de um novo reino, este, no entanto, só se
virá a cumprir no mistério e constituirá objecto de contínua (e histórica)
revelação.
Nesta
linha de ideias, o Apocalipse de João recodifica a escatologia, nela
descrevendo duas fases derradeiras (20, 1-15), objecto, aliás, de (futuras)
visões milenaristas, por um lado, e simbólicas ou espirituais, por outro. A
primeira corresponde a uma primeira ressurreição, a dos santos e mártires - que
reinarão sobre a terra durante mil anos (paratexto de variadas profecias
milenaristas); a segunda corresponde à ressurreição de todos os mortos, aquando
do juízo final. O dramatismo dos acontecimentos caracterizará o período que
precede a primeira ressurreição que culminará com a vinda do Anticristo; a
segunda e derradeira ressurreição, encerrando a etapa dos fins últimos,
culminará com o juízo final. Então Cristo reaparecerá sob o signo da parousia.
Este modelo de representação baseia-se na erradicação de uma primeira criação e
na sua substituição por uma criação nova.
Enquanto
doutrina dos fins últimos, a escatologia entra agora no seio da própria
história e o futuro, harmonizando-se com o aqui-agora humano, legitima um
sentido global para a vida - em direcção à eternidade e à salvação. Estamos
perante uma revolução, a nível do grande-código, ou seja, o tempo ético
(objectivo, mesurável) passa subitamente a compatibilizar-se, de modo inovador,
com um reconfigurado tempo émico (conceptualização “cultural” do contínuo
temporal - T. Bruneau, 1985:286). No entanto, e de acordo com algumas passagens
das Actas dos Apóstolos que disso são índice (1,8 por exemplo), ficariam sempre
por precisar, ao longo da revelação cristã, os momentos em que as grandes metas
escatológicas se realizariam: "Vous n'avez pas à connaitre les temps et
les moments que le Père a fixés de sa propre autorité".
Este "quando
indeterminado", sempre ofuscado, sempre enigmático, virá a ser,
justamente, um dos temas que a literatura profética (inspirada agora pelo novo
código escatológico cristão) irá mais obsessivamente tratar. Grande parte
desses textos, produzidos genericamente em (pelo menos) milénio e meio de
cristandade, atestam, de modo ciclíco, a tendência para uma interpretação
baseada numa cultura da instantaneidade. Ou seja, muitas serão as vezes em que
a literatura profética é como que compelida por uma disforia do quotidiano e da
vida (incompatibilizando-se com o que é mais obscuro e indeterminado no código
prescrito), sendo levada a gritar e a exigir, para já, a realização das metas últimas de salvação, anunciadas por
Cristo. Passamos a dar alguns exemplos desses momentos de uma cultura da
instantaneidade que, de alguma maneira, retêm da primeira literatura
apocalíptica (do séc. II A.C.) e dos últimos textos da literatura profética
(sécs. V e IV A.C.) uma inquietação traduzida na impossibilidade de espera,
devido à não concretização das promessas reveladas. É, portanto, da disjunção
entre o código divinamente fixado e a corrente interpretação das ocorrências da
vida que uma já embrionária cultura da instantaneidade acaba por manifestar-se.
A
partir da segunda metade do séc. IV (B.McGinn, 1979:42), independentemente do
testemunho teológico entretanto emergente (caso de Santo Agostinho), é de
salientar um reatar do espírito apocalíptico de cariz imediatista (onde a
figura da instantaneidade se manifesta com uma atitude interpretativa humana).
A profecia Sibila Tiburtina é desse
período e introduz a figura do último imperador (espécie de manifestação
visível de Deus na terra, ou teofania literária ligada às derradeiras batalhas
escatológicas) que, a partir do original grego, foi sendo sucessivamente
intertextualizado e manipulado até ao séc. XVI. Da mesma época, são exemplos
desta eminência dos fins últimos (ou seja, da abdução ou indução do código a
partir da leitura dos signos particulares terrenos) os Diálogos de Sepulcius Severus (360-420/5), O progresso do tempo de Quintus Julius Hilarianus e o Livro das promessas e predições de Deus,
atribuído a Quodvultdeus[13]. Até
ao cabo do primeiro milénio, de referir ainda duas manifestações importantes,
no seio desta corrente do instantanismo milenário: As cartas (ou o registrum epistolarum) do Papa Gregório I (540-604)
e a enigmática profecia bávara do séc. IX, designada por Mispuli (onde se narra a destruição do mundo através do fogo, na
sequência de uma luta entre o Anticristo e Elias [14]).
O
segundo ciclo de instantaneidade escatológica coincide com a passagem do ano
mil. Quer Abo de Fleury, quer Raul Glaber prevêem para o ano mil "a vinda
do Anticristo" e um tempo derradeiro de "grandes atribulações"
(G. Duby, 1986:22). A estas manifestações associam-se grandes peregrinações de
massas à terra santa (à Jerusalém escatológica e eminente), quer no ano da
paixão (1033), quer em 1064, quando uma segunda grande manifestação de
exaltação popular antecedeu o novo tipo de actualização escatológica que o Papa
Urbano II iria desencadear: as cruzadas. Os tempos dominadores de Gregório VII
(que acompanham a polémica entre o Papa angélico e o último imperador - ambos
encarnando um actante salvador-tipo da literatura profética), na passagem do
séc. XI para XII, ou seja, na sequência da Concordata de Worms (1122) e do Concílio
de 1123, constituirá, por si, uma travagem do que quase podemos considerar ser
uma constante dos textos proféticos medievais: a obsessão do fim eminente. A
tentação da instantaneidade escatológica imediata, ou, no quadro do presente
época, - a súbita dilatação do tempo na eternidade.
Num mundo em que as semióticas do mundo natural
coincidem com Deus, tudo é sinal, ou índice, ou vestígio de uma mensagem divina
endereçada à humanidade. J. Kristeva em Recherches
pour une Sémanalyse (1969) refere-se à transição que, lentamente, se
efectua a partir deste mundo do "Divinatio"
(O. Niccoli, 1990:13), segundo a fórmula da "transição do símbolo ao
signo" (ibid.: 116-118) que teria durado do século XIII até aos alvores do
século XVI. Para M. Foucault (1988:113), por seu lado, esta lenta transição
entre uma prática semiótica cosmogónica e uma semiótica dependente de códigos
puramente humanos só, de facto, se corporizará a partir do séc. XVII. Apesar
das diferentes interpretações sobre a recolocação do paradigma escatológico, o
certo é que este sistema globalizante atinge o seu auge, ou como referiu
N. Daniel (1975:112) - "a last burst of apocalypticism" -, no período
que precede (e sobretudo prolonga) a emergência otomana.
Com
efeito, e como ilustrou H. Schwartz (1992), a Europa de finais do séc. XV foi
inundada por uma praga alarmante de inúmeros almanaques e Prognostica de condenação - "...os europeus estavam então
decididamente convencidos do fim" (ibid.: 93). J.-Le Goff (1984:444)
considera, por seu turno, que a tensão caracterizadora deste período tem como
base uma digladiação entre expectativas optimistas e pessimistas que se
desenham à entrada do séc. XVI. Por um lado, a crença (instantânea) do advento
e da idade da paz que sucederia às atribulações dos diversos signos: a peste,
os cismas, as sucessivas vitórias turcas; por outro lado, a enunciação da
eminência do castigo e do fim do mundo. Mas este período de guerra profética,
dominado por uma autêntica ars moriendi
(povoada por híbridos monstros e por uma desabrida retórica do terror), opondo
mundos escatológicos distintos (o Islão e a Cristandade) e mundos distintos do
mesmo paradigma de natureza escatológica (refiram-se os cismas e as disenções
romanas), não é senão a confluência de um longo caminho anterior que, como
acima se disse, precede e prefigura a conquista de Constantinopla de 1453.
Passemos, portanto, a exemplificar com algumas das manifestações da cultura
escatológica da instantaneidade deste período.
Teremos
necessariamente que iniciar os nossos exemplos ainda numa data remota, ou seja
- entre 1135 e 1202 -, tempo de vida de Joaquim de Flora. O autor concebeu um
esquema tipológico, através do qual tentou recodificar o tempo histórico,
ordenando-o de acordo com três grandes idades - a do Pai (de Adão ao séc. VII
A.C.), a do Filho (em curso na época) e a do Espírito Santo (a do futuro
escatológico) - que teriam relações homológicas e também substanciais entre si,
no quadro das sete sub-divisões prescritas para cada uma. Esta necessidade de
ordenação do tempo e da experiência - face ao "quando indeterminado"
escatológico - acabou por não ser imune a súbitas visões eminentistas e instantanistas. Vivendo ainda no tempo
da disputa regnum-sacerdotium,
Joaquim de Flora acreditou na vinda para breve do Anticristo, reservando para a
figura de um Papa Angélico e para grupos de espirituais e eremitas o
protagonismo da vitória escatológica final (com que a terceira idade da
história, entretanto, se entreabiria). Curiosamente, na conclusão do conhecido The Pursuit of the Millenium, N. Cohn
(1980:231), ao tentar resumir as linhas de força que motivaram, entre os
séculos XI e XVI, os movimentos milenaristas (incluindo os do milenarismo
igualitário), referiu o facto de os "prophetae"
terem construído "o seu aparato apocalíptico a partir dos mais variados
materiais - O Livro de Daniel, o Livro do Apocalipse (de João), os Oráculos
sibilinos, as especulações de Joaquim de Flora e a doutrina do Estado Natural
igualitário - todos eles reinterpretados e vulgarizados". E, a rematar, o
autor conclui: todo "esse aparato (profético) seria transmitido aos pobres
- e o resultado seria ao mesmo tempo um movimento revolucionário e um despertar
do salvacionismo quase religioso".
Esse
vasto movimento profético (escrito e veiculado oralmente através do continente
europeu, mas também ligado à práxis mais imediata dos movimentos
revolucionários) é vastíssimo e tem em comum uma apetência pela
instantaneidade, na medida em que exigia e apelava hic et nunc pela absoluta justiça do fim dos tempos. Como exemplos
apontaremos os Fraticelli
(dissidentes dos franciscanos e adeptos de um apocalipticismo radical, - ligado
à figura de S. Francisco de Assis), o Apocalipse taborita (no final do séc.
XIV, na Europa Central), o Milenarismo igualitário alemão do século XV
(sobretudo no sul e nas zonas confinantes com a Boémia), o movimento Hussita,
as Seitas do livre espírito defensores do Estado Natural e a práxis das
Revoltas camponesas (Jacquerie de 1358, a da Flandres Marítima de 1323 e 1328
ou o levantamento inglês de 1381), onde se aliaram reivindicações sociais a
outras que postulavam uma predestinação inspirada no sentido de "guiar a
humanidade através das convulsões dos últimos dias" (ibid.: 169). Inspirando
uma mesma cultura da instantaneidade, contam-se entre as imensas profecias
(escritas) neste período, por exemplo, o Pseudo-livro
de Fiore (com uma edição de 1304 e uma outra da autoria dos Fraticelli, já de 1340); a Árvore da Vida de Ubertino de Casale
(1259-1330) - segundo Leff Gordon "a complete franciscanizing of the
apocalypse" (1967-I:65) -, onde o Papa angélico derrota na derradeira
batalha escatológica o Anticristo; Várias reedições (manipuladas) da já
referida Sibila Tiburtina e a
própria Profecia do segundo Carlos Magno
(de Guilloche de Bordéus, de finais do século XIV, - uma das mais difundidas e
intertextualizadas no século seguinte, atribuindo a Carlos VIII de França um
papel decisivo nas lutas finais eminentes).
Poderíamos
referir muitas outras profecias com idênticas tendências, analisadas noutra
perspectiva, em estudo anterior (L. Carmelo, 1995). O. Niccoli em Prophecy and People in Renaissance Italy,
por seu lado, descreve detalhadamente o percurso deste movimento profético de
características pré-utópicas (já que define mundos imaginários, embora
subordinados a um código escatológico determinado, recriando isotopicamente a
reivindicação de uma salvação instantânea, imediata, como se o mundo
subitamente se tornasse irrespirável). Para a autora, em Itália, o movimento
(com estas características) acaba na década de trinta do século XVI. Não será
esse o caso na Península Ibérica e na Europa Central, mas o século XVI verá, de
facto, a escatologia distanciar-se, a pouco e pouco, da sua condição paradigmática
- e até espistémica - de "grande código" (N. Frye, 1984). Outras
modalidades globalizantes virão partilhar o seu espaço legitimador, remodelando
o horizonte exclusivo, a partir do qual os imaginários sociais e históricos
eram projectados. É disso que nos ocuparemos na secção seguinte.
A Profecia do segundo Carlos Magno,
acima referida como uma das mais importantes dos finais do séc. XV, viria a
adequar-se, numa das suas realizações práticas (aliás como muitas outras), a um
acontecimento importante do real histórico. Tratou-se, com efeito, da conhecida
invasão do rei de França, Carlos VIII (1483-1498), ao Reino de Nápoles (1494),
que, em terras transalpinas, acabria por ser interpretada como o primeiro passo
para a conquista de Jerusalém e, portanto, como o início das várias etapas
escatológicas conducentes aos novos tempos. O rei Carlos VIII viria, de facto,
a ser recebido euforicamente na cidade de Florença como mito actualizado do
último imperador predestinado. Savonarola, o conhecido porta-voz deste
apocalipticismo instantâneo, esteve no centro da "self-fulfilling
prophecy" (M. Herzfeld 1982:169)[15] que,
durante alguns meses, conseguiu fazer da Florença humanista o centro escolhido
"of divine illumination" (...) "not only to warn Italy
of the tribulations which had now come, but also to lead her out of
abdomination and desolation" (B. McGinn, 1979:278).
Este terminalismo optimista colocou, no limiar do séc. XVI, a população
inteira de uma cidade como Florença à espera do decisivo sinal, como se uma
nova ordem igualitária pudesse subitamente descer dos céus para cumprir, de
vez, as promessas prescritas pelo "grande código" escatológico. No
entanto, Savonarola acabaria em desgraça e a sorte das suas profecias (e das de
Guilhoche de Bordéus, entre outros) viria a ser igual às que, por exemplo, de
modo massivo, até 1524, falharam no prognóstico do grande e derradeiro dilúvio
universal (devido à conjunção planetária, no signo peixes, ocorrida em
Fevereiro desse mesmo ano[16]). É
evidente que, como atrás se disse, desde as Jacqueries do séc. XIV até ao
início do séc. XVI, estes movimentos da instantaneidade escatológica eram
simultaneamente movimentos envolvidos pelas conturbações da ordem económica e
social (como também ocorreu na Florença de Savonarola). Não se nota, neles, com
efeito, uma dissociação clara entre ambas as esferas, já que o imaginário
social acaba sempre, em última análise, por projectar os decisivos parâmetros
do "grande código" escatológico. No século XVI, todavia, constata-se
uma alteração neste estado de coisas.
O
primeiro signo de uma autonomização efectiva do imaginário social,
dissociando-se de um "grande código" marcadamente escatológico, surge
- ainda que involuntariamente - com a Utopia
de Thomas More (publicado em latim, na cidade de Lovaina, em 1516).
Subitamente, imagina-se um nenhures, ou seja, um espaço insular idealizado,
espécie de não-lugar onde a vida comunitária é perfeita, de acordo com uma
expectativa de felicidade da existência e de abundância, segundo as
responsabilidades de liberdade de culto religioso, de harmonia perfeita entre
instituições e costumes e, por fim, de ausência de propriedade privada. A Utopia de More constrói, pela primeira
vez na história (euro-ocidental), um cenário de vida ideal - dissociado de uma
necessária imagem de Deus ou, pelo menos, das etapas divinamente consideradas
como necessárias para se atingir um Eden.
Subitamente, esse mesmo imaginário de paraíso é agora povoado pela
autonomização absoluta da imaginação humana. Independentemente da pragmática e
da hermenêutica do texto em questão, o certo é que ele institui uma nova
arquétipa globalizante que parece corresponder a uma necessidade de ajustar a
vida e o quotidiano a um devir que os transcenda, mas que, ao mesmo tempo, lhes
atribua um significado, ou seja, uma legitimação última.
Há
autores que estabelecem uma relação directa entre More e o caso de Tomás
Muntzer que, na década de vinte do séc. XVI, passou pelas cidades de Zwickau,
Praga e Allsted (na Turíngia), apresentando-se como Mensageiro de Cristo e
defendendo que os pobres eram os eleitos, tendo como missão "inaugurar o
Milénio igualitário" (N. Cohn, 1970:199[17]). A
diferença entre a mensagem de More e a de Muntzer é grande, no entanto. Para
J.-M. Goulemot (1979:474), Muntzer cria a ideia de uma "cidade nova,
revelada e oferecida pelo verbo", enquanto que, para More, a
"representação da alteridade social" é já "inventada, instituída
pelo acto da escrita que funda e constrói, simultaneamente, aquilo que existe
no espaço ficcional da narrativa, esse centro a partir do qual se organizam
todas as redes" (diegéticas) "que unem as ideias-utópicas às outras
formas de imaginário" social, portanto, de características extra-textuais.
Se houver homologias entre ambos os casos, elas decorrerão sobretudo da
topografia e dos temas sonhados, ou seja, da alteração da ordem dominante; do
igualitarismo anunciado e até do próprio regime de propriedade privada. Haverá
eventualmente conotações históricas entre os dois fenómenos, mas, seja como
for, Muntzer é ainda decisivamente inspirado pelo milenarismo escatológico,
enquanto que More frui já uma nova forma de imaginação, desprendida de
horizontes previamente estabelecidos (embora haja, naturalmente, no texto da
Utopia, elementos simbólicos da Bíblia, mas que devem ser interpretados
enquanto povoamento retórico-discursivo).
O
novo germe de paradigma globalizante - este recentíssimo espaço da utopia -
contém, em si, uma identidade e uma modalidade de elocução novas que, percorrendo
várias fases modalizadoras, nos conduzirá até à modernidade. Vamos seguir esse
percurso, começando por delimitar um conceito para este novo lexema criado por
Thomas More, a partir da imaginação de um nenhures. Para B. Baczko (1985:333),
a utopia funda-se num desejo de recomeçar a história, reatando mitos ligados ao
ideário do paraíso perdido, ou de uma idade de ouro a revisitar. Este olhar,
criado a partir de um lugar inexistente referencialmente (tendo, portanto uma
existência absolutamente imaginária) - o “nenhures”, para K. Mannheim (1936) -
tende a transcender a realidade que - através dele - se alegoriza, tornando-se,
no entanto, realizável, na medida em que pode "irromper a espessura da
realidade". Correspondendo a uma suspensão do real (no quadro da
“neutralização”[18]
husserliana), a utopia é, para C. Geertz (1973), um "sistema simbólico
abarcante" que, contudo, não obedece a um programa, ou seja a "um
conjunto de sentidos directamente inteligíveis" (ibid.: 209).
Quer
E. Noel (na entrevista de F. Chatelet, em Uma
história da razão - 1993:78), quer
B. Braczko vêem em O Príncipe de
Maquiavel um "esboço de utopia" (1985:345), não só pela
contemporaneidade da sua escrita face a More (redigida em 1514, embora só
publicada em 1532), mas também no que concerne, sobretudo, a projecção ideal de
um estado criado na terra (através da imaginação) e não a partir de uma visão
teleológica e celestial (como nos casos da Savonarola ou Muntzer). No entanto,
foi K. Mannheim, no seu Ideology and
Utopia de 1936, quem descobre, na
história das utopias, uma continuada isotopia do que temos considerado ser uma cultura
da instantaneidade. Procurando o início do facto utópico, não em More, nem
em Maquiavel, mas antes em Muntzer, o autor sublinha um parâmetro teórico
fundamental para a sua escolha, ou seja, - a "realização histórica"
de um sonho de características utópicas (embora podendo conter filiações
milenaristas-escatológicas) em associação a "estratos sociais
oprimidos" (ibid: 58) é que acaba por conduzir ao cumprimento do próprio desígnio utópico (ou seja, a
construção desse nenhures imaginado, capaz de suplantar e inverter a própria
ordem reinante, independentemente das presentes expectativas de
transcendência).
Numa
das lições de P. Ricoeur (proferidas na Universidade de Chicago) sobre K.
Mannheim (1991:445-466), o autor comenta e explica do seguinte modo a
exequibilidade da tese do autor: "O que confirma a escolha deste ponto de
partida é a sua influência contínua, e esta inclui a sua ameaça persistente às outras
formas de utopia. A utopia quiliástica desperta contra-utopias, mais ou menos
dirigidas contra a ameaça do ressurgimento desta utopia fundamental. As utopias
conservadoras, liberais e socialistas encontram todas elas no anarquismo da
utopia quiliástica um inimigo comum. Para Mannheim, há uma linha que pode ser
traçada de Muntzer a Bakunine" (...) "o que é específico ao sentido
nesta utopia, e talvez em todas as utopias que dela decorrem, é o repentino
caminho aberto entre o absoluto e o imediato aqui e agora[19]"
(ibid.: 455-456). Estaremos no
centro criador da cultura da instantaneidade e, sobretudo, na confirmação de
que ela se propaga, não já só ao longo de mais de dois milénios escatológicos,
mas também no germe da própria continuidade utópica (que, como se disse, virá,
mais tarde, a ancorar no seio da modernidade). Por outras palavras: se K.
Mannheim sublinha a existência de uma isotopia da instantaneidade, a partir das
profecias quiliásticas (realizáveis e simultaneamente ligadas às conturbações
sociais), então podemos dizer que essa linha isotópica já se encontrava
instalada na produção de imaginários em períodos que antecedem, em muito, a
exaltação do Anabaptista Muntzer (nomeadamente, como vimos, em três períodos
mais importantes, antes e depois do ano mil e, em períodos mais remotos,
nomeadamente durante o período apocalíptico e profético pré-exílico).
3. Utopia e
ancoragem no tempo
O
fascínio de Descartes (1596-1650) pelos novos instrumentos ópticos que, no séc.
XVII iam surgindo, - "levando a nossa vista muito mais longe do que
costumava ir a imaginação dos nossos pais" e, portanto, abrindo
"caminho para alcançar um conhecimento muito maior e muito mais perfeito
do que eles tiveram" (La Dioptrique,
1963-I: 651) - foi interpretado por P. M. Frade como estando "nos limiares
da posição moderna", já que o referente agora se instituía, de vez, no
devir, e não no que fora ou "foi conhecido" (1992:30). O
experimentalismo então emergente, e que leva Francis Bacon (1561-1626) a
conceber que "a exploração sistemática dos recursos naturais do mundo deve
ser um empreendimento cooperativo" (o que tem implícito uma configuração
utópica), ao serviço de uma "perfeição terrestre" (cit. in A. Rosa,
1996:19), é o sinal de um optimismo muito racionalizante, levado ao extremo por
Leibniz (1646-1716), já que, para o autor, o homem habita o melhor dos mundos
possíveis (N. Abbgnano, 1994-VII:7-32). O espírito do séc. XVII pode ser
sintetizado através de um comentário breve de E. Noel sobre o pensamento de
Thomas Hobbes (1588-1679): "Diríamos hoje - e não se trata de uma
deformação do pensamento de Hobbes - que o homem é desejo e que nada do que
deseja lhe é vedado" (1992:83). Este conteúdo de ilimitado desejo, ligado
ao devir e à racionalização progressiva da experiência e do saber, fazem do
séc. XVII uma época importante de fermento utópico. Época criadora de uma nova
idealização do próprio espaço, não só devido a inventos como o telescópio, mas
sobretudo - através das prospecções de Galileu, Copérnico e Kepler -, da
idealização de um novo sujeito que Descartes disse ser o sujeito cognoscente,
ou seja, “o Eu penso” que a si próprio se concebe.
No
entanto, é no século XVIII que código
utópico define novas direcções, novas semantizações e até novas perspectivas de
domínio do tempo futuro. B. Baczko (1985:348) descreve, no seu ensaio Utopia, várias tentativas de
reactualizar a actividade utópica, durante esse período. Louis-Sébastien
Mercier propõe, por exemplo, o termo "fictionner" para o acto
genérico de escrever utopias. Um dos tradutores (Nicolas Guedeville) de a Utopia de More chega mesmo a criar um
neologismo no sentido de designar a "operação pela qual o real se
transformaria em ideal" (1982:54). Mas um dos aspectos mais importantes do
incremento das utopias é, de facto, a sua integração em narrativas,
atribuindo-se-lhes dimensão diegética autónoma, embora susceptível de cooperar
com os argumentos ficcionais propostos. É o caso de Candide de Voltaire (1759), da Nouvelle
Héloise de Rousseau (1761), L'an
2040 de Mercier (1770), de Aline et
Valcour de Sade (1788) e, claro está, das Viagens de Gulliver (1726). A expressão de Rousseau, no final do Deuxième Promenade de Les rêveries du promeneur solitaire
(1770) - "Laissons donc faire les hommes et la destinée" (1994:32) -
é talvez o melhor indicador para um outro aspecto, talvez o mais decisivo, das
utopias, durante este século das luzes: a sua ancoragem no tempo.
Isto
quer dizer que, desde o paratexto inicial de More, a utopia era concebida como
um nenhures, onde se idealizava uma outra ordem, - distante, imaginária, fruto
de um sonho basicamente irreferenciado (embora pudesse constituir alegorizante
para um dado alegorizado). A partir de agora, e como já acontece no livro de
Mercier, L'an 2040, as propostas
utópicas passam a recuperar um ajustamento com o devir, facto, aliás, já
anteriormente pressentido; A. Ciaronesco traduz essa realidade do seguinte
modo: “Pour mesurer utopiquement le progrès, l´accession du genre à l´avenir
était indispensable. Le futurible, qui manquait aux dimensions de
l´utopie, fit enfin son apparition en 1770, avec Louis-Sébastien Mercier”
(1972:193). De certa forma, na teoria das idades da história de Giambatista Vico
(1668-1744) - onde esta é subdividida em idade divina, heróica e da razão -
pode reler-se a mesma ansiedade tipológica de Joaquim de Flora, embora, agora,
inscrita no âmbito globalizante de uma utopia “futurible” (e não no do puro
imanentismo escatológico), isto é, - num cenário idealizado, onde o homem
espera "uma coisa superior que o venha salvar" (in Scienza Nuova, cit. in N. Abbagnano,
1994-VII:43). O tempo, e sobretudo o futuro, passa assim a constituir o
referente, ou melhor, o "topic" (U. Eco, 1979:92), para os textos
utópicos (que, portanto, a ele se passarão a adequar, numa franca recuperação
do continuismo linear histórico).
Esta
modalização do modelo da utopia desembocará, no século XIX, como refere B.
Baczko (1985:365), numa "grande massa de textos utópicos" (...)
"constituída por livros, ensaios, jornais, etc., que expõem sistemas de
reformas sociais apoiados numa crítica mais ou menos radical da sociedade
contemporânea, numa filosofia da história, numa reflexão religiosa ou ainda em
análises económicas". Contudo, há nestas novas tendências utópicas, do
início do século XIX, ingredientes inovadores (e que nos remetem para a
continuidade de uma cultura da instantaneidade): "as utopias são agora
avançadas como outras tantas soluções a aplicar hic et nunc, a fim de responder à crise que aflige a sociedade e,
designadamente, às consequências nefastas da urbanização crescente e da
industrialização" (ibid.: 366). Tentando precisamente responder às novas
relações criadas pela crescente industrialização, Saint-Simon agita, então,
pela primeira vez, a ideia de fim de estado, - utopia que "é canalizada
através do programa de Bakunine e (que) continuará a fazer parte do horizonte
utópico do marxismo ortodoxo" (P. Ricoeur, 1991:484). Por seu lado,
Fourrier, numa empatia com Rousseau (e até com Vico), é antes apologista da
restauração de uma natureza inicial que teria sido subvertida, corrompida. A
ideia de que são as paixões e o prazer que devem, num futuro de
"deleite", governar a vida - no que P. Ricoeur designa como uma
"antecipação" do id
freudiano (ibid.: 494) - consagraria a restauração paradisíaca e a consagração
de um estado puro e original, ao invés de Saint-Simon que se limita a
projectá-lo no futuro, reinventando, para tal, o próprio sentido historicista e
teleológico do Cristianismo.
Apesar
de o século XIX emprestar às utopias novas configurações - sendo a mais
importante a sua incorporação em novos sistemas globalizantes, as ideologias -,
não devemos prosseguir sem antes revermos, ao nível da práxis, algumas
manifestações de instantanismo que, na continuidade, acompanham, com consistência,
a lenta modalização utópica. Referir-nos-emos, assim, a três momentos
históricos axiais, no sentido de compreendermos e relativarmos a progressão do
que designamos por cultura da instantaneidade: as revoltas camponesas (em
França) do séc. XVII, a emergência da revolução francesa e, finalmente, a
emergência das utopias nacionalistas.
Quanto
às revoltas de seiscentos, contemporâneas do desenvolvimento do novo estado
moderno, têm sobretudo como alvo imediatista a questão dos impostos (no quadro
dos, então, novos paradigmas fiscais). No entanto, a par desta reacção mais
imediata em relação às condições contingentes do quotidiano, estas revoltas
abandonam rotundamente o leitmotiv
milenarista e escatológico, recriando antes o imaginário de um reino diferente,
considerado livre, sem impostos e dirigido por uma realeza justa. A imagem do
príncipe - ou do rei - é respeitada, não se poupando, no entanto, os putativos
assessores que o aconselhariam e, portanto, desenvolvendo-se uma quadro utópico
onde se procura reactualizar (de acordo, por exemplo, com o que viriam a ser as
nostalgias utópicas de Fourrier ou Rousseau) um estado puro e perfeito, situado
algures no passado (sendo personificado, por exemplo, num Henrique IV). Estas
revoltas exigem geralmente a realização imediata das suas reivindicações (sem
grande sintaxe programática e, por isso, claramente utópicas) e remetem o
protagnismo para figuras anónimas, caso da sublevação nus-pieds (1639), assim anunciado: “João Pé-Descalço é o vosso
apoio./ Ele vingará a vossa disputa/ Libertando-vos do imposto" (...)
"Para impôr na Normandia/ Uma perfeita liberdade" (cit. in B. Baczko,
1985-2:317). Desde os anos vinte do século XVII, com a revolta dos Croquants (Quercy, 1624), às de Périgord (1637) até, de novo, em Quercy (já em 1707), estas rebeliões
retomam a tendência instantânea de recolocar hic et nunc a realização do "grande código" - neste caso
o utópico.
Quanto
à Revolução francesa, não nos cabe senão assinalar um elemento particular que,
no entanto, nos parece importante no âmbito que estamos a abordar. Trata-se da
aplicação de um dos fundamentos definidores da utopia, de acordo com a noção de
M. Eliade (1970:54 e 1963:121), ou seja, - a utopia como desejo de recomeçar a
história e, portanto, de abruptamente reinstaurar um novo início. No caso
vertente, o dia 14 de Julho, data da tomada da Bastilha, marca esse dia
emblemático em que, ritualmente, se emprestou à sequência da sublevação (do
Verão ao Outono de 1789) um sentido globalizante, afectando-o de único,
irrepetível e, sobretudo, reiniciador. Não só a contagem do tempo adquire novo
sentido a partir de então (sendo legalmente instituído através dos decretos de
5 e 24/10/1793 - E. Berl, 1965:5), como vários símbolos acompanham esse mesmo
desejo de um recomeço radical e absoluto: a insígnia (cocarde), os altares da pátria ou a própria árvore da liberdade.
Por seu turno, o domingo suprime-se e cria-se uma nova sintaxe para a noção de
semana, assim como as comemorações dos primeiros anos pós-evento tendem a
ritualizar (e a interiorizar colectivamente) uma nova ideia utópica de
fraternidade geral.
Este
instantanismo dos chamados sans-coulotes
- que se prolonga para além do 9 Thermidor (em Julho de 1794), assenta na ruptura
temporal e no anseio de atribuir ao devir um horizonte utópico, mas sempre
recriado na práxis mais imediata e presente. Estaremos talvez, e retomando um
outro estudo de M. Eliade (1975), perante uma hierofania do recomeço (reatando,
por exemplo, em termos de estrutura profunda, outros momentos ímpares e
iniciadores do curso do tempo, como, as revelações de Cristo ou de Muhammad), mas agora libertas de um
horizonte escatológico. Como M. Elchardus afirmou, a propósito dos sistemas de
ordenação temporal, duas condições devem ser cumpridas para uma reavaliação do
discurso sobre a duração: "Some potential unique events must be
constituted as, or taken to be" e "These events must be ordered, at
least by the elementar distinction before and after", já que "temporal
meaning is a dimension of meaning that interprets reality by using these
properties" (1987:12). De facto, quer o evento e a sua natureza
ensimesmada, quer a reordenação temporal daí decorrente, quer até a nova
dimensão significativa estão concomitantemente presentes neste reinício.
A
localização (idealizada) de um novo estado perfectível, equilibrado e justo,
está agora claramente colocado neste planeta, no agora-aqui da "utopia
realizável" - recorrendo à expressão de K. Mannheim, e não no além escatológico,
após um inevitável e pressentido fim do mundo. Esta mudança paradigmática, no
quadro dos "grandes códigos" totalizantes, é também aferida, em
Portugal, anos antes da Revolução francesa. Com efeito, na sequência do
terramoto de 1755, Pombal mandou fazer, ao longo do país, o que foi designado
por Interrogatórios, no sentido de
recolher informações sobre a duração do terramoto e sobre o número de réplicas
sentidas. Das centenas de respostas (depositadas no Arquivo Nacional da Torre
do Tombo, M.R., maço 638 - e estudadas por A. Rentes Florêncio - 1988) apenas
cerca de 5% revelam ter então acreditado numa (inevitável) eminência do fim do
mundo.
Da
Revolução francesa emerge também um novo conceito de Pátria associada ao
Estado-nação, acabando por imputar uma dimensão utópico-épica às comunidades
(dir-se-ia hoje "às culturas"), levando-as a um novo esforço de
inventário e pesquisa, ou seja, a uma inovadora auto-representação, capaz de
sintetizar um (singular) percurso desde as origens remotas até a configurações
actuais e idealizadas (situadas, portanto, num tempo presente e, também,
futuro). As lutas pela independência da Grécia, o movimento nacionalista polaco
(posterior à insurreição de 1830) e os tratados utópicos que desenvolvem visões
de uma futura pátria judaica (caso de Roma
e Jerusalém de Moses Hess (1862) e das utopias de Herzl relativas aos
kibbutz) são disso exemplo. Como o são também o culto a Camões que ocupa os
conturbados anos do início do Século XIX em Portugal: o Requiem de Bomtempo, o Camões
de Garrett e a estátua do poeta no Chiado são signos desse novo sentido de
partilha (e auto-reconhecimento colectivo). As utopias nacionalistas
desenvolvem-se desde o início do século XIX - e, seguindo a proposta de F.
Baumer (1990:23), - logo desde a primeira das suas quatro fases, ou seja, no
"Mundo Romântico", onde esse imaginário é já claramente florescente:
"Para a maior parte dos românticos, especialmente depois da Revolução, a
nação ou o Estado-nação constituía a forma mais elevada de organismo social.
Por isso" (...) "o Romantismo, de facto, contribuiu mais para a
ascensão do nacionalismo, que se tornaria em breve um dos maiores mitos
modernos, do que os Jacobinos ou Napoleão" (ibid.: 46). Com efeito, as
guerras nacionalistas do séc. XIX (mas não só!) são, para além de outros
desígnios ponderáveis, sobretudo grandes manifestações de instantaneidade
utópica, pois exigem hic et nunc o
cumprimento (às vezes semantizado de predestinação) do novo paradigma.
Seguindo
ainda a tipologia de F. Baumer (1990: 59-87), a segunda fase do século XIX
prolonga-se, cronologicamente, até a uma linha divisória compreendida pelas
datas de 1848 e 1859. Este é, segundo o autor, o período mais optimista do
século - banhado pela decisiva esperança na sistémica científica - e,
sobretudo, pautado pela consolidação da ideia de progresso; habitado pelo positivismo, pelos jovens hegelianos,
pelos chamados realistas na arte e na literatura e ainda pelo novíssimo
instantanismo fotográfico. Durante esta fase, Hegel morre, em 1831, e surgem as
primeiras obras de Marx, escritas entre 1842 e 1848, bem como o Manifesto
Comunista, publicado neste último ano. As ideologias batem-nos agora à porta e,
por isso, cumpre-nos, antes de mais, descrevê-las e, num segundo momento,
articulá-las com a proposição utópica (agora já com mais de quatro séculos de
história), pois é no quadro dessa articulação polemizadora que o século XX irá
emergir.
Para
Karl Mannheim (1936:74-6), a teorização de Marx contribui decisivamente para
uma concepção "abarcante" de ideologia (ou seja,
"globalizante", no mesmo sentido em que o termo tem sido empregue
quando aplicado aos outros "grandes códigos"). A ideologia deixa, assim, de se relacionar
com o espírito dos idéologues franceses
que, em setecentos, advogavam que a filosofia, ao invés de se fundar nas
coisas, se devia apenas fundar em ideias. Pelo contrário, a ideologia, agora,
passa a corporizar a ideia de uma visão global do mundo (por oposição ou
dissimetria, criando, de raíz, uma alteridade essencial) e que se assume como
estrutura total característica de uma "formação histórica concreta,
incluindo uma classe". Estamos perante uma nova concepção de sistema geral
de ideias e valores, isto é, um autêntico programa sintacticamente arrumado,
hierarquizado e fundamentado que - retomando Max Weber (como Geertz e Mannheim
muito citado por P. Ricoeur nas suas lições de Chicago (1991:83) - tem como
papel legitimar uma autoridade, um poder. Nesse sentido, a ideologia é uma
distorção (ou uma dissimulação) que, através da prescrição de um "grande
código", faz (ou condiciona a) interagir, "não a relação" entre
os homens, mas "a maneira como (eles) vivem a relação entre eles e as suas
condições de existência" (L.Althisser, cit,in ibid refazer)
Ao
enunciar um discurso sobre o modo de relação entre os homens, a ideologia cria
um conjunto de sentidos consistentes e coerentes (enformando semantizações, ou
de esperança, ou de estabilidade, ou de desejo de retorno ao passado, ou de
idealização radicalizada) que, por sua vez, se projectam em representações de
mundos perfeitos (opondo-se à imperfeição histórica acumulada). Deste modo, as
ideologias acabam, aliás como a escatologia e a utopia (embora, neste caso, o
seu mundo perfeito seja sempre volátil, informe, quase absoluto), por se
adequar à historicidade, legitimando o presente, através de uma batalha
conducente ao derradeiro patamar da realização colectiva. Ao referirmos o
lexema “batalha”, referimo-nos ao próprio berço da noção de ideologia, ou seja,
continuando a citar K. Mannheim (1936), referimo-nos a uma das essências da
própria modernidade: o progresso realizado por sucessivas oposições (no caso de
Marx, opondo, em primeiro lugar, a construção hegeliana - ou, por exemplo, a
ideia de religião - a um novo real, levando a cabo uma inversão, e, depois, em
segundo lugar, opondo a noção de ciência, que adopta, ao que passa a designar
por ideologia, embora, aqui, no sentido que lhe é atribuído pelas utopias de
Saint-Simon ou Fourrier). Esta nova forma de mediação da acção social que é a
ideologia, articulando uma representação da sociedade e as interacções que lhe
são intrínsecas, acaba por assegurar um nível de integração social e
imaginário, aliás vital, quer para o equilíbrio do próprio presente, quer para
a projecção num futuro perfectível que enuncia.
Para
B. Baczko (1985-2:302) o "termo ideologia" apenas adquire o seu
sentido actual por volta de 1850, como também a noção de “progresso” só é
colectivamente apropriada, como tal, no terceiro quartel do século XIX (ibid.,
1985-1:372). No entanto, a sua legitimação é muito anterior, já que, ao longo
do mundo dominantemente utópico, e, também, ao longo do incremento da
racionalidade, ela vai surgindo. Desde Maquiavel a John Locke e até Hegel, a
visão da autoridade e do poder vai-se deslocando no sentido da inevitável
inversão ideológica. K. Mannheim vai mesmo muito mais atrás, na captação de uma
raíz para o modelo ideológico. Levado pela lógica da dissimulação acima
descrita, ou seja, da falsa consciência derrogatória, o autor cita o profeta
Baal do Antigo Testamento e, no âmbito da cultura moderna, refere-se a
Maquiavel (por ter iniciado o "processo de suspeita sistemática" -
opondo praça pública e palácio); a Bacon (a partir da sua teoria dos ídolos), a
Hegel (já que, na Filosofia do espírito, se refere às distorções de linguagem
para uso político) e aos já citados
idéologues. Concluindo, e pesem as relativações possíveis, é um facto que,
na segunda metade do século XIX - e talvez durante um pouco mais de um século
-, a ideologia se converte num novo "grande código" (embora
articulando-se intimamente, como veremos de seguida, com os outros
"grandes códigos", até agora referidos e, a partir dos quais, aliás,
é estruturalmente gerado).
Segundo
F. Baumer (1990: 248/9), entre as ideologias que, a partir do terceiro quartel
do século XIX até ao século XX, se foram afirmando, contam-se o comunismo, o
liberalismo e o fascismo. Como se disse, é num quadro de oposições, quase
sempre irredutíveis, que estes sistemas ideológicos se desenham, embora
concomitantes com outros que deles são sucedâneos (caso do liberalismo
histórico associado aos ideários cristãos de Jacques Maritain, dos socialismos
democráticos ou de casos particulares, híbridos e aberrantes, como o Nazismo,
por exemplo). O final do século XIX - pautado pela dúvida, pelo agnosticismo,
pela morte de Deus, mas sobretudo
pela cultura do devir - reservava o século XX como receptáculo ideal das
grandes esperanças e realizações do “progresso”. O domínio da natureza e do
tempo, o incremento industrial, demográfico, científico e artístico disso eram
garantias, aparentemente, credíveis. Embora a primeira modernidade e o próprio
século XIX, na sua observância simbólica, só terminassem no final da primeira grande
guerra mundial, o certo é que as manifestações da cultura da instantaneidade se
foram sempre propagando (com mais intensidade, pelo menos, até ao limiar do
grande conflito do século - a segunda grande guerra mundial). Antes de
analisarmos a continuidade dessas manifestações, abordaremos, de seguida, as
relações que a ideologia mantém, à época, com o ecletismo utópico (o qual
persistirá ao longo das várias modernidades) e com o primeiro dos "grandes
códigos" - a escatologia.
Comecemos por citar Y. Bonnefoy
para referir que o Cristianismo (e também o Islão) são religiões "à temps
orientés" (cit. in L. Carmelo, 1995:145). Ou seja, projectam o cenário
ideal de salvação num futuro situado no além, legitimando o presente e o
passado de acordo com uma estrita linearidade histórica. No entanto, e como
adianta E. Noel (1993:125), "...estamos hoje numa civilização
integralmente histórica" embora essa "consciência histórica seja um
facto tardio" (...) "data do século XVIII". Este "elemento
constitutivo do nosso ser", que é a historicidade, no entanto, é
justamente o que se acopla ao "grande código" utópico quando,
justamente no século das luzes, como vimos, (ele) se ancora à história
(deixando de apenas configurar um nenhures ideal, para antes passar a imaginar
um algures, capaz de povoar o futuro para que a humanidade inexoravelmente
tende). Esta mesma visão, assente na linearidade histórica, virá a constituir o
suporte de todas as ideologias, agora de acordo com programas sintacticamente
"fundamentados, arrumados e hierarquizados" (tendo em vista integrar
e legitimar poderes instituídos). Pode-se, portanto, dizer que todos os três
"grandes códigos" decorrem de uma mesma representação baseada na
linearidade temporal, desembocando, ou na eternidade, ou "num ponto de
ómega" - segundo a expressão de Teillard Chardin - perfeitamente
imaginário, ou ainda na padronização de um futuro (harmónico) tido como
resultado de uma projecção real, irredutível e definida de forma (pretensa ou
assumidamente) racional.
Se
esta estrutura continuista é, de facto, comum aos vários paradigmas até aqui
observados, vejamos agora o tipo de relações que a ideologia e a utopia
desenvolvem entre si. Por um lado, a utopia é incorporada nos vários sistemas
ideológicos, na medida em que se torna na componente de crença ou de sonho que
acompanha a racionalização do programa proposto. Nesta medida, a utopia
torna-se num instrumento das ideologias, pois estas acabarão sempre - de modo
complementar - por remeter para uma dimensão também imaginária e poética, mas
sobretudo mobilizadora (entendendo-se, neste caso, a utopia com um puro
prolongamento ou aditamento natural do sistema ideológico). Por outro lado, se
é verdade que a ideologia tende a deter monopolisticamente, e de acordo com uma
pré-definição dos limites, a própria inventividade utópica -, também não é
menos verdade que, como reserva, a ideologia tende a reservar uma dada
autonomia para a realização utópica. Este facto acentua-se particularmente em
momentos de discussão ou de dúvida (possível) face ao funcionamento - ou
deficiente exequibilidade - da ideologia. Por exemplo, num discurso que
reoriente a firmeza ideológica, é possível clamar: - Não foi para isto que,
durante tanto tempo, lutámos por tais ideais, pois, se nos lembrarmos, sempre defendemos
x, y e z. Estes constituintes (x, y, z) - que deixo aqui em abstracto -
traduzirão o elemento imaginário e autónomo que, agora, sustenta a própria
revalidação (e reavaliação) do aparelho ideológico em crise. Uma tal autonomia
é, pois, retoricamente, uma espécie de concordância parcial a que se sucederá a
argumentação mais pertinentemente ideológica. Talvez, ao fim e ao cabo, seja
apenas uma questão discursiva (em primeiro lugar, sintáctica e retórica) que
estabelece a frágil e, por vezes, contingente fronteira entre ambos os códigos.
Outra
interpretação, com algumas correspondências com as anteriores, é a enunciada
por K. Mannheim (1936: 195/197). Para o autor, enquanto a ideologia é (por
razão de ser) "estéril" ou estática, já a utopia, por seu lado, é
animada de uma dinâmica capaz de alterar o estado de coisas real, ou seja, - é
essencialmente "realizável". A explicação para este facto é clara: se
a ideologia se atém à lógica dominante de poder - e, portanto, a um certo
imobilismo ou resistência - já a utopia, por seu lado, catalisa e potencia
antes valores (não rigorosamente proposicionais), mas que acabam, mais cedo ou
mais tarde, por vingar, isto é, por serem integrados - ou adequadamente
filtrados - no sistema ideológico. Estaremos, assim, face a Janus bifronte: de um lado, a ideologia
com a sua actividade preservadora e dissimuladora, velando por uma ordem de
valores; por outro lado, a utopia com o seu dom de escape, de desejo, de crença
construtiva. Se a própria ideologia liberal acredita num sistema maduro e
equilibrado (desenhado, por exemplo, a partir do modelo da "sociedade
aberta" de Karl Propper), é porque a utopia liberal se funda numa noção de
tempo onde "a história é (vista) como a vida individual, com infância e
maturidade, mas sem velhice e morte. A ideia é a de que há um crescimento no
sentido da maturidade" (P. Ricoeur, 1991:457). O mesmo se poderia dizer da
noção de liberdade (um conceito utópico desde o século XVI) que, a pouco e
pouco, com resistências inevitáveis, foi sendo reinscrito nos vários aparelhos
conceptuais ideológicos (embora com semantizações, às vezes, opostas - devido à
monopolização que a ideologia opera sobre a inventividade utópica, como
aliás já acima se referiu).
Finalmente,
queremos ainda realçar as homologias que se estabelecem entre ideologias e
utopias, no advento do pós-primeira guerra mundial. Se as primeiras se debatem
irredutivelmente (na teoria, e também na práxis), no quadro da alteridade
essencial que as criou, já as segundas, agora, se passam a desdobrar em utopias
e anti-utopias (do mesmo modo que, na literatura, no cinema e até na pintura -,
o anti-herói da nova modernidade subitamente salta para boca de cena da
imaginação humana). É assim que o novo século emerge: articulando, como atrás
se referiu, a polemização entre irreconciliáveis oposições - ideologias versus ideologias, de um lado, e utopias
versus anti-utopias, do outro. Aldus
Huxley, George Orwell, Fritz Lang ou Franz Kafka são, nesta medida, exemplos
modelares. Todos eles redescobrem o homem anónimo, descrente, errante e
fabricante de sonhos deformados e deformadores dos valores dominantes. A
integração do sonho e do imaginário na ideologia passa, de repente, a ser
também - desintegração, distância e dissimulação paralela (pois, frente à dissimulação
que a ideologia é, forma-se agora uma nova barreira de dissimulação -
imaginária - do real). À utopia construtiva opõe-se agora, igualmente, uma
utopia devastadora - signo, aliás, dos tempos. Esta tendência de constituição
do que designaríamos por alter-ego da
nova modernidade vai ser fundamental para a delicada respiração do século XX
que, no seu início, não o esqueçamos, - era ainda um território onde se
depositavam todas as esperanças do "progresso". Voltaremos a esse alter-ego da nova modernidade (pós-
1918), mas apenas depois de nos referirmos às manifestações da cultura da
instantaneidade do período que, até agora, temos estado a tratar: o do
"grande código" ideológico.
A
cultura da instantaneidade deve, no presente contexto, ser compreendida como um
conjunto de manifestações que exigem hic
et nunc o cumprimento do código, muitas vezes sem programa e direcção
claros, outras já com a assunção perfeita de um corpus ideológico, outras ainda prolongando lógicas anteriores
(como é o caso das revoluções nacionalistas). Mistura de disputa
utópico-ideológica, o mundo euro-ocidental, converter-se-á, após 1917/18, num
súbito abismo de antíteses - onde as ideologias dirigem contendas,
instrumentalizam (fragmentos de) utopias e onde estas se desdobram, como vimos,
em anti-utopias.
Começando
pelas revoluções nacionalistas, o rissorgimento
italiano, teórico e prático (sob o símbolo de Garibaldi), conduzirá a uma nova
ordem pátria, segundo o modelo do estado-nação, a partir de 1861. Uma outra
utopia realizável (aliás cantada amiúde pelos poetas), é a que culmina com a
unificação da Alemanha, uma década depois, em 1871, através da célebre
entronização imperial de Versailles de Guilherme da Prússia. Outros
nacionalismos, Checos e húngaros, por exemplo, acompanham este mesmo plano de
realização utópica. Entre 1848 e 1860, verifica-se, no entanto, um outro tipo
de manifestações. Em Junho de 1848, quatro meses após a revolução de Fevereiro,
Paris enche-se de barricadas e os revoltosos, constata-se - "n'ont pas de
programme politique précis" (M. - L. Heers, 1974:35). Estes apenas exigem
o "fim da miséria", mas são incapazes de definir programaticamente um
alvo, - o que, aliás, virá também a acontecer na Alemanha, uma dúzia de anos
depois (através do movimento que ficou conhecido pelo nome de
"Nihilismo" - termo criado por Tourgueniev em Pai e filho - 1860 - ibid.:166/7). Estes nihilistas apresentam
igualmente um horizonte de crença muitíssimo difuso: negam a religião, a moral,
a família e a literatura dita "desinteressante". O programa que
defendem, no limiar das futuras contra-culturas, parece consistir na remoção de
toda a ordem vigente (um pouco como o que, noutro âmbito mais pós do que
pré-moderno, acontecerá com a geração que sucede à segunda grande guerra mundial).
Não se podem dissociar estes movimentos, no entanto, do anarquismo: Proudhon
morre em 1864, mas a produção teórico-prática do movimento é assegurada pelos
russos Bakunine, e Kropotkine, preconizando "uma acção imediata, contra a
opressão marxista e o capitalismo liberal burguês" (ibid.: 28).
A
comuna de Paris, entre Março e Maio de 1871, é talvez o auge do instantanismo fin de siècle. Na sequência das
humilhações sofridas pela França diante dos Prussianos, Paris fecha-se de novo
sobre si mesma e, como em 1793, o levantamento de massas impõe a sua nova
ordem. Durante dois meses, a revolta tenta recriar um estado nacional composto
por várias comunas, acabando, no entanto, a cidade de Paris por se ver irremediavelmente isolada. Uma mistura de
Blanquistas, Anarquistas e Jacobinos compõem a dimensão sobretudo utópica da
sublevação, já que a influência marxista é ainda diminuta. O mesmo já não
acontece, em 1905, na Rússia, quando, por oposição à revolução democrática, os
revolucionários marxistas já lutarão pelo desígnio da "ditadura do
proletariado", numa declarada lógica (ideológica) de classe contra classe,
desencadeando uma insurreição em Moscovo que, contudo, é derrotada.
No
entanto, doze anos depois, os acontecimentos de Outubro e Novembro de 1917, de
novo na Rússia, constituirão, de vez, uma divisa do próprio século XX. Tal como
na Bastilha, tudo se torna agora possível e, por isso mesmo, uma vasta onda de
utopias envolve subitamente o programa ideológico que subitamente se tenta
adequar a uma lógica de poder. Esta exaltação instantanista não é longa, mas
percorre uma imensa zona do planeta. Os
dez dias que abalaram o mundo de John Reed e o filme O Couraçado de Potemkine de Eisenstein (já de 1925) constituem dois
marcos (ou, melhor, dois limites) metafóricos de purismo revolucionário, ou
seja, - de um momento histórico em que o devir é contido por uma crença global.
A miragem de um destino igualitário é então corporizado, como se se
prefigurasse no imediato. No entanto, a guerra dos brancos, as progressivas
indecisões da nova ordem institucionalizada, o fim dos sovietes livres (de que
a revolta de Kronstad (1921) é signo já de anti-utopia) e sobretudo as
depurações estalinistas - consumam este movimento instantanista. Como uma bola
de neve, pela Europa e pelo mundo, o impacto da ideologia comunista é grande e,
em consonância, os partidos aumentam, enquanto a vaga utópica (muito
autonomizada face ao que no país dos sovietes realmente se passa) se impõe como
libertadora e até inevitável. Os movimentos revolucionários tais como
Spartacus, Rur (1920), Saxónia (1923), o soviete de Hamburgo nesse mesmo ano e
a própria insurreição de Sófia, em 1525, entre muitos outros, são disso
exemplo. Tudo se passa como se, numa reactivação dos milenarismos do limiar do
século XVI, o hic et nunc de uma
libertação e igualitarismo augurados estivessem prestes a anunciar-se.
Mas
a década de vinte produziu movimentos opostos, embora, nalguns casos, com
participação popular muito grande. O fascista Mussolini, por exemplo, definiria
nação como uma "multidão unida por uma só ideia, que é o desejo de
existência e de poder" e o estado como "desejo ético universal"
(1942:167). Os nacional-socialistas alemães, que vão perversamente transpôr as
suas raízes a partir do "Volkish romântico", constituirão um
radicalismo anti-civilizacional, levados que são por um aberrante determinismo
racista e biológico. Uns e outros, de modo muitíssimo diferente, bem como uma
série de países - Jugoslávia, Polónia, Espanha e Portugal, entre 1923 e 1926 -
criam ideologias mais ou menos esquemáticas, mas todas enunciadas como
eminentemente salvadoras e capazes de devolver ao mundo a instantânea redenção
de todos os males (não só, mas sobretudo os causados pela nova ideologia
vencedora em Moscovo). Mundo irredutível e de pura dissimulação, onde a utopia
se renderia à tal ideia única que Mussolini, um dia, chegou a enunciar.
O liberalismo não constrói
nenhuma utopia neste momento da história. Só depois da segunda grande guerra
mundial (para "eliminar os vestígios de outra época, o medo mútuo e a
protecção de pequenos mercados fechados" (J. Monnet, 1955:45), e,
portanto, como reacção à hecatombe e, simultaneamente, como consequência do
datado optimismo reconstrutor da Europa, é que uma utopia democrática e também
liberal se constitui, na tradição do que poderíamos designar pela
"sociedade aberta" de Propper. É claro que nos referimos à utopia da
Comunidade Europeia que, como refere F. Baumer (1990:266), ao longo dos anos
70, perderá vigor. O instantanismo, neste quadro europeu do pós-guerra, decorre
sobretudo de um horizonte de iminência que assola a Europa, agora subitamente
arredada do seu papel de centro do mundo. J. Derrida, numa conferência
realizada em Turim, em 1990, disse-o com clareza: "A eminência em 1939"
(...) "foi também a de uma guerra e de uma vitória, depois das quais uma
partilha da cultura europeia iria cristalizar-se" (...) "O dia de
hoje, com a destruição do muro de Berlim" (...) "é a reabertura, a
desnaturalização destas partilhas monstruosas. É hoje o mesmo sentimento de
iminência, de esperança e de ameaça, a angústia diante da possibilidade de
outras guerras com formas desconhecidas, o retorno a velhas formas de fanatismo
religioso, de nacionalismo ou de racismo" (1995:121/2). Mas esta "iminência"
(com o seu quê de profético) parece já não comportar uma anti-utopia que
reagisse a uma utopia afirmativa anterior; neste momento, em que J. Derrida
observa a queda do muro de Berlim, o paradigma moderno fundado em antíteses
puras (utópicas ou ideológicas) já apresenta, de facto, claros sintomas de
crise. Dir-se-ia que parecia diluir-se ante a instantaneidade das imagens da
guerra do Golfo que, no ano seguinte, chegariam à Europa via CNN, ou seja, de
longe, a partir do exterior (mas com o fascínio de estarem já e aqui).
Fosse
como fosse, o certo é que esta nova modernidade - que se prolonga desde 1917/18
- viria, entretanto, ao longo de anos, a criar, no seu interior, um consistente
alter-ego (à sua própria consciência
antitética, ainda e sempre inscrita pela modalizada noção de
"progresso"), bem como inovadoras formas de instantanismo cultural -
que não parecem, pela primeira vez, disputar a emergência imediatista de um
"grande código" anunciador de futuras perfeições e harmonias humanas.
De facto, o novo tempo - por muitos designado por pós-moderno - de que a Berlim
de Asas do desejo de Wenders é
metáfora - , já vinha, ainda que subliminarmente, a ser desenhado no seio da
própria modernidade, desde o fim da própria Primeira Grande Guerra Mundial. Até
porque o homem orwelliano, a catástrofe ambiental, a cultura da guerra, as
novas demografias concentracionárias, a progressiva vacuidade dos "grandes
códigos" globalizantes e a novíssima ordem tecnológica, para o bem e para
o mal, a isso inevitavelmente pareciam conduzir. Por outras palavras: o que,
por ratio difficilis, se acabou por
traduzir através da polarizadora expressão “pós-moderno” é algo que, com toda a
certeza, não acordou depois do meteoro
moderno. Pelo contrário, sempre com ele terá coexistido, como se fosse uma
vigília necessária, talvez mesmo vigilante.
5. O alter-ego da nova modernidade (pós 1918)
Uma
das primeiras manifestações deste alter-ego
radica numa certa consciência do relativismo das coisas (ou na assunção de que
"não existe uma natureza humana fixa" - F. Baumer, 1990:187) e, por
outro lado, na percepção de que o homem parece, de alguma maneira, estar à
deriva - após a súbita descolagem da nova modernidade. Por um lado, o violento
debate entre ideologias, por outro lado, o choque entre utopias e anti-utopias
acabariam inevitavelmente por gerar um novo estádio residual (teórico e
sobretudo no domínio da práxis) animado de conteúdos disfóricos e cépticos.
Como, em 1936, Karl Mannheim referira, "a unidade ontológica do mundo ruiu"
(ibid.: 66), já que a nova modernidade, ao invés de projectar
imaginários abertos e descentrados, antes se desdobrou numa pluralidade de
oposições irreconciliáveis (nas quais, em todos os sub-sistemas, como até, por
exemplo, no artístico, as vanguardas se sucediam, umas contra as outras, em
derrogações sucessivas e liminares).
Esta nova sociedade europeia - mergulhada agora no súbito espírito
da velocidade fáustica e meteórica - era um produto das revoluções liberais e
industriais do século XIX (embora o real agora adquirido escapasse, de facto,
aos imaginários utópicos que antes o haviam sonhado). Ortega Y Gasset sentiu
este desfasamento que, após a década de vinte, já se sentia entre um mundo
mergulhado pela auto-mutilação das vanguardas, das ideologias, das visões
utópicas (e ideológicas) que pareciam em vão realizar-se. Este era, de facto, o
primeiro período da história que "nada reconhecia do passado como
modelo", como afirmava o autor em A
rebelião de massas (1930), rematando: “...o homem tornou-se num ser detentor
de grande poder”, mas sem saber o que dele fazer, mergulhado num permanente
"sentimento de perda e de insegurança" (ibid.:37). O expressionismo
alemão, de regresso aos estúdios e à catárquica geometria das sombras, desenhou
primorosamente este homem céptico e preso a um mundo que pareceria dirigido por
uma organização oculta, ou por um qualquer móbil secreto. Uma tal fatalidade
surge expressa, entre outros, em filmes de Fritz Lang como, por exemplo, Metropolis (1926) e Peste em Florença (filme de 1919,
alegorizando o mundo de Savonarola e associando-o ao mundo decadente do próprio
presente).
Para E. Cassirer, o autor da
Filosofia das formas simbólicas, o que se havia perdido era sobretudo uma
"energia central", fosse de ordem teológica, metafísica ou
científica, - algo que funcionasse como um ponto de referência, ocupando o
lugar de um "grande código" globalizante (que começava a esvanecer-se
neste mundo de antíteses e vazios). Talvez, por isso mesmo, o homem se tornasse
agora num ser inominável (é esse, também, o nome do romance de S. Beckett) e
desconstruído numa pluralidade de buscas e errâncias, em torno de um qualquer
espectro de referências (a heteronímia pessoana pareceria, aliás, reflecti-lo).
O instantanismo dadaísta, a acção imediata do surrealismo (ao reinventar as
sintaxes do mundo, ordenando elementos da irracionalidade, do inconsciente,
criando uma anti-utopia religiosa - de que Buñuel é símbolo - e desenvolvendo a
escrita automática), os movimentos construtivistas (ironizando a inteligência
dos artefactos maquínicos), os futurismos fascinados com a velocidade e com o
imediatismo dos manifestos e, por fim, Freud que, tal como Nietzsche, não opera
revoluções, "mas deslocamentos de pontos de vista" (E. Noel,
1993:153) - constituem, no seu todo, uma sequência de recolocação do referente.
Ou seja, o presente tornava-se, agora, no princípio e no fim; no momento da
vertigem onde, por milagre ou metamorfose súbita, tudo poderia emergir (mesmo o
que fosse meramente subliminar); fosse o melhor ou fosse o pior.
O triunfo do cinema é o
grande símbolo deste "deslocamento" da instantaneidade para a arena
absoluta do presente. A ficção torna-se, neste quadro, num rápido flash que há-de revelar as grandes
metáforas do mundo e todos os desejos e desafios por realizar (dando corpo a um
novo imaginário que se ancora na fruição de um agora-aqui, de que o star-effect
do cinema americano de produção, pós-1918, é modelo). O fascínio, a violência,
a cegueira e a desconstrução do real serão quatro fragmentos desta nova era,
para a qual as grandes urbes construíram uma alternativa vida nocturna, feita
para o prazer instantâneo (mas ainda não massificado). Este mundo, por um lado
riquíssimo, mas abismado pela crise económica e pela eminência da guerra, já
não é o mundo em que Mallarmé concebeu O livro insuperável, mas sim o mundo em
que Kafka concebeu a Metamorfose que
transforma subitamente o protagonista num insecto gigante. Para além de Kafka,
também Sartre, já em 1937, na sua Náusea,
comparava a liberdade do homem à morte e, dando corpo à imagem, Francis Bacon,
como antes E. Schiele, pintou a desfiguração desse homem profundamente alérgico
às regras da nova modernidade. No fundo, esse homem apontava já para os
"não-lugares" (M. Augé, 1997:30) que o novo estádio moderno e
antitético ia desencadeando. É por isso que, no vazio deixado pela digladiação
das ideologias e das grandes utopias e anti-utopias, esta cadeia manifestatária
(ao nível do pensamento, da arte e sobretudo do modus vivendi) traduz, cada vez mais, a ideia de um alter-ego vivo, actuante e profundamente
corrosivo face à consciência errante e disfórica da modernidade.
A
guerra de 1939-45 é, de facto, o abismo real do novo paradigma. Nunca antes,
numa tal escala, haviam morrido tantos civis. Nunca antes, numa tal escala, se
haviam planeado tão terríveis genocídios. Em nome de ideários perfectíveis. Em
nome de misticismos e de auto-representações do corpo social. Não apenas a
partir da bizarra Alemanha hitleriana, mas também ao longo do ainda pouco
conhecido condado de Estaline. A hecatombe correspondia - de facto - à abolição
do mundo, na medida em que o mundo, o nosso, é um mundo dos homens (e da
própria natureza). Desta guerra irrepetível saem algumas, novas, utopias: na
Europa (já o vimos), a reconstrução reembala um novo optimismo, embora marcado
por feridas dificilmente sanáveis; a leste, durante pouco tempo (até Budapeste
?), essa euforia ainda se veste de roupagens codificadas revolucionariamente e,
nos continentes do sul, as descolonizações produzem utopias nacionalistas muito
híbridas (já que mescladas com divisões étnicas, fronteiras artificiais e
alteridades sócio-culturais muito complexas).
No entanto, é o debate entre
a planificação marxista e a democracia liberal (ou social-democrata) que irá
centrar o conflito ainda ideológico, no pós-guerra. Os Estados Unidos e a União
Soviética, cujos exércitos se haviam encontrado em Berlim, em 1945, centram
agora as atenções e, por sua vez, a Europa, desfocada na sua missão de vanguarda
do globo, tornava-se numa arena inconstruída
e artificialmente dividida. Em 1985, no último suspiro desta divisão e no
momento em que os conflitos ideológicos pareciam ter dado lugar a meros
conflitos de regime entre potências - da guerra fria às variadas guerras
regionais -, M. Kundera escreveu: "A Europa não se apercebeu do
desaparecimento do seu grande foco cultural porque, para a Europa, a sua
unidade já não simboliza a sua unidade cultural. Em que bases assenta então a
unidade da Europa ? Na Idade Média assentava numa religião comum. Nos tempos
modernos, numa altura em que o Deus medieval se transformou em Deus absconditus, a religião cedeu o seu
lugar à cultura, que passou a significar a concretização dos valores mais
elevados" (...) "Da mesma forma que, em tempos passados, Deus cedeu o
seu lugar à cultura, é agora a vez da cultura ceder o seu lugar. Mas a quê e a
quem?" (1985:22).
A
resposta cabe, toda ela, na questão - muito actual - do definhamento real dos
"grandes códigos" que Kundera pressente e traduz através da expressão
"dos valores mais elevados". A perda de protagonismo, senão a quase
anulação do debate ideológico (a par da inércia e da incerteza utópicas) levou
A. Toffler, nos alvores da década de oitenta, a escrever uma (quase) utopia que
designou por A terceira vaga. O
autor fala, talvez pela primeira vez - com grande impacto - em poder acentrado:
"... as forças da Terceira Vaga favorecem uma democracia de poder
minoritário compartilhado; estão preparadas para experimentar uma democracia
mais directa; favorecem tanto o transnacionalismo como uma devolução
fundamental do poder" (...) "exigem um sistema energético renovável e
menos centralizado. Querem legitimar as opções de alternativa à família
nuclear" (...) "Reconhecem a necessidade de reestruturar a economia
mundial numa base mais equilibrada e mais justa" (1984:435). Na sua obra,
Toffler equipara a segunda vaga à nova modernidade e cria a imagem de destino
para uma futura terceira vaga, onde um novo sentido de comunidade, de estrutura
e de significado deverá ser readquirido, mas de acordo com o primado de que
"uma única perspectiva do mundo não poderá nunca apreender toda a verdade.
Só aplicando múltiplas e temporárias metáforas poderemos alcançar uma imagem
razoável (ainda que incompleta) do mundo" (ibid.:375). Toffler vê na
pluralidade e na desintegração social massificada crescente, não um alarme, mas
uma "oportunidade de desenvolvimento humano" (ibid.: 417). A mediação
entre o social e a sua representação já não se integra aqui no quadro ancestral
imaginário dos "grandes códigos" totalizantes. Um novo sistema de
códigos temporários e parcelares na sua adequação local, associado à
reestruturação global dos modelos energéticos e ambientais, bem como a nova
consciência produtora das minorias - constitui uma utopia, ou melhor, uma
prefiguração de um mundo em que o instantâneo se torna pacífico e quotidiano
(passando a advir da própria mediação tecnológica), e podendo mesmo contribuir
para acabar com essa instituição pública da segunda vaga que é a solidão (e
suas consequências, como a droga) através do que Toffler advoga ser a
“telecomunidade” (que, aliás, descreve com optimismo) - ibid.: 368/9).
Esta
década de oitenta olha, de facto já, com alguma distância para a geração que
foi gerada pela guerra e que, vinte anos antes, repunha uma derradeira
anti-utopia - ou contra-cultura - colectiva (embora com uma característica
singular: a forte marca geracional). Entre a catarse de Woodstock (1969) e o
Maio parisiense do ano anterior, esta juventude agitou bandeiras mescladas onde
se retratavam rostos de Mao ou de Che, fragmentos existencialistas do
pós-guerra, silhuetas que reclamavam a imaginação ao poder ou o pacifismo
absoluto e radical, quando não a simples purificação instantânea do novo star-effect do rock e dos paraísos
artificiais dos alucinogéneos. É uma cultura que diz não à desintegração
ou incumprimento do arqueo-progresso
da modernidade e que, ao mesmo tempo, não encontra um lugar e imaginário claros
onde se investir nessa mesma desintegração. Mas, ao contrário do que ocorrerá
nos anos oitenta, é uma juventude que não consegue ainda saltar para esse novo nenhures imaginário, de onde - ainda que
fragmentariamente - se pode já avistar a modernidade (e os seus variados
"grandes códigos" globalizantes) como se de um passado consumado se
tratasse.
Sintoma
desse olhar espectral (marcado pela
tontura de um qualquer fim de história) foi o que a simbólica
exposição-instalação, Les imatériaux
(no Centro Georges Pompidou de Paris - 1984) no-lo sugeriu; sintoma mais
alicerçado desse mesmíssimo olhar é, também, o que nos surgiria atavés das
reflexões de J.-F. Lyotard e G. Vattimo. E não foi preciso esperar muito mais
para ver que o muro de Berlim era removido e que as ideologias, enquanto
programas demasiado uniformizados, já não correspondiam socialmente a um modelo
mobilizável que ditasse um devir perfectível - ou um sentido que se
adequasse à marcha inexorável e vitoriosa da humanidade. Ou seja, o que fora
antes um quase indescortinável alter-ego
do estádio moderno, convertia-se agora numa reflexão que interrogava, senão
punha em causa, os últimos três séculos de domínio do tempo e da natureza. Isto
é, a própria modernidade.
a)
Ponto prévio sobre a discussão pós-moderna.
Antes
de avançarmos na senda do “pós-moderno”, convirá, de algum modo, suspender a
marcha e pensar. Lendo F.Merrell, no seu Semiosis
in the Postmodern Age (1995:2-3), verificamos o que é, de facto, um espectro
semântico vasto. Para tal, basta-nos seguir o percurso do autor que, antes de
precisar a sua própria terminologia na obra, decidiu levar a cabo como que um
balanço do uso actual da forma substantiva “pós-modernismo”. A conclusão é
redundande, pleonástica quase - senão vejamos:
...”Postmodernism
has consequently been at one and the same time characterized as (a)[20] a
questioning of totalizing, hierarchized systems - though it remains incapable
of destroying them” (Hutcheon,1988; Lyotard,1984); (b) intellectual containment
limiting openess (Connor,1989); (c) an end to rugged individualism (via the “death of the
subjet”)(Foucault,1970);(d) and na intersection, even a fusion, of scientific,
artistic, and academic attitudes (Hassan,1987)”(...) (e) ”the ultimate
extension of capitalist, consumerist societies (Jameson,1983-84); (f) a form of
commercial coopted capitalism (Kroker and Cook, 1986); (g) a neoconservative
reaction curtailing ‘unfinished project’ of Enlightment-modernist thought and
reason (Habermas, 1983); (h) a break with, either an intensification of,
certain characteristics of modernism (Foster,1983; Kaplan, 1988)”(...)” (i) a
suspension of logocentric discourse of identity, presence and certainly in
favor of pluralism, discontinuity, and indeterminacy
(C.Scott,1990)”(...)”Furthermore, (j) it is variously modeled on architecture
(Jencks,1977); (l) parody and paradoxes of literary form (Hutcheon,1988); (m)
local narratives, which will ultimately triumph over monolithic grand
narratives (Lyotard,1984); (n) pragmatically designed communities of
interlocutors (Rochberg-Halton,1986); (o) and the sign´s elevation to the
status of ‘hiperreality’, whereby it becomes more ‘real’ than the ‘real’
(Baudrillard,1983). It has even been seen to mirror (p) the decline of Western
civilization (Toynbee 1954), thus presenting virtually notihng new
(Graff,1979)”.
Não vamos, agora e aqui, analisar as complexas variantes, associadas ao
termo “pós-modernismo”. No entanto, - da denúncia do totalizante, à clausura do
sujeito; da vitória dos modos sobre a moda, à contra-cultura moderna - de
românticos a ecologistas, passando por Nietzsche; do não continuismo histórico
a simples género, signo de decadência ou hipertrofia do real - tudo parece, com
efeito, preencher o lexema “pós-modernismo”. Seja como for, o exemplo
funcionará, pelo menos, como uma espécie de sintoma, a partir do qual nos será
possível extrapolar, concluindo.
Quanto à natureza do
sintoma, situemo-nos, desde já, no quadro das profundas mutações do mundo das
últimas duas décadas e, por consequência, como refere A.Giddens (1995:2), na
novíssima “desorientação” teórica que advém - “da sensação que muitos de nós
experimentamos depois de ter sido apanhados num universo de acontecimentos que
não compreendemos inteiramente e que parece, em grande medida, escapar ao nosso
controlo. Para analisar como se chegou a esta situação não é suficiente a mera
invenção de novos termos, tais como pós-modernidade”(...)”Para além da
modernidade”(...)”podemos divisar os contornos de uma ordem nova e diferente,
que é ‘pós-moderna’; mas isto é muito distinto daquilo que muitos chamam
actualmente “pós-modernidade”. Mais do que continuar a problematizar a nível da
expressão, o autor prefere, portanto, sublinhar uma série de “descontinuidades”
de conteúdo que se operaram na ordem da modernidade, nomeadamente - a “rapidez
da mudança”, a rede de “interligação global” criada e a errância no “campo das
instituições” (caso do estado-nação, hoje em crise). É nesta ordem de ideia
que, cremos, A. Giddens prefere a forma adjectiva pós-moderna - ou seja, imputável a ocorrências
particulares - e não qualquer forma substantiva abstracta (e universal) tal
como “pós-modernidade” ou mesmo “pós-modernismo”.
Diga-se o que disser, na
discussão que é ainda actual sobre a matéria, o facto é que, face a conteúdos
corrosivamente novos que se construiram no mundo, a partir dos idos de 80, uma
panóplia de novas formas expressivas surgiu no sentido de as tentar traduzir. É
este o cerne da questão, em termos semióticos. Por outras palavras, e no quadro
do que U.Eco definiu como “modos de produção dos signos” (1975), estaremos,
neste caso, diante de um exemplo claro de ratio
difficilis (isto é, de um “conteúdo para o qual não existe um tipo
expressivo pré-formado” - 1994: 41) e, mais concretamente, no âmbito de uma
“invenção” (caso limite de ratio
difficilis), ou seja, - “expressão inventada no momento em que se procede,
pela primeira vez, à definição do conteúdo; a correlação não é (então) fixada
por um código, mas apenas com condenda”
(ibid.:46). Mais do que uma discussão sobre as formas de conteúdo que
redesenharam o mundo, nos últimos anos, com uma notável celeridade, a “questão
pós-moderna” tem sido, antes de mais, portanto, uma disputa sobre as
modalidades de produção sígnica. Dito isto, passemos então à análise do quadro
que, apesar de tudo, designamos por “pós-moderno”; a mesma não será exaustiva,
porque traçada ao serviço dos propósitos específicos do presente ensaio.
b) Do
pós-moderno, explicado a si próprio.
Assim
como, na literatura apocalíptica, os personagens efectuam viagens aéreas para
visitar os vários céus do mundo divino, retirando daí um modelo que deverão
comunicar ao ici-bas humano, também J.
F. Lyotard - de A condição pós-moderna
-recorre uma instância segunda para a adequar, enquanto modelo, ao vínculo
social da nossa sociedade, tida como pós-moderna. Essa instância segunda é
(talvez paradoxalmente) a ciência. A razão é simples: ao contrário da lógica da
modernidade, baseada em códigos que o autor define como "grandes
narrativas" (entendamos aqui, no âmbito do que temos designado por
"Grande código", ideias ou valores globais que legitimam o poder e se
destinam a toda a humanidade, tais como a ideia de progresso ou de emancipação
progressiva do homem), a ciência, de per
si, tornou-se num sistema aberto "em que a pertinência do enunciado é
que dá origem a ideias, ou seja, a outros enunciados e a outras regras de
jogo".
Assim sendo, "na ciência
não há metalíngua geral na qual todas as outras possam ser transcritas e
avaliadas" (1989:128). A ciência, nesta perspectiva, seria um campo
criador dos seus próprios códigos, nunca generalistas, mas sempre locais, nunca
definitivos, mas sempre provisórios. É este "antimodelo" da
"pragmática científica", baseado na "sistemática aberta"
(ibid.: 120), e tendo como princípio a diferença e não o consenso ou a norma
(opondo-se, portanto a quaisquer códigos globalizantes) que J. F. Lyotard
descreve através da noção de "paralogia" (ibid.:121).
Tentando
adaptar a paralogia à dimensão social, o autor continua: "Embora a
pragmática social não tenha a simplicidade da das ciências", o certo é que
o modelo destas pode corresponder à evolução das "interacções
sociais" da pós-modernidade, "onde o contacto temporário suplanta de
facto a instituição permanente em matérias profissionais, afectivas, sexuais,
culturais, familiares, internacionais, assim como nos assuntos políticos"
(ibid.: 131).
Gianni Vattimo (1991), em a Sociedade transparente (1991),
corroboraria estes mesmos facto, ligando-os à explosão das novas dimensões
comunicacionais da contemporaneidade (aliás, tal como J. F. Lyotard que já
relacionara as ciências cognitivas, as linguagens e a informação, para acentuar
a crescente "incidência das transformações tecnológicas sobre o saber” -
1989:15-16). Estas novas dimensões comunicacionais, metaforizadas pelo epíteto
“telemática”, teriam, segundo o autor, sido responsáveis pela dissolução dos
"pontos de vista centrais" (ibid.:13), os quais terão sempre
caracterizado a estrutura de todos os "grandes códigos". Estaríamos,
assim, não só para além da modernidade, mas também para além da história
(visto, neste caso, como algo unitário, submetido a um devir linear e unidireccional).
G. Vattimo teorizará ainda a disseminação de centros (como Lyotard que opõe
central e local), a noção de rede disseminadora de centros locais (de
acontecimentos) e a sua imprevisibilidade no quadro do próprio sistema.
De
certa forma, Michel Serres (s/d:9) já o havia referido nos anos sessenta:
"...da linearidade à tabularidade aumentamos o número de mediações
possíveis, tornando mais flexíveis as últimas. Já não existe apenas um caminho,
mas sim um dado número, ou uma distribuição provável". Esta não
programação global, ou a inevitabilidade de as múltiplas ocorrências se
sobreporem (na sua individualidade própria e efémera) a uma lógica geral
pré-determinada (o "grande código"), - coloca-nos, assim, no limiar
de uma nova era. As manifestações desta era já não se opõem a, como no
alvor da modernidade (construído, então, a partir de auto-representações
sucessivas de antíteses), mas apõem-se a. Dizemo-lo no sentido de
agregar ou adaptar, pois a nova rede em que a pós-modernidade subitamente se
redescobre - após o definhar gradativo dos grandes códigos, entre os quais as
ideologias - é um território em que a
cultura da instantaneidade também subitamente se descobre, a sós, sem ter já
que disputar a natureza de um grande código superior, geral e universal (como
acontecera em mais de três dezenas de séculos).
O hic et nunc pertence agora ao presente e a mediação tecnológica
parece garanto-lo - ao nível do saber, da comunicação e até do afecto (do
cinema à publicidade amorosa das nets)
- neste mundo acentrado e mutável que estará por definir. O que o caracteriza,
com efeito - além do cepticismo ou angústia
latente a que J.Derrida se referia já em 1990 e da novíssima “invenção”
(U.Eco, 1994) designada por globalização[21]-, é
uma inovadora práxis da instantaneidade. É a esse aspecto que passamos a
referir-nos, antes de nos aproximarmos dos nossos “percursos finais” (também
eles, claro, provisórios).
c)
Novos instantanismos.
A
identificação entre o absoluto e o imediato sempre caracterizou a cultura da
instantaneidade. Mas, agora, o absoluto - tal como no início do cinema -
passou-se a fundir com uma magia imediatista (já não sob a forma de pura ilusão
visual e stroboscópica, mas antes sob a forma de formulação científica), que A.
Bazin, de qualquer maneira, identificou com um desejo humano de “perpetuação”
(1975:15). Nesta linha de ideias, a viagem de um buraco negro até outro poderia
proporcionar a um qualquer e hipotético viajante encontros imediatos noutro
espaço-tempo (ou época), de acordo com teorias como as de F. Durham e R.
Purrington em The Frame of Universe: A
History of Physical Cosmology (1983-I:230). Mas não só. Tal como é
prefigurado na teoria matemática de René Thom (que H. Schwartz ironicamente
analisa em Os finais de século, 1992),
nos tempos que correm, - "parece razoável que as coisas e os seres possam
aparecer (ou desaparecer) num piscar de olhos" (ibid.: 263).
Este
imediatismo, mergulhado no desejo absoluto do homem se rever no impossível (e
que está na génese da própria ideia de fotogenia cinematográfica - E. Morin,
1956:25), encontra a sua forma, talvez mais realizadora, na noção de fractal,
ou de "morfologia do amorfo", - que aposta na descoberta de uma ordem
em "sistemas que parecem não ter nenhum tipo de ordem" (B. Mandelbrot,
1982:3). Como comenta H. Schwartz (1991:262-3), "em sequências não
lineares de fenómenos", aparentemente aleatórios (como "o irritante
gotejar de uma torneira, ou o drapejar de uma bandeira ao vento"), parece
seguir-se uma "estética do caos", ou seja, a passagem da desordem à
ordem seria gerada através de pontos de contacto instantâneos, imediatos, numa
palavra: fractais.
Esta
lógica que irrompe na metamorfose cinematográfica e que se espelha, na ciência,
através, por exemplo, desta miríade dos buracos negros, da ordem do fractal ou
da "cúspide cósmica" de R. Thom consagra um lugar de realce para o
instantanismo. Como se o absoluto tivesse encarnado na realidade que,
subitamente, o saber científico revelou na sua essencialidade do real mais
íntima; como se esta revelação da intimidade nos mostrasse que toda a natureza
vive - na verdade - em estado de permanente e instantânea mutação; como se o
absoluto e o instantâneo se tivessem finalmente reconciliado.
No momento em que tomamos a
consciência da consumação de uma tal reconciliação histórica, deveríamos, no
mínimo, apontar os responsáveis, no fundo, - os sucessores legítimos do
"grande código". Dir-se-á, com toda a naturalidade que, quer o
suporte, quer a linguagem, quer até o fim em si mesmo que ordena esta pesquisa
actual tem um nome: a tecnologia. É do papel da mediação tecnológica na
continuidade de uma cultura da instantaneidade, nas sociedades contemporâneas,
de que trataremos, para já, na próxima secção - “percursos finais”.
a)
Primeiro percurso.
A
primeiro percurso remete-nos inevitavelmente para a relativização da própria
noção de real que a nova era, dita pós-moderna, criou. Se, para Hegel, "o
real era racional"[22]
(quer isto dizer que perante a imensa quantidade de informações de que o
passado histórico põe à nossa disposição, é necessário operar uma selecção
baseada em critérios de "conceito" e "inteligibilidade"),
logo a racionalidade exige que se faça do real, uma selecção, um recorte, uma
amostra. Essa noção é também a que, numa outra perspectiva, a da semiótica
pragmática de C.Peirce, apuramos a partir da noção de ground of representation (ou "atributo de um objecto, na
medida em que este objecto é seleccionado de uma certa maneira e apenas alguns
dos seus atributos são considerados como pertinentes ..." (1978-I:292)
numa tal representação. Numa ou noutra óptica, ambas irremediavelmente díspares
na acepção, tempo e metodologia que perspectivam, o real (tornado em simples
fragmento relevante) é sempre uma representação (decorrendo esta, por sua vez,
sempre de uma qualquer selecção).
Para
certos autores, caso de F. Gil, a assunção entre as ideias de real e de
representação - ao "fornecerem o quadro formal da possibilidade de pensar
o mundo", constituem mesmo um par de noções absolutamente “anteriores” a
todas as outras (1984:38). Para A. Whitehead (1938:113), influenciado pelo
discurso quântico, e, posteriormente, retomado por W. Iser (1978:68) -, os
eventos são um paradigma da realidade, pois “designam um processo e não se
constituem apenas como meras entidades discretas”. Cada evento representará,
assim, o ponto de intersecção de uma variedade de circunstâncias, embora as
circunstâncias igualmente alterem a natureza do evento. Este processo
“transcende sempre”, seguindo um tal ponto de vista, as fronteiras que limitam
o evento "in the continuous process of realization that constitutes
reality". É patente, aqui, uma óptica de transitoriedade articulada com o
“sinsigno” (segundo C.Peirce), ou seja, "combined with actual unity"
(ibid.:113).
Os
critérios de selecção (do real) aqui aferidos são, ou racionais (porque
baseados numa dada inteligibilidade, segundo Hegel), ou, de certo modo, naturais (porque fundados na natureza do
próprio ground, teorizada por Peirce),
ou ainda circunstanciais (por dependerem de um processo sintáctico muito
complexo, segundo A. Whitehead). Transpondo agora para a mediação tecnológica,
ou seja, para o mise-en-abîme que a
representação (ou virtualização) tecnológica constrói a partir do real,
verificamos que nos debatemos com uma questão quasi-ontológica. No recente
livro de J. Derrida (1996:72) refere-se que num "mundo dominado pela lei
da visibilidade mediática, o que foi reduzido à invisibilidade ou ao silêncio
não tem outro regime de existência: pura e simplesmente não existe".
Ou seja, os critérios da
representação levam a que o recorte das ocorrências se processe de acordo com
intencionalidades imprevisíveis (e cada vez mais "acentradas",
segundo a expressão de G. Vattimo), sendo essas mesmas ocorrências, depois,
readequadas a uma ordenação e repetição determinadas, acabando por criar-se nos
espectadores autênticos "horizontes de expectativas" (H. Jauss,
1978), não próprios de uma época (como se advogava na "teoria da
recepção" de H. Jauss), mas de natureza corrosivamente efémera, às vezes
com a duração de pouco mais de um dia. Tal explica-se, porque, após um período
dominado pela "sociedade do espectáculo", em que a simulação
mediática dos acontecimentos fez história, - os anos oitenta e noventa
acabariam por mergulhar definitivamente numa tremenda inflação de discursos,
imagens e eventos (embora criados a partir de eventos realmente existentes), de
tal modo que acabaram por extravasar - ou transbordar (H.-P. Jeudy, 1995) - o
próprio real (referencial), virtualizando assim, através da vertigem
imediatista, a leitura do mundo.
Por
isso, é natural que, em cada dia que passe, a escolha de N eventos suscite uma
catadupa de outros (por conotação e sobretudo por metonímia), acabando o referido
flexível "horizonte de expectativas" por inevitavelmente se ajustar a
um tal feixe (de eventos) de durabilidade mínima. Em cada dia é, pois, possível
mobilizar uma vastíssima população à volta de um dado feixe N de eventos; e é o
próprio artefacto tecnológico que, além de criar a expectativa, o facto e o
discurso, acabará, no dia seguinte, por retomar o ciclo com um outro renovado
feixe N de eventos. A ansiedade discursiva sobrepõe-se, deste modo, a uma
imaginária ansiedade verificada na própria realidade que, cada vez menos, se
revê na mediação tecnológica que diariamente sobre ela opera. Exemplo disso -
entre muitos outros mais arojados - é o caso do aumento de crimes em Évora - em
Janeiro de 1996 -, tratado obsessivamente durante cerca de 48h pela rádio,
imprensa e por alguma opinião, a nível nacional, apenas porque dois repórteres
locais de televisão decidiram colocar em noticiários de grandes audiências um
passeio que realizaram através de um bairro da cidade, comentando um desfalque
numa pequena loja e um episódico assalto a uma casa.
A
instantaneidade da visibilidade mediática, a simples propagação de um fluxo
discursivo torna-se, deste modo, mais importante do que propriamente a
(razoabilidade da) questão dos critérios objectivos
de representação. Por outras palavras: a impulsão/compulsão diária (sobretudo
das imagens disponíveis em centros emissores) tende a sobrepor-se à
ponderabilidade da escolha, de modo que os critérios não se baseiam já, nem
numa racionalidade (pura), nem em critérios ditos naturais e muito menos numa pré-determinada complexidade
sintáctica. A realidade acaba assim por se converter numa selecção quase
impulsiva/compulsiva, criada a partir da pressão de um múltiplo e aparentemente
informe caudal de imagens, discursos e informações postos à disposição do
suporte tecnológico.
Isto quer dizer que, da
razão imanente da história hegeliana que, duma forma ou doutra, assistia ao
historicismo do "grande código" - passamos agora à instituição do
suporte tecnológico como um fim em si mesmo (independentemente do real
existente que, ao deixar de existir,
porque não seleccionado - cf. J. Derrida, 1996 -, se transforma numa espécie de
"não lugar" - retomando a ideia de "simples passagem", tal
como, por exemplo, um elementar viaduto ou aeroporto, na expressão de M. Augé -
1997:30). A ontologia deste "não lugar" será, hoje em dia, no fundo,
o único espaço confinado por excelência à imaginação
(pura), já que a realidade (virtual) do suporte tecnológico conduz-nos mais
instantaneamente à vertigem da imagem, do que à imaginação.
Depois
de termos reavaliado a própria ideia de real, dir-se-ia que, hoje em dia,
soçobram duas culturas do real: uma
cultura instantânea (massificada, ligada à explosão da imagem e a uma
compulsiva hermenêutica diária) e uma outra cultura ligada à afirmação dos
sentidos que escapam à omnipresença da imagem material (e que se encontra nos
tais "não lugares" a que nos referimos; é o caso de certa literatura,
do intimismo dos afectos, da solidão e, como referiu J.-P. Chavent (1996), de
noções como a saudade). A primeira destas culturas (que molda e renova, hoje em
dia, a própria noção de real) prolonga a tradição de uma ancestral cultura da
instantaneidade; a segunda prolonga antes uma dada cultura utópica (justamente
a que antecede o fim do século XVIII - antes de a prática utópica ter ancorado
no tempo - e que se caracteriza pela enunciação aberta de um nenhures puro).
Curioso é verificar que, de
um lado, a reminiscência utópica e, do outro, a reminiscência instantanista,
agora se libertaram uma da outra, tendo-se autonomizado, cada uma, em campos
completamente à parte (diria, até mesmo, quase opostos). Assim sendo, a
continuidade utópica deixa de ser auto-flageladora (como o havia sido na nova
modernidade, após 1918, baseada que era no conflito utopia/anti-utopia), para
agora se reencontrar no topic
exclusivo da imaginação afirmativa. Por seu turno, a instantaneidade liberta-se
agora da ansiedade (ou impaciência histórica) que sempre a ligou aos
"grandes códigos" totalizantes, tornando-se pacífica, quotidiana e
recriando a realidade como se esta fosse uma cascata em permanente mîse-en-abime.
b)
Segundo percurso.
O
segundo percurso diz respeito a uma característica comum aos "grandes
códigos": o facto de, todos eles, transcenderem a realidade humana (por a
comandarem e projectarem - através da idealização
ou do programa - ou, por outro lado,
por a distorcerem com fins de legitimação). Perguntamos: o que nos restará,
hoje, em tempo de múltiplos códigos e de regime acentrado, dessa transcendência
específica?
Vimos
que imaginação (pura) e instantaneidade são dois devires - ou duas
continuidades - que tendem, na
“pós-modernidade” dominada pela mediação tecnológica, a autonomizar-se.
A imaginação, esse espaço de reserva que o sistema remete para uma espécie de
utopismo de nicho, diverge, portanto, profundamente da imagem (móbil
fundamental da instantaneidade realizada pela tecnologia contemporânea).
Convém, de facto, estabelecer as diferenças entre o âmbito de ambas. Sigamos,
então, o raciocínio de Husserl. A imaginação, segundo o autor da fenomenologia,
é, com efeito, tripartida: pelo seu carácter intuitivo (porque a imaginação
"fait voir l'object, qu'elle met en contact avec lui - d'une manière qui
lui est propre et qui n'est certes pas la manière perceptive" - M.
Saraiva, 1970:248); pelo seu carácter de presentificação (pois, à presença
corporal e actual "de l'object perçu fait place, dans l'acte imageant, une
quasi-présence dans laquelle s'établit une communication sui generis entre la
conscience et ce qui a été antérieurement perçu" - ibid.: 248); e pelo seu
carácter de neutralização (pois a imaginação é também concebida como
"passage à l'irréalité"; ou seja, a imaginação desencadeia em nós uma
consciência "qui opère le passage à l'irréalité, à condition de la
considérer comme une conscience parmi d'autres - ibid.: 250/1). Ou seja, a
imaginação, por natureza, consegue libertar-se da inevitabilidade do objecto
que observa (pode até reinventá-lo, recriá-lo - como se fosse um nenhures puro)
e, por isso, empreende uma fuga à realidade, neutralizando-a, mas nunca
deixando, apesar disso, de constituir-se como uma das "essências" da
consciência humana. A imaginação nada tem a ver, pois, nesta perspectiva, com
níveis subliminares - inconscientes ou subconscientes - que nos povoem.
A
imagem, por seu lado, enquanto “duplicata icónica e actual das aparências do
real” (L.Carmelo,1998b:1-2)[23],
insere-se num mundo tecnológico que trabalha
ou opera - como tendo um "fim em si" mesmo (E. Noel, 1993:159). Se é
um facto que a realidade motiva a imagem, esta, por seu lado, reconstrói-a com
um ritmo e uma sintaxe próprias, extravasando-a (como vimos). Ou seja, a noção
de referente põe-se, neste âmbito, do mesmo modo que os teóricos da estética o
conceberam: como sendo intrínseco e jamais exterior ao objecto estético (já que
o objecto estético, embora possa reflectir o mundo, acaba sempre, e em primeiro
lugar, por criar a sua própria realidade autónoma, bem como os seus referentes
específicos - no que P.Guiraud designou por “imagem-objecto” - 1973:94). É por
isso que se pode dizer que a sintagmática imagética que, hoje em dia, nos
convive é, toda ela, esteticizada (já que objectivamente se assume como uma
realidade paralela, garantindo-nos, por outro lado, a instantaneidade icónica e
metafórica que nela - e apenas nela - reside, e não na realidade quotidiana e
factual que nos envolve).
A.
Rodrigues, no seu capítulo sobre a esteticização da experiência (em Comunicação e cultura - a experiência
cultural na era da informação - 1993:112) refere que, na arte, hoje em dia,
o que conta é o "seu valor-efeito, o seu valor de puro acontecimento, a
performatividade de uma acção estrategicamente desencadeada que se esgota na sua
própria realização" (embora aí se jogue com reminiscências "da mais
arcaica experiência estética"). O mesmo poderia ser dito em relação aos
mecanismos difusores de imagem, rarefeitos na sua referencialidade,
esteticizados na sua autonomia em relação ao real, ou seja, - existem, tão só,
para (instantaneamente) se esgotarem, no início e no fim de cada feixe de
eventos que, diariamente, nos devolvem. É evidente que, postas assim as coisas,
a imagem acaba por inevitavelmente reter alguma dose de neutralização, de
acordo com o pressuposto de Husserl, ou seja, - uma irrecusável passagem à
irrealidade.
Este
imediatismo tout court é, no entanto,
filtrado por parâmetros da imaginação, embora estes, naturalmente, acabem por
ter dificuldades em resistir à compulsão, ou melhor, ao fim em si, de que a tecnologia é, hoje em dia, paradigma (como
dantes o foram todos os "grandes códigos" totalizantes). O que, no
presente, transcenderá a realidade humana, no sentido de a legitimar ou de a
sonhar, - era essa a nossa questão - é, em primeiro lugar, a imaginação pura
(ou o já referido utopismo de nicho)
e, por outro lado, o próprio referente intrínseco que a imagem veicula, já que,
na sua indizibilidade e opacidade, ele, de qualquer maneira, nos reata e
actualiza domínios simbólicos antiquíssimos (tal como hierofanias e teofanias
acumuladas pelas comunidades). Aliás, como K. Mannheim há muito adiantou
(1936:262), a completa eliminação de elementos transcendentes à realidade
humana conduzir-nos-ia a um objectivismo (“Sachlichkei”) que “significaria, em
última análise, o declínio da vontade humana". O que seria impensável,
diga-se.
c)
Terceiro percurso.
O
terceiro percurso remete-nos, não já para o presente, mas sim para o futuro.
Vimos que a cultura da instantaneidade convivia muito de perto com o
"grande código" no início dos grandes ciclos. Por exemplo, durante o
período profético (no início da realeza judaica) a voz de Deus chegava, na
primeira pessoa, ao profeta que, quase instantaneamente, comunicava a Sua mensagem
a interlocutores terrenos privilegiados (legitimando-se assim o presente,
sempre em ligação com o futuro). A impaciência face a este estado de coisas
viria, no entanto, a aumentar nas vésperas do período apocalíptico. Um outro
exemplo remete-nos para a primeira fase da modernidade (depois dos finais do
século XVIII), quando o nenhures utópico, ao ancorar no tempo histórico,
desencadeou uma cultura da instantaneidade "realizável" (K. Mannheim,
1936) - até ao momento em que os códigos ideológicos programáticos a manipularam
e acabaram por monopolizar, de acordo com as suas lógicas específicas.
Nos
tempos que correm, verifica-se que a instantaneidade, fundada e enformada agora
na difusão tecnológica de imagens (e dos mais diversos sinais não taductíveis
em imagem) - convive, não já com o "grande código" (porque a sua
razão de ser se esfumou), mas antes com uma pluralidade de códigos que regem o
actual estado acentrado da comunicação universal. Sem querer enunciar
premonições, é bem possível que, no futuro, esta excessiva proximidade entre a
cultura da instantaneidade e os códigos que a regem se venha a alterar (como
também aconteceu nos exemplos acima transcritos, isto é, nas vésperas do
período apocalíptico e no advento das ideologias).
Um
tal (possível) estado de coisas faria com que o actual desejo de realização
instantânea - que a tecnologia hoje permite, de modo aberto e só aparentemente
democrático - amanhã se viesse a fechar plural e gradativamente, através da
crescente intervenção de vários códigos e regras particulares (a tendência na
internet, aliás, já se vai notando: há cada vez mais acessos que dependem de
assinaturas, enquanto se nota um nítido incremento de intra-nets fechadas -
tendência essa que é similar no caso dos satélites e canais difundidos). É
possível que, a breve trecho, a revolta e a impaciência venham a adquirir novos
moldes, até porque, em certas culturas híbridas actuais (onde se constata o
convívio entre desfasadas realidades escatológicas e ideológicas e, por outro
lado, a linha da frente das tecnologias), como acontece no sudoeste asiático e
nas Coreias, essa disforia e essa revolta são já claramente notadas no
quotidiano.
d)
Quarto percurso.
O
quarto percurso é o mais óbvio, sobretudo para quem leu (sintagmaticamente)
este ensaio, ou seja, - sempre existiu uma cultura da instantaneidade. Não é,
pois, apenas na presente época, dominada pelo episteme da mediação tecnológica
(e de onde as "grandes narrativas" e os "grandes códigos"
foram removidos, em benefício do local, da "sistemática aberta", da
pluralidade de códigos e dos itinerários e objectivos divididos), que se pode
reivindicar o exclusivo de uma cultura da instantaneidade. Entendo esta
asserção quase conclusiva no sentido de propor que a instantaneidade seja
definida como um "elemento modalizador" (A. Fowler, 1982) que foi
sendo lentamente intertextualizado no discurso totalizante das escatologias,
das utopias e das ideologias, embora salientando-se de modo relevante, devido
ao ensimesmamento dos suportes, no presente paradigma da mediação tecnológica.
Podê-lo-emos
mesmo comparar a outros "elementos modalizadores", como, por exemplo,
as reiteradas figuras salvadoras (que saltam das profecias escatológicas para o
utopismo, caso do último imperador, do papa angélico, do príncipe ideal de
Maquiavel, do Madhi islâmico e das
suas reminiscências simbólicas em casos como os de John Kennedy, Sidónio Pais
ou Garibaldi) e a própria ideia de liberdade (modalizada, desde o século XVI,
através do quadro utópico, dos programas ideológicos e no âmbito, claro, da
dificilmente designável “era da actualidade[24]”).
Por
outras palavras: enquanto, ao longo dos sucessivos "grandes códigos"
totalizantes, a instantaneidade foi um elemento modalizador (na sua
conflitualidade com aqueles), - na actual era da mediação tecnológica passou a
ser, para além de elemento modalizador, sobretudo um elemento estruturante (e pacificamente
funcional) da nova cultura.
8. Adenda-limite, ou o mistério da “globalização”.
a) O
mistério da globalização.
A “globalização” corresponde
ao que, na Idade Média, se designaria por um “universal”. Isto quer dizer que a
globalização é um termo que designa uma pura abstracção e que, portanto, nada
ou pouco tem a ver com a realidade, entendida enquanto permanente articulação
de factos (empíricos) concretos e particulares. Para os nominalistas de então,
e de agora, a globalização seria, portanto, um mero nome e não uma realidade.
No entanto, se apenas se admite que a globalização corresponda a um facto (ou a
uma ideia) particular, dever-se-ia, em consequência admitir que ela se pudesse
tornar geral, apenas e tão só na medida em que - como diria Berkeley -
conseguisse representar todas as outras ideias particulares da mesma espécie.
Este raciocínio obriga-nos a compreender que o atributo “global”,
sempre que é imputado a um facto qualquer, acaba por construir mais uma das
variantes particulares daquilo que a globalização, em última análise, irá
representar. Assim sendo, deve perguntar-se o que significa o dito atributo
“global”, hoje em dia. A resposta, curta, conduz-nos necessariamente a
seleccionar algumas das entidades mais óbvias que se repercutem no “globo”
actual, como por exemplo, - as linguagens de suporte electrónico, as
modalidades de transação económica, os satélites, a informação das
meta-ocorrências, etc. Contudo, fosse qual fosse o inventário exemplificado -
mais inexgotável do que possível, diga-se - acabaríamos por nunca caracterizar
adequadamente a própria globalização, talvez por esta resistir a constituir-se
como uma qualquer soma de partes.
Deste modo, é possível
afirmar que se pode saber (indexicalizar)
o que é - e o que não é - “global”, enquanto mero atributo de coisas
identificáveis, mas continuar-se-à a desconhecer, de qualquer maneira, a que imaginário corresponde, ao fim e ao
cabo, a reiterada palavra mágica - “globalização”. Se, com efeito, os
nominalistas antigos e modernos parecem ter alguma razão, cumpre insistir e
voltar a questionar, no meio de tanto pressagiado mistério: o que é, afinal, a
globalização ?
b) A
globalização revela-se apenas em mensagens particulares.
Ultimamente,
confrontámo-nos com duas noções interessantes de globalização. Uma de Carlos
Zorrinho (1998:2) e uma outra de Fernando Ilharco (1998:19). A primeira define
a globalização como um “quadro ideológico”, e a segunda identifica a
globalização, não com “algo que está aí” (“que vemos e entendemos”), mas antes
com “a forma como hoje vemos e entendemos o que está aí”.
No primeiro caso - e por me
parecer extemporâneo discutir aqui a própria arqueologia ideológica - parece
instituir-se uma ideia de moldura, ou de diagrama global, através d(a)os
qua(l)is se veiculam e processam valores, indicações, enfim, - sintaxes
sígnicas devidamente orientadas. No segundo caso, envolvido pela ideia heideggeriana
de “dasein” (o que “está aí”), o
autor recoloca o olhar para fora do “quadro” referido - onde se processam as
transações de valores e de bens -, para, de seguida, se referir à “forma”, ou
melhor, aos modos, através dos quais a subjectividade contemporânea encara o
que, à partida, se sabe ser global. Conclusão: para Zorrinho, a globalização
reside sobretudo no objecto observado - e na semantização que a sua organização
suscita; para Ilharco, a globalização estará sobretudo no sujeito que observa -
e no modo como este é levado a
observar.
Há todavia uma nuance que convém não esquecer: se a
noção de sujeito e de objecto amiúde se confundem, do mesmo modo que a
enunciação e o referente só existem e coexistem em mensagens concretas, onde é
que se manifestará, afinal de contas, a globalização ? Talvez a resposta se
esconda no seio da própria pergunta, já que, é na produção particular de
mensagens que a ideia de globalização acaba sempre, inevitavelmente, por se
revelar. Por um lado, porque surge oriunda de um sujeito - ainda que
indeterminado - que a cria, através dos valores (de “conteúdo” e “expressão” -
L.Hjelmslev) que enuncia na mensagem e, por outro lado, porque surge reflectida
e projectada em objectos concretos - físicos ou imateriais - que a mensagem
institui (o referente, entendido na perspectiva de U.Eco, segundo a qual este
jamais se pode confundir com o significado da mensagem).
Por exemplo, quando as
agências internacionais editam material visual, este é recebido em todo o mundo
como sendo basicamente denotativo e “objectivo”. As parcas palavras,
introduzidas localmente sobre as imagens, não alteram essa aparente denotação,
embora, desse material, se acabe, em última instância, sobretudo por conotar
variadíssimos valores implícitos (imagens cruas de luta na Faixa de Gaza ou no
Kosovo jamais são imunes a tal). Os valores enunciados transpõem assim as
fronteiras ditas locais, impõem-se com aparente naturalidade e fabricam o seu
adequado objecto (neste caso imaterial). Além disso, a TV global produz os seus
próprios códigos - do mesmo modo que qualquer média emergente os constrói - e,
como refere Jonathan Bignell, estes são silenciosamente “partilhados pelas mais
díspares instituições” telemáticas do globo. Numa palavra: através de uma
expressão electrónica e de conteúdos sucessivamente conotativos (que significam
a mensagem), a globalização acaba por projectar-se, quer na dimensão fática do
média utilizado, quer na ordem dos referentes criados e que são sobretudo
imaginários, actuais e, claro, algo impositivos. O sujeito enunciador dilui-se
neste processo e o objecto referenciado torna-se numa pura imaginação tendencialmente única, mediana, uniformizadora.
c)
Globalização: capacidade anterior de um novo tipo de sujeito ?
Não existe, pois, globalização
fora do mundo criado pela hemorragia de mensagens que são “actuais”. O
adjectivo “actual” designa o momento, ou melhor, a instantaneidade em que a
mensagem se torna acessível à comunidade (ou “being in common”- A. McHoul), próxima ou longínqua, que a significa
e/ou descodifica. Se o domínio de alguns grandes meios-chave que produzem a
mensagem global estão na mão de poucas instâncias, é preciso não esquecer que,
sobretudo a nível da internet e do aproveitamento dos satélites, a
acessibilidade ao que é global se tornou num dado quase generalidado. Este novo
espaço de cruzamento de mensagens universais corresponde, ainda que apenas
metaforicamente, ao conceito medieval islâmico de Dar al-Islâm. Este conceito delimitava o território não apenas
físico do império, mas sobretudo o espaço da salvação humana que consubstanciava e que, por sua vez, se
contrapunha, por exemplo, ao espaço cristão. Esta apropriação simbólica do
espaço evoluiu, na passagem dos grandes códigos escatológicos para os
ideológicos, para o conceito do chamado mundo
libertado (correspondendo, ou à esfera soviética, ou à americana, conforme
era visto e difundido pelas partes durante a guerra fria).
A novíssima apropriação do
território que habitamos na actualidade é, pela primeira vez na História da
humanidade, de cariz mundial. Depois de Deus, depois dos programas ideológicos,
mas provavelmente reinsuflando ainda a génese utópica (“de nicho” - cf. Cap. 7)
que nasce com T.More -, a instantaneidade tecnológica define agora o mundo como
uma arena, não para descrever, não para explicar (de acordo, respectivamente,
com o pendor aristotélico e cartesiano), mas sim para reimaginar. A forma desta
arena talvez possa corresponder à ideia que Carlos Zorrinho traduziu por
“quadro”, ou seja, uma estrutura produtora de conotações, transmitidas a partir
de aparentes denotações, que visa a permanência e a instantaneidade, nos quatro
cantos do mundo. Este ensimesmamento da
informação é paralelo (e proporcional) ao nexo do próprio consumo, ou seja, -
tornou-se decisivo ter e receber, independentemente da necessidade do que se
tem e do que se recebe; tornou-se mais importante o fluido ou a torrente do que
se recebe e do que se pode consumir, do que os objectos ou as imagens,
propriamente ditos, que se recebam ou se detenham. Esta avidez geral
incontrolada define a ubiquidade da própria arena em que vivemos, e o seu
simbólico zapping caracterizará o
ritmo do fluido e da torrente que, por sua vez, se transformam no fim último da
própria comunicação.
Quando Fernando Ilharco se
refere à globalização, não tanto pelo que está diante de nós (a grande arena),
mas antes à “forma como” vemos e conhecemos o que está diante de nós, creio que
estará, algures, a tocar na ferida. Ou seja : menos interessará o “ser” que
anima a arena e, bem pelo contrário, mais interessarão os “modos de ser” (C.
Peirce) com que a arena se molda diante de nós. Talvez seja por isso que a
globalização, em princípio, é - enquanto ocorrência - algo indefinível, senão
mesmo irreal, como antes se referiu a propósito dos nominalistas. Se os três
“modos de ser” - concebidos por C. Peirce - definem, não as ocorrências, mas as
possibilidades de manifestação das ocorrências, a globalização inserir-se-à,
então, no primeiro dos três que o semiótico americano criou, ou seja, - a “firstness“ (a “primeiridade”, entre
outras traduções portuguesas). Nesta medida, a globalização não seria senão uma
qualidade potencial e traduziria, por isso mesmo, a ideia de fundamento de tudo
o que é - ou pode vir a ser - global
(do mesmo modo que o vermelho é apenas uma qualidade potencial que legitima
tudo o que, num dado momento, diante dos nossos olhos, efemeramente, adquire
essa cor).
Assim sendo, a globalização converter-se-ia definitivamente numa espécie de capacidade anterior que o sujeito global deteria, na actualidade, para poder olhar o mundo, - seu objecto, sua arena, sua ilha utópica ilimitada; sua indefinida imaginação.
d)
Globalização[25]
em vez dos símbolos deque a modernidade foi amputada ?
Desde o final do século
XVIII até aos dias de hoje, um certo conjunto de símbolos-chave passou-nos a
estruturar e filtrar a ideia de realidade. Desde o tenro início da modernidade,
alicerçando já os fundamentos do paradigma em que hoje vivemos, registemos,
entre outros, o estado-nação como
símbolo dos limites naturais da comunicação; a liberdade e, por outro lado, os grandes códigos que imaginaram um futuro perfectível (as
ideologias, por exemplo), enquanto símbolos de futuro e também da concretização
do progresso; o sujeito tecnológico
enquanto símbolo da ordenação do mundo, da natureza, além de magno cultor da
velocidade; e, por fim, a contra-cultura,
enquanto símbolo do conflito permanente que haveria de nutrir os vários
sub-sistemas da modernidade (o político, o social, o artístico, o económico,
etc), numa lógica de instabilidade necessária (ao contrário da cristalização sistémica pré-moderna, no
seio da qual as várias actividades sociais integravam um esfera única e
aparentemente estável).
No
entanto, o desenvolvimento tecnológico e o quase esgotamento ou lenta
degenerescência de alguns destes símbolos-matriz (nomeadamente os grandes códigos sobretudo ideológicos
e, noutros moldes, o próprio estado-nação),
desencadeada de modo particularmente célere nas últimas duas décadas, haveriam
de conduzir a uma inevitável superação dos limites naturais da comunicação que
se instituiram no início, já longínquo, da modernidade. A grande rede simbólica
da actualidade que, nos últimos anos, passou a reabsorver os símbolos modernos,
já algo vagos e dispersos, é agora
designada e pressentida através de um termo enigmático e sempre
repetido, mas nem sempre da melhor forma - a “globalização”.
e) A
ideia de um globário: um globo-aquário visto apenas de (e por)
dentro.
A globalização é, ao fim e
ao cabo, a forma como imaginamos simbolicamente o mundo de hoje. Não sabemos
bem onde ela está e, até mesmo, o que é (a globalização). Sentimos, no entanto,
que ela se manifesta e isso chega-nos. Talvez, um dia, o nosso mundo se
transforme num globário, ou
seja, numa espécie de oceanário transparente como o da Expo 98, mas que apenas
conseguimos ver de (e por) dentro. A globalização é, porventura, passe a ordem
metafórica, esse espaço transparente que nos envolve e onde cabem todos os
continentes, espécies e luzes do universo; é como que uma aldeia que mais
parece obra-prima instantânea em rápida e imprevista comemoração. Por outras
palavras, a globalização é uma espécie de rede simbólica geral, onde todos os
nossos símbolos particulares da actualidade encaixam e, instavelmente, se
harmonizam.
Aquele que imagina a globalização imaginará - portanto - o mundo
actual e todos os seus símbolos particulares que, por definição, lhe estruturam
a própria realidade. Aquele que imagina a globalização é ainda um sujeito, mas
não já o “sujeito cognoscente” cartesiano, nem tão pouco o sujeito kantiano que
não aceita o mundo dado e adquirido.
Aquele que imagina a globalização é apenas e tão só um sujeito global que
projectou no todo (que encara sob o símbolo prometeico do globo) o individual, efémero e talvez universal que, de facto, é.
O sujeito global é aquele,
em última instância, que passou a entrever o mundo como uma arena que é sua.
Tal acontece, na medida em que os símbolos - com que a nova realidade se ordena
- se conformam com novos limites espaço-temporais da comunicação. É por isso
que a justiça deixou de ser um assunto fechado de um estado-nação, para passar
a ser subitamente global (veja-se o caso Pinochet e aquilo que o futuro
Tribunal Criminal Internacional de Roma prenuncia); é por isso que, como vimos,
os valores enunciados pela TV global transpõem as fronteiras ditas locais,
impondo-se com aparente naturalidade e acabando por construir os seus próprios
códigos, “partilhados” pelas mais diferentes instituições (J.Bignell,1997:131)
telemáticas do globo; é por isso que o tempo instantâneo é cada vez mais comum
a locais tão díspares como a Tailândia, o Peru ou a Arménia e, por seu lado, o
espaço cibernético faz explodir e expandir a espacialidade do espaço público
original da modernidade.
Seria difícil e arriscado
descrever a ordem simbólica particular que move e serve de êmbolo à grande e
presente máquina da globalização. No entanto, os seus suportes estão diante de
nós, todos os dias. São telemáticos, informáticos, digitais; envolvem-nos
através dos chips dos satélites e das
estações orbitais; são construídos por imagens fugazes, rápidas, pouco fixas,
antes traduzindo-se na torrente (de ver, de imaginar, de consumir); são de
errância e de desordem, quer na ordem dos valores e do pensamento estatuído,
quer no desmedido liberalismo económico, quer nos verificáveis desequilíbrios sociais e demográficos
do globo.
f)
Similaridades óbvias entre o Deus do
ano 1000 e o globário do ano 2000.
Digamos que “a imagem do
oceanário da Expo 98 visto por dentro”, referida mais acima, corresponde a um
bom modelo comparativo entre épocas e paradigmas tão diferentes como são, por
exemplo, o ano 1000 e o ano 2000. Se, como disse, a globalização corresponde à
rede simbólica que rege o nosso olhar actual para o mundo, ela é, por outro
lado, basicamente, um enigma, uma incerteza, um nexo de imprevisibilidades.
Existe, de facto, no homem do limiar do segundo milénio, uma franca
incapacidade de descrever a relação que existe entre essa vasta rede simbólica global e os símbolos particulares que
ordenam a vida quotidiana. Uma tal incapacidade traduz-se na difícil
estruturação do próprio real em que vivemos, já que o papel dos símbolos é, ou
deveria ser, precisamente, o de estruturar essa realidade, entendida como um
processo complexo de descontinuidades e circunstâncias.
O homem do início da
modernidade, sonhando-se um subliminar continuador de Deus, ainda imaginou
mundos perfeitos, paraísos na terra, - um autêntica e futura idade de ouro que o progresso humano
inevitavelmente atingiria. Hoje em dia - talvez porque o estádio dito
pós-moderno só já mantenha algumas das características matriciais da
modernidade inicial - o homem parece sentir-se apeado de uma consistência
simbólica que lhe permitiria, a cada momento, explicar o mundo, definir o
espaço e o tempo em que respira, esboçar convictamente um optimismo desafogado.
Curiosamente, o homem do ano
1000 olhava também, de dentro, para um edifício fechado e tão transparente como
o alegórico oceanário da Expo 98. Esse seu globário
invísivel, representado
simbolicamente na figura da grande catedral, configuraria a ideia de uma rede
simbólica geral onde cada símbolo particular repousava e partilhava os seus
próprios dons. A globalização do
homem do ano 1000 confundia-se com a magnitude que se pressentia em Deus, e
sobretudo com o anúncio de uma respeitada e desejada salvação final. Esta
estrutura, semelhante (apenas enquanto estrutura fechada e algo inomeável) à da
globalização pós-moderna, é, no entanto, diversa, no que respeita à evidência
do devir, e não tanto ao optimismo humano.
A diferença situa-se no
facto de o homem do ano 1000 crer, sem margem qualquer onde se pudesse
inscrever uma dúvida que fosse. O homem do ano 1000 é, com efeito, um homem que
crê no concerto global da criação original e da salvação final, reservando a
vida para uma lenta e repetitiva aprendizagem que acata e aceita, do mesmo modo
que aceita que os raios solares se espalhem sobre o pico de uma montanha. Para
o homem que cruza o próximo milénio, convoca-se, por constraste, não o
optimismo de há um século atrás, por exemplo, mas antes a instabilidade, talvez
criativa, assente nos suportes telemáticos e ciber-tecnológicos da grande
máquina da actual globalização.
Por outras palavras, talvez
soçobre em tudo isto um certo paralelismo acutilante, mas sempre silencioso, ou
seja, - o globário em que vivemos é
tão potente e está de tal forma em expansão que apenas o sentimos na razão
directa da sua própria invisibilidade. Como o Deus do ano 1000, também o globário
do ano 2000 é invisível e omnipresente. O que nos faltará, para além da crença
e da dúvida metódica ou hiperbólica, é, porventura, distinguir os limites e as
configurações exteriores deste nosso globário,
do mesmo modo que protagonista do recente filme, The Truman Show - A vida em directo de Peter Weir (1998), o
desvendou, depois de muita e persistente pesquisa.
Disse Frank Kermond
que - “na nossa crise perpétua, temos, nas épocas próprias, talvez sob a
pressão do nosso próprio fim, perspectivas entontecedoras sobre o passado e o
futuro, numa liberdade que é a liberdade da realidade discordante”(1997:172-3[26]).
É bem possível que o exacerbado desejo humano de instantaneidade corresponda a
uma tal “perspectiva entontecedora”, mas, neste caso, incidindo no coração do
presente.
Os anjos, que terão sido os primeiros agentes
mediadores a dificultarem um contacto imediato e instantâneo com o “grande
código” omnipresente e total - Deus -, surgem, no título do presente ensaio, ao
lado de figuras tão profanas quanto o são, por natureza, os meteoros.
Entendamos estes últimos como uma metáfora física da velocidade que, sobretudo,
escapa à raíz da própria voluntariedade humana.
Fugazes, céleres,
surpreendendo o homem, os meteoros devolvem-nos a inocência perdida com que
olhamos, extasiados, para uma aparição luminosa e efémera, quase como se fora
milagre. Nada já, de facto, hoje em dia, nos diz que um destino marcado se irá, no futuro, cumprir -
seja ele teleológico, ou definido através de um cerrado programa ideológico -,
e, porque a expectativa de tais auguradas metas se esfumou, por enquanto,
resta-nos, portanto, entrever a instantaneidade com que vamos metamorfoseando a
realidade.
Aparentemente
pacífica, embora plena de ruído - do mesmo modo que os anjos nos segredavam os
sigilos divinos -, a instantaneidade actual é como uma espécie de película
frágil e transparente. Por baixo dessa película, vemos asas de anjos
desfocadas, escapando-se de nós, a todo o momento. Por cima dessa película,
vemos verdadeiras chuvas de estrelas, carregadas de meteoros, alumiando-nos a
infância do olhar. No meio, num equilíbrio cada vez mais frágil - coincidindo
afinal com a película -, somos nós que, sem darmos por isso, nos descobrimos
através dessa verdade antiga que é a “realidade discordante”.
Assim seja. Assim possa deixar de o
ser.
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[1] Ao
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ler: ”To think history in a Nietzschean mode is to avoid a metaphysical
conception of history based on the identity and presence of each event with
respect to an underlying and necessary structure, system, telos, Spirit, or
grammar. It is, to evoke Derrida, to think history without a particular center
- which is to say, a history with many candidate centers” (ibid.:7).
[2] Desde o final do
século XVIII (cf. Cap. 8), até aos dias de hoje, um certo conjunto de
símbolos-chave passou-nos a estruturar e filtrar a ideia de realidade. Desde o
tenro início da modernidade, alicerçando já os fundamentos do paradigma em que
hoje vivemos, registemos, entre outros, o estado-nação
como símbolo dos limites naturais da comunicação; a liberdade e, por outro lado, os grandes códigos que imaginaram um futuro perfectível (as
ideologias, por exemplo), enquanto símbolos de futuro e também da concretização
do progresso; o sujeito tecnológico
enquanto símbolo da ordenação do mundo, da natureza, além de magno cultor da
velocidade; e, por fim, a contra-cultura,
enquanto símbolo do conflito permanente que haveria de nutrir os vários
sub-sistemas da modernidade (o político, o social, o artístico, o económico,
etc), numa lógica de instabilidade necessária (ao contrário da cristalização sistémica pré-moderna, no
seio da qual as várias actividades sociais integravam um esfera única e
aparentemente estável).
No
entanto, as transformações tecnológicas e a lenta degenerescência de alguns
destes símbolos-matriz (nomeadamente os grandes
códigos sobretudo ideológicos e, noutros moldes, o próprio estado-nação), desencadeada de modo
particularmente célere nas últimas duas décadas, haveriam de conduzir a uma
inevitável superação dos limites naturais da comunicação que se instituiram no
início, já longínquo, da modernidade. A grande rede simbólica da actualidade
que, nos últimos anos, passou a reabsorver os símbolos modernos, já algo vagos
e dispersos, é agora designada e
pressentida através de um termo enigmático e sempre repetido, mas nem sempre da
melhor forma - a “globalização”.
Nesta medida, a globalização
seria sobretudo uma qualidade potencial e traduziria, por isso mesmo, a ideia
de fundamento de tudo o que é - ou pode
vir a ser - global (do mesmo modo que o vermelho é apenas uma qualidade
potencial que legitima tudo o que, num dado momento, diante dos nossos olhos,
efemeramente, adquire essa cor). Ou seja, a globalização é aqui encarada como uma espécie de
capacidade anterior que o sujeito global
deteria, na actualidade, para poder olhar e construir o mundo, enquanto seu
objecto.
[3]
Friedrich Nietzsche, The Use and Abuse
of History, Indianoplis, Bobbs-Merrill,1949.
[4]
Ludwig Wittgenstein, Wittgenstein´s
Lectures: Cambridge 1930-1932,
Oxford, Blackwell,1980.
[5]
Jean-Luc Nancy, Finite History in The States of Theory, Bloomington,
Indiana Un.Press,1993.
[6] Por exemplo em Jacques
Derrida, O outro cabo, Coimbra, A
Mar Arte, 1995.
[7] José A.Bragança de
Miranda, Política e modernidade,
Lisboa, Colibri, 1997:32 (aí se compara o caracter “decisivo” da actualidade na
tradição do “instante” de Nietzsche, do “transitório e efémero” de Baudelaire,
do “jezzeit” de Walter Benjamin, do “inzwischen, o entre” de Heidegger ou do
próprio “imortal agora” de Fernando Pessoa.
[8] A novíssima
apropriação que partilhamos na actualidade é, pois, pela primeira vez, na
História da humanidade, de cariz mundial. Depois de Deus, depois dos programas
ideológicos, mas provavelmente reinsuflando ainda a génese utópica que nasce
com T.More -, a instantaneidade tecnológica define agora o mundo como uma
arena, não para descrever, não para explicar, mas sim para reimaginar. A forma
desta arena talvez possa corresponder a uma estrutura produtora de conotações,
transmitidas a partir de aparentes denotações, que visa a permanência e a
instantaneidade, nos quatro cantos tememáticos do mundo. Este ensimesmamento da
informação é paralelo (e proporcional) ao nexo do próprio consumo, ou seja, -
tornou-se decisivo ter e receber, independentemente da necessidade do que se
tem e do que se recebe; tornou-se mais importante o fluido ou a torrente do que
se recebe e do que se pode consumir, do que os objectos ou as imagens,
propriamente ditos, que se recebam ou se detenham. Esta avidez geral
incontrolada define a ubiquidade da própria arena em que vivemos, e o seu
simbólico zapping caracterizará o
ritmo do fluido e da torrente que, por sua vez, se transformam no fim último,
também, da própria comunicação.
[9] Referência aos
textos do Antigo Testamento que sucedem ao Deuterónimo e antecedem Os (outros)
escritos (Ketouvom). A obra unicamente utilizada é a Traduction Oecuménique de
la Bible (TOB), 1987:403-1251.
[10] "...
demandé" (...) "c'est le sens de son nom en Hébreu" (ibid.:
1987:509).
[11] "Le témoignage
de la prophétie de Habaquq est d'abord celui du fidèle qui, bien que - ou parce
que - désemparé, en appelle à Dieu contre Dieu lui-même dont l'action dans
l'histoire est devenue incompréhensible" (ibid.:1987:1194).
[12] Todas as citações
bíblicas que serão feitas, a partir de agora, têm a sua origem na Traduction
Oecuménique de la Bible, édition intégrale (TOB) , Les Editions du Cerf/ Les Bergers et les Mages, Ancien
Testament (AT),1987, Paris (Comité d´Edition; O.Béguin, J.Bosc, M. Carré,
P.Ellingworth, G. Ferrier, P.Fueter, A.Kopf, G.Makloff e J.Maury); Les Editions
du Cerf/Societé Biblique Française, Nouveau Testament (NT), 1989, Paris,
Pierrefitte (Comité d´Edition: O.Béguin, J. Bosc, M.Carré, G.Casalis,P.-Ch
Marcel. F.Refoulé, R. Ringenbach). A lista de abreviaturas dos
Livros Bíblicos passará a ser a seguinte:
Antigo
Testamento: Ab (Abdias), Ag (Aggée), Am (Amos), 1ch (1r.Livro de Crónicas), 2Ch
(2e.Livro de Crónicas), Ct (Cântico dos Cantos), Dn (Daniel), Dt (Deuterónimo),
Es (Isaías), Esd (Esdras), Est (Ester), Ex (Êxodo), Ez (Ezequiel), Gn (Génese),
Há (Habaquc), Jb (Job), Jg (Livro dos Juízes), Jl (Joel), Jon (Jonas), Jos
(LIvro de Josué),, Jr (Jeremias), Lm (Lamentação), Lv (Levítico), Mi (Michée),
Ml (Malaquias), Na (Nahoum), Ne (Néhémie), No (Números), Os (Osée), Pr
(Provérbios), Ps (Salmos), Qo (Qohéleth - Eclesiasta), 1R (Primeiro Livro dos
Reis), 2 R (Segundo Livro dos Reis), Rt (Rute), 1S (Primeiro Livro de Samuel),
2S (Segundo Livro de Samuel), So (Sophonie) e Za (Zacarias);
Novo
Testamento: Ac (Actas dos Apóstolos), Ap (Apocalipse), 1Co (Primeira Epístola
aos Coríntios), 2Co (Segunda Epístola aos Coríntios), Col (Epístola aos
Colossiens), Ep (Epístola aos Ephésiens), Ga (Epístola aos Galates), He
(Epístola aos Hebreus), Jc (Epísyola a Jacques). Jn (Evangelho de João), 1Jn
(Primeira Epístola de João), 2Jn (Segunda Epístola de João), 3 Jn (Terceira
Epístola de João), Jude (Epístola de Jude), , Lc (Evangelho de Lucas), Mc
(Evangelho de Marcos), Mt (Evangelho de Mateus), 1P (Primeiro Epístola de
Pedro), 2P (Segunda Epístola de Pedro), Ph (Epístola aos Philippiens), Phm
(Epístola à Philémon), Rm (Epístola aos Romanos), 1Th (Primeira Epístola aos
Tessalonicienses), 2 Th (Segunda Epístola aos Tessalonicienses), 1 Tm (Primeira
Epístola à Timothée), 2 Tm (Segunda Epístola à Thimothée) e, finalmente, Tt
(Epístola a Tite).
[13]
Apesar das posições de Santo Agostinho, "even more important than the
ambiguous witness of the theologians, however, was the revival of
apocalypticism evident in the latter part of the 4th century, especially in the
case of the Sibylline tradition" (B. McGinn,1979:42). Registe-se, portanto,
na época, uma certa continuidade da visão eminente dos fins que se propagará
muito para além da tradiçäo da tradição profética da própria Sibila Tiburtina; exemplos dessa
continuidade são os Diálogos de Sepulcius Severus (360-420/5), O Progresso do tempo de Qiuntus Julius Hilarianus (do fim do
séc.IV) - estar-se-ia, então, a um século dos fins últimos - e, atribuído a Quodvultdeus, O livro das promessas e predições de Deus. O Papa Gregório I
(540-604), sobretudo nas suas cartas e oratória, dá igualmente relevância à
urgência dos fins últimos, embora o conciliasse com a tradição de Santo
Agostinho. Mais a Norte, proveniente da Baviera, a profecia enigmática Muspili (séc.IX) corrobora a sucessão de
signos que antevêem a urgência apocalíptica.
Santo Agosinho, em De
civitate Dei, ataca, de facto, o paganismo romano, na primeira parte, e
expöe a doutrina das duas cidades, numa segunda parte, onde, no Livro XXII, dá
continuidade à semana, enquanto divisão essencial do tempo. As grandes fases
correspondem (30,5) aos intervalos entre Adão e Noé, Noé e Abraão, Abraão e
David, David e o cativeiro da Babilónia; do cativeiro ao nascimento de Cristo e
daqui ao fim do mundo. O fim do mundo, por sua vez, subdividir-se-á em três
partes: a vinda do Anticristo, o regresso de cristo e o juízo final.(A..Cayré,1953-I:722-3
e J. Le Goff, 1984:327).
A obra citada de Sepulcius Severus enquadra três diálogos, escritos em 404 e que recriam episódios da vida de São Martinho. De cursus temporum, de Quintus Julius Hilarianus, por seu turno, é uma obra considerada do âmbito "Crhonographique"(A.Cayré,1953-I:639). Por fim refira-se que Quodvultdeus foi aluno de Santo Agostinho e bispo de Cartago durante a invasão dos Vândalos.
[14] A referida profecia
(in F. Von Leyen, Deutsche Dichtung des
Mittelalters, Frankfurt, 1962:58-60) evoca a destruição do mundo através do
fogo, depois de uma luta entre o Anticristo e Elias. Pressupõe-se a existência
de um sincretismo devedor da escatologia das tribos germânicas e da escatologia
cristã, recém-adoptada (ibid.:80). O texto original data de meados do século
IX.
[15] Expressão de M. Herzfeld,(1982:169)que, no seu artigo, refere que a relação entre a realidade e a profecia que a gera (e de que é gerada), é fundamental para o estudo da semiótica da cultura. O paradigma inicial de um tal processo enontra-o o autor no Oráculo de Delfus:"The oracle seemed to provide the ideal paradigm of the calculating self-fullfilling prophecy". Esta reflexão é, claro, susceptível de ser actualizada noutros contextos em que uma comunidade interpreta a sua relação com o tempo, naturalmente ambígua e mutuamente geradora de profecia e realidade e vice-versa.
[16] A previsão da
conjunção planetária de 1524 (registada, pela primeira vez, por Johann
Stofller, em 1499) irá originar um intertexto profético denso e variado de
cariz verdadeiramente catastrófico. Como O.Niccoli demonstrou (1990:140-166), a
própria Igreja contribuiu, e muito, para a difusão destas profecias que
prediziam um dilúvio derradeiro. O significado do mesmo era, segundo as
interpretações avançadas na época, duplo: castigo de Deus pela corrupção da
Igreja ou, noutra interpretação, pela rebelião luterana. O.
Niccoli conclui que, passada a fatídica data de 1524, - "the figure of the
astrologer emerged much diminished by the way popular culture had received the
supposed deluge"(ibid.:167).
[17] A propósito,
refira-se João de Leiden (Jan Bockelson), um dos mentores da reviravolta que
Munster, assiste a meado dos anos trinta (no século XVI). Num ambiente dominado
pelo crescendo dos Anabaptistas, e pelas visões apocalípticas, a cidade foi
profetizada como a Nova Jerusalém, enquanto o resto do mundo seria destruído
liminarmente. João de Leiden chegaria mesmo a ser coroado como o Messias dos
ûltimos Dias e "rei de todo o mundo"(N.Cohn,1981:214-229).
[18] A neutralização, ao
lado da presentificação e da intuição, é uma “categoria fundamental” que
intervém na imaginação husserliana e que se traduz como sendo “une conscience
qui opère le passage à l´irréalité” (M.M.Saraiva, L´Imagination selon Husserl, Martinus Nijhoff, Le Haye,1970:250-1)
[19] Sublinhado nosso.
[20] As diversas alíneas são criadas para nós, no sentido de ordenar a lógica taxinómica da citação.
[21] Ver Adenda-limite sobre esse novo produto do ratio difficilis actual: “a globalização”.
[22] Cite-se Émile Noel em entrevista a François Châtelet (Uma História da razão,1992/3):”Afirmar que ‘o real é racional’ é dizer: diante da massa de informações prodigiosa de que dispomos a respeito do passado da humanidade, somos obrigados a operar uma selecção, selecção que se efectua graças ao instrumento do conceito e à busca da inteligibilidade, afastando os acontecimentos sem importância para deixar subsistir apenas como acontecimentos reais os únicos que contam, os que entram no âmbito do conceito” (133)”’O racional é real’ - a afirmação recíproca - significa que, a partir do momento em que um acontecimento se impõe com força suficiente, como causa de outros acontecimentos, deixamos de poder pô-lo de parte. Devemos tentar dar a sua razão. Para isso, diz-nos Hegel, retomando uma frase da sua juventude, precisamos de forjar conceitos inconcebíveis, ou seja, inventar conceitos novos. Tal é, essencialmente, a função da dialética.”(ibid.:133). Interpertemos esta citação, no entanto, tendo em conta que, para Hegel, a história da humanidade é guiada por uma razão “imanente”, nada tendo a ver, contudo, com a “Providência divina”.
[23] “Não é possível
falar em imagem, sem entender que a imagem é uma coisa e que o seu fundamento -
legitimador e anterior - é uma outra coisa bem diferente. Vamos por partes e
utilizemos, para já, a leitura que U.Eco faz da vastíssima obra de C.Peirce, o
fundador da semiótica, no seu último livro, aliás ainda não traduzido em
Português, Kant e l´ornitorinco (1997). Para C.Peirce, retoma U.Eco na
sua interpretação, o ícone é um fenómeno que funda em nós a capacidade de nos
apercebermos da existência de semelhanças. Esta capacidade anterior que nos
possibilita a apreensão do que é semelhante pode subdividir-se, por sua vez, em
diagramas (relações entre elementos, através do reconhecimento proporcional das
partes); em metáforas (relações entre elementos, através do reconhecimento de
similaridades entre constituintes essenciais das partes) e, por último, em
imagens (relação entre elementos, criada pela duplicata das aparências do real, através de modelos). Isto quer
dizer que o reconhecimento de um gráfico ou de alguns traços rupestres
(diagrama), do verso de Camões - “Amor é fogo que arde sem se ver” (metáfora)
e, por fim, da imagem fotográfica ou mental de um pinguim só se tornam
possíveis porque, enquanto seres humanos, estaremos munidos de uma capacidade
designada por icónica que é anterior.
A definição de ícone poderá,
portanto, assumir duas interpertações: uma cognitiva, vista na sua natureza
pura, primária, como potencialidade de “likeness” e uma, relativa ao ser, que
C.Peirce traduziu como sendo a disponibilidade, também potencial, de qualquer
coisa a “incastrasi” noutra coisa.
Quando falamos de capacidade anterior, falamos de tudo o que nos povoa sem que,
no momento, esteja activo ou seja actual; por outras palavras, ao referirmo-nos
a capacidade anterior, referimo-nos, claramente e tão só, a tudo o que é
potencial em nós, seres humanos. Este conjunto de potenciais corresponde ao que
C.Peirce designa por “firstness”, do mesmo modo que tudo o que é actual e está
agora, neste momento, a ocorrer, corresponde ao que o autor designa por
“secondness”.
No entanto, à medida que a
espécie humana acumulou experiência e conhecimento da natureza e de si própria,
verificou que as ocorrências actuais se repetem e podem até, naturalmente,
tornar-se previsíveis. Esta capacidade de prever eventos - a maior parte das
vezes de modo involuntário - atavés do reconhecimento de modelos, designa C.
Peirce por “thirdness”. Deste modo, podemos dizer que o ícone é uma modalidade
potencial - portanto, da “firstness” - que nos permite reconhecer a semelhança,
enquanto que, por outro lado, a imagem só poderá existir na medida em que é
actual e presente, na nossa consciência perceptiva, ou seja, quando corresponde
à “secondness”.
Por outras palavras, tentando
sintetizar, uma imagem apenas existe quando está diante de nós, na sua
actualidade existencial e, por outro lado, na medida em que comporte elementos
reconhecíveis - devedores de modelos anteriores já experimentados - através de
uma complexa duplicata das aparências
do real. Por exemplo, se olho para uma pessoa, ou se vejo, num filme, árvores,
céu e estrelas, enquadrados em linhas e planos adquiridos (codificados), sei
reconhecer o que vejo - ainda que não ponha intelectualmente essa questão -
justamente porque existem modelos culturais
que o possibilitam. Na obra de U.Eco do passado Outono, o autor chega a provar
o modo como Montezuma percepcionou um cavalo, pela primeira vez, ou como é que
os ocidentais, em 1799, encararam, também pela primeira vez, um ornitorinco;
pela descrição, minuciosa e apurada, verifica-se, de facto, que, face à
inexistência de prévios modelos de experiência que os enquadrassem
imageticamente, quer o cavalo para os índios, quer o ornitorinco para os
ingleses acabariam por ser descritos, através da sua inscrição noutros modelos
contíguos existentes e possíveis. Curioso é o facto de esta interiorização
perceptiva de objectos, até então desconhecidos, por via da convocação de
modelos tidos como os mais ajustados e próximos, acabar por ser consequência de
um inevitável estabelecimento de semelhanças que percorre o homem; ou melhor
ainda: que é característica essencial do homem.
De facto, antes de os
protótipos da experiência acumulada e da categorização actuarem, ou seja, antes
de se dizer que o sol é um astro, ou um planeta do género tal e tal; ou um
corpo imaterial que gira em torno da terra ou da lua ou de si próprio, - já lhe
pré-existia a percepção de um mero e simples corpo luminoso, de forma circular,
que se move no céu, constituindo-se como objecto familiar, antes mesmo de se
converter em objecto liguística e retoricamente designado. Esta evidência é, ao
fim e ao cabo, a mãe do momento
icónico, isto é, - o reconhecimento autêntico, anterior, verdadeiro, íntimo,
não baseado ainda em fundamentos adquiridos, e identificando-se com algo que
está ali como é -, mas indescritível ainda no discurso humano.
Conclusão: a imagem é uma
forma de reconhecimento actual, baseada quer na aptidão potencial, anterior e
icónica de estabelecer semelhanças, quer nos modelos com que a reprodução
aparente do real é interpretada. Extrapolações paralelas poderíamos estabelecer
para o caso do diagrama e da metáfora - igualmente sub-divisões dos ícones,
segundo C.Peirce - mas não é esse o objecto com que, hoje e aqui, nos ocupamos
(L.Carmelo,1998b:1-2)
[24] Cf. Nota 7.
[25] Cf. nota 2, onde,
para traduzir a expressão “paradigma global, recorremos a parte desta alínea
d).
[26] De A sensibilidade apocalíptica, Século XXI, Lisboa, 1997 (The Sense of na Ending).