Paródia, solidão e o
não-dito: a Tetralogia Lusitana de Almeida Faria
Luís
Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa
Tetralogia Lusitana reune um conjunto de quatro volumes, vindos a lume entre os anos de 1965 e 1983. Na obra, faz-se eco de um tempo histórico, interposto pelos acontecimentos do 25 de Abril de 1974, em Portugal, lugar simbólico com que o título genérico dos quatro romances que compõem a Tetralogia estabelece uma relação íntima, metafórica e de claro indício de que, entre outras, uma questão identidade nacional se postula. A Paixão (1965), Cortes (1978), Lusitânia (1980) e Cavaleiro Andante (1983) enunciam o relato da ficcionalização de uma era em curso que, de modo gradativo, se ampliará a outras temporalidades através de um discurso fragmentário, dominado pela intencionalidade de múltiplos referentes culturais, acabando sempre, contudo, por retomar ou evocar os caminhos de uma memória inicial, o illud tempus dos primórdios, para utilzar a expressão de M.Eliade.
O leitmotiv ficcional de toda a trama é delimitado por um núcleo doméstico, uma casa fechada sobre si própria numa vila rural, habitada por grandes proprietários alentejanos. A domus escolhida reflecte uma tradição que se esvai rapidamente, dominada que é por claros sinais de degenerescência de um determinado ciclo de poder. Ao fim e ao cabo, esse ciclo não é apenas rural e, ao longo da Tetralogia, a ideia de ruptura e de corte expandir-se-á a nível de todo o país, nomeadamente, na crise aberta pelo legado colonial, nas várias lucubrações geracionais, na hipertrofia do passado, enfim, no sonho que sucede à repetição ritual do quotidiano irremissível. Este desafio que a Tetralogia tenta pôr a nu assume sobretudo a natureza de uma desagregação, ou do percurso de um itinerário limiar onde, ao mesmo tempo que a grande casa inicial definha ou se esvai, o espaço-tempo romancesco se amplia. Deste modo, os personagens divergem, cruzam países, continentes, alteridades quase irredutíveis, de tal modo que, no palco final da Tetralogia, pouco mais emergirá que o perfil gasto de Lusitânia, uma terra inteiramente à deriva e a braços com o secreto imobilismo de séculos. No entanto, a redenção esperada caberá por inteiro à hierofania do estético, à textualização das diferentes solidões, ao testemunho epistolográfico, ou ainda ao espaço de negação subitamente instaurado nas subtis fissuras do horizonte ficcional de Almeida Faria.
Este decantar nacional e simbólico, perpassado pela tentativa de reinventar a póetica de uma qualquer pátria ideal, não se sujeita, porém, à linearidade histórica. Desde o início de Tetralogia Lusitana que variados modelos de cronotopo dominam o pano de fundo da narratividade, de que são exemplo o calendário litúrgico cristão e o desígnio mítico. Os dois primeiros volumes de Tetralogia Lusitana, A Paixão e Cortes, passam-se, respectivamente, numa Sexta-feira e num Sábado de Páscoa, projectando na existência estrita de vinte e quatro horas mundanas a alegoria silenciosa de um tempo perpétuo e sempre original. Lusitânia, por seu lado, estabelece a mediação entre os Domingos da quadra pascal de 1974 e de 1975, progredindo no mesmo tempo histórico que os dois volumes anteriores já haviam convocado e abrindo igualmente horizontes novos, próximos da revolução portuguesa, que, em Cavaleiro Andante, atingem a sua consumação mítica, intertextual e onírica. No final, a Tetralogia consuma-se em pleno Domingo de Advento, talvez porque à depuração radical acabe por suceder uma inevitável e subliminar silhueta de salvação.
O calendário litúrgico é apenas um dos elementos que torna a parascese cristã numa espécie de rede semântica com empatia mais geral no enredo e no discurso que o conta. Para além desse aspecto matricial, refiram-se ainda os personagens (os nomes escolhidos e as posturas sucessivas), mas também as alusões, as catálises e os próprios eventos nodais da diegese, enquanto amálgama expressiva de elementos codificados por uma natureza cristã. Se este testemunho paródico é evidente, associando a regeneração pascal ao prenúncio de novos tempos para o país, não menos evidente é a alba inicial de A Paixão que, por sua vez, liga a magia da terra ancestral aos seus ritos e ao puro discurso mítico da natureza, decerto anterior à conceptualização cristã. De facto, a sacralização do tempo que se enuncia no início da Tetralogia parece configurar uma espécie de discurso cristalino das origens, toldado por uma imobilidade quase sem fim:
“Será na primavera; no princípio de tudo (P,17)
“...enterram-se raízes uma a uma, em seguida regaram, regá-las-ão até
aos dias sem data”(P,63)
“...festejaremos a preparação da Páscoa e após termos comido lavaremos
as mãos na água da ribeira e juntos partiremos pela planície”(P,16-17)
“”Eis que caminha pela manhã da névoa, quando ainda a charneca está
cheia dessas aves que cantam como sendo pingos lentos que caem, e, a caminho da
missa diária, assalta-o o nevoeiro” (P,50)
“...é Sexta-feira dita a santa” (P,38).
Estes registos de A Paixão celebram um autêntico advento fertilizador. Trata-se, de facto, de um culto telúrico onde se reatam ressonâncias antigas, fixadas no texto através de um cuidado ritmo de longa frase que, aqui e ali, lembra o fôlego largo de um Bernardim Ribeiro. Este eco de paisagem aberta à própria sintaxe adapta-se permanentemente ao discurso pluridimensional e de múltiplos narradores, no seio do qual os eventos ordinários ou domésticos e os extraordinários ou de ruptura se tornam consanguíneos. Com efeito, a convocação mítica perpetua a cadência do quotidiano, mas, ao mesmo tempo, a atmosfera ritual aproxima aquele da esfera profana e da acção. Este vaivém recheado de sigilosas aproximações, ou de sobreposição de diferentes níveis, garante à Tetralogia Lusitana uma leitura sempre multipolar, reforçada pelos efeitos metonímicos provenientes da contiguidade entre capítulos residuais, ou, em última análise, entre os quatros volumes que a compõem (num traçado de verdadeira obra aberta).
A partir de Lusitânia desperta quase obsessivamente um novo tipo de enunciado no discurso da Tetralogia. Trata-se do enunciado epistolográfico que, ao retomar cenários romanescos das luzes gaulesas, acaba aqui por votar os personagens a uma clausura implorativa, solitária, fechada à nudez da voz. Deste modo, o ruído do presente revolucionário surge-nos dissuadido ou iludido, quando não arrastado pela mais pura catarse estético-onírica e, no caso dos personagens mais jovens, Jô e Tiago, transposta até ao limiar da fantasmagoria paródica dos Romances de Cavalaria. O progressivo alargar do corpus mítico-ficcional e dos seus arquitextos, a par de uma abordagem subjacente da inquietações identitárias portuguesas, constituirá o caudal último que, no termo da Tetralogia Lusitana, assiste aos mais diversos e simultâneos clímaxes, abertos desenlaces e territórios do não-dito. Coincidirão nesse termo (algo indefinido e sobretudo des-diferenciado) a morte exorcizante de André, o relato indirecto do golpe militar do 25 de Novembro (com que a crise revolucionária se ultima); a independência de Angola (marca simbólica do fim do império) e a própria morte de Galaaz (no discurso onírico de Jô), para além do Domingo de Advento (que, de certo modo, sinaliza a pródiga alba mítica com que tudo afinal se iniciara).
O intertexto histórico-literário constitui-se, ao longo de toda a Tetralogia Lusitana, como uma cenografia que certifica e até confirma o desconcerto súbito de valores, as interrogaçõe perenes e a rota das grandes alteridades do mundo e da vida. No âmbito de uma tal cenografia simbólica, Veneza aparece, precisamente a meio da Tetralogia, como a silhueta mais adequada para a divagação sobre a fidelidade, o amor, as senhas de um Portugal longínquo e conturbado, o cosmopolitismo estético e sobretudo as várias vias que opõem os destinos do mundo aos destinos individuais.
O tempo com que se encerra a Tetralogia Lusitana é um tempo em suspenso, embora, até Cortes, algumas esperanças se pudessem associar claramente ao itinerário dos personagens. Contudo, as diferentes quêtes da Tetralogia acabarão por esvair esses sentidos de esperança, sobretudo no momento em que a emergência do tempo histórico, evocado em Lusitânia, acaba por colocar os personagens à deriva, sem serem capazes de controlar a roda do destino e isolando-se em cidades vazias ou transfiguradas pelo que Saint-John Perse definiu como “citadelles démantelées au son des flûtes de guerre”(s/d:183). As demandas pelo paraíso impossível, as súbitas fendas de identidade, a memória atraiçoada, os sonhos terríveis parecem então passar a dominar a cadência ficcional da Tetralogia. No entanto, a essa aparente e progressiva aparição meteórica, vem-se justapor uma postura de preservação, mediada pela discussão estética e pelo desígnio da perfeição, de que Marta e JC, como personagens, e a cadência descritiva enquanto elo discursivo, são os mais directos agentes. Esta necessidade de preservação pode ser entendida como uma espécie de presente ideal que urge subitamente tornar habitável, possível e realizável, acabando, no final do relato da Tetralogia, por assumir sentidos de um certo misticismo próprio dos poetas românticos e até do expressionismo alemão (a noite, o mistério, a revelação, ou a demanda isolada no meio do mais informe dos caos).
É justamente esta justaposição de ângulos que está na base do cronotopo do limiar que assiste a toda a Tetralogia: até Lusitânia, o futuro submete-se a uma aparente, mas inevitável, progressão (acabando até por gerar uma dada ética liberdadora, sobretudo através dos actos e do destino de JC); a partir desse volume, o futuro é praticamente deposto, assumindo a dimensão de uma ameaça, de um precipício talvez mais imanente do que iminente (acabando por gerar posturas e enunciados mais ligados intimidade, ao ser dos personagens e ao seu destino nas malhas desordenadas do mundo).
Neste quadro, são de especial importância os registos discursivos que, de variadas formas, questionam a identidade nacional. Esta ensaística subjacente à ficção propaga-se a partir da fuga de JC da sua casa inicial (em A Paixão) e adquire uma intensidade muito particular, quando a acção da Tetralogia se desdobra para além das fronteiras do país. Nas próximas páginas analisaremos esse conjunto fragmentário de registos, bem como uma outra ensaística, essa de natureza estética, que, de modo também tansversal, contribui para cimentar e orientar os caminhos da diegese da Tetralogia Lusitana. Por outro lado, daremos atenção a alguns aspectos da onírica fabular de Jô e Tiago, assim como a certos aspectos discursivos de fundamental importância para a narrativa de Almeida Faria (o fragmento, a epistolografia, a paródia, etc). Por fim, precedendo as áreas conclusivas que tentarão pôr a nu o possível risoma de sentidos unificadores da Tetralogia, dedicaremos algum espaço às variadas temporalidades que, no decurso da Tetralogia Lusitana, cruzam constantemente o enigma e o quotidiano, o signo e o segno (o que não corresponde à ordem natural das coisas), o desígnio de perfectibilidade e a crise.