O
milagre de Ourique ou um mito nacional de sobrevivência
Luís
Carmelo, Universidade Autónoma de Lisboa.
Anima-nos,
no presente artigo, a tentativa de compreender os alicerces de um mito que,
começando a ser erigido a partir de diversos registos literários da batalha de
Ourique, contribui(u) para a “modalização”[1]
da auto-imagem de Portugal, em dois momentos-chave da sua história, a saber, -
no início do ciclo dos descobrimentos (após o primeiro quartel do século XV) e
no período da dinastia filipina. No fundo, esses dois momentos são como que os
limites do designado ciclo de ouro
português, não só pelas viagens e conquistas então empreendidas, mas sobretudo
pela consistência identitária e imaginária de que Portugal é, nesse século e
meio, devedor. Facto inabalável é que, após a Restauração, a lenda
simbólico-alegórica de Ourique, entre outras (como a do Encoberto[2]),
se instituirá decisivamente como uma faceta importante da auto-representação de
Portugal, acabando por adquirir, após Herculano, uma verdadeira dimensão
mítico-poética.
1- A
história da lenda
a) Até à Primeira grande compilação medieval
Poucas são as canções de
gesta que chegaram aos dias de hoje. A grande excepção peninsular é o Cantar de Mio Cid que narra as
desventuras aventurosas de um campeador e conquistador, falecido por volta de
1099. Ao contrário da Chanson de Roland,
do século XI, o Cantar não se reporta
a factos ocorridos num passado distante, embora se mantenha dentro do
inevitável espírito de alteridade islamo-cristã que, na Chanson, contudo, é bastante forçado. Todo o vasto reportório
épico-romanesco destas e de muitas outras gestas foi oralmente cantado por
jograis, durante séculos, mas apenas viria a ser fixado e enxertado
textualmente, mais tarde[3],
em compilações do tempo de Afonso X, (1221-1284) e, já no século XIV, pela
primeira vez, em Português[4],
entre outras, na Crónica Geral de Espanha
de 1344, da responsabilidade de um bisneto do rei Sábio, - D.Pedro, Conde de
Barcelos. É nesta última crónica que se encontram copiladas, por exemplo, a
interessante Crónica do Mouro Rasis,
as mais antigas referências portuguesas relativas à literatura dita arturiana
(também presentes no precedente Livro de
Linhagens [5]),
para além da famosa lenda épica que converte D.Afonso Henriques num herói a
todos os títulos singular.
Nesta crónica, no entanto,
não surge ainda narrado o milagre de Ourique que, mais tarde, se associará ao
caracter de inspiração divina do primeiro rei de Portugal. Os tópicos
constantes na crónica, e resultantes do reaproveitamento de fontes dispersas, dizem
respeito à genealogia dos reis bíblicos e da Antiguidade, à crónica romanesca
do final dos reinos visigóticos (e do alvor do Islão, através da tradução do já
referido Ahmed bem Muhammad Raziz) e
ainda, por fim, ao registo de uma das variantes da Crónica General de España de Afonso X, desde Ramiro I das Astúrias
até à Batalha do Salado.
Para além de uma original
tradição profética relativa à conquista de Santarém (realizada a partir da
intertextualização da Crónica
Galeco-Portuguesa, de que a Crónica
de Santa Cruz é fragmento[6]),
nesta crónica de 1344 - como Lindley Cintra aprofundou[7]
- o primeiro rei de Portugal surge já, com apenas quatro anos, como válido
interlocutor do seu pai, durante um cerco a uma cidade de Leão. Decidido, o
herói há-de depois revoltar-se e vencer as tropas do padrasto e da sua própria
mãe que aliás virá a encarcerar.
Deixando de lado a lenda de Badajoz (e suas implicações), onde D.Afonso parte
uma perna como consequência de uma lendária praga de D.Teresa, o rei prossegue
as suas desmedidas façanhas, levando facilmente de vencida o então imperador
Afonso VII de Leão e Castela e, num desafio à omnipotência temporal da época,
chegando mesmo a nomear um Bispo por sua escolha, o negro Çoleima.
Independentemente dos
verosímeis históricos, o certo é que a imagem criada a partir do personagem de
D. Afonso Henriques, na Crónica Geral de
Espanha de 1344, é, portanto, na sua essência, a de um homem superiormente
dotado, insubmisso, audacioso, impertinente, mas sempre firme no cumprimento e
decerto na fundação de uma grande obra. Este inventário de valentia heróica,
difundido pelos jograis desde os finais do século XII e reposto por escrito
antes de meados do Século XIV, constituir-se-à como motivo de um longo e
variado intertexto, pelo menos até finais do século XVI.
b) A Compilação de 1419: novos dados e suas heranças.
A Crónica de Portugal de 1419 - escrita apenas quatro anos depois da
conquista de Ceuta, durante o reinado de D.Duarte - apresenta-se como a grande
compilação de todos os textos residuais até então ainda não fixados,
incluindo-se-lhe todo o reportório da anterior crónica de 1344. Segundo A.
Saraiva, a Crónica de Portugal de 1419
- onde se arrolam, além de lendas, documentos históricos autênticos - teria
sido da autoria de Fernão Lopes. Para o comprovar, o autor refere uma passagem
da Crónica de D. João I [8],
além do cuidado registo de alguns traços estilísticos, nomeadamente da área da
descrição, que são claramente indícios do grande cronista de Aljubarrota.
Pela primeira vez, é, nesta Crónica de Portugal de 1419, que surge
narrado o milagre do aparecimento de Cristo em Ourique. Referindo uma batalha
que terá tido lugar ao sul do Tejo contra vários reis “mouros”, entre eles um
enigmático rei “Ismar” - que escapam, segundo J. Matoso (1993:70)[9],
ao verosímil histórico -, o texto dá particular atenção às vésperas da peleja
anunciada. É nessa altura que um ermitão surge face ao futuro rei Afonso,
enquanto mediador divino, dizendo - “... E Ele me manda por mim dizer que
quando ouvires tanger esta campaínha que em esta ermida está que tu saias fora
e Ele te aparecerá no Céu...!”. Num subsequente trecho da crónica, regista-se a
aparição: “... tangeu-se a campãa, e ele saiu-se fora da sua tenda, e, assi
como ele disse e deu testemunho em sua história, viu Nosso Senhor Jesus Cristo
em a Cruz pela guisa que o ermitão lhe dissera e adorou-o com grande prazer e
lágrimas...”. O milagre é, logo a seguir, transposto no próprio símbolo da
bandeira do futuro reino, “...por se lembrar da mercê que Deus naquele dia
fizera, pôs sobre as armas brancas que ele trazia uma cruz toda azul, e pelos
cinco reis que lhe Deus fizera vencer departiu a cruz em cinco escudos...”[10].
Como J. Matoso referiu
(ibid.:70), existem fundamentos históricos que situam uma batalha, a sul,
durante este Verão de 1139. Sendo certo que, por essa altura, D. Afonso terá,
pelo menos, dirigido “um fossado” constituído por um exército maior do que o
habitual, a verdade é que os cenários apontados pelo historiador são, contudo,
muito alternativos aos da Ourique alentejana, isto é, - ou o dito recontro,
entre tropas cristãs e islâmicas resultou de uma contra-investida de Afonso
Henriques contra os Almorávidas que ameaçariam uma cidade a norte do Tejo; ou,
por outro lado, resultou de uma investida directa de D.Afonso, a leste de
Badajoz, contra vários ”chefes mouros” que iriam em socorro dos Almorávidas
cercados em Colmejar, a sul de Toledo. Verosímil parece ter sido o regresso a
Coimbra de D. Afonso, após a contenda, onde, por augúrio feliz, terá encontrado
D. João Peculiar, regressado de Roma, onde fora receber, durante o Concílio
Latrão Ecuménico, o “pálio arquiepiscopal”. Estes factos importantes,
acrescidos aos da própria aclamação de D. Afonso a rei terão inevitavelmente conduzido
a uma hiperbolização literária
subsequente (de acordo com os horizontes de expectativas [11]de
diversas épocas).
Sustentando essa realidade,
convirá justamente sublinhar que é quase três séculos depois da pretensa
batalha de Ourique que o milagre da aparição de Cristo a D. Afonso se torna
numa renovada dimensão da lenda heróica do fundador de Portugal. Além do mais,
a Crónica de 1419 cita como fonte alguns documentos anteriores - nomeadamente
uma enigmática história do rei “testemunhada por ele mesmo” (A.Saraiva,1996:165)
e guardada no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra - o que nos permite concluir
que estamos, à partida, diante de um típico enunciado forjado ex-eventum, próprio, a todos os títulos,
do género literário profético[12]
que, na época, é um claro “um signo dos tempos” (L.Cardaillac,1977:62[13]).
De qualquer modo, os desígnios que a efabulação criada sugere apontam, de modo
claro - e talvez em empatia com o alvor aventuroso dos tempos de descoberta
marítima -, para uma prefiguração de um futuro mito providencialista da
história portuguesa.
Segundo L. Lindley Cintra,
esta Crónica de Portugal de 1419
inaugura o que passa a designar por “segunda lenda” (1989:71). O autor
justifica o novo compasso do mito em formação, referindo que, ao longo texto, a
enunciação se centra preferencialmente na batalha de Ourique, o que, em
registos anteriores, se circunscrevia apenas a uma “alusão bastante rápida”;
por outro lado, o texto da crónica de 1419 sobrepõe ao herói épico e destemido
dos registos anteriores a ideia, quase monástica, de um rei ungido de deveres
divinos. Não é por acaso - prossegue o autor - que “os monges de Santa Cruz
falavam de curas miraculosas que se tinham dado perto do seu túmulo (de
D.Afonso) e por sua intercessão”. Quer pelo jogo retórico-literário, quer já
pela própria práxis da lenda
vivida, parece que assistimos
decididamente a um momento de inflexão da lenda, o que quer dizer que o pretérito herói, anteriormente cantado
por jograis ou fixado por escrito, começa agora, de modo lento, a passar
testemunho a uma visão sobrenatural, afirmando-se como símbolo divino e
espiritual das origens da nacionalidade (o que aliás não destoaria com as
correntes próféticas dominantes na época[14]).
No início do século XVI, o
compromisso entre estas duas visões (épica versus
espiritualizante) torna-se patente na Crónica
de D.Afonso Henriques, da autoria de Duarte de Galvão (1505). Como afirma
L. Lindley Cintra, sobretudo no percurso narrativo em que D. Afonso nomeia o famoso bispo negro, é evidente “a
necessidade de pôr de acordo, no interior da crónica, a antiga imagem épica do
rei, com uma outra imagem, lendária também, que se encontra nela tão
completamente desenhada como a primeira, mas que se opõe bastante visivelmente
a ela em vários aspectos fundamentais. Trata-se de uma imagem de Afonso como
rei essencialmente piedoso, escolhido por Deus para se tornar fundador da
monarquia portuguesa e a quem o próprio Cristo apareceu....”(1989:70).
É a esta crónica, aliás, que
Camões recorre e de que retira, com grande fidelidade, no canto III dos Lusíadas (28-84), a matéria com que
narra o episódio do milagre de Ourique: “A matutina luz, serena e fria,/As
estrelas do Pólo já apartava,/Quando na Cruz o Filho de Maria,/Amostrando-se a
Afonso, o animava./ Ele, adorando Quem lhe aparecia,/ Na Fé todo inflamado,
assi gritava: “Aos infiéis, Senhor, aos Infiéis,/ E não a mi, que creio o que
podeis!” (ibid:45,1969:122[15]).
Neste trecho verificamos que a voz do rei, em discurso directo, contrasta com a
omniscência narrativa com que Cristo se anuncia; por outro lado, a voz de D.
Afonso reflecte as duas imagens que Galvão pretende pactuar; uma humilde e
devota, a outra combativa e belicosa.
c) A nova visão de Ourique, após o ciclo de ouro.
Do mesmo modo que S. Tiago,
o “apóstolo da reconquista”, no final do século XVI, foi alvo, em Roma, de
fortes “argumentos contra la devoción tradicional, como puede verse en
cualquier texto de historia eclesiástica española” - o que suscitou “una enorme
intranquilidad a Felipe III” (J.Caro Baroja,1978:419[16])
-, também, em Portugal, no prólogo à Crónica
dos Reis de Portugal Reformadas (1600), se põe agora em causa a matéria
lendária de D. Afonso que era devedora de uma não menor devoção tradicional. Duarte Nunes de Leão trata, nesse
prólogo, como falso todo o reportório tradicional de “histórias inacreditáveis”
que as fontes antigas atribuíam ao primeiro rei de Portugal. Curiosamente,
chegando a surpreender-se pelo facto de D. Afonso Henriques não ter ainda sido
canonizado, Duarte Nunes de Leão parece pôr tudo em causa... excepto o próprio
feito milagroso que teria coroado a aparição de Ourique (esta, como se sabe,
originada de modo forjado e ex-eventum
em texto de 1419). Definitivamente, e até com curiosa ajuda do pré-racionalismo
renascentista, a lenda de D.Afonso libertava-se, de vez, do seu caracter
épico-aventuroso para se transformar no verdadeiro alicerce de um futuro mito.
Tudo ocorre neste breve e
sintomático período filipino que liga o final do século XVI à data da edição da
Monarquia Lusitana (1632). Em
primeiro lugar, porque Pedro de Mariz, no seu Diálogo de Vária História (na segunda edição da obra), anuncia que
“os monges Cistercenses de Alcobaça acabavam de descobrir[17],
nos arquivos do mosteiro, um documento em latim”(...)“que se verifica ser nem
mais nem menos que uma declaração feita 23 anos depois da batalha de Ourique,
em Coimbra, em frente de vários Bispos e de todos os grandes da sua corte, pelo
próprio Afonso I” (cit. in L.Lindley Cintra, 1989:73). Em segundo lugar,
depois de mais esta enunciação
profética forjada e ex-eventum (na
tradição da Crónica de 1419), coube, dois anos depois, a Frei Bernardo de Brito
- cronista oficial do reino, note-se, - reproduzi-la na Crónica da Ordem de Cister. Por fim, em
terceito lugar, corria o ano de 1632, ao redigir a terceira e quarta partes da Monarquia Lusitana - e sucedendo nesse
cargo a Brito -, Frei António Brandão haveria de retomar, sem grandes mudanças,
esse mesmo intertexto oficioso e forjado que passou a legitimar o agora
pungente e abarrocado diálogo entre Cristo e D.Afonso, na véspera da batalha de
Ourique.
Numa altura em que, não se
punha em causa a “autoridade histórica de Homero, mas sim o itinerário de
Ulisses, que ninguém duvidava ser o fundador de Lisboa” (A.J.Saraiva,
O.Lopes,1955:475[18]), é também
normal que a corrente ficcionalização dos eventos históricos acabasse por
legitimar este tipo de enxertos proféticos (sobretudo, se necessários para
colmatar as carências políticas da época). O que, neste caso, na nossa
perspectiva, tem significado é essencialmente o facto de a ficção em causa
preservar um registo profético que vinha desde o século XV, apagando, embora,
de vez, o cariz épico do primeiro rei de Portugal; por outro lado, o pendor
retórico do diálogo em que D.Afonso e Cristo intervêm (cf. III) é associado, de
forma clara, a um verosímil que se pretende credível e manifesto. Este efeito
intencional[19] de serieção
temático-retórica é, de facto, o centro desta operação realizada durante a
quadra filipina.
Com efeito, esta potencial matriz
mítica (criada entre os finais de quinhentos e 1632) preservar-se-á, enquanto
memória volúvel e funcional, ao longo de mais dois séculos. Por isso mesmo se
terá mitificado, ou seja, acedido ao estatuto de memória invisível e evidente,
construtora da própria identidade. Não é por acaso que a desconstrução
histórica do milagre de Ourique, protagonizada por Alexandre Herculano, gerou,
na sua época, o escândalo que se conhece. Mais do que de factos, é, na
realidade, a partir da complexidade do imaginário acumulado que as comunidades
codificam o seu próprio agir no tempo.
II- Outros casos contemporâneos de profetismos
forjados.
Os factos deste tipo de
produção profética ex-eventum, ao
longo do século XVI e também no início de seiscentos, são fecundos e variados
na Península Ibérica (e não só). Antes de passarmos revista a outros casos da
época que se integram no topic
mitológico de reinvenção da história, expliquemos, em primeiro lugar, o terreno
que os move.
Diga-se que todo o século
XVI é balizado por uma autêntica guerra entre o Islão otomano e o novo império
que Carlos V edifica, antes ainda da guerra das Germanías de Valência. Foi
aliás a partir desta alteridade fundamental, continuadora de um antigo espírito
de cruzada originado em antagonismos basicamente escatológicos, que a Península
Ibérica se contruiu e auto-depurou, durante a Idade Média tardia. N. Daniel espelha do seguinte modo a geometria do mosaico histórico
hispânico que lentamente se sedimenta: “No one could question that it was in
Spain more than anywhere that for so long the two cultures developed in
parallel. There were indeed four lines in parallel, Europeans under European
rule, Arabes under Arab rule, and the two converses, the Mozarabs and the
Mudejares” (1975:86[20]).
Contra os conceitos de “Jihâd” e de ”Dar-al-Islâm”, nomeadamente a guerra santa e terrena que pretendia
salvaguardar, por sua vez, o território da verdadeira salvação (na óptica
islâmica), se contrapôs, desde os martírios de Eulogio e Alvaro até ás
primeiras guerras que sucedem ao colapso do Califado de Córdova, o conceito
cristão de “reconquista” e mesmo de “batalha celestial”. M. Hagerty sintetiza
este facto, identificando os cristãos da Península como “los escogidos por Dios
para luchar contra las fuerzas del Mal que habían invadido España en el 711 por
culpa de los pecados. Es el comienzo de la Batalla Celestial, combatida
materialmente en la tierra, que despues surgirá outra vez en un concepto, para
nosotros clave, de la reconquista, como guerra santa.” (M.Hagerty,1978:174[21]).
Por razões de teodiceia (isto é, para vingar os próprios pecados dos cristãos),
o Islão havia assim entrado na Península e, curiosamente, dez séculos depois, é
o próprio o Islão, já na sua fase terminal morisca
e degenerescente, que irá desenvolver profeticamente[22]
idêntico argumento. Estamos, portanto, diante de uma destemida guerra entre duas justiças divinas, para
a qual há eterno perdão, e no limiar da qual apenas se poderá supor um único e
possível fim : a salvação.
É pois natural, para além dos
ingredientes retórico-literários próprios do género profético (e que têm a sua
origem no primeiro milénio A.C.[23]),
que os relatos das batalhas medievais estejam repletas de aparições, de
milagres, de visões - no quadro de uma semiose mântica da realidade. Convém, de
qualquer modo, salientar que a própria noção de realidade, na Idade Média, se
confunde com a dimensão mágico-misteriosa do significado[24],
daí que o sistema simbólico vivido se visse reflectido, com adequação, na
arquitectura maravilhosa e fantasiosa desse relatos. A.Abel pressente esta
objectividade e vai mesmo mais longe, ao assegurar que a armadura
fantástico-visionária dos relatos de guerra acabava, em última análise, por ter
efeitos nas esferas jurídicas e até políticas: “Pour le Moyen Age, les
représentations que l´on pouvait qualifier de transcendantes, célestes ou
infernales, sont objectives, sont le fait. Les apparitions de saints, les
visions extatiques, les états de tansport extatique, les opérations au-dela du
réel, les contacts avec le démon sont choses tenues pour réelles. Ils ne font
pas seulement partie de l´arsenal littéraire et des ressorts habituels du
developpement des contes ou des romans de chevalerie, mais ils ont leur
incidence dans la vie juridique aussi bien que dans la vie religieuse, et les
canons du droit, aussi bien que la vie historique, enportent parfois les
traces” (1960:32)[25]
Enquanto o pano de fundo
islamo-cristão radicalizou a belicosa alteridade peninsular, os artifícios
profético-históricos mais não fizeram do que mimetizar essa mesma
irredutibilidade. Esta autêntica obra
de séculos haveria de gerar, no crepúsculo de todos embates - ou seja na
transição de quinhentos para seiscentos[26]
- uma estado de catarse violenta, de auto-purgação, capaz do melhor e do pior,
ou seja, do ouro que deu nome ao
século e de todos os seus imponderáveis reversos inquisitoriais e de radical
aniquilação de minorias. F. Braudel chegou mesmo a afirmar que "nenhuma
civilização foi obrigada a trabalhar sobre ela mesma, a ‘partilhar-se’, a
despedaçar-se tanto como a ibérica"(...)Digo bem, civilização ibérica. É uma variedade particular da civilização do
ocidente, uma ponte avançada, uma extremidade desta, antes quase inteiramente
recoberta por águas estrangeiras. Durante o longo século XVI, a Península, para
se tornar de novo Europa, fez-se Cristandade militante; partilhou as suas duas
religiões superfluidas, a muçulmana e a hebraica. Recusou ser África ou
Oriente, segundo um processo que se parece de uma determinada maneira com os
processos de descolonização." (1984:157[27]).
É pois natural que toda a
vastíssima tradição, sustentada em relatos de batalhas entre o Islão e a
Cristandade - de origem jogralesca e mais tarde historiográfico-profética -,
acabasse por se converter em fonte de enunciados ex-eventum que, no fim do
caminho (sobretudo após Lepanto e antes da expulsão definitiva dos
moriscos, em 1609), haveriam de inevitavelmente forjar os mais diversos
sentidos da história, ao serviço, quase sempre, da orientações oficiosas.
Destacaremos dois exemplos peninsulares desta tendência artificiosa de
manipular os destinos da história, ao serviço de uma guerra definitiva (e às
vezes auto-flageladora). Referimo-nos aos dotes de S.Tiago em complemento com a
temática castelhana “goticista” e, por outro lado, referir-nos-emos a alguma
literatura profética morisca (de
Granada e de Aragão).
Veremos que as empatias com
Ourique não são, de facto, menores.
Em Espanha, as aparições
detêm-se em grande parte num longo intertexto ligado a S. Tiago, o Matamoros. Apesar dos travões romanos a
essa devoção tradicional, como acima referimos, J.Caro Baroja adianta que “ La fe en un Santiago que estubo en
España y que mucho después de muerto se apreció repetidas veces a las huestes
combatientes, en función de ser ‘matamoros’ y al que se invocaba al grito de
‘Santiago y cierra España’, se refleja también en sinfín de pinturas e
esculturas populares que aún se hacían en los siglos XVIII y XIX.” (J.Caro
Baroja,1978:419/20)[28].
Esta persistência ligada ao espírito de reconquista é contemporânea (e até
complementar) de uma interessante variante temática que surge no último quinto
do século XVI, “o goticismo”. Trata-se de uma recuperação do ambiente cristão
original, e portanto pré-islâmico, muito centrado na figura do rei Rodrigo, e
que tende a legitimar - inclusivamente através de muita história ficcional
forjada - a depuração inevitável que a Espanha do final de quinhentos já
claramente prenuncia (sobretudo no que diz respeito à expulsão dos moriscos, considerados como uma espécie
de quinta coluna do Império Otomano[29]).
F. Márquez Villanueva
(1981:364[30]) precisa a
questão: “Se impone tomar en cuenta la alternativa metodológica de una fecha
determinada por la cuestión goticista, tan vivaz en la década de 1580.
Presenció ésta un resurgir general del tema de Rodrigo, iniciado com la
publicación de la patrañera, pero convencional, História de los reyes godos (1582) del burgalés Julián del
Castillo, cuja misma portada pregona ‘la sucesion dellos hasta el Catholico y
potentíssimo don Philippe segundo”. O autor refere depois, neste âmbito, a
reimpressão, em Alcalá, no ano de 1586, da Crónica
sarracina ou Crónica del rey Rodrigo.
No ano seguinte, em 1587, Juán Yñiguez de Laquerica, numa chamada Crónica general de España, descreve os
godos como “inclytos” e “temidos por sus proezas”, ou seja, simultanemente
piedosos mas sobretudo heróicos, tendo, no entanto, sido alvo da maior
injustiça histórica: “Asi cayo y fue abatida en un punto aquella soberana
gloria de los Godos ensalçada por tantos siglos de continuas victorias”
(ibid.:363).
A reactualização forçada dos
visigodos não surge aqui como uma nostalgia de uma idade de ouro pura e invicta, na linha utópico-imaginária do
britânico Thomas More, mas sim no quadro da reconstrução ex-eventum da própria história ibérica, ao serviço dos desígnios
políticos dos Austrias. Ao fim e ao
cabo, este apressado corpus histórico
assemelha-se, nas suas metas, à própria produção profética que, ao longo do
século XVI, foi, em primeiro lugar, um instrumento de luta política oficial,
como sublinhou J. Dény (1936:204[31]):
“Les prophéties du XVIe siècle”(...)”présentent un caractère
particulier”(...)”Ce sont des véritables instruments de propagande politique,
au sens étroit du mot”.
O caso mais exuberante da
ficcionalização artificial da história, registada também nas últimas duas
décadas de quinhentos, diz repeito aos “libros púmbleos del Sacro Monte” (1595)
e ao pergaminho da “Torre Turpiana” (1580), ambos descobertos em Granada.
Estamos, aqui, face à reinvenção do destino por parte dos moriscos (uma abundante minoria, neste caso arabófona, composta por
dissimulados cristãos-novos). O material encontrado, no sub-solo do monte
fronteiro ao Alhambra e na torre referida, aparenta ser antiquíssimo e prevê,
de modo auto-flagelador - aliás como nos manuscritos proféticos e
não-arabófonos de Aragão, registados no manuscrito 774 da Biblioteca Nacional
de Paris[32] - o fim do
Islão na Península Ibérica, assim como o próprio fim do mundo. As placas de
chumbo do Sacro Monte, gravadas com caracteres árabes angulares e redigidas num
latim quase imperceptível - simulando assim a sua longevidade -, pretendem
reivindicar uma origem remota, explicitamente situada no século I D.C.
Entre os vários livros
“púmbleos” existentes, registe-se, por exemplo, Los grandes mistérios que vió Santiago, ou Enigmas e misterios que vió la Virgen, ambos atribuídos a Tefsifón
Ebnaçar e a seu irmão, supostos discípulos do incontornável e mítico S.Tiago,
apóstolo de Cristo e de Espanha (os manuscritos de Aragão, acima citados,
remetem, por sua vez, para S.Isidoro, considerado igualmente como “apóstolo de Espanha”). De referir que uma larga
disputa teológica - que chegou aos aerópagos do Vaticano - acabou por envolver
estes fascinantes manuscritos que, apenas em 1868, acabariam por ser
definitivamente desacreditados pela pena de José Godoy de Alcántara, na sua História crítica de los falsos cronicones
(D.Cabanelas,1965,1981 e L.Lopez-Baralt 1980,1981[33]).
Pelo facto, porventura, de a
comunidade que produziu estes manuscritos granadinos ter desaparecido, eles
acabariam por não gerar qualquer mito ibérico; no entanto, o processo de
reinvenção histórica e a sua denúncia definitiva estão intervalados de três
séculos, o que também acontece mimeticamente com o caso do relato de Ourique
(entre a sua fase filipina de reinvenção e as consequências da intervenção de
Herculano).
III- Monarquia
Lusitana: foz da tradição anterior e matriz do futuro mito.
O aparecimento de um
enunciado profético forjado e supostamente legitimado pelo próprio D.Afonso
Henriques - tese de Duarte Nunes de Leão (1600) que desagua na própria Monarquia Lusitana (1632) - não pode,
portanto, ser considerado como um fenómeno literário-profético isolado.
Insere-se, antes de mais, no quadro de uma alteridade peninsular mais geral que
acabamos - muito sumariamente - de descrever.
Esta tendendência
desenvolver-se-á, em Portugal, no entanto, de acordo com uma especificidade,
que se torna vital no fim de quinhentos, e que se baseia na afirmação de uma diferença,
no quadro da topografia imaginária da Península ibérica. Este facto - que é
também motivador das modalizações singularmente portuguesas do mito ibérico do
Encoberto (L.Carmelo,1998) - é partilhado, por razões e lógicas corrosivamente
diferentes, pelos moriscos do Levante
e da Andalusia. Deste modo, contra (ou a favor) da tendência de uma Península
Ibérica una, indivisa e monossémica, a todos os níveis, se erguem diferentes
modelos de manietação ex-eventum da
história. Neste âmbito se insere, por exemplo, o goticismo castelhano
(simbolicamente centripto), e, de sinal contrário, as profecias moriscas e. sobretudo, no caso que nos
interessa, para além do Sebastianismo português (reactivado na época em causa [34]),
a consolidação da matriz do que viria a ser o mito do milagre de ourique.
Vimos que é nesta fase,
durante cerca de quarenta anos de significativo período filipino, ou seja,
entre os textos de Duarte Nunes de Leão e a Monarquia Lusitana, que, de modo
decisivo, se constitui uma matriz construtora do novo e futuro mito. Leiamos,
pois, a parte decisiva do trecho original[35]
(III parte, 1973:119-120) da Monarquia Lusitana , da autoria de Frei
António Brandão, para que dela possamos extrair alguns dados importantes para
posterior conclusão.
O texto inicia-se com a
descrição de um D.Afonso quase místico, lendo a Bíblia e nela encontrando
sinais prefiguradores de vitória na batalha que se aproxima. Segue-se a
descrição de um sonho - num “brando sono” -, no qual a personagem de D. Afonso
vê o asceta, “um velho venerável”, bem como a própria e anunciada aparição do
“Salvador do mundo”. Acordará, depois, e, entre a realidade e o sonho, depara
então com o “bom velho” com quem antes sonhara e que, desde logo, lhe prenuncia
o milagre, acrescentando-lhe que “tivesse muita confiança em o senhor por ser
dele amado, e que nele, e em seus descendentes tinha posto olhos de sua
misericórdia até à décima-sexta geração[36],
em que a fé atenuaria a descendência, mas nela ainda nesse estado poria o
senhor os olhos”.
Não muito depois, com o
deslumbramento que a retórica barroca tão ornadamente figura, D. Afonso vê
Cristo na sua frente: “pondo os olhos no céu viu na parte Oriental um
resplendor formosíssimo, o qual (a) pouco e pouco se ia dilatando, e fazendo
maior. No meio dele viu o salutífero sinal da cruz”. D. Afonso, nessa altura, -
“descalço se prostrou em terra e com abundância de lágrimas começou a rogar ao
Senhor por seus vassalos e disse”:
- “Que merecimentos achastes
meu Deus em um tão grande pecador como eu para me enriquecer com mercê tão
soberana ?“(...)”Melhor seria participarem os infiéis da grandeza desta
maravilha, para que abominando seus erros vos conhecessem. (ibid.:119)
No único momento em que fala (também em discurso
directo), Cristo anuncia o futuro reino providencial português e termina
anunciando - ao nível dir-se-ia, do goticismo castelhano - claros desígnios de
depuração e pureza necessárias
- “Não te apareci deste modo, para acrescentar tua
fé, mas para fortalecer teu coração nesta empresa e fundar os princípios do teu
reino em pedra firmíssima”(...)”Eu sou o fundador e destruidor dos Impérios do
mundo, e em ti, tua geração quero fundar para mi, um Reino, por cuja indústria
será meu nome notificado a gentes estranhas. E porque teus descendentes
conhecerão de cuja mão recebem o Reino, comporás as tuas armas do preço com que
comprei o género humano, e daquele porque fui comprado dos judeus, e ficará
este Reino santificado, amado de mim pela pureza da Fé. E excelência da
piedade.”(ibid.:119-120)
Segue-se a resposta de D.Afonso que pede a Deus que
proteja o reino, chegando a referir o possível pecado dos seus descendentes
(numa clara interferência da enunciação - sublinhando o estado do presente - em
desfavor do pretenso passado em que o texto quereria
ter sido escrito). Num momento posterior, já em discurso indirecto, mas agora
através da voz narrativa e omnisciente, é sublinhada a aceitação de tudo por
parte da Divindade e são, de seguida, profeticamente anunciadas as próprias
viagens dos descobrimentos, talvez como forma ex-eventum de demonstrar um pretenso domínio da história ainda por
cumprir.
-“Em que merecimentos fundais meu Deus uma piedade
tão extraordinária como usais comigo ?”(...)”Conservai livre de perigo a gente
portuguesa, e se contra ela tendes algum castigo ordenado, peço-vos o deis
antes a mim, e a meus descendentes, e fique salvo este povo a quem amo como
único filho.
A tudo deu o Senhor resposta favorável”(...)”porque
os tinha escolhidos por seus obreiros e legadores, para lhe ajuntarem grande
seara em regiões apartadas. Com isto desapareceu a visão.” (ibid.:120)
Podemos retirar deste enunciado várias conclusões,
nomeadamente:
a) A enunciação não
privilegia um elemento intermediário entre o actante-profeta e futuro rei, por
um lado, e a Divindade, por outro lado, o que está de acordo com os moldes do
género profético, na sua primeira fase, até ao século IV A.C. (anterior,
portanto, aos primeiros textos apocalípticos). Este facto acaba também, por
produzir um efeito de verosímil hiperbolizado, complementado com reiteradas
expressões patéticas e de pretensa humildade por parte de D.Afonso;
b) O eixo imediato do
presente - a pré-batalha - sobrepõe-se ao eixo escatológico, negligenciando-se
aparentemente a questão da salvação, mas sublinhando-se, de forma clara e
explícita, a questão de uma futura predestinação nacional;
c) A pseudonímia
autorial, neste caso sigularizada pela instância narrativa no próprio actor que é D.Afonso, atribui autoridade
à enunciação e permite, à partida, a manipulação do tempo e da história;
d) A teoria das duas
idades impõe-se, mas de tal modo que um presente mágico (o do século XII)
parece, desde já, determinar um futuro radioso até - precisamente - à “décima
sexta geração”, o que, no fundo, é a chave do que virá a constituir-se como um
futuro mito providencialista de sobrevivência nacional. No entanto,
inquietações do período em que o texto é forjado reflectem-se na segunda voz de
D.Afonso (“conservai livre de perigos a gente portuguesa”);
e) O discurso refina-se
através de visões carregadas de símbolos (a visão no lado oriental do céu; os
judeus; a pureza; gentes estranhas; o homem venerável; a Bíblia; a prolepse
onírica e sobretudo as armas de Portugal que D.Afonso acata, etc), ainda que a
ilocução seja descodificada através da intervenção, premeditada e cruzada, de
ambos os autores - Cristo e D.Afonso[37]- que
dialogam, ao contrário do que acontecia na versão do século XV (igualmente já
afectada pela manipulação do devir histórico);
f) O sonho[38],
um elemento profético por excelência, intervém como uma prefiguração absoluta e
literal de tudo o que ocorrerá algumas linhas depois do seu registo,
nomeadamente através do surgimento do eremita anunciador e da própria aparição
de Cristo. Sem construir um verdadeiro suspense,
e sem se constituir como figura de antecipação, o sonho adquire, deste modo,
funcionalidade enfática, bem como a força rítmica de uma litania que se limita
a repetir o acto que se quer narrar. Contribui, deste modo, para o desejado eco
retórico com que a aparição de Cristo se sublinhará;
g) Quando o “homem
venerável” anuncia a D.Afonso que, à décima-sexta geração, “a fé atenuaria a
descendência” dos que mandam no reino, logo acrescenta - “...Mas nela ainda
nesse estado poria o Senhor os olhos” - o que constitui outro claro prenúncio
da necessidade de ver projectada, no presente, uma inevitável projecção divina
que ilumine o estado actual de pós-degenerescência (leia-se, de dependência
filipina);
h) Por fim, como se
referiu mais cima, a escolha de Deus recaindo sobre os portugueses “para que
lhe ajuntarem grande seara em regiões apartadas”, não só sublinha o claro
providencialismo divino, como tem a utilidade diegética de denotar um pretenso,
mas necessário, domínio da história por parte da transcendência revelada.
IV- Conclusão.
A
tradição oral épica, reposta textualmente no século XIV, consagra D.Afonso
Henriques como um personagem heróico, ímpar, criador do mundo original, ou seja
do novo reino.
No início do ciclo de ouro, passadas as etapas da
fundação e iniciação, Portugal descobre-se como terra providencial e, por isso
mesmo, a lenda o explicita nos variados excertos que edificam a própria crónica
de 1419. Neste contexto, a semantização de um pacto entre a ideia do antigo
guerreiro fundador e o agora divino fundador do reino há-de perdurar ao longo
do século XVI. Duatre Galvão e Camões farão ainda jus a esta visão de D.Afonso
Henriques.
No período de fechamento do ciclo de ouro, os conteúdos da lenda são
definitivamente moldados e seriados. Fixa-se, então, de vez, o caracter
angélico e divino do primeiro rei português e forjam-se, ao mesmo tempo, as
fontes histórico-ficcionais de formato
heteredodiegético e actorial, para melhor o legitimar. Além do mais, as
características da matriz literária do período (1600-1632) correspondem, nos
artíficios retóricos utilizados, a atributos nodais e ancestrais do género
profético. Tal é patente no diálogo entre o rei e a divindade[39];
na premonição calculada do futuro, tendo como acento particular o estado de
coisas vivido no tempo real em que o texto é enunciado; no recurso a uma
estrutura narativa ex-eventum e, por
fim, na consequente manipulação da história ao serviço de efeitos de sentido do presente (sobretudo políticos).
Esta definição matricial do
futuro mito é contemporânea e muito similar a outras penínsulares; quer face ao
corpus profético das minorias
ameaçadas de expulsão (os moriscos)
que reinventam a história para se tentarem salvar; quer face às tentativas
centralistas dos Áustrias de Madrid que também manipulam a história, ao serviço
dos seus desígnios imperiais e de monossemia hispânica. Curiosamente, em todos
estes casos, a alteridade islamo-cristã é uma das isotopias correntes, na
sequência da tradição, quase omnisciente aliás, das narrativas ibéricas
medievais e mesmo posteriores (como se viu).
No entanto, a diferença
enunciada por Portugal, nesta sua matriz profética de seiscentos, é evidente e
vem significar uma necessidade vital de afirmação[40]
de uma história específica que, por um lado, crê nas suas origens sagradas e,
por outro lado, crê num futuro visionário e sobretudo autónomo. Outros mitos
igualmente em formação na época (como, por exemplo, o do Encoberto), coincidem
neste singular aspecto de representação do tempo, pelo que confirmam o presente
ponto de vista.
O exemplo mais interessante
que comprova esta necessária especificidade portuguesa é, porventura, o que
advém da adaptação teatral da matéria da lenda - sobretudo a partir dos textos
de Benardo de Brito (1602) - por um autor português português e por um outro
espanhol. Se António de Sousa, na sua Tragicomédia
(1617) funde o ornato alegórico barroco com a essência do conteúdo providencial
da lenda, já Tirso de Molina, em Las
quinas de Portugal (1638), desenvolve antes conteúdos de tensão amorosa
entre D.Afonso e uma senhora da corte que quase o desvia dos seus deveres
régios. Deste modo se verifica como já existem, na época, em Portugal, claros
factores de identificação e, portanto, de especificação de “formas de conteúdo”[41]
que se desvirtuam, quando interpretados por outro sistema semântico.
A força deste intertexto
profético e de sobrevivência nacional[42]
- baseado no relato mítico de Ourique - é tal que, superando os conhecidos
horizontes desconstrutores de oitocentos, acabará, no século XX, por ser
recebido como fundamento poético para alguns cultores do modernismo português,
assim como para bastantes autores da designada filosofia portuguesa e do projecto da Renascença Portuguesa[43].
Almeida Garrett, nas suas Viagens na
minha terra[44],
contemplando a “Capelinha de Nossa Senhora da Vitória”, cuja origem uma lenda
escalabitana atribui a D.Afonso Henriques, não resiste a lucubrar acerca da
transmissão dos imaginários que, de lendas, se transformam em facto: “Mas seria
ele (D.Afonso), ou não que levantou essa capelinha ? Os documentos faltam; os
escritores contemporâneos guardam silêncio; a História deve ser rigorosa e
verdadeira... Deve; e os grandes factos importantes, que fazem época e são
balizas da História de uma nação, também eu os rejeitarei sem dó, quando lhes
faltarem essas autênticas indispensáveis. Agora as circunstâncias, para assim
dizer, episódicas de um grande feito sabido e provado, quem as conservará, se
não forem os poetas, as tradições, e o grande poeta de todos, o grande
guardador de tradições, o povo? ”(1974:244).
Talvez por isso mesmo,
Garrett conclua que “Portugal é, foi sempre, uma nação de milagre, de poesia”
(ibid.:214). Uma terra, como tantas outras, onde os factos míticos recortam a
identidade, pelo menos no plano de uma subliminar auto-imagem.
[1]Sobre o conceito, relativo às readaptações e transformações genéricas,
cf. A.Fowler The life and death of
literary forms in New directions in
literary history, Ralph Cohen (ed.), The Johns Hopkins University Press,
1974:77-94, Baltimore. Ainda: Kinds of
literature: An Introduction to the Theory of Genres and Modes, Clarendon
Press, Oxford, 1982:107.
[2] Acerca do tema em
questão, L.Carmelo, A simbologia do
Encoberto peninsular - Da génese valenciana aos moriscos aragoneses e ao grande
mito português (F.Sur,Madrid,1998) insere-se,
tal como o presente artigo, num projecto mais vasto, designado - “Portugal semiose e auto-imagem”.
[3] Sobre o assunto,
refere M.Tarracha Ferreira (Romanceiro de
Almeida Garrett,Ulisseia,Lisboa,1997): “Cantadas pelos jograis, as gestas
eram de difícil memorização, por serem excessivamente longas, além de que nem
todos os episódios impressionariam igualmente a imaginação do povo. E em
determinada época, talvez na segunda metade do século XIV, ao mesmo tempo que
os jograis iam procedendo a novas refundições dos fragmentos desgarrados que
mais tarde emocionavam os ouvintes, quer simplificando-os, quer introduzindo
episódios de outras gestas ou de lendas entretanto criadas pelo imaginário
popular, as canções de gesta serviam também de fonte histórica às crónicas
primitivas, pois nelas iam sendo incluídas em versões prosificadas. Assim, nas
compilações históricas realizadas por iniciativa de D.Afonso X, o Sábio, rei de
Leão e Castela, e avô materno de D.Dinis - a General Estoria e a Crónica
General de España, ambas redigidas em castelhano (ou seja, em romance
castelhano), - foi incluída ‘ matéria dos poemas épicos de tema histórico ainda
então cantados pelos jograis que os iam dando a conhecer de terra em terra’, segundo
o medievalista Luís Filipe Lindley Cintra”.
[4] Segundo A.Saraiva (O crepúsculo da Idade Média,Gradiva,
Lisboa,1996:158), citando J. Leite de Vasconcelos e L.Lindley Cintra, o
presente texto detém marcas sobretudo galegas, provenientes de traduções anteriores,
chegando a sublinhar a hipótese de o próprio D.Pedro ter encarregado da
tradução de uma das variantes da Crónica
general de España um escriba galego”.
[5] M.Buescu (Perceval e Galaaz, cavaleiros do Graal,Biblioteca
Breve, Lisboa,1991:87).
[6] A.Saraiva
(o.c.,1996:161).
[7] L.Lindley Cintra (Introdução in Crónica Geral de Espanha de 1344, Vol.I, Academia Portuguesa de
História, Lisboa,1951; Sobre a formação e
a evolução da lenda de Ourique in Revista
da Faculdade de Letras,F.L.L.,Lisboa,1957 e A lenda de D.Afonso I, rei de Portugal (origens e evolução) in ICALP revista, ICLP, Lisboa,1989).
[8] Todos os
“predicados” analisados por A.Saraiva (o.c.,1996:162-163) são “próprios de
Fernão Lopes”(...)”e estranhos aos historiógrafos medievais”. De realçar, neste
quadro, o “espírito de paisagem”presente na descrição de Santarém que antecede,
na crónica em causa, a narração da conquista da cidade.
[9] J.Matoso, História de Portugal,Estampa,
Lisboa,1993-Vol.I:70
[10] Texto in A.Saraiva
(o.c., 1996:164-165).
[11] No sentido de
enquadrar a noção de ‘horizonte de expectativas’, eis a reflexão de H.Jauss
(1978:50-51), a partir de uma definição de W.-D.Stempel: "Si lón définit
avec W.D. Stempel l'horizon d'attente où vient s'inscrire un texte comme une isotopie paradigmatique qui se change, à
mesure que se développe le discours, en un horizon
d'attente syntagmatique immanent au text, le processus de la réception peut
être décrit comme l 'expansion d'un système sémiologique, qui s'accomplit entre
les deux pôles du développement et de la correction du système. Le rapport du
texte isolé au paradigme, à la série des textes antérieures qui constituent le
genre, s'établit aussi suivant un processus analogue de création et de
modification permanentes d'un horizon d'attente. Le texte noveau évoque pour le
lecteur (ou l'auditeur) tout un ensemble d'attente et de règles du jeu
lesqueles les textes antérieures l'ont familiarisé et qui, au fil de la
lecture, peuvent être modulées, corrigées, modifiées ou simplement reproduites.
La modulation et la correction s'inscrivent dans le
champ à l'intérieur duquel évolue la structure d'un genre, la modification et
la reproduction en marquent frontières." Esta reflexão inclui-se na
tradução francesa (1978) de um volume onde se publicam diversos trabalhos de
H.Jauss da década de setenta (de 1972 a 1975). Já na década de 80, H.Jauss
(1988:27) escreveria: "...le concept d'horizon est devenu une catégorie
fondamentale de l'herméneutique philosophique, littéraire et historique: en
tant que problème de la compréhension du différent face à l'altériré des
horizons de l'expérience passé et de l'expérience présente, comme aussi face à
l'altérité du monde propre et d'un monde culturel autre". Jauss, Hans-Robert Asthetische
Erfahrung und literarische Hermeneutic - I, Wilhelm Fink, Munchen, 1977;
ed.ut.: Pour une esthétique de la
réception, Gallimard, Paris, 1978.
[12] A propósito das
características do género profético, cf., L. Carmelo (La Représentation du réel dans des textes de la litterature
aljamiado-morisque, Universiteit Utrecht, Utreque)1995:18-187.
[13] L.Cardaillac, Morisques et
Chréthiens - Un Affrontement polèmique, Librairie Klincksieck, Paris, 1977.
[14] Referimo-nos, por um
lado, às reactivações proféticas das tradições joaquinitas e, por outro lado,
às reactivações de profecias pró-imperiais, legitimadoras de desígnios divinos,
tais como as Tribulações... de
Telesforus de Cozenza, a Profecia do Segundo
Carlos Magno, o Gamaleon e, já
depois de meados do século XV, o Prognosticatio
de J.Lichtenbergen (L.Carmelo,o.c.,1995:42-49).
[15] L. de Camões, Os Lusíadas, Porto Editora,Porto, 1969.
[16] Las formas complejas de la vida religiosa - religión, sociedad y carácter en España de los siglos XVI y XVII, Akal Editora, Madrid, 1978.
[17] Sublinhado nosso.
[18] História da literatura portuguesa, Porto Editora,Porto,1955.
[19] A intencionalidade
diz aqui respeito à enunciação do intertexto que se cria na sequência dos mais
variados registos que vão de Duarte Nunes de Leão a António Brandão.
[20] N.Daniel,The cultural Barrier -
Problems in the Exchange of Ideas, Ed.Un.Press, Edinburgh,1975.
[21] Los cuervos de S.Vicente: escatología mozárabe, Ed. Nacional, Madrid, 1978.
[22] Nos textos
proféticos dos moriscos de Aragão, sobretudo nos Manuscritos 774 da Biblioteca
Nacional de Paris, torna-se evidente que os agora falsos cristãos-novos aceitam
que a derrota definitiva face à maioria cristã se fica a dever à sua
negligência face aos deveres divinos. Publicamos, como exemplo, um extracto de
uma dessas profecias: “- Óh! (Ya) servo de Allah,
quero fazer-te saber como se aproximam tempos difíceis ("el eskandalizami(y)ento") para os
muçulmanos de Espanha. (E) disse:
-
E porque é que isso acontecerá ?
-
(E) disse:
-
Porque irão acontecer entre eles muitas coisas feias. E a primeira dessas
coisas é que deixarão de compreender o Alcorão, e deixarão l-ssalâ (a oração
ritual) e não pagarão a(l)zzake (a
esmola legal) e dayunarán
(jejuarão) pouco e (mesmo assim) dizem que Allah
é verdadeiro (fol.279v) nos seus corações (mas) são vazios de nomear Allah. E por isso semearão muito e
colherão pouco, trabalharão muito (e disso) terão pouco proveito” (in L.
Carmelo,o.c.,1995:348).
[23]A cronologia dos
textos proféticos, no seu todo, é bastente imprecisa. Embora o cronotopo
diegético se espalhe entre o século XIII A.C. (relato da conquista e repartição
da terra pelas doze tribos, em Josué) até aos tempos de Alexandre-o-Magno (no
segundo Zacarias), os textos atribuídos aos profetas
últimos (de Isaías a Malaquias) acabam por ser autorialmente anteriores a
muitas das compilações dos chamados primeiros
profetas (de Josué aos Reis) - caso do livro dos Reis (escrito ao longo do
séc.VI A.C.), enquanto que, entre os profetas
últimos, encontramos textos da autoria do próprio Isaías (no primeiro
Isaías) cuja datação nos remete para o século VIII A.C.
Acresce ao indicado, o facto de, na cronologia
interna do Antigo Testamento, existirem ingredientes proféticos anteriores aos
próprios livros proféticos: nos Números,
os textos Eloístas assinalam já a prefiguração profética. Em 11,25 Moisés
responde a um rapaz que testemunhara Eldad e Médad em pleno acto de profetizar:
"Si seulement tout le peuple du Seigneur devenait un peuple de prophètes
sur qui le Seigneur aurait mis son esprit!". No quadro da tradição
Eloísta, Deus intervém pouco directamente nos assuntos humanos e espera dos
seus servidores obediência. Outros fragmentos de prefiguração do profetismo
remontam mesmo ao Génesis. Por
exemplo, em Gn 20,7, Abraão é tratado como um profeta:"C'est un prophète
qui intercédera en ta faveur pour que tu vives” (diálogo entre o rei de Guérar, Abimélek, e Deus que lhe fala em sonho - um dos elementos
mediadores importantes no que virá a ser a futura tradição profética). A
realeza é, portanto, um ponto de partida formal para este período profético. No
Deuterónimo, o papel de Moisés
"n'est pas exactement celui d'un prophète" (Introduction/ Traduction
Oecumenique de la Bible:332). O profeta, como o codificamos no início do
período designado por profético (ibid.:332), transmite a palavra directamente
de Deus ao seu povo; Deus apresenta-se então num discurso da primeira pessoa. Aqui, ao contrário, e
como os Levitas continuarão a fazer,
Moisés recorre antes à primeira pessoa para se referir a si próprio, enquanto
evoca Deus na terceira pessoa verbal (caso de 9,10: "Le seigneur m'a donné
les deux tables de pierre, écrites du doigt de Dieu, où étaient reproduites
toutes les paroles que le Seigneur avait prononcées pour vous sur la
montagne").” (L.Carmelo,o.c.,1995:34). Sobre o tema Frye, Northrop The Great Code, The Bible and Literature,
Harcourt Brace Jovanovich Publishers, 1981/2; ed.ut.: Le Grand Code - La Bible et la littérature, Seuil, Paris, 1984., e
E.Lévinas Lévinas, Emmanuel Transcendence
et Inteligibilité, Éditions Labor et Vides, 1984, Paris; ed.ut.: Transcendência e Inteligibilidade,
Edições 70, Lisboa, 1991; citações do A.T. in Traduction OEcuménique de la Bible (TOB) - Édition Intégrale, Les
Editions du Cerf/ Les Bergers et Les Mages (Ancien Testament), Paris, 1987; Les
Editions du Cerf/ Société Biblique Française (Nouveau Testament), Paris, 1989.
[24] Sobre esta questão,
M.Foucault (1988:113) conclui, em As
palavras e as coisas, que o saber apenas rompe com o seu "velho
parentesco", a divinatio, a
partir do século XVII. Até aí, e ao contrário da lógica sígnica "do
provável e do exacto", todo o saber decorre do desvelar de uma linguagem
anterior, distribuída por Deus ao mundo, linguagem essa que é espelhada pela
natureza (nela se incluindo a voz, enquanto suporte anterior e imanente das
línguas naturais; cf. Foucaul, Michel Les
mots et les choses - une archéologie des sciences humaines, Gallimard,
Paris, 1966; ed.ut.: As palavras e as
coisas, Edições 70, Lisboa, 1988. ). Julia Kristeva, em Recherches pour une sémanalyse (Seuil, Paris,1969), mostra-se mais
prudente na caracterização da época que preside à transição “do símbolo ao
signo”. Para a autora, todo o período que sucede ao século XIII - e até aos
alvores do século dezasseis - constitui uma transição em que, a pouco e pouco,
esta "prática semiótica cosmogónica" (ibid:116), baseada nas relações
unívocas entre os universais e as coisas (o mundo da divinatio), cede a um novo tipo de conexão sígnica, baseada na
interacção "entre deux éléments placées tous les deux de ce côté-ci, réèls
et concrets" (ibid:117).
[25] Sobre a obra de
A.Abel, com incidência na análise do profético. Cf.: Réflexions comparatives sur la sensibilité médiévale autour de la
Méditerranée aux XIIIe et XIV siècles in Studia Islamica, Vol. XIII, 1960:23-42;Changements politiques et littérature
eschatologique dans le monde musulman in Studia Islamica, Vol. II, 1965: 23-45;Un Hadit sur la prise
de Rome dans la tadition eschatologique de l´Islam in Arabica, Tome V,1958:1-15 e Bahira
in Enciclopedia of Islam (New
Edition), Vol. III, 1983: 777-779. Como O.Niccoli referiu (1990:62 e sqqs.), as
aparições e visões sobrenaturais integram um vasto corpus profético que se estende desde a Idade Média até seiscentos,
atingindo mesmo o mundo protestante (caso do De spectris de Ludwig Lavater - 1570). Em
França, por exemplo, “aerial battles had become so common that on several
occasions they were predicted by preachers”(...)”the topic appears to have been
a favorite of the broadsheets on current occurences known as canards”
(ibid.:63). Um dos enunciados mais ímpares descritos é a italiana Littera de le maravigliose battaglie,
datada de 1517, e onde se descreve a súbita visão de dois exércitos em luta
durante uma semana, três a quatro vezes por dia, na região de Verdello,
Bergamo. Após a batalha, os seres envolvidos na peleja desaparecem, deles
apenas soçobrando vestígios de pegadas. Esta
mundovisão fantástica e recheada de “segno” integra um ambiente semiótico
caracterizado pela interpretação mântica de ocorrências; um exemplo evidente
disso é o facto de as luzes fosforescentes “appearing on battlefields were a
recurrent commonplace to the point that in the mid-eighteenth century Lenglet
Dufresnoy felt it necessary to state they “are only gross exhalations that rise
naturally from cadavers and that easily take fire”- O. Niccoli, Profeti E Popolo Nell'Italia Del
Renascimento, GIUS, Laterza & Figli SPA, Roma-Bari, 1987; ed. ut.: Prophecy and People in Renaissance Italy,
Princeton University Press, Princeton - New Jersey) 1990:73.
[26] No momento em que se
pressente a expulsão das minorias islâmicas da Península (1609), após os
momentos-chave de Lepanto, Alpujarras e Alcácer-Quibir.
[27] Braudel, Fernand La Méditerranée et le monde méditeranéen à
l'époque de Philippe II, Librairie Armand Colin, Paris, 1966; ed.ut.: O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico, Publicações
D.Quixote, Lisboa, 1983 (Vol. I), 1984 (Vol.II).
[28] Sobre aparições e profecias, na época em questão, cf. William
Christian, Jr. - Apparitions in Late
Medieval and Renaissance Spain (Princeton,PUS,1991) e O.Niccoli - Prophecy and People in Renaissance Italy
(Princeton, PUS,1990).
[29] Cf. L. Carmelo,o.c.,1995:123.
[30]F.Marquéz Vilanueva,Voluntad de leyenda: Miguel de Luna in Nueva Revista de Filología Hispánica, Vol.XXX,nº2,1981:359-395.
[31] J.Deny,Les pseudo-prophéties concernant les turcs au XVIe siècle in Révue des Études Islamiques, nº 10, Cahier 2, 1936:201-220.
[32]Corpo de Manuscritos aljamiados (excepto entre os fol. 88v e
189r, em Árabe), referenciado, pela primeira vez, por E. Saavedra, no apêndice
aos Discursos leídos ante la Academia
Española el 29 de Deciembre de 1878, Madrid, e catalogado pelo autor como
número sessenta. O Manuscrito da Biblioteca Nacional de Paris corresponde ao
manuscrito número 290 de Saint Germain de Près e é actualmente designado por
Ms.BNP 774. Em 1982, foi publicado por M. Sánchez Alvarez, El Manuscrito misceláneo 774 de la Biblioteca Nacional de París,
Gredos, Madrid.
[33] De L.López Baralt: Chronique de la déstruction d'un monde - la littérature aljamiado-morisque in Revue de l'Histoire du Maghreb, nº 17/18, 1980-I:43-73; Las problemáticas profecías de San Isidoro de Sevilla y de Ali Ibn Alferesiyo en torno al Islam Español del siglo XVI: tres aljofores del Ms.774 de la Biblioteca Nacional de Paris in Nueva Revista de Filología Hispânica, nº XXIX-2, Madrid, 1980-2:353-366 e Mahomet - prophete et mythificateur de l'Andalousie Musulmane des derniers temps, dans un manuscrit aljamiado-morisque de la Bibliotheque National de Paris in Revue de l'Histoire du Maghreb, nº21-22, 1981-1: 199-201. De D.Cabanelas, Intento de supervivencia en el ocaso de una cultura: los libros púmbleos de Granada in Nueva Revista de Filología Hispânica, nº XXIX-1, Madrid,1981:334-356.
[34]A Reactivação da
figura do Encoberto, oriunda do Levante Ibérico, fica em muito a dever-se à
recuperação de Bandarra levada a cabo por D. João de Castro, na sua Paraphrase et Concordancia de alguas
propheçias de Bandarra, çapateiro de Trancoso (1603). Neste contexto
deve-se incluir igualmente Bocarro Francês (1588-1662) e, depois da Restauração
de 1640, refira-se o Fr. Filipe Moreira que atribu às profecias de Bandarra a
premonição do novo rei, D.João IV, pois onde nas Trovas se escrevia - “ o seu nome é Dom Foão”, “houvera de se ler”
D. João, o primeiro da Dinastia de Bragança. Contra a “Grifa parideira”,
referida por Bandarra e agora intrerpretada como a casa de Habsburgo, se erguia
este novo rei do país restaurado. Na sua obra O Sebastianismo - história sumária (1987), José van den
Besselaar dá corpo à vasta antologia que, na época, se espalhou em Portugal em
torno do agora descoberto Encoberto.
No entanto, o Padre António Vieira acabaria por tornar-se no maior dos
porta-vozes do novíssimo bandarrismo joanista. No seu estilo literário, baseado
na alegoria universal, Vieira, deu corpo ao que viria a designar-se pelo “Quinto
império português”. No seu Sermão de
Acção de Graças pelo nascimento do príncipe D.João, o padre jesuíta retoma
as palavras de Daniel (2,26-45) acerca dos quatro grandes impérios e
concretizaria assim: “... o terceiro império, que é o dos gregos, a que hão-de
suceder romanos; o demais de ferro[34]
até aos pés significa o quarto império, que é o dos romanos, a que há-de
suceder o da pedra, que derribou a estátua; e a mesma pedra significa o Quinto
Império, a que nenhum outro há-de suceder” (in L.Carmelo, o.c.,1995:324).
[35] “Monarchia Lusitana, III Parte, por Frei
António Brandão. Texto integral fac-similado”, Imprensa Nacional - Casa da
Moeda, Lisboa, 1973:119-120 (introdução de A.da Silva Rego e col. A.Dias
Farinha e Eduardo dos Santos).
[36] Sublinhado nosso.
[37]A este respeito recorramos à clarificação de L. Hartman (1983:334) :
"...I will examine the characteristics of what could be termed the illocution of the text, i. e., what its
author wants to say with that which he says.
We could also speak of this constituent as the message or the type of
message conveyed by the text" (...) "...in the case of apocalypses, a
typical message is one of comfort and exhortation" ; L,Hartman, Survey of the problem of Apocalyptic genre
in Proceedings of the International
Colloquium on Apocalypticism, (Uppsala, 12-17/8/1979), David Hellholm
(ed.), J.C.B. Mohr, Tubingen, 1983: 329-343.
[38] Citando ainda Ibn Khaldún (1967-I:203-4), é através da
verdadeira visão onírica (ru`yâ) que
a alma humana "atteint à la connaissance de l'avenir souhaité et retrouve
aussi ses perceptions originelles"; mas, porque a sua potência depende de
percepções corporais, os humanos não atingem nunca o nível superior dos anjos.
É, ao contrário, dom dos profetas "passer de l'humanité au pur angélisme,
c'est-à -dire à l'échelon supérieur de la spiritualité" (ibid.:205). A
visão onírica exprime-se, assim, "à plusieurs reprises au cours des
révélations". O registo do oniro está intimamente ligado ao modo
profético, ou seja, ao diálogo entre Deus e o homem, seu receptáculo. O sonho
constitui-se como matéria do premonitório e a tradição que confere a esse
processo uma dada codificaçäo remonta ao século VII A.C., segundo L.Hoppenheim
(1956: 179 e sqqs.). As influências que, neste quadro, sobretudo a sociedade
islâmica irá sentir, provêm sobretudo da Grécia e da zona do Iraque. Por
exemplo, a tradução do livro dos sonhos de Artemidoro de Éfeso foi importante,
no século IX, para que a "onirocritique arabe puisse sentir une nouvel
essor" (T.Fahd,1966:248). Esta dupla herança (grega e babilónica), bem
assimilada pelos “onirocrites arabes, se perd dans l´apport très riche et très
varié qu´ils ont enregistré, amélioré et perfectionné, à travers de nombreuses
générations” (ibid.:249). Os variadíssimos exemplos de profecias, recorrendo a
sonhos (e a existência de códigos para a significação destes), patente no livro
de Toufic Fahd (1966), permite concluir que "ces exemples démontrent
l'existence, dans la première moitié du IIIe/IXe siècle, d' un code d'
interprétation des songes, réunissant certaines constantes symboliques"
(ibid.:311). Sobre o tema: L Oppenheim, The interpretation of dreams in the Ancient Near East. With a
Translation of an Assyrian Dream-book, in Transactions of the American Philosophical Society, Vol.46,
Philadelphie, 1956: 179-373;Ibn Khaldún,Discours
sur l'Histoire Universelle (al-Muqaddima), org./tr. Monteil, Vincent:
Comission Internationale pour la traduction des Chefs d'Oeuvre, Beyrouth,
1967-I, 1968-II et III; T.Fahd,La
Divination Arabe - études réligieuses, sociologiques et folkloriques sur le
milieu natif de l'Islam, E.J.Brill, Leiden, 1966.
[39] Já vimos na nota 23
que, no período profético inicial, até ao século IV A.C., não se regista
qualquer mediação angélica, entre a divindade e os reis. Essa figura é aqui
recuperada. Além do purismo retórico, porventura não intencional, mas
objectivado ao nível da enunciação, refira-se que terá feito parte da
estratégia de diferenciação portuguesa substituir os santos (S. Tiago,
sobretudo) pelo próprio Cristo, na aparição que é, ao fim e ao cabo, a base da
profecia fundadora e providencialista de Ourique. Tal é a tese de L.Lindley
Cintra (o.c.,I-1957).
[40] A afirmação de uma
identidade baseia-se na consciência de se ser sujeito de algo, i.e., de
estabelecer com o objecto - o mundo, o outro - uma relação também particular.
No plano do imaginário português, segundo J. Matoso, no seu recente A identidade nacional
(1998,Gradiva,Lisboa), “a primeira obra em que os portugueses aparecem como
sujeito é, talvez, significativamente, as
Décadas de João de Barros (1552-1563)”, antecipando, nesse propósito
constitutivo, Os Lusíadas. A matriz
profética, definida no início do século XVII - e estimulada decerto pelo contexto político de então - só se torna
possível pelo facto de o reino, já na época, se auto-representar como um
sujeito (colectivo), construtor das suas prórpias “formas de conteúdo” (segundo
U.Eco,O signo,1981:159, Presença,
Lisboa - “o sistema das unidades semânticas representa o modo como uma certa
cultura segmenta o universo perceptível e pensável e constitui a forma de
conteúdo”).
[41] Sobre a noção de
“forma de conteúdo”, da autoria de L.Hjelmslev, cf. nota 40.
[42] A.Saraiva refere
mesmo que o “milagre de Ourique”, relatado pela primeira vez “250 anos depois
do seu suposto acontecimento”,(...)“justifica a independência nacional” e será
“invocado e engrandecido após a perda da independência, em 1580. Porque fundava
essa independência num direito superior ao dos reis” (o.c.,1996:166).
[43] Nomeadamente os registos do “temperamento messiânico”e da “nova religião” portuguesa, baseados numa pesquisa às “fontes originárias”da alma nacional, e que surgem retrospectivados em obras de Teixeira de Pascoaes, tais como O espírito lusitano ou o saudosismo (Renascença Portuguesa, Porto,1912), ou O génio português - na sua expressão filosófica, poética e religiosa (Renascença Portuguesa, Porto,1913). Por outro lado, em autores como Álvaro Ribeiro (Meditação lusíada - Amanhã, V Império in Tempo Presente,1960:7/8), há a convicção de que “na fluência dos eventos flutua um símbolo de perene”, o que leva a concluir - de acordo com uma notória crença providencialista, baseada numa específica teoria do acto, que - “Portugal é uma potência que urge passar a acto, para que mais brevemente se cumpra a redenção universal”.
[44] Sá da Costa,
Lisboa,1974.