Gustavo Cardoso, ISCTE
1998
1- Uma nova área de intervenção política e análise social
Lionel Jospin1
afirma ser imperiosa a entrada em força da França na sociedade de informação e
assina um acordo com a multinacional IBM para a reconversão do sistema Minitel
para a compatibilidade com a internet e o protocolo TCP/IP; Al Gore promove
através do seu cargo de vice-presidente do Governo Federal Norte Americano a
internet2 como o passaporte para o continuado desenvolvimento
económico e tecnológico dos EUA; Mariano Gago através da Missão para a
Sociedade de informação implementa medidas tendentes à realização de um Livro
Verde sobre a sociedade de informação e dota as escolas dos diversos ciclos com
ligação à internet.
Múltiplos são os
exemplos da importância fundamental da actividade governamental na área de
promoção da utilização e desenvolvimento das tecnologias de informação, como
veremos no próximo capítulo, e é precisamente esta multiplicidade de actuações
por parte do estado ou financiadas por este, que tem levado a que desde os anos
60 um conjunto diversificado de investigadores venham a desenvolver estudos em
torno destas matérias, as quais Frank Webster denominou "teorias da
sociedade de informação".3
As chamadas teorias
da sociedade de informação partilham a ideia de que existe uma mudança em curso
nas sociedades contemporâneas e que a mesma se deve ao papel preponderante da
informação e comunicação.
No entanto, embora
partilhando essa ideia, Webster defende que as opiniões dos investigadores
tendem a repartir-se em função do grau e alcance das mudanças e da sua
percepção do conceito de "informação".
Do mesmo modo que
Umberto Eco4 para descrever as posições face aos efeitos da cultura
de massas utiliza as definições de "apocalíptico" e
"integrado", para designar respectivamente uma visão de radicalização
de posições ou de integração no contexto vigente, a mesma dualidade é passível
de ser encontrada nas abordagens em torno das teorias da sociedade de
informação.
Por um lado
encontramos os "apocalípticos" ou seja aqueles que defendem estarmos
a viver uma situação de mudança radical de paradigmas nos mais diversos
sectores da sociedade e que, portanto, é possível falar do surgimento de um
novo tipo de sociedade, a sociedade de informação enquanto um novo estágio da
evolução social.
Por outro lado,
encontramos aqueles a que poderemos chamar de "integrados", os quais
tal como os primeiros reconhecem a importância actual da informação e
comunicação, mas encaram com reservas o surgimento de uma sociedade de
informação. As transformações que ocorrem não representam rupturas com os modos
de organização social existentes, são sim evoluções dentro de um quadro
previamente estabelecido.
Segundo Webster,
entre aqueles a que escolhemos denominar de "apocalípticos", podemos
salientar um conjunto de autores que nas suas formulações teóricas protagonizam
a emergência de um novo tipo de sociedade, a sociedade de informação, que emerge
assim do anterior modelo, eles são: Daniel Bell (pós-industrialismo); Mark
Poster (pós-modernismo); Michael Piore e Charles Sabel (especialização
flexível); Manuel Castells (o modo informacional de desenvolvimento).
Entre os
"integrados", ou seja aqueles que colocam o ênfase na
continuidade, podemos apresentar as seguintes abordagens e autores: Herbert
Schiller (neo-marxista); Alain Lipietz (teoria da regulação); David Harvey
(acumulação flexível); Anthonny Giddens e David Lyon (estado, nação e
violência); Jurgen Habermas, Nicholas Garnham (a esfera pública).
Continuando a sua
tentativa de catalogação das diversas teorias formuladas em torno da
importância da informação e comunicação na transformação social, Webster parte
da análise dos discursos produzidos em torno do conceito de informação para
distinguir, analíticamente, cinco definições de sociedade de informação,
denominando-as: tecnológica; económica; ocupacional; espacial; cultural.
A visão tecnológica,
partilhada por autores como Tofler e muito presente nos discursos dos media,
é a de que os avanços nas áreas do processamento de informação, armazenamento,
transmissão e convergência entre telecomunicações e informática levarão à sua
directa aplicação em todos os campos da actividade social e a consequentes
transformações. Trata-se de uma abordagem que se limita à descrição das
inovações tecnológicas e à consequente previsão das suas possíveis implicações
na sociedade. A ideia de sociedade de informação surge assim apenas ligada à
constatação da inovação tecnológica e à quantificação da penetração destas
tecnologias na sociedade.
Uma abordagem
económica da sociedade de informação é geralmente realizada em torno dos
conceitos da "economia da informação", ou seja, a disciplina
económica que dirige os seus estudos a informação e consequentemente para a sua
importância na criação de riqueza e desenvolvimento nas nossas sociedades. Uma
das propostas de abordagem económica da sociedade de informação mais conhecidas
é a de Porat5 na sua reformulação da categorização tradicional dos
sectores de produção (industrial, serviços e agricultura) em função daquilo que
na sua visão era o cada vez maior contributo dos sectores da sociedade, directa
e indirectamente ligados à produção de informação para a criação de riqueza. Porat,
propôs a criação de uma catalogação das actividades em função da existência de
três sectores: um sector primário de informação, um sector secundário de
informação e um sector não produtor de informação.
Pensar a sociedade
de informação do ponto de vista ocupacional, tem geralmente implicita a visão
de que será possível falar daquele tipo de sociedade quando o número de
trabalhadores de informação suplantar o número de pessoas trabalhando em
actividades não relacionadas com a mesma. Robert Reich,6
ex-secretário de estado do trabalho na Administração Clinton, apresenta na sua
obra uma análise das transformações ocorridas na sociedade norte americana nas
últimas décadas de onde ressalta uma visão do papel crescente da percentagem de
trabalhadores, aos quais Reich denomina de "analistas simbólicos". Isto
é, todos aqueles em cuja actividade está presente uma componente maioritária de
análise e tratamento de informação da qual depende o sucesso da função
desempenhada, como seja o trabalho desenvolvido por arquitectos, gestores,
advogados, consultores, engenheiros, sociólogos, médicos, etc..
A ideia de sociedade
de informação fundamentada numa análise espacial decorre do estudo das chamadas
redes de informação e dos seus impactos na organização do tempo e do espaço. Dois
autores que abordaram de modos complementares estas questões são Anthony
Giddens7 e Manuel Castells.8 O primeiro chama-nos a
atenção para a questão da compressão do tempo e espaço e das suas implicações
para a vida em sociedade, Castells apresenta-nos a dualidade existente entre o
espaço dos fluxos e o espaço dos lugares e as disparidades em termos de poder
político e económico que essa situação implica.
Por último, a
concepção de uma sociedade de informação baseada numa perspectiva cultural
baseia-se na análise da quantidade de informação que hoje em dia é colocada à
nossa disposição, através dos mais diversos media e cujas implicações
estão presentes na nossa sociedade das mais diversas formas. Esta é a área de
eleição para o estudo da comunicação e das implicações dos media na
nossa sociedade e da nossa relação com eles. Estamos no campo da análise da
implicação da qualidade, quantidade, difusão e interactividade da informação,
este é o campo de estudo onde se desenvolvem inúmeras análises, desde a
perspectiva da reflexividade da informação de Giddens,9 às questões
do controle e vigilância de Foucault e Lyon até Habermas e à esfera pública.
Neste artigo não
pretendemos analisar em profundidade a obra dos diversos autores atrás enunciados,
nem em extensão a divisão analítica proposta por Webster, mas considera-se
pertinente uma introdução que permita sustentar a lógica presente na análise do
papel do estado na construção da sociedade de informação. Ou seja, o trabalho
desenvolvido por Webster em torno das diversas abordagens das chamadas
"teorias da sociedade de informação" tem o mérito de nos oferecer um
quadro comparativo de análise, mas peca por uma excessiva estanquicidade
dividindo o quadro teórico de análise do papel da informação, nas sociedades
contemporâneas, em duas grandes famílias de pensamento opostas,
"apocalípticos" e "integrados".
Na sua obra Information
Society Theories, Webster afirma parecer-lhe ser mais correcto pensar as
explicações para o papel da informação nas nossas sociedades, de um ponto de
vista da continuidade histórica, pois considera não ser correcto falar na
existência de uma sociedade de informação. Na sua opinião poderemos falar da
existência de certos tipos de informação para fins definidos, para certos
grupos, com dados tipos de interesses e que estão a desenvolver-se, no entanto
tal não é suficiente para falarmos da existência de uma sociedade de
informação.
Na perspectiva que
preside a este artigo, a qual já teve oportunidade de ser desenvolvida em Para
uma Sociologia do Ciberespaço,10 encontram-se pontos de contacto
com o que Webster afirma, mas ao mesmo tempo surgem discordâncias na sua visão
sobre as mudanças que ocorrem e o grau da sua amplitude.
Embora concordando
com Webster quanto à pouca credibilidade de falarmos hoje sobre a existência de
uma ou várias sociedades de informação, na perspectiva de ruptura e surgimento
de um novo modelo de sociedade, discorda-se da sua visão de evolução na
continuidade. Pois, assistimos hoje ao surgimento de sinais de transformação em
diferentes áreas da sociedade. Sinais esses que não se limitam a mudanças
pontuais, mas cujo impacto é significativo ao ponto de representarem
transformações substanciais em sectores estratégicos, exercendo influência sob
o todo do tecido social.
Assim, tal como
Giddens afirma no seu livro As Consequências da Modernidade,
encontramo-nos perante a mudança de alguns dos eixos que caracterizaram a
modernidade, nomeadamente ao nível económico, naquilo que Castells denomina de
passagem de um modo de desenvolvimento industrial para um modo de
desenvolvimento informacional.
Esta mudança que se
desenrola sobre dois dos eixos da modernidade -- o industrialismo e o
capitalismo -- não pode deixar de ter influência sobre os demais, e portanto,
ao contrário do que Webster defende, julgo existirem mudanças suficientemente
radicais para merecerem a nossa atenção, mudanças essas que se desenrolam a par
da evolução na continuidade de outras áreas da sociedade.
A visão que este
artigo oferece é a de uma crescente radicalização em curso em alguns dos eixos
da modernidade, cuja origem se encontra presente no papel que a informação e as
redes de difusão daquela têm nas nossas sociedades, e que tenderão a exercer a
sua influência de forma desigual sobre as restantes partes da sociedade.
A radicalização da
modernidade a que nos referimos, embora ainda não permita falar na criação ou
construção de uma sociedade de informação nos moldes em que muitos dos autores
que tentam quantificar as mudanças em curso gostariam, permite-nos falar sem
dúvida de uma "era da informação".
2- A informação: modos de desenvolvimento e produção
Se aceitarmos falar
em "era da informação" teremos igualmente de nos interrogar sobre
quais as forças motrizes que estarão a impulsionar as mudanças em curso na
sociedade e que, como tal, condicionarão ou incentivarão a transformação de
certas áreas em detrimento de outras, bem como dos papeis que cabem ao estado e
aos restantes actores sociais.
Em The Rise of
the Network Society Manuel Castells afirma que as nossas sociedades se
encontram cada vez mais estruturadas à volta de uma oposição bipolar entre
aquilo que ele designa por Net e Self. Estes dois centros de
gravidade formam o seu eixo de análise.
Tal oposição bipolar
resulta do que Castells denomina de "revolução das tecnologias de
informação" e que no seu entender é a força por detrás das grandes
transformações no final do milénio. No seu entender devemos tomar em atenção as
inovações que as tecnologias de informação colocaram, nas últimas décadas, à
nossa disposição pois a sua utilização está a transformar os nossos modos de
vida e a sociedade.
Esta centralidade em
torno da análise das tecnologias de informação não quer dizer que Castells
defenda a ideia de que novas formas e processos sociais surjam como
consequências directas da mudança tecnológica. No seu entender a tecnologia não
determina a sociedade, nem a sociedade determina na totalidade qual a evolução
tecnológica.
O dilema do
determinismo tecnológico é para Castells provavelmente um falso problema, uma
vez que para ele tecnologia é sociedade e a sociedade não pode ser
percebida ou representada sem as suas ferramentas tecnológicas.
Como Castells
salienta, a dimensão social da revolução tecnológica em curso parece levar em
conta a "lei" proposta por Melvin Kranzberg11 e que é a
seguinte : "A tecnologia não é boa, nem má, nem é também neutra.". É
pois, uma força a ter em atenção, numa perspectiva de inquérito e não de
fatalidade, na análise da complicada matriz de interacção entre as forças
tecnológicas desenvolvidas pela nossa espécie e nós próprios.
Nesta análise as
tecnologias de informação compreenderiam assim o conjunto de tecnologias
desenvolvidas nas áreas da micro-electrónica, computadores (software e hardware),
telecomunicações/difusão e ópto-electrónica em conjugação com a engenharia
genética e as suas crescentes capacidades de manipulação de informação com
origem nos genomas.
O modelo teórico
subjacente a esta interacção entre relações sociais e tecnologia é representado
pela dialéctica entre modos de produção e modos de desenvolvimento tendo como
base o princípio de que as sociedades se encontram organizadas em torno de
processos humanos, estruturadas num dado momento histórico através de relações
de produção,12 experiência13 e poder.14
Os modos de produção
são as relações sociais inerentes ao processo produtivo, como por exemplo as
relações entre grupos e classes e a divisão do capital e trabalho. Os modos de
produção são assim definidos pelo conjunto de relações estabelecidas com o
objectivo de criar excedentes e regular a sua distribuição.
Desde a revolução
industrial que assistimos à luta pela predominância entre dois modos de
produção, o estatal e o capitalista, tendo a oposição entre os dois resultado
na vitória do último e a sua legitimação enquanto modo de produção prevalecente
e caracterizador de um dos eixos da modernidade.
Os modos de
desenvolvimento, são por sua vez as premissas tecnológicas através das quais o
trabalho age sobre a matéria por forma a gerar o produto.
As relações sociais
de produção, ao definir os modos de produção e as relações técnicas de produção
ao definirem os modos de desenvolvimento, não se sobrepõem mas interagem. São
precisamente essas interacções de carácter complexo que, segundo Castells,
constituem os elementos da dinâmica nas nossas sociedades.
Manuel Castells,
refere que a evolução do modo de produção capitalista é fundamentalmente
desencadeada a partir da pressão do capital privado para a maximização dos
lucros. Já os modos de desenvolvimento tendem a evoluir não com base numa
resposta aos pedidos vindos dos modos de produção ou de outras instâncias da
sociedade, mas sim da interacção entre a descoberta científico/tecnológica e a
sua capacidade de integração das mesmas nos processos organizativos e de gestão
produtiva.
A lógica inerente à
interacção, que originou e impulsiona o actual modo de desenvolvimento
informacional, é definida por cinco características que, em conjunto, formam o
"paradigma das tecnologias de informação":
·
a informação é a matéria prima bem como o produto
final. As novas tecnologias agem sobre a informação e não sobre a matéria
física;
·
porque a informação é parte integrante de todas as
actividades humanas, essas tecnologias são transversais a todas as esferas
da sociedade ;
·
as tecnologias de informação promovem uma lógica de rede, pois
permitem-nos lidar com a complexidade e a incerteza. A tecnologia actualmente
existente permite que a topologia de rede possa ser implementada em todos os
tipos de processos e organizações;
·
a flexibilidade, isto porque não só a maioria dos
processos é reversível mas também as organizações e as instituições podem ser
reconfiguradas e modificadas, física e funcionalmente, ao utilizarem os componentes
das tecnologias de informação;
·
as tecnologias específicas tendem a convergir para
sistemas de elevada integração. A convergência das telecomunicações,
informática e televisão, é a base dos novos sistemas de informação.15
Segundo Castells o
processo de evolução deste modo de desenvolvimento decorre em três estágios
diferenciados: a automatização das tarefas, através da racionalização dos
processos existentes; a experimentação dos usos, através da criação de novos
processos de realização das mesmas tarefas; e por último a reconfiguração das
aplicações, através da criação de novos processos e novas tarefas.
Considerando a
economia como a grande força mobilizadora das transformações sociais, Castells
traça um quadro caracterizador da economia global, em que lhe atribuí
características de uma cada vez maior interdependência, assimetrias,
regionalização, um aumento na diversificação dentro de cada região, uma
selectividade na inclusão dos intervenientes e ainda uma segmentação
exclusionária tendo como resultado dessas características a criação de uma
geometria variável que tende a dissolver a geografia histórica e económica
tradicionalmente inerentes às diversas áreas participantes neste modelo.
Neste quadro
caracterizador da economia global, encontramos um factor comum de ligação na
diversidade regional e sectorial e que é a incorporação do novo modo de
desenvolvimento informacional nos modos de produção. O resultado mais visível
desta interacção é aquilo que Castells denomina de "espaço dos
fluxos", ou seja, o espaço integrado das redes globais. Este "espaço
dos fluxos" é assim constituído pelo conjunto de redes que constituem o
ciberespaço16: as redes privadas, as intranets e extranets
das empresas, as redes semi-públicas como o Multibanco, as redes fechadas e
sistemas proprietários como as redes financeiras e as redes públicas de
telecomunicações, o Minitel e a internet.
Para Castells é na
relação entre as interacções que ocorrem no "espaço dos fluxos" e
aquelas que ocorrem no "espaço dos lugares" que se estão a constituir
novas formas de organização social. O surgimento dessas novas formas de
organização social resulta assim de dois tipos de movimentos, por um lado pela
independência entre esses dois espaços e ao mesmo tempo pela interdepêndencia
que se forma entre eles.
O "espaço dos
fluxos" é descrito como sendo composto por três níveis, que são
respectivamente:
·
técnico, composto pelos circuitos de impulsos electrónicos
(micro-electrónica, telecomunicações e hardware em geral) que constituem
a infraestructura tecnológica das redes;
·
geográfico, isto é, a topologia dos espaços
formados pelos "nós" e hubs17 da rede; os hubs
são locais de interligação, estabelecendo a ligação da rede a locais
específicos, com condições sociais e culturais específicas; os "nós"
são por sua vez, as localizações estratégicas em torno das quais se criam uma
série de actividades e organizações de carácter local mas que aproveitam as
possibilidades oferecidas pela rede de actuar globalmente;
·
a social, ou seja a organização espacial da
elite gestora da utilização das redes.
O espaço dos fluxos
é assim o fundamento daquilo que Castells considera ser a lógica inerente às
novas formas de organização social, a rede. Esta é aqui entendida não apenas na
sua visão tecnológica, mas também na sua formulação social. Recorrendo aos
exemplos de Castells, as redes estão presentes quando olhamos para os mercados
de capitais, para os conselhos de ministros da União Europeia, para as redes
criminosas e de tráfico ou para os fluxos financeiros que adquirem
conglomerados mediáticos os quais por sua vez influenciam o poder político.
A sociedade em rede
será assim não uma estrutura futura, mas aquela sociedade em que hoje vivemos. Ela
é a estrutura social da "era da informação", pois tudo aquilo que
gera poder, cria dinheiro ou informação acontece através da troca de fluxos em
redes.
Partilhando a visão
de Anthony Giddens sobre a alteração dos nossos conceitos de tempo e espaço,
Castells chama a atenção para o facto de, no espaço dos fluxos, o tempo e o espaço
apresentarem as características que ele denomina de timeless time e placeless
space. Ou seja, o espaço dos fluxos dissolve a nossa concepção tradicional
de tempo, ao quebrar a sua ordem sequencial de eventos através da possibilidade
de tornar quase simultâneos -- o quase tempo real -- esses mesmos eventos. Das
causas às consequências não existe no espaço dos fluxos uma visualização
sequencial, mas sim a percepção de uma quase simultaneidade fruto, em muito, da
possibilidade de várias pessoas interagirem em simultâneo sobre um mesmo
evento.
De uma forma
similar, a distância geográfica dissolve-se no espaço dos fluxos. Para
Castells, neste espaço existem apenas duas medidas de distância. Numa lógica
binária temos a "distância zero" -- dentro da rede -- e a
"distância infinita" -- o estar fora da rede.
Desta constatação,
Castells, numa tentativa de identificar as dinâmicas existentes entre o espaço
dos fluxos e o espaço dos lugares, desenvolve uma teoria em torno do poder na
"era da informação".
Enquanto as
organizações se encontram localizadas em lugares e as suas componentes humanas
e materiais são dependentes desse mesmo espaço, já a lógica organizacional o
não é. A lógica organizacional não depende de nenhum espaço físico em
particular, ela é sim dependente do espaço de fluxos que caracteriza as redes
de informação.
Quanto mais as
organizações dependerem, em última análise, dos fluxos e das redes, menos serão
influenciadas pelos contextos sociais associados aos seus locais de origem. O
que se traduz numa crescente independência entre a lógica organizacional e a
lógica societal.
O poder tende a
encontrar-se cada vez mais concentrado no espaço dos fluxos, expressando assim
a lógica dominante na sociedade em rede. Castells exemplifica esta concentração
crescente de poder no espaço dos fluxos recorrendo ao exemplo dos mercados
financeiros globais, que têm vindo a transformar-se no evento central da nova
economia, a qual destina à economia real um papel de produtora de excedentes
monetários para o investimento nos mercados financeiros ou de ponto de
aplicação dos ganhos obtidos nesses mesmos mercados.18
Assim, enquanto a
lógica social parece moldar-se em torno do espaço dos fluxos, um espaço sem
identidade definida, pois é global, culturalmente diversificado e radicalizador
dos conceitos de espaço e tempo, as pessoas habitam o espaço dos lugares. As
características e consequentemente as mudanças operadas nos modos de
desenvolvimento e modos de produção vigentes tendem a influenciar não apenas os
eixos económicos, mas também os políticos e sociais.
Como Castells refere
em entrevista à revista online Upside,19 a existência
deste novo modo de desenvolvimento informacional e a preponderância do espaço
de fluxos sobre o espaço dos lugares tem como resultado uma crescente
globalização, e embora esta não seja em si um mau fenómeno, pois representa a
ideia de que todos podem comunicar com todos, comprar e vender globalmente e
assim formar uma comunidade global, na realidade a globalização representa para
uma grande parte da humanidade estar a ser-lhe retirado poder político e
empobrecimento económico.
Estas pessoas, que
habitam no espaço dos lugares e não participam no espaço dos fluxos, não
possuem qualquer tipo de controle sobre os investimentos, não possuem a formação
educacional necessária e são portanto "ultrapassadas" pelo poder dos
fluxos globais de capitais. Não poderão inclusive, negociar com os seus
empregadores porque estes possuem os meios para mudar as localizações das suas
operações, recorrer ao outsourcing ou fazer vir fornecimentos e
trabalhadores de outras localizações.
Esta dualidade,
apelidada por Castells de "condição de esquizofrenia estrutural",
introduz uma perturbação maciça nas mais diversas culturas ao nível do Globo,
provocando crises de identidade nesses espaços definidos geográfica e
historicamente.
O interesse de
Castells em torno da questão das identidades, ou Self, reside no facto
de ele considerar que existe uma correlação entre os vários tipos de
identidades dominantes e as instituições sociais que formam a sociedade. Esta
correlação leva-o a diferenciar três tipos de identidade:
·
a identidade de legitimação, introduzida pelas
instituições dominantes da sociedade como forma de extensão e racionalização do
seu domínio sobre os diversos actores sociais, são assim as identidades
legitimadoras que tendem a dar forma às sociedades civis;20
·
a identidade de resistência, produzida por aqueles
actores que se encontram numa posição ou condição de serem excluídos pela
lógica de dominação, a identidade de resistência leva à formação de comunidades
como forma de suportar as condições da opressão, esse é o caso dos Zapatistas
ou das Milícias norte americanas;
·
a identidade projectada, fruto de
movimentos proactivos cujo objectivo é a transformação da sociedade no seu todo
e não apenas a criação de condições para a sua sobrevivência face aos actores
dominantes; movimentos como o feminista e ambiental cabem nesta concepção de
identidade projectada.
Para Castells a
"encarnação" da identidade de legitimação nas nossas sociedades
contemporâneas, o estado nação,21 encontra-se em perda de poder. Salientando
no entanto que embora veja o seu poder diminuído tal não se reflecte
directamente na sua capacidade de influência. Esta perda de poder advem da sua
perda de soberania, fruto da globalização das actividades económicas
estratégicas, dos media, das comunicações e também da globalização do
crime e do "policiamento" militar ou para-militar.
O exemplo mais obvio
desta perda de soberania pode ser encontrado nos mercados financeiros, os quais
nos anos 80 cresceram para além da capacidade de qualquer banco central ou
conjunto de bancos centrais -- como no caso da União Europeia -- exercer o seu
controlo. O que levou à necessidade de interligar as moedas nacionais, o que implica
a coordenação financeira retirando assim espaço de manobra para os governos
nacionais formularem a sua política económica independentemente.
Outro aspecto da
perda de poder, advém do surgimento de empresas globais as quais gerem os seus
interesses em função dos diferenciais de custos dos benefícios sociais
praticados pelos diversos estados, escolhendo a sua localização em função de
onde ocorrem as situações de maior flexibilidade do mercado de trabalho e os
menores salários, impondo assim aos estados limitações na gestão dos benefícios
sociais do estado providência, sob pena de perderem investimentos dessas
empresas que actuam não numa economia mundo mas sim numa economia global.
Também segundo
Castells, ao viver hoje num mundo em turbulência onde o poder já não pode
apenas ser medido em função das estruturas físicas, humanas e materiais que uma
dada entidade tem à sua disposição, os centros políticos tal como os
económicos, vêem o seu poder factual posto em causa ao serem, por vezes,
obrigados a negociar com outras forças de menor dimensão mas que actuam em
rede. Como no caso dos Zapatistas e do Governo mexicano ou dos grupos
ecologistas como o Greenpeace e os Governos dos países mais desenvolvidos.
No entanto o estado
nação continua a desempenhar um papel fundamental, pois ele é a única entidade
com legitimação e sob a qual podem ser criados os mecanismos multilaterais que
permitem enfrentar os problemas de carácter cada vez mais global.
Um exemplo desse
papel é, como refere Anthony Giddens,22 a necessidade que os
governos terão, mais cedo ou mais tarde, de abordar a regulação dos mercados
financeiros globais sob pena de ver a economia global tornar-se cada vez mais
em algo semelhante a uma "economia-casino". Regulação essa, que
poderia ocorrer através da chamada taxa-tobin23 e do efeito que
teria na redução das transacções e na possibilidade de criação de um fundo
global para a diminuição das disparidades decorrentes da globalização.
Encontramo-nos
perante uma situação onde por um lado o estado é impelido a tomar posições na
arena internacional, pois enfrenta problemas globais cuja solução só pode ser
encarada na mesma escala, e por outro lado vê a sua credibilidade ao nível
interno diminuída devido aos constrangimentos que resultam precisamente das
redes de acordos políticos globais e das entidades económicas que actuam no
espaço global. As instituições da democracia são assim apanhadas numa
"contradição fundamental". Manuel Castells sintetiza essa contradição
afirmando que "Quanto mais os estados se direccionam para o comunalismo,
menos eficazes se tornam enquanto co-agentes do sistema global de repartição de
poder. Quanto mais triunfantes na escala global, menos representam os seus
constituintes nacionais.",24 originando assim um cenário de
crise da democracia.
Quanto mais o estado
nação se retira face aos seus cidadãos, mais aumenta a necessidade de procurar
identidades alternativas. Conforme refere Felix Stadler,25
encurralados entre a necessidade de articular identidades diversas e por vezes opostas
e a necessidade de agir globalmente, os estados vêem esvaziar-se de sentido e
legitimidade a sua acção, perdendo a sua capacidade de exercício de identidade
de legitimação.
Embora Castells
deposite esperança nas identidades projectadas e nas identidades de
resistência, como fonte de surgimento de novas formas de identidade e de
democracia, ele também aponta para a necessidade de o estado reformular a sua
abordagem face às tecnologias de informação.26
Propõe em primeiro
lugar que os estados não tentem legislar no sentido de controlar redes como a
internet, pois para além de poder ser considerado um atentado à liberdade de
expressão é igualmente uma atitude defensiva não indutora de grandes
resultados.
A actuação deverá,
pelo contrário, incidir sobre a aprendizagem do enorme potencial que possuem as
redes públicas, como a internet, para revitalizar a democracia, promover a
participação dos cidadãos e estimular o debate social, recusando a ideia de que
as redes quando participadas pelos cidadãos retiram poder aos próprios estados.
O estado a par dos
restantes actores sociais encontra-se hoje perante uma realidade social em
transformação, numa sociedade em rede a qual implica a redefinição dos papeis
desempenhados até agora.
Conforme é
salientado por Castells no Prológo The Net and the Self, o estado possui
a capacidade para sufocar o desenvolvimento de uma tecnologia ou para através
da sua intervenção embarcar num processo de acelerada modernização tecnológica,
com implicações na economia, no poder militar e no bem estar social num curto
espaço de tempo. O estado é na realidade a única entidade com capacidade para
expandir a utilização tecnológica num curto espaço de tempo às mais diversas
áreas da sociedade, o que é passível de ser confirmado na análise da realidade
internacional e também da portuguesa, quando verificamos o papel fundamental
que o estado desempenhou nos dois projectos tecnológicos que melhor retratam o
"paradigma das tecnologias de informação", a internet e o minitel.
Em ambos os casos o
papel do estado foi o de financiador de projectos de investigação e o de
criador de mercados que permitissem o desenvolvimento e a difusão das
tecnologias de informação.
O estado na
"era da informação" vive profundas contradições, pois por um lado foi
durante as últimas décadas o indutor da difusão das tecnologias, financiador da
sua investigação, criador dos seus mercados, hoje é ele próprio vítima desse
processo, ao ver o seu poder diminuído fruto de uma deslocação do exercício do
poder do espaço dos lugares para o espaço dos fluxos.
Na "era da
informação" o papel do estado enfrenta três grandes áreas de ruptura, as
quais implicam igualmente a sua intervenção:
·
a necessidade de fomentar o desenvolvimento das
tecnologias de informação e a criação de mercados, sob pena de as
empresas nacionais e os seus cidadãos não poderem competir no mercado global
económico e de emprego;
·
a necessidade de controlar as transações monetárias que
ocorrem no espaço dos fluxos, sob pena de ver cada vez mais diminuída a sua margem de
acção na política económica interna e externa e a defesa da protecção social
dos cidadãos;
·
lidar com a crise que a democracia enfrenta recorrendo
ao próprio espaço onde o exercício dos poderes se define, ou seja o espaço dos
fluxos.
Trata-se de o estado
compreender que o seu poder se encontra questionado na sociedade em rede. "Que
por cima dos fluxos de poder está o poder dos fluxos", os quais encerram
em si imprevisibilidade. Sendo o estado a única entidade legitimada para actuar
numa perspectiva global, cabe-lhe retomar a iniciativa e intervir de uma forma
adaptada às dinâmicas sociais que caracterizam a sociedade em rede.
3- As políticas informacionais
Como se traduz então
a intervenção do estado em torno das tecnologias de informação? Poster27
lembra-nos que a discussão sobre o impacto político das tecnologias e redes de
informação, nomeadamente da internet, tem incidido sobre um grande número de
assuntos: acesso, determinismo tecnológico, encriptação, comércio electrónico,
propriedade intelectual, a esfera pública, descentralização, anarquia, género e
etnicidade. Mas por outro lado, após uma leitura atenta dos media, dos sites
institucionais28 e de estudos transnacionais como o de
Truetzeschler,29 deparamo-nos com a existência de uma diferenciação
entre as temáticas abordadas na discussão sobre as implicações políticas destas
novas tecnologias e as reais preocupações dos policy-makers
traduzidas na sua actuação legislativa.
Ao referirmo-nos às
políticas informacionais, temos de, em primeiro lugar, ter presente que fruto
do seu número de utilizadores e da sua aura mediática, grande parte da actuação
política sobre as redes e tecnologias de informação tem escolhido a internet
enquanto alvo preferencial.
Wolfang Truetzchler,
identifica seis grandes áreas de intervenção do estado em torno das redes, nas
suas utilizações e possibilidades: obscenidade, outros conteúdos ofensivos,
aspectos económicos, privacidade, encriptação e acesso.
Por
"obscenidade" entende-se, neste contexto, todo o tipo de pornografia30
disponível online. A atenção do estado para estas questões não
representa uma inovação, pois um estudo atento da história dos mass media neste
século31 levar-nos-ia a constatar que o debate sobre conteúdos
ofensivos acompanhou as indústrias de massa em torno da pintura, os livros,
gravações audio, filmes e mais tarde o vídeo, vídeotexto e a televisão pay-per-view.
Levando-nos a concluir, que muitas das inovações nas tecnologias de informação
e comunicação são experimentadas e desenvolvidas pela indústria de conteúdos
para adultos.
No que respeita à
abrangência da denominação "outros conteúdos ofensivos", a autora
reporta-se ao conjunto de conteúdos que comportam ilegalidade em quase todos os
países, como o assédio sexual via email, ameaças via email,
conteúdos nazis ou defensores da supremacia racial, bem como conteúdos que em
alguns países podem ser considerados ilegais como sejam os relacionados com
drogas, jogo, satanismo, arquivos online sobre a fabricação de bombas,
tácticas de subversão armada ou técnicas de arrombamento, entre outras.
Analisando as
actuações de diversos estados, podemos encontrar duas tendências presentes em
torno da definição das políticas sobre conteúdos ofensivos online: uma
reguladora e outra libertária.
A reguladora
encontrou tradução na publicação do CDA32 nos EUA e mais tarde do
livro verde Ilegal and harmful content on the internet na União
Europeia. Por sua vez as posições mais "libertárias" baseando a sua
análise nas características da própria Internet, as quais limitam muito a
efectiva possibilidade de controlo dos conteúdos,33 e na liberdade
de expressão, defendem que o controle recaía sobre os próprios utilizadores,
cabendo às forças da ordem actuarem com base no surgimento dos conteúdos e não
na censura prévia a qual pode representar uma ameaça à liberdade de expressão. Pois,
se para os conteúdos socialmente condenáveis, como por exemplo a pedofilia, é
clara a fronteira entre a legalidade e a ilegalidade, outros conteúdos poderão
sofrer censura prévia injustamente.
Esta controvérsia
traduziu-se ao fim de dois anos de discussão nos EUA na rejeição do CDA pelo
Supremo Tribunal e pela aprovação, no Congresso, de legislação dedicada ao
combate da pornografia infantil, e pelo reconhecimento da liberdade de expressão
face a restantes conteúdos remetendo para a utilização de filtros para o acesso
aos conteúdos por forma a proteger os menores. No entanto, trata-se de uma
polémica ainda não terminada quer nos EUA, quer na União Europeia, onde os
países membros escolheram diversas formas de abordar o problema.
Quanto aos aspectos
económicos que têm reclamado a atenção dos decisores políticos e da actuação do
estado, aquelas podem ser sumarizadas em cinco pontos: fraude via computador, hacking,
privacidade, encriptação e direitos de propriedade intelectual.
A previsão de que o
comércio online poderá vir a valer entre 40 e 200 Biliões de doláres na
primeira década do ano 2000 e a publicidade online cerca de 4 biliões de
dólares pelo ano 2000, leva a que os estados se preocupem em criar as condições
para a existência de confiança nas transações através das redes informáticas
públicas.
A actuação dos
estados procura, assim, assegurar a manutenção da confidencialidade da
informação, a integridade da mesma durante a transmissão, a autenticação do
emissor e a não repudiação do envio.
Procura-se assim
gerir os direitos do consumidor online e criar a confiança para a
entrada das empresas no comércio electrónico e o seu desenvolvimento, criando
incentivos financeiros,34 protegendo os utilizadores do hacking35
(a possibilidade de intrusão em sistemas de informação) e procurando criar as
condições legislativas e técnicas para a manutenção da confidencialidade,
integridade, autenticação e não repudiação da informação. Para tal a encriptação
e a respectiva atribuição de assinaturas digitais aos utilizadores surge como a
solução óbvia procurada pelos estados. A encriptação reside na possibilidade de
atribuir uma chave de identificação única, pertença de apenas uma pessoa ou
entidade, assegurando ao emissor e receptor a privacidade e autenticação
necessárias à comunicação mediada por computador.
No entanto, a
encriptação levanta um conjunto de contradições ainda não resolvidas, mas que
têm feito parte da agenda política internacional, nomeadamente ao nível da
OCDE, G7, União Europeia e Estados Unidos. Isto porque do mesmo modo que
assegura a privacidade nas comunicações pessoais e comerciais, a encriptação
permite igualmente o segredo às entidades que constituem as redes criminosas
globais, colocando teóricamente o estado e os cidadãos à mercê daquelas. A este
pensamento opõem-se todas as organizações de defesa dos direitos dos cidadãos online,
como por exemplo a EFF,36 que consideram ter o cidadão o direito de
se proteger e de se colocar ao abrigo de todos aqueles que possuem interesse em
exercer vigilância sobre si e constituir um modelo de panopticon, do big
brother às little sisters.37
Embora a questão da
encriptação seja fundamental para o exercício da privacidade no espaço dos
fluxos, a privacidade exerce-se também através da protecção dos dados pessoais
e das bases de dados. Daí que os estados, nomeadamente os europeus, tenham
vindo a desenvolver uma política de protecção da privacidade dos cidadãos face
às tecnologias de informação. Exemplos desta preocupação são as directivas
europeias de protecção face à existências de base de dados e à gestão das
mesmas.38
Os direitos de
propriedade intelectual constituem outra das áreas de preocupação dos estados
no que respeita às políticas informacionais, pelo que a World Intelectual
Property Organization39 aprovou em 1996 dois tratados que
reformam as convenções internacionais nesta área. O primeiro, WIPO copyright
treaty, permite a transmissão e distribuição de artigos literários ou
artísticos de acordo com a legislação de copyright vigente, traçando um
quadro de reconciliação entre as normas europeias e americanas. Quanto ao
segundo tratado, Treaty on Performance and Phonograms, protege, numa
base, global a exploração de sons gravados através de outra forma que não a
física, trata assim das questões colocadas pela recepção de música digital e
sua gravação através da internet. Um terceiro tratado relativo à protecção de
bases de dados não foi possível de aprovar devido aos diferentes graus de
protecção que as mesmas sofrem nos EUA e na UE, mais fracos no primeiro e mais
protegidas no segundo.
Relevante para as
diferentes políticas informacionais é a questão do acesso. Quer estejamos a
falar numa perspectiva de criação de consumidores ou do acesso dos cidadãos ao
espaço dos fluxos, importa saber quantas pessoas acedem e quem são elas, por
forma a delinear as políticas tendentes ao alargamento desse acesso.
As duas grandes
linhas de influência parecem oscilar entre a necessidade de criação de um
serviço público para o acesso à internet, na mesma linha do serviço público de
telefone, ou na criação das condições para um acesso universal.
No entanto, Kurland
e Egan40 sugerem que o acesso não se limita à questão tecnológica,
mas igualmente à cultura existente nas redes que constituem o espaço dos
fluxos, simbolizado pela internet. Aqueles apontam assim três tipos de
barreiras ao acesso: educacionais, económicas e culturais.
As barreiras
educacionais resultam do facto de a interacção social na internet requerer o
domínio e familiaridade com um certo tipo de hardware e de software,
o qual não pode ainda ser obtido em todas as instituições educativas41
As barreiras económicas são essencialmente fruto dos custos envolvidos em obter
o software e hardware bem como os custos associados à utilização
do telefone42 e ao acesso ao Internet Service Provider. Por
último importa explicitar o que se entende por barreiras culturais, são as que
derivam do facto de dominar um discurso masculino em muitos dos fora
online, uma cultura predominantemente americana e o uso do inglês enquanto
língua base para a comunicação na internet.
Tendo definido as
áreas mais comuns de intervenção do estado em torno das chamadas políticas
informacionais, a nossa atenção voltar-se-á agora para a caracterização do
quadro de actuação do estado em Portugal e para uma análise dos discursos dos
partidos com representação parlamentar sobre as suas representações em torno da
sociedade de informação.
4- Criação e antecedentes da iniciativa nacional de
informação em Portugal
Durante as duas
últimas décadas os avanços na indústria de telecomunicações e computadores e a
progressiva convergência entre os produtos e aplicações, desenvolvidos pelas
duas áreas tecnológicas, levou à constatação por muitos dos governos nacionais,
de que poderíamos estar face a um conjunto de mudanças fundamentais, que
poderiam ter implicações a todos os níveis da sociedade.
Portugal, sendo um
país membro da União Europeia, acompanhou o processo de elaboração e discussão
do relatório "Europa e a sociedade de informação global", mais
conhecido por relatório Bangemman,43 o qual foi apresentado no
Conselho Europeu de Corfu em Junho de 1994.
O relatório
Bangemman é um documento fundamental para se perceber o enquadramento de
Portugal no desenvolvimento de uma sociedade de informação e da utilização da
internet. Pois é no quadro definido pelo relatório Bangemman que a Comissão
Europeia apresenta em Junho de 1994 o documento Europe's way to the information
society44 onde são apresentadas as áreas fulcrais de intervenção
e incentivo por parte dos governos nacionais e da comissão europeia. É neste
documento que são definidas as seguintes linhas de acção:
·
a revisão do quadro de regulação da indústria de
telecomunicações com o objectivo de promover um mercado europeu liberalizado.
·
desenvolvimento de redes, aplicações e novos serviços
através do apoio a projectos piloto ao nível europeu;
·
estudo do impacto social e cultural da criação de uma
sociedade de informação;
·
a promoção e publicitação do conceito e das práticas
associadas à sociedade de informação.
Este plano de acção
é fundamental para compreender o historial da sociedade de informação em
Portugal porque é nele que no ponto II.2. se afirma -- pela primeira vez num
plano de acção desenvolvido pelos diversos intervenientes europeus -- a
aceitação de um standard tecnológico com origem nos Estados Unidos da
América, a internet e o protocolo TCP/IP, e se infere do abandono da procura de
uma alternativa tecnológica europeia para a construção da infraestrutura
tecnológica da sociedade de informação na Europa.
É igualmente este
plano de acção que irá acompanhar e enquadrar o desenvolvimento das políticas
nacionais de construção de uma infraestrutura nacional de informação nos
diversos países membros da União Europeia a partir de 1994.
Embora não possamos
falar de um conceito único de sociedade de informação, pois ao nível nacional
as especificidades culturais e sociais de cada um dos países membros e o
contexto e orientações políticas dos seus governos condicionaram e condicionam
o seu desenvolvimento e implementação, a realidade é que quase sem excepção os
pontos incluídos no plano de acção Europe's way to the information society
foram de uma forma ou outra tomados como ponto de partida para as reflexões que
levaram à apresentação de "livros verdes", "iniciativas
nacionais de informação" ou "planos de acção" para o
aproveitamento das tecnologias de informação e comunicação como instrumentos de
desenvolvimento das sociedades europeias. São exemplos deste retrato e da sua
diversidade o caso dinamarquês e aquilo que podemos classificar de Information
Welfare Society, a política implementada em França nos últimos anos pelo
Primeiro Ministro Lionel Jospin na construção da sociedade de informação, o
caso da Grã-Bretanha com a sua definição de política pública e de construção
das "autoestradas da informação", a aposta integrada no multimédia no
caso da Alemanha e que pode ser considerada como a terceira tentativa alemã de
construção de uma sociedade de informação, e o caso português.
Em Portugal, quer as
iniciativas públicas quer as para-públicas45 tiveram uma
visibilidade bastante reduzida até 1995. Tal terá ficado a dever-se a duas
ordens de grandeza. Por um lado, o ainda reduzido número de utilizadores de
internet. Pois, embora o acesso em casa e no trabalho começasse a despontar, na
sua maioria, os utilizadores de internet estavam ainda centrados nas
universidades com acesso à RCCN46 e, por outro lado na estrutura do
mercado de serviços electrónicos de informação em Portugal.
Importa salientar
este último ponto, pois a situação do mercado de serviços electrónicos de
informação irá também, posteriormente, condicionar o surgimento das iniciativas
públicas de promoção da sociedade de informação e utilização da internet bem
como da formação das entidades para-públicas e das suas futuras actividades.
Conforme é referido
no relatório "O mercado de serviços electrónicos de informação (SEI) em
Portugal" realizado pelo ISCTE/JNICT/DGXIII em 1995, "Parece ser
consensual a constatação de que 1995 marca um salto qualitativo no mercado de
SEI, em termos de volume de negócios, desenvolvimento de novas áreas e produtos
e a emergência de novos públicos. É o ano da introdução em Portugal, do uso
alargado da internet, despoletando um novo contexto de implicações (…)."
O desenvolvimento de
novas áreas de negócio e produtos permitiu uma consolidação do sector produtivo
nacional na área dos serviços electrónicos de informação e consequentemente
criou o enquadramento necessário para que a partir deste momento se desse o
surgimento de associações de defesa dos interesses desses mesmos produtores,47
fossem estas criadas com o intuito de promover os investimentos e servir como
intermediárias na relação com o poder político ou destinadas à promoção e
criação de mercado para os serviços electrónicos de informação.
O surgimento de
novos públicos para os serviços electrónicos de informação em particular no
segmento doméstico, dos quais a internet e os produtos multimédia são exemplos
reconhecidos, permitiu igualmente lançar os alicerces daquilo que seriam as
futuras intervenções das associações de defesa do consumidor de serviços
electrónicos de informação ou das associações cívicas e protestos para a defesa
dos direitos dos cidadãos no ciberespaço.
Em Portugal a
atenção prestada ao tema sociedade de informação e à utilização da internet por
parte dos intervenientes políticos foi, até à campanha eleitoral que levou à
tomada de posse do XIII Governo Constitucional em 1995, bastante reduzida.
A campanha eleitoral
para as eleições legislativas em 1995 trouxe à discussão pública as
problemáticas relacionadas com a sociedade de informação e internet. Não só
constituiu tema de debate, a exemplo do debate realizado na FCCN com a
participação de candidatos integrados nas listas do Partido Socialista e
Partido Comunista Português, como também surgiu associado a propostas políticas
em panfletos e programas do PS e Partido Social Democrata.
Assim sendo os
conceitos de "sociedade de informação" e "internet" são
introduzidos no discurso político português não numa perspectiva de
imparcialidade ou de benefício directo da utilização das tecnologias de
informação na melhoria de vida dos cidadãos mas sim acompanhadas de uma carga
ideológica simbólica a qual privilegia ora uma abordagem de carácter mais
liberal, conservador ou social-democrata, conforme os protagonistas políticos
que a utilizam.
No caso do partido
mais votado nas eleições legislativas de 1995, o Partido Socialista apresentava
no seu Programa Eleitoral de Governo do PS e da Nova Maioria no capítulo
V -- "As políticas estruturais"- a referência à necessidade de
apostar em políticas estruturais para a competitividade as quais referem como
seu objectivo "apostar na sociedade de informação". Esta afirmação
era explicitada através da chamada de atenção para a necessidade do
"reforço da infra-estrutura científica e tecnológica" e do "desenvolvimento
da oferta e utilização das tecnologias de informação". Salienta-se
igualmente a referência explícita neste programa à utilização da internet,
afirmando-se assim igualmente a aceitação desta tecnologia como elemento
estruturante da divulgação das tecnologias de informação e promoção da
construção de uma sociedade de informação em Portugal.
Após a vitória por
parte do PS nas eleições legislativas de 1995, deu-se início à constituição do
XIII Governo Constitucional e à formulação do seu programa de governo.
Conforme salienta
Luís Vidigal48 num documento intitulado "Política de informação
-- excertos do programa do XIII Governo Constitucional", existe uma
presença da preocupação com a divulgação, produção e consumo de informação em
todas as área de actuação do Governo. No entanto nas áreas do planeamento e
administração do território e educação, ciência e cultura há referências
explícitas à sociedade de informação e internet.
A inclusão nos
programas eleitorais e de governo destes temas por parte do XIII governo
constitucional terá, porventura, criado as condições necessárias para que o
tema da sociedade de informação e da utilização da internet não fosse afastado
do debate político nos anos seguintes. Um exemplo desta continuidade, pode
também ser encontrado na análise das campanhas eleitorais pós-legislativas de
1995, onde as candidaturas, quer à Presidência da República quer às câmaras
municipais, não deixaram de incluir entre os seus instrumentos de campanha
páginas na internet. Apesar da eficácia na utilização dos meios variar entre os
concorrentes, a mensagem pretendida pelos intervenientes políticos era
transmitida, ou seja, a sua associação a uma imagem de modernidade e de
antecipação de um futuro próximo em que as tecnologias de informação e
comunicação desempenhariam um papel cada vez mais central.
No entanto,
constata-se igualmente que a muitos dos intervenientes na criação da agenda
política falta a cultura tecnológica necessária à participação no debate em
torno destas questões o que poderá representar um entrave à construção das
políticas de incentivo e promoção em torno das tecnologias de informação e
comunicação.
Desta caracterização
do caso português podemos reter a noção de que a ideia de sociedade de
informação e a escolha da internet enquanto tecnologia paradigmática para a sua
construção, foi incorporada com relativo sucesso no discurso do estado
português, dando azo a um conjunto de medidas e iniciativas tendentes à
consubstanciação das intenções apresentadas na campanha eleitoral e no programa
de governo.
5- As políticas e as iniciativas públicas nacionais de
incentivo ao desenvolvimento da sociedade de informação
Ao afirmar no seu
programa de governo a atribuição de um lugar destacado à necessidade de
reconhecimento político da emergência da sociedade de informação, o XIII
Governo Constitucional teve de procurar uma fórmula capaz de coordenar uma área
tão vasta como aquela abrangida pelos temas em debate em torno da sociedade de
informação. Essa solução passou pelo mandatar do Ministério da Ciência e
Tecnologia para o acompanhamento destas matérias através de:
·
promover um amplo debate nacional sobre o tema "
sociedade de informação", tendo em vista a elaboração de um Livro Verde
que, nomeadamente, contenha propostas de medidas a curto, médio e longo prazos,
a ser presente à Assembleia da República;
·
preparar, em estreita colaboração com todos os
ministérios, as medidas globais e sectoriais adequadas à concretização do
Programa do Governo no domínio da sociedade de informação;
·
acompanhar e mandar avaliar o efeito das medidas tomadas
pelo Governo no mesmo domínio;
·
identificar prospectivamente cenários internacionais, nos
planos tecnológico e societal, com impacto previsível nas condições de
desenvolvimento da sociedade de informação em Portugal;
·
assegurar a coordenação da informação e a preparação das
posições dos delegados nacionais nos diversos programas científicos e
tecnológicos de investigação da União Europeia directamente orientados para as
políticas relevantes para a sociedade de informação.
É neste quadro que
surge em 1996 a Missão para a Sociedade de Informação (MSI), destinada a apoiar
o Ministro da Ciência e da Tecnologia na realização das tarefas atrás
enunciadas.
O Livro Verde
para a Sociedade de Informação é porventura a face publicamente mais
conhecida da actuação da MSI. Por essa razão, optamos por enquadrar aquilo que
foi até hoje a construção da iniciativa nacional de informação em Portugal
através de uma análise das medidas nele propostas, implementadas, ou em execução,
por parte das entidades públicas.
Ao analisar os
capítulos do Livro Verde,49 nos seus pontos de situação da realidade
portuguesa, nos exemplos de excelência referidos e nas medidas de acção
propostas, existe a clara noção de que se trata de um documento que leva em
consideração as especificidades portuguesas na construção de uma sociedade de
informação.
Existe uma clara
recusa de um modelo de cópia directa das intenções e modelos de acção presentes
nos documentos produzidos na Comissão Europeia, sejam estes os do relatório
Bangemman sejam os do Europe's Way to the Information Society.
Pelo contrário,
dá-se início a um processo de consulta de informantes privilegiados e à
discussão pública dos diversos Drafts na internet e em reuniões
sectoriais, as quais se traduziram num documento de enquadramento onde as
especificidades nacionais de Portugal se encontram presentes, onde um
levantamento das capacidades nacionais na produção e utilização das tecnologias
de informação é listado e onde também se apresentam medidas de acção para cada
uma das áreas eleitas como prioritárias para a acção do XIII Governo
Constitucional no cumprimento do seu objectivo de programa de governo.
Este não será o
momento para um estudo qualitativo aprofundado das premissas contidas no
articulado do Livro Verde mas uma primeira incursão exploratória parece indicar
que se tentou produzir um documento em que se conseguisse um equilíbrio entre
as teses expressas por muitos sectores quer na União Europeia (relatório Bangemman),
quer em Portugal, de que a sociedade de informação é uma transformação liderada
pelo mercado e pela tecnologia e que para catalizar as oportunidades contidas
nessa mudança há que romper com práticas passadas (de subsídios públicos,
apoios financeiros, dirigismo e políticas proteccionistas) e permitir a criação
de um novo quadro de competição e a liberalização dos mercados (abordando
questões como os direitos de propriedade intelectual, privacidade, encriptação
e a situação de posse dos grupos de media). E as teses onde se expressa
um outro conjunto de preocupações que acompanha o quadro político europeu e
nacional nesta última metade da década, a saber: o emprego, educação, qualidade
de vida.
O Livro Verde, da
mesma forma que reconhece que uma significativa parcela do desenvolvimento, no
caminho para uma sociedade de informação, passa e deverá ser controlada pelas
forças do mercado, reconhece igualmente que o caminho para uma sociedade de
informação deverá também constituir uma fonte de progresso económico e melhoria
das condições de vida bem como de um melhor serviço prestado aos cidadão quer
pelo sector público quer pelo sector privado.
Podemos assim
sumarizar os objectivos do Livro Verde em 7 pontos chave:
·
assegurar quer o acesso à informação quer à sua livre
circulação;
·
a criação e desenvolvimento de um mercado interno de
serviços e conteúdos de informação;
·
fomentar a democracia e a escolha individual;
·
fortalecer a competitividade das empresas nacionais como
meio de fortalecer a economia e a sociedade portuguesa;
·
contribuir para a formação pessoal dos cidadãos;
·
tornar o sector público mais transparente e facilitar o
acesso e a prestação de serviços;
·
apoiar os membros da sociedade com necessidades
especiais.
Nota-se, igualmente,
que embora as políticas e iniciativas públicas sejam estruturadas com base nos
alicerces dos planos de acção europeus para a construção da sociedade de
informação e, como já foi referido, influenciadas pela conjuntura política
vigente, não deixam também de ser condicionadas quer pelas características
sociográficas50 da população portugesa quer pelo quadro do mercado
nacional de serviços electrónicos de informação.
Uma clara
constatação desta situação passa pela análise e comparação das medidas
propostas no Livro Verde apresentado em Maio de 1997, com o estudo "O
mercado de serviços electrónicos de informação (SEI) em Portugal" cujos
dados remontam a 1994/95.
Constatamos que o
quadro caracterizador da situação apresentada neste último continua a ser
condicionante das medidas propostas no Livro Verde, ou seja, o quadro
estrutural do mercado português de SEI, apesar da sua evolução positiva, não se
reconfigurou a ponto de os problemas estruturais serem à data de Maio de 1997
diferentes daqueles que enfrentávamos em 1994/95.
O relatório "O
mercado de serviços electrónicos de Informação (SEI) em Portugal" chama a
atenção para um conjunto de pontos de entrave ao desenvolvimento do mercado de
serviços electrónicos em Portugal que vimos igualmente a encontrar no próprio
Livro Verde como bloqueios e os quais se procura solucionar. A saber:
·
a inexistência de uma política nacional concertada ao
nível das infraestruturas de telecomunicações, do desenvolvimento de suportes
informáticos e da indústria de conteúdos e comunicação;
·
a situação da informação em Portugal muito fragmentada e
o seu acesso limitado;
·
a informação disponível não corresponde às expectativas;
·
a existência de resistências culturais e económicas à
utilização profissional de SEI;
·
falta de enquadramento jurídico;
·
desadequação entre a oferta e a procura.
Pode-se, assim,
constatar que as políticas e iniciativas públicas de promoção da sociedade de
informação e da utilização da internet contidas no Livro Verde,
incorporaram na sua formulação não apenas os factores conjunturais actuais mas
também alguns dos problemas estruturais que parecem condicionar uma plena
utilização das tecnologias de informação e comunicação no desenvolvimento
nacional.
O Livro Verde
encerra em si dois tipos diferenciados de medidas. Por um lado as medidas que
explicitam objectivos concretos definidos, como seja o caso da colocação de
computadores com ligação à internet em todas as escolas do 5.º ao 12.º anos ou
da publicação electrónica do Diário da República. Por outro lado temos a
enunciação de príncipios ou objectivos para os quais não são apresentadas de
imediato as respectivas estratégias de implementação, de que é exemplo o
"fomentar iniciativas de autarquias locais para a democratização do acesso
à sociedade de informação" ou o "promover o teletrabalho na empresa e
na administração pública.
Esta dualidade é
porventura fruto da própria complexidade da adaptação do estado às questões que
a construção de uma sociedade de informação representa. Pois a própria
transversalidade das medidas de acção implica, na maioria dos casos, a
repartição das competências ou a circulação de informação entre dois ou mais
ministérios ou entidades por eles tuteladas, tornando assim as tarefas de
implementação tendencialmente mais morosas e por vezes os resultados de menor
amplitude.
De qualquer sorte, o
Livro Verde enuncia 72 medidas tendentes a acelerar a construção de uma
sociedade de informação em Portugal. Essas medidas constituem um objectivo que,
como se afirma na introdução do Livro Verde, se pretende cumprir no quadro da
actual legislatura, pelo que uma qualquer avaliação que se apresente neste
momento será sempre de carácter parcelar e não definitivo.
A MSI finalizada a
conclusão do Livro Verde, canalizou os seus esforços mais directos para a
preparação de medidas legislativas e programas globais e sectoriais adequadas à
concretização do Programa do Governo no domínio da sociedade de informação.
Coube assim à MSI
iniciar a preparação dos seguintes programas e medidas legislativas tendentes à
divulgação da sociedade de informação e utilização da internet:
·
iniciativa nacional para o comércio electrónico (criada
por resolução do Conselho de Ministros de 6 de Agosto de 1998);
·
iniciativa nacional para os cidadãos com necessidades
especiais na SI ( concluído o plano de acção tendente à apresentação à tutela,
aguarda o seu envio a Conselho de Ministros) ;
·
programa cidades digitais (lançado em 10 de Fevereiro de
1998);
·
objectivo: estado aberto (medidas diversas em curso);
·
programa a escola informada (encontra-se em curso o
alargamento da rede a outros níveis de ensino obrigatório e a entidades de
carácter educativo e científico);
·
objectivo: acessibilidade à sociedade de informação
(medidas diversas em preparação e implementadas).
Do conjunto das
iniciativas atrás enunciadas optamos por neste artigo cingir a nossa análise à
iniciativa nacional para o comércio electrónico. A qual pela importância que a
sua formulação encerra e igualmente pela atenção que é conferida a esta
temática, quer no quadro nacional quer internacional, representa no nosso
entender a área de análise mais pertinente para o traçar do enquadramento do
pensamento político sobre a construção da sociedade de informação em Portugal.
No âmbito da
resolução que cria a Iniciativa Nacional para o Comércio Electrónico, a MSI foi
igualmente incumbida da preparação e auscultação das entidades públicas e
agentes económicos com relevância no quadro da definição de medidas
legislativas e regulamentares necessárias ao pleno desenvolvimento e expansão
do comércio electrónico.
O conjunto de
reuniões e workshops realizadas tiveram como objectivos imediatos a
preparação de material que permita a formulação de propostas legislativas que
compreendam os seguintes pontos:
·
regime dos documentos electrónicos (de cujos pontos de
discusão se salientam: a necessidade de acordar nas próprias definições, no
conceito de cópia e no de transmissão dos documentos);
·
a utilização de assinaturas digitais (de cujos pontos de
discussão se salientam: a sua autenticação, depósito e a sua obtenção);
·
autoridades de certificação (de cujos pontos de discussão
se salientam: a definição de autoridade pública competente, acesso à actividade
de autoridade de certificação, as suas obrigações, a protecção dos dados, a
cessação de actividade e a responsabilidade);
·
os certificados digitais (de cujos pontos de discussão se
salientam: as condições da emissão, o conteúdo dos certificados, a sua
suspensão e revogação e a fiscalização das entidades emissoras);
·
a factura electrónica (de cujos pontos de discussão se
salientam: a sua equivalência e valor probatório, a definição de cópia e
original, a inclusão do IVA, a entidade emissora da autorização de utilização,
fiscalização, listagens em suporte papel comprovativas de envio).
No quadro dos
objectivos a que nos propusemos atingir com este documento, importa igualmente
salientar que em termos da definição de incentivos, quer sejam de questões de
enquadramento legislativo (como a encriptação ou as autoridades de
certificação), quer se trate de programas de apoio financeiro, toda a
actividade legislativa parece assentar no pressuposto de considerar como
fundamental a utilização quer da internet quer do EDI51 como
elementos dinamizadores do comércio electrónico em Portugal. Partilha-se assim,
da ideia da utilização da internet enquanto standard e elemento
fundamental para a divulgação do comércio electrónico entre consumidores e
produtores e igualmente entre estes últimos, continuando o EDI a assumir um
papel de relevo nas trocas entre empresas.
A Iniciativa
Nacional para o Comércio Electrónico merece ainda uma chamada de atenção para
os princípios subjacentes os quais têm reflexo não apenas na actividade
comercial associada ao comércio electrónico, nas suas diversas formas, mas
igualmente no campo social, político e cultural do quadro da utilização da
internet em Portugal:
·
desenvolvimento do comércio electrónico assenta na
iniciativa privada;
·
deverá criar-se um quadro regulamentar e jurídico
favorável, que elimine as barreiras ao desenvolvimento do comércio electrónico
(através do reconhecimento dos contratos efectuados por via electrónica e do
seu valor probatório; reconhecimento jurídico da factura electrónica,
assinatura digital e autoridades de certificação; adaptação do direito do
consumo; garantia dos direitos de propriedade intelectual; o quadro legal da
moeda digital);
·
afirma-se o princípio da não imposição de taxas
discriminatórias na utilização das redes globais de informação (quer se trate
de taxas extra ou dupla tributação de IVA);
·
garante-se o livre acesso e circulação das técnicas de
cifragem;
·
rejeita-se qualquer tipo de censura aos conteúdos da
internet (estimulando a auto-regulação);
·
apoia-se a existência de um sistema transparente de
gestão dos nomes de domínios internet (assegurando igualmente uma participação
europeia na entidade gestora do TLd genéricos);
·
cria-se um ambiente comercial favorável ao
desenvolvimento do comércio electrónico (apoiando o princípio da utilização de
normas de facto que não subvertam os mecanismos de concorrência leal);
·
incentiva-se a cooperação internacional no domínio do
comércio electrónico (Portugal procurará nos fora internacionais
defender as soluções que proporcionem ao comércio electrónico um enquadramento
regulamentar coerente).
Este conjunto de
princípios, caso venha a ser mantido como quadro de referência quer na
implementação da Iniciativa Nacional para o Comércio Electrónico quer em outras
actividades no quadro da sociedade de informação moldará, sem dúvida, as
utilizações futuras em Portugal das tecnologias de informação em geral e da
internet em particular. Pois poucos são os princípios aqui enunciados que
representam questões de pacífica aceitação no quadro de debate internacional. A
MSI e o Governo português ao assumirem estas posições, nomeadamente no que respeita
às técnicas de cifragem, conteúdos, sistema de gestão de domínios, taxação de
transações e assinaturas digitais, escolheram igualmente um modelo de abordagem
da utilização da internet e por consequência optaram por uma via que aposta na
auto-regulação e na liberdade de expressão e privacidade -- acompanhadas pela
devida regulação e controlo das entidades públicas -, por oposição ao modelo
que tem sido apanágio das administrações norte-americana e alemã, o qual
privilegia a censura, e a liberdade de controle em detrimento da privacidade
dos cidadãos.
6- Alguns contributos para uma caracterização da situação
portugesa na "era da informação"
Foi até este ponto o
objectivo deste artigo enunciar quais as características de actuação do estado
e as propostas dos decisores políticos portugueses no quadro da sociedade de
informação. O que vos propomos agora é o proceder a uma análise crítica dessas
políticas e das iniciativas públicas e para-públicas nacionais de incentivo ao
desenvolvimento da sociedade de informação, em particular, da internet.
Essa análise
encontra-se sumariada nos pontos seguintes, os quais reflectem a perspectiva de
que Portugal definiu e implementou uma iniciativa nacional de informação. A
qual ao combinar as disponibilidades tecnológicas existentes, as
particularidades do contexto socioecónomico português e a própria definição
político-ideológica presente se traduziu num modelo que procura criar uma
sociedade de informação baseada na procura de equilíbrio entre a necessidade de
resposta às políticas liberalizantes que apostam no mercado enquanto entidade
promotora dessa transformação e a necessidade de apostar no Estado na criação
das condições que permitam a realização de uma Welfare Information Society.
52
Seguindo a
formulação apresentada por Kahin53 podemos dizer que Portugal possuí
uma iniciativa nacional de informação, que combina três eixos de
implementação:
·
a formulação de uma visão: a de sociedade de
informação;
·
um quadro ou documento de enquadramento das políticas
a prosseguir: presente no Livro Verde para a sociedade de informação
·
estratégias de implementação: os programas as
iniciativas e as medidas destinadas à implementação das políticas definidas.
Como já foi
referido, em Portugal, podemos encontrar indícios de presença no discurso
político da preocupação com as temáticas da construção de uma sociedade de
informação desde o processo eleitoral que conduziu à tomada de posse do XIII
governo constitucional. Essa incorporação no discurso político criou as
condições para que na prática legislativa fosse consagrada a atenção dada às
implicações da sociedade de informação como no caso da revisão constitucional
de 1997, em que foi consagrada em sede de Direitos, Liberdades e Garantias, o
direito à privacidade nas redes electrónicas e também ao direito ao acesso por
parte dos cidadãos a estas tecnologias ( Art. 34º e Art. 35º).
No entanto, conforme
também já afloramos, o conceito de sociedade de informação não tem a mesma
leitura e aplicação em todos os países. Pelo que também deveremos questionar-nos
se em Portugal as próprias ideologias políticas encarnadas pelos diferentes
partidos políticos também não condicionarão essa mesma construção da sociedade
de informação.
A tentativa de
enquadramento do pensamento político das diversas forças partidárias
portuguesas face à sociedade de informação aqui apresentada não pretende ser
extensiva, pois a ela falta analisar as posições de partidos com representação
parlamentar como o CDS/PP e os Verdes, no entanto julgamos pertinente a
apresentação dos resultados obtidos na análise de conteúdo do discurso dos
restantes partidos (Governo PS, PSD e PCP), pois ela permite perceber quais as
áreas de preocupação de cada orientação política, bem como as diferenças e
proximidades existentes entre aquelas.54
O que procuramos
perceber foi qual o seu posicionamento face àquilo que escolhemos designar de
políticas informacionais, quais as barreiras que consideram existir ao acesso
dos cidadãos a estas tecnologias e também qual o impacto da sociedade de
informação em Portugal.
O que a análise do
discurso nos permite em primeiro lugar apontar é que embora seja partilhada a
enunciação das três barreiras ao acesso (cultural, educacional e económica) não
existe coincidência entre os diversos intervenientes quanto o grau de
importância que é atribuída àquelas. Assim para o PSD existe uma menor atenção
para as barreiras culturais, enquanto para o PCP e para o Governo PS se assiste
a um enunciar de igual atenção para o conjunto das três (culturais,
educacionais e económicas).
Outro factor a
assinalar no discurso do PSD refere-se à sua visão de que as gerações mais
novas possuem já uma muito melhor formação que as anteriores na utilização das
TIC, pelo que as barreiras educacionais ainda que abordadas são dadas como algo
que vem sendo minorado. Também é interessante notar que no discurso do PSD é
dada atenção à questão das barreiras entre os próprios utilizadores com acesso
às TIC, ou seja entre os apelidados de "nómadas tecnologicamente equipados
com o último GSM" e os outros, "a maioria cujo interface com a
sociedade de informação é a caixa multibanco ou a TVCABO".
A visão do Governo
PS sobre as barreiras incorpora a referência a um conjunto de bloqueios
considerados estruturais e que são fruto da especificidade da sociedade
portuguesa nomeadamente, o atraso científico tecnológico, o peso burocrático
das instituições "desenvolvidas ao abrigo de um estado autoritário",
uma economia cujo desenvolvimento se encontrava condicionado "por monopólios"
e o "peso histórico" da falta de liberdade de informação.
Também quanto às
políticas informacionais que deverão merecer a atenção dos responsáveis
políticos, parece não existir consenso. Isto embora a questão do acesso dos
cidadãos e da importância do desenvolvimento dos aspectos económicos das TIC55
congregue a atenção de todos, o que se ficará sem dúvida a dever ao que podemos
designar por políticas não geradoras de polémica.
Praticamente
ausentes de todos os discursos dos partidos ficam as questões em torno da
"obscenidade" e "outros conteúdos ofensivos". No que
respeita à privacidade, quer o PCP quer o Governo PS realçam essa questão. O
PSD no que respeita à encriptação bem como à privacidade não as aborda na sua
reflexão.
Outros dois pontos a
destacar em torno do discurso produzido no que respeita às políticas
informacionais são a preocupação do PCP com as implicações das tecnologias de
informação na divisão internacional do trabalho e a visão explícita no discurso
do Governo PS de que as políticas de acesso tem de ser desencadeadas em todas
as frentes e não apenas ao nível da escola.
No entanto, quanto
ao impacto da sociedade de informação parecem existir claramente pontos de
aproximação entre os três intervenientes, apresentando esse impacto como algo
de positivo, nas palavras do PSD "um factor de democratização e
progresso", nas do PCP "representa sobretudo uma transformação prenhe
de consequências positivas". No entanto tanto o PCP como o Governo PS
partilham a sua preocupação face as utilizações positivas e negativas que a
tecnologia pode ter, encarando como positiva a sociedade de informação não
deixam de alertar para os seus perigos.
Aquilo que se poderá
concluir deste trabalho de análise é que embora existindo diferenças de
concepção quanto às áreas prioritárias de intervenção, não existe a recusa do
objectivo de construção da sociedade de informação. Esta é vista como uma
"inevitabilidade" para a qual nos temos de preparar. No entanto
encontramos à esquerda do espectro político, nomeadamente no Governo do PS e
PCP, uma maior atenção dada às questões mais relacionadas com os direitos e
liberdades dos cidadãos (a privacidade, encriptação e mesmo os conteúdos). Bem
como parece ser à esquerda que o discurso produzido parece encerrar uma maior estruturação
e reflexão sobre esta temática.
Uma outra questão
que deverá ser salientada é a noção de que à medida que se passa da enunciação
dos problemas, para o tipo de medidas concretas com as quais o estado deverá
intervir, as diferenças de discurso parecem aumentar fazendo surgir associadas
ao discurso sobre a sociedade de informação as orientações políticas que
normalmente aparecem associadas ao discurso de cada um dos partidos.
Esta constatação vai
ao encontro daquilo que Giddens refere no seu livro Beyond Left and Right56
onde se afirma que embora possamos assistir a um esbater da separação
tradicional entre a esquerda e a direita, continuam a existir áreas onde é
evidente essa diferenciação, nomeadamente o modo como se olha para a igualdade
de oportunidades dos cidadãos.57
É pois possível
dizer que embora uma eventual alteração do quadro político no poder se possa
traduzir numa alteração do quadro ideológico que actualmente define as
políticas informacionais, essa mudança não porá em causa a ideia de construção
de sociedade de informação. No quadro de actuação política do estado existe a
formulação de uma visão: a de sociedade de informação e uma definição do quadro
de enquadramento das políticas a prosseguir.
No que respeita às estratégias
de implementação analisadas compreendem dois grandes conjuntos: as medidas
com origem nos organismos públicos e aquelas que têm origem em associações
cívicas ou de agentes económicos.
Do conjunto da
análise das medidas de incentivo à implementação da sociedade de informação e à
utilização da internet podemos enumerar as seguintes constatações:
·
standard internet está presente na grande maioria das iniciativas
e medidas propostas;
·
as áreas mais desenvolvidas no quadro da implementação da
sociedade de informação são sem dúvida a da educação e da ciência e tecnologia;
·
a implementação dos programas das Cidades Digitais58
e do PRO-Alentejo Digital representará a abertura uma nova área de intervenção,
a da qualidade de vida dos cidadãos e a aposta na chegada da sociedade de
informação às áreas do trabalho e do espaço cívico;
·
a iniciativa nacional para o comércio electrónico é
apresentada como a próxima grande área de aposta de desenvolvimento da
utilização da internet por parte as entidades públicas;
·
a actuação das associações cívicas como a FFE59
ou grupos de cidadãos em defesa dos direitos dos cidadãos online é um
elemento a ter em atenção no desenvolvimento da sociedade de informação;
·
o papel desempenhado pelas associações de agentes
económicos é uma complementariedade necessária para a promoção da sociedade de
informação;
·
a adaptação do quadro legislativo, é encarada como
fundamental para a conclusão da implementação de um conjunto de medidas
nomeadamente assinatura digital, factura electrónica e autoridades de
certificação;
·
encontram-se enunciados princípios de actuação na INCE60
que definem a posição portuguesa face a um conjunto de questões, não
consensuais a nível internacional, como sejam: a criptografia, os conteúdos,
assinaturas digitais, privacidade e direitos de autor;
·
no entanto, existe uma certa indefinição e fraco apoio
quanto às medidas de incentivo à produção comercial de produtos multimédia,
digitalização de conteúdos e à promoção no exterior de empresas portuguesas do
sector multimédia;
·
no que respeita aos recursos humanos do sector público, a
formação de quadros da administração pública para a utilização da internet
ainda não atinge intensidade suficiente para podermos pensar numa inverteção da
actual tendência de fraca literacia nesta área;
·
do quadro das medidas propostas no Livro Verde realça-se
o facto de igual atenção ser dedicada às questões de promoção da participação
dos cidadãos e qualidade de vida nas cidades e regiões, bem como à promoção do
comércio electrónico e das actividades económicas ligadas às tecnologias de
informação.
A visão de conjunto
que é transmitida pela fórmula adoptada na criação da iniciativa nacional de
informação em Portugal pode ser lida à luz da percepção, por parte do estado e
dos actuais decisores políticos, de que qualquer mudança de paradigmas na
sociedade, implica um compromisso entre a inovação e a continuidade. A
propósito desta questão Anthony Giddens refere na sua entrevista à revista
online Telepolis61 que hoje vivemos num mundo onde todos
podem observar uma mudança tecnológica associada acompanhada por um outro
conjunto de mudanças na sociedade. Algumas das quais encerram em si um
potencial destrutivo -- quer para o ambiente quer para algumas formas de
solidariedade social.
Daí que para
Giddens, seja relevante assegurar até certo ponto, e em determinados contextos,
continuidade, coesão e estabilidade face à mudança, ou seja, ao estado cabe
percepcionar que associado à introdução das tecnologias de informação, não se
pode deixar de ter presente as prováveis rupturas e desigualdades sociais que
as mesmas introduzem.
O papel do estado é
o de minorar essas mesmas desigualdades no mais curto espaço de tempo e com a
maior eficácia possível proporcionando uma sociedade onde sentimento de
segurança e estabilidade estejam presentes.
A escolha do modelo
de Iniciativa Nacional de Informação em Portugal parece incidir na
criação de uma sociedade de informação mas no contexto da actuação do estado
providência, isto é, o que Annemarie Riis62 designou de Welfare
Information Society e que se concretiza no apoio à inovação
tecnológica tendo presente a necessidade de investir na conservação de certos
modelos tendentes à promoção de igualdade de oportunidades ( educação, emprego,
saúde ) entre os cidadãos.
O
espaço dos fluxos e o papel do estado
Este artigo
propôs-se a contribuir para a discussão em torno da sociedade de informação
procurando discutir as possíveis "causas das questões" que colocamos
hoje quando nos propomos tentar interpretar as implicações da "era da
informação" à luz das "teorias da sociedade de informação".
De entre essas
questões propusemos analisar quatro, tentando assim contribuir para a sua
resposta. Que reais forças de transformação encerram a quantidade e
disponibilidade de informação nas nossas sociedades? Como é influenciado o
estado por essas forças de transformação? Qual a situação portuguesa? E que
representações e práticas produz o estado face aos pontos de ruptura que na
"era da informação" colocam em causa o seu poder?
Na tentativa de dar
início às respostas propomos uma leitura das forças em acção a partir da
análise proposta por Manuel Castells na trilogia Information Age: economy,
society and culture, o qual considera que as transformações na nossa
sociedadesão actualmente desencadeadas por uma oposição entre duas forças cuja
influência se faz sentir em todas as esferas da sociedade, a Net e o self,
isto é entre as redes e as identidades.
Fruto do surgimento
de uma "sociedade rede" onde os fluxos de poder deixam de se centrar
no espaço dos lugares para passarem para o espaço dos fluxos (um espaço
definido técnica, geográfica e socialmente) o estado nação vê a sua actuação
limitada pela necessidade de articular a sua acção entre o nível global e
nacional. O estado tem de negociar num quadro de globalização com os restantes
estados, com as empresas globais e inclusive com os grupos de pressão que
actuam através do espaço dos fluxos, ao mesmo tempo que assegura as suas
funções ao nível nacional na gestão do wellfare e no desenvolvimento económico,
social e cultural.
Com base nesta
leitura da realidade faz-se uma proposta de enquadramento da acção do Estado na
"era da informação", através da enumeração das áreas prioritárias de
resposta às ameaças que põem em causa o seu poder de acção:
·
a necessidade de fomentar o desenvolvimento das
tecnologias de informação e a criação de mercados, sob pena de as empresas
nacionais e os seus cidadãos não poderem competir no mercado global económico e
de emprego;
·
a necessidade de controlar as transações monetárias que
ocorrem no espaço dos fluxos, sob pena de ver cada vez mais diminuída a sua
margem de acção na política económica interna e externa e a defesa da protecção
social dos cidadãos;
·
lidar com a crise que a democracia enfrenta recorrendo ao
próprio espaço onde o exercício dos poderes se define, ou seja o espaço dos
fluxos.
Partindo da análise
dos discursos políticos sobre a sociedade de informação em Portugal,
provenientes dos diversos partidos, sobre o papel do estado face aos pontos
atrás enunciados, ressalta em primeiro lugar o facto de haver uma quase
unanimidade quanto à necessidade de o estado intervir na criação dos mercados
de utilizadores e de produtos das TIC. Intervenção essa realizada através das
políticas informacionais de fomento do acesso e das condições económicas para o
desenvolvimento do comércio electrónico -- ou seja da investigação científica à
legislação e apoios ao investimento nestas áreas.
No polo oposto da
atenção encontramos a quase total omissão de referências ao controle dos fluxos
financeiros a um nível global.
No que respeita à
Democracia, tal como nos restantes países, embora esteja presente no discurso
político de diversas formas, o aprofundamento da democracia através da
utilização das tecnologias de informação em Portugal é essencialmente visto na
perspectiva da disponibilização da informação. Uma visão algo redutora das
possibilidades associadas às tecnologias de informação e também da resposta
necessária às dinâmicas com que a globalização nos interpela.
No entanto, exemplos
como os de Bolonha, Manchester e Berlim,63 bem como da capacidade de
participação nos protestos64 através da internet e o caso do
Projecto Terràvista,65 podem mostrar-nos como dar os primeiros
passos no aprofundamento da democracia através do espaço dos fluxos. Esse será
o desafio colocado a programas como as Cidades Digitais e o Alentejo Digital,
bem como a todas as políticas promotoras do acesso à utilização das tecnologias
de informação.
Um desafio que passa
igualmente pela capacidade dos decisores políticos perceberem que se limitarem
a sua actuação à esfera da criação de mercados e do acesso, esquecendo a
necessidade de controlar as transações monetárias e de lidar com a crise que a
democracia enfrenta, estarão a contribuir para a diminuição da sua própria
capacidade de intervenção.
Uma discussão em
torno do aprofundamento da democracia, terá de ser vista numa perspectiva
global. Implica discutir não apenas como podem as tecnologias de informação ser
utilizadas, como no caso do voto electrónico, mas como se deve adaptar o
próprio sistema democrático às transformações que a constituição da
"sociedade rede" nos coloca.
O estado
"encontra-se à beira da sociedade de informação" no sentido em que
sendo a sua acção fundamental para atingir esse objectivo, a construção da
sociedade de informação implica ela própria um desgaste da capacidade de
actuação do estado perante a sociedade.
Esse é o dilema que
o estado tem de defrontar e sobre o qual todos devemos reflectir, pois um
estado mais fraco, no contexto actual de globalização tende a representar
igualmente menor estabilidade e segurança para os cidadãos.
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