ÉTICA E TÉCNICA NA CULTURA CONTEMPORÂNEA
Américo de Sousa, Universidade da Beira
Interior
Outubro 1998
PARTE I - DA
TÉCNICA SOBRENATURAL À TÉCNICA MODERNA
1.1 A técnica: da substituição do orgão à
substituição do orgânico
1.2 A primeira das técnicas: a magia
1.3 O duplo processo de objectivação e alívio
1.5 Transição para a cultura industrial: a
progressiva abstracção
1.6 O pensamento técnico invade a cultura
1.7 O ajustamento psicológico aos padrões técnicos
1.8 Um novo primitivismo: a fuga para o imaginário
1.9 Formação de opiniões: a instituição de ordem
1.10 O homem com medo de si próprio
PARTE II -
POR UMA ÉTICA ANTROPOCÓSMICA
2.1 A ética e a sua base antropológica
2.2 Da ética antropocêntrica à ética antropocósmica
2.3 O conflito potencial entre a Política e a
Tecnociência
2.4 A heurística do medo e o policiamento do poder
técnico
2.6 O homem como objecto da própria tecnologia
2.7 A ética da responsabilidade
Analisar
o tipo de relação que o homem vem mantendo com a técnica e, ao mesmo
tempo, reflectir sobre os limites éticos
oponíveis a esta última, é o objectivo central deste trabalho. Para o efeito,
seguiremos de muito perto o pensamento de Arnold Gehlen e de Hans Jonas, dois
dos autores cujo contributo teórico parece mais pertinente com o conjunto de
questões que aqui pretendemos abordar.
Começaremos por ver como são tão remotas as
origens da técnica e como esta ainda
hoje conserva certos vestígios da magia que historicamente tem renegado. Os
diferentes graus de objectivação da força de trabalho, autênticos marcos de uma evolução da
técnica, surgirão aqui intimamente relacionados com o sucessivo uso da
ferramenta, da máquina e da automação. Desta última à cultura industrial, do
clima de progressiva abstracção à necessidade de um novo ajustamento
psicológico, da invasão da cultura pelo pensamento técnico até à fuga para o
imaginário, eis alguns outros pontos de paragem obrigatória no percurso da
nossa reflexão. O fecho da primeira parte será assinalado por um breve estudo
do processo de formação das opiniões, bem como pela situação paradoxal em que o
homem se encontra ao ter agora medo de si próprio, situação que se traduz pela
necessidade cada vez mais reconhecida de impor um "travão" ético à
escalada da técnica.
E será uma
análise preponderantemente ética que iremos encontrar na segunda parte. Aí nos
confrontaremos com a falência de todas as éticas tradicionais perante a originalidade e dimensão dos quase ilimitados poderes técnicos de que
o homem só muito recentemente passou a dispor. A impossibilidade de confiarmos
no critério da tecnociência para decidir sobre projectos humanos, a necessidade
de cada vez maior policiamento do poder técnico e o novo imperativo categórico
de Jonas surgirão como respostas
possíveis às crescentes preocupações pelas intervenções técnicas potencialmente
mais perigosas como são aquelas em que o homem figura agora como objecto da
própria tecnologia que criou. Seguir-se-á um breve confronto dos dois citados autores e a correspondente apreciação
crítica final.
PARTE I
DA TÉCNICA SOBRENATURAL À TÉCNICA MODERNA
Ý 1.1
A técnica : da substituição do orgão à substituição
do orgânico
Que a
técnica é tão antiga como a humanidade já ninguém duvida pois é justamente
pelos vestígios da utilização de instrumentos de trabalho que se pode concluir
se certos achados arqueológicos se relacionam ou não com o homem. O que
permanece ainda demasiado obscuro é a particular relação que o homem com ela
estabelece através dos tempos e, em especial, no seio da cultura contemporânea,
onde a técnica moderna parece desafiar-nos para um constante questionamento
ético e social. Aceitar este desafio implica, porém, tentar responder, desde logo, a uma questão essencial: como foi
possível chegar a este predomínio da técnica na cultura actual?
Arnold
Gehlen explica o crescente sucesso da técnica a partir da substituição da força
orgânica pela anorgânica, o que teria vindo a alargar o seu campo de
intervenção, autonomia e potencial de
desenvolvimento. E, de facto, foi graças à máquina a vapor e ao motor de
combustão, que a cultura passou a alimentar-se das reservas de carvão
armazenadas debaixo do solo, pelas quais a humanidade se tornou finalmente
independente das fontes naturais de energia que crescem em ritmo anual. Até aí,
ou seja, "enquanto a madeira era o principal material e o trabalho do
animal domesticado a fonte mais importante de energia, havia uma limitação para
o ritmo e crescimento da cultura material que, não sendo técnica, dependia do
lento crescimento e do escasso escopo da reprodução orgânica...." (1). A partir do momento, porém, em que se tornou possível
construir obras de engenharia hidráulica destinadas à produção de energia
eléctrica e também com a descoberta do aproveitamento da energia atómica, deu-se o último passo - diz Gehlen -
"para a emancipação dos substractos orgânicos necessários à obtenção de
energia" (2).
Além disso,
Gehlen chama ainda a atenção para o facto da passagem da substituição do orgão
para a total substituição do orgânico ser determinada "por uma legalidade
espiritual um tanto misteriosa" (3), o que o leva, de
resto, a interrogar-se sobre o verdadeiro fundamento dessa substituição do orgânico
por materiais e forças anorgânicas,
substituição que continua a estar na base do desenvolvimento da técnica.
Tal
fundamento residirá no facto do domínio da natureza anorgânica ser muito mais
acessível a um conhecimento metódico, racional e estritamente analítico, logo,
também mais susceptível de prática experimental. O mesmo já não se pode dizer
do domínio biológico e do domínio anímico que são incomparavelmente mais
irracionais. Daí a tendência para os técnicos e os cientistas conceberem o
mundo numa base positivista fáctica, pois as ciências e as técnicas de maior
sucesso exercem uma certa irradiação sobre a nossa visão do mundo e,
naturalmente, influenciam-na. É no entanto de assinalar, diz Gehlen, que este
tipo de concepção do mundo só se tenha divulgado depois do séc. XVII,
quando, como se sabe, já há meio milhão de anos que existe uma produção
técnica.
Ý 1.2 A primeira das técnicas: a magia
Com efeito,
durante uma grande parte da sua história, a humanidade não dispôs de mais do
que recursos técnicos muito modestos, apesar de corresponderem a invenções
altamente engenhosas para a época. "A técnica não tinha ainda penetrado no
centro da concepção do mundo, nem portanto na concepção do homem, como hoje,
que esperamos da cibernética e da teoria da regulação, esclarecimentos sobre o
funcionamento das nossas actividades cerebrais e nervosas" (4).
Que razões
terão estado por detrás deste "marcar passo"? Eis a questão que
Gehlen chama a si próprio para lembrar que durante milhares de séculos o homem
de todas as culturas primitivas e de todas as altas culturas como a egípcia, a
grega e a romana, estava preso a uma outra ideia muito diferente que era a possibilidade
de uma "técnica sobrenatural" (aquilo a que hoje chamamos magia). E
foi essa magia que desde as épocas pré-históricas ocupou um papel central na
concepção do mundo e do homem, sobrevivendo sempre, inclusive, em ambientes
adversos, como no caso das culturas monoteístas - tenha-se em vista os
processos de bruxas e feitiçarias da Idade Média.
Magia que,
para Maurice Pradines - como nos dá conta Gehlen - pode ser definida como
"tentativa para produzir alterações que beneficiem o homem, desviando as coisas
dos seus caminhos próprios para o nosso serviço" (5).
Eis aqui uma definição que, se atentarmos bem, abrange não só a magia como a
própria técnica, ou, se quisermos, a técnica sobrenatural e a técnica natural.
Uma outra
ideia a reter é a da extraordinária expansão da magia em todo o mundo e em
todas as épocas, o que leva Gehlen a admitir que ela deve radicar em algo de
antropologicamente fundamental, ao mesmo tempo que afirma não se poder tirar
outra conclusão quando se continua a constatar a existência de práticas mágicas
perfeitamente estereotipadas independentemente de raças e de graus de cultura.
O feitiço da chuva, por exemplo, a orientação ou provocação dos fenómenos
meteorológicos, está presente, segundo Gehlen,
tanto nos índígenas da Nova Britânia, como nos índios de Omaha, banatus
de Delagoaba e nos chineses. No mesmo sentido vão os numerosos relatos e
documentos que atestam como o intuito predominante e central das práticas
mágicas é a necessidade de assegurar a uniformidade do processo natural e de
estabilizar o ritmo do mundo obviando às irregularidades e excepções.
O que tudo
isto parece ilustrar é que o interesse humano pela uniformidade do processo
natural é muito importante pois corresponde a uma necessidade instintiva de
estabilidade do mundo ambiente, sendo que, "numa realidade submetida ao
tempo e necessariamente mutável, o máximo de estabilidade consiste numa
automática e periódica repetição do idêntico, tal como aproximadamente se
manifesta na natureza (6).
E sendo
assim, compreende-se que na primitiva concepção da vida, privada que estava de
qualquer espécie de conhecimento científico, o mundo e o homem nele integrado
fosse visto como um processo cíclico, rítmico e automático, isto é, como um
automatismo, aliás animado. Quer dizer,
que as forças mágicas que faziam mover o mundo não eram arbitrárias nem
emergiam espontaneamente, antes podiam pôr-se em acção devido à fórmula certa e
rigorosamente repetida.
O que pode
parecer estranho é como ainda hoje, apesar de toda a racionalização e da nova
concepção científica do mundo, continuamos a poder encontrar na astrologia (e
afins) um importante vestígio desta ideia arcaica e inata pois "grande
parte da clientela dos astrólogos é constituída por numerosos financeiros e
políticos que acreditam no prodigioso automatismo rotativo das estrelas e na
sua necessária correlação com os destinos do indivíduo" (7).
E sendo assim, faz todo o sentido perguntar: até que ponto essa crença estará
tão profundamente enraízada no homem para nele se manter tão pertinazmente,
apesar de todos os desmentidos da razão?
Se alguma
ideia se pode retirar daqui, é, seguramente, a de que a fascinação pelo
automatismo constitui o impulso pré-racional e estratégico da técnica. Um
impulso que se fez sentir primeiramente e durante milénios na magia (ou técnica
supra-sensível) até encontrar nos tempos modernos a sua máxima concretização
nos relógios, motores e máquinas rotativas de toda a ordem. Este fascínio do
automatismo de uma máquina é totalmente independente do seu rendimento: em grau
mais alto, o que se pretenderia seria um "perpetuum mobile" cuja
fidelidade e rendimento consistisse apenas na reprodução do próprio movimento
giratório.
Sucede que uma
fascinação de tal natureza não pode ser simplesmente intelectual, tem de ter
raízes mais profundas, diz Gehlen. Constitui, por assim dizer, um fenómeno de
ressonância. Constantemente aprisionado
ao enigma da sua existência e do seu próprio ser o homem tem de ir buscar a sua
auto-interpretação a um não-eu, a algo diferente do humano. Assim, a sua
auto-consciência é indirecta e o seu esforço por encontrar uma fórmula para si
próprio decorre sempre em equação com o não humano do qual em seguida se distingue.
Ele sempre se sentiu muito impressionado pelos processos rítmicos e periódicos,
quer se tratasse da rotação dos astros ou dos hábitos persistentes,
estereotipados e invariáveis dos animais.
E isto não é de estranhar pois ele próprio é um automatismo: "é
pulsação e respiração, vive dentro e por intermédio de automatismos rítmicos de
apropriado funcionamento, tal como estão patentes no movimento do andar, mas
sobretudo, na lide e trabalho das mãos, no 'círculo de acção' que, partindo da
coisa para a mão e para os olhos, se fecha voltando de novo à coisa, em
contínua repetição" (8). Os fenómenos análogos do mundo
exterior fascinam-no devido à ressonância que representa uma espécie de sentido
íntimo do que é constituicional no homem, atraído por tudo quanto no mundo
exterior se assemelhe a essa estrutura própria. Segundo Gehlen, quando ainda
hoje falamos de "curso dos Astros" ou do "andamento das
máquinas" isso não passa de
"objectivação por ressonância da auto-interpretação de determinados traços
essenciais do homem" (9), pois este interpreta o mundo à
sua imagem e, inversamente, interpreta-se a si segundo as imagens do mundo.
Ý 1.3 O duplo processo de objectivação e alívio
Se há de
facto esta ligação profunda com os processos rítmicos, periódicos e automáticos
do mundo exterior, pode então compreender-se melhor as chamadas componentes
instintivas da técnica. Em oposição ao preconceito muito generalizado,
nomeadamente nos meios académicos, segundo o qual o comportamento técnico é
simplesmente racional e sempre dirigido para certos fins, Gehlen cita Hermann
Schmidt para quem "a objectivação
do trabalho que se opera na técnica é resultante de um processo não consciente
que se encontra na espécie e que a sua motivação provém da parte sensorial da
nossa natureza" (10).
Para
reforçar ainda mais a ideia destas componentes instintivas que actuam na
técnica, Gehlen descreve o homem como um ser voltado para a acção, ou seja,
para a modificação do seu mundo exterior, podendo o seu "ciclo de
acção" ser analisado como contendo três etapas: movimento plástico
dirigido (primeira), que é depois corrigido pela repercussão do sucesso ou
insucesso (segunda) e finalmente, a automatização como um hábito (terceira). Ou
seja, há aqui como que uma implicância reactiva que Norbert Wiener considera
ser uma característica muito geral das formas de comportamento, cujo mecanismo
descreve do seguinte modo: "na sua forma mais simples o princípio da
implicação reactiva significa que o comportamento foi renovado nos seus
resultados e que o sucesso ou insucesso destes resultados influenciará o comportamento futuro" (11).
Gehlen
lembra-nos igualmente que logo de início o homem objectiva a sua acção,
atribui-a ao mundo exterior, vê-a nesse plano pelo qual se deixa levar e
potenciar, isto é, objectiva o seu trabalho. Vistas então as coisas sob este
ângulo, a pedra é, sem dúvida, um representante da mão: representa-a e com
êxito muito superior. Mais ainda: o pequeno ciclo do que realmente se domina,
transita agora integralmente para o grande ciclo do que só imaginariamente se dominar e o próprio
esforço diminui na razão directa das massas movimentadas. É que se o trabalho
com a ferramenta é penoso, já para estabilizar o tempo ou o regresso da chuva,
bastam algumas fórmulas verbais de mágica eficácia.
É aqui que,
segundo Gehlen, podemos detectar uma
outra lei humana fundamental, a tendência para a diminuição do esforço, que
possui em si mesma um valor antropológico de geral validade, mas que agora se
encara somente do ponto de vista das suas aplicações técnicas.
Para o fim aqui
em causa, podemos então vislumbrar no homem dois diferentes ciclos de acção: o
pequeno ciclo de acção, correspondente à autêntica prática do trabalho, que
diminui literalmente o esforço físico e o grande ciclo de acção da magia que
evita ao homem a paralização perante as forças da natureza, na medida em que,
por assim dizer, reduz as coordenadas do mundo a padrões humanos. Por outro
lado, se a objectivação do trabalho humano na ferramenta produz um efeito
superior ao mesmo tempo que diminui o respectivo esforço, então, diz-nos
Gehlen, podemos discutir o uso da ferramenta desde logo, nesta perspectiva de
alívio ou redução da penosidade físico-orgânica. A estes dois processos de
diminuição de esforço, vem juntar-se ainda um terceiro, de mais profundas consequências:
a tendência para criar hábitos, para formar rotinas, numa palavra, para
automatizar o efeito, aliás, já presente nos dois ciclos de acção atrás
referidos. Ora é precisamente neste contexto que Gehlen defende que a técnica
obedece desde os seus princípios a determinantes instintivas, inconscientes
vitais, identificando tais características humanas com o princípio da economia
de esforço e a tendência para automatizar os efeitos, que se tornam
responsáveis pela evolução da técnica.
Não que uma
qualquer invenção isolada delas derive directamente, pois, por exemplo, o
funcionamento de um motor é explicado pelas relações puramente físicas e
técnicas. Mas sem dúvida que é "a evolução conjunta da técnica que atesta
uma lógica subjacente, inconsciente, mas coerentemente prosseguida, que só se
pode descrever por meio dos conceitos da progressiva objectivação do trabalho
humano e da crescente diminuição de energia dispendida" (12).
Trata-se de um processo geral que se desenvolve em três graus:
- Primeiro
grau: o da ferramenta. É ainda o sujeito que emprega a força física necessária
para o trabalho e o requerido esforço intelectual.
- Segundo
grau: o da máquina de trabalho e energia. A força física é objectivada
tecnicamente.
- Terceiro
grau: o do autómato. O próprio esforço intelectual do sujeito é substituído por
meios técnicos.
Em cada um
destes três graus dá-se um processo de objectivação para alcançar um
determinado fim, através de meios técnicos, observando-se cada vez maior
autonomia destes, até que, no terceiro e último grau, esse fim se atinge
simplesmente por intermédio do autómato, sem intervenção corporal ou
intelectual. Naturalmente, esta fase de automatização é aquela em que a técnica
atinge a sua maior perfeição metódica. E é justamente nesta fase em que se
conclui o processo evolutivo da objectivação técnica do trabalho (cujas origens
remontam à pré-história) que se pode situar a característica mais definidora da
nossa época.
O que à
primeira vista mais nos surpreende, é o facto da técnica só muito tarde ter
entrado nos domínios que durante milhares e milhares de anos estiveram
reservados à magia, ou seja à técnica sobrenatural, a qual, como se sabe, foi a
que primeiro imperou nas épocas em que se conhecia apenas a primitiva técnica
da ferramenta. Mas se pensarmos bem, já essa magia pretendia desviar as coisas
dos seus caminhos próprios para o nosso serviço, procurando, ainda que
inconscientemente, potenciar a eficácia e multiplicar as zonas de alcance da
acção da mão humana.
Ý 1.4 O advento do automatismo
Mas se a
técnica chegou tarde a tais domínios, a verdade é que, pelo menos nos últimos
tempos, o fez com uma pujança assinalável. Basta pensarmos nas incríveis novas
possibilidades abertas pela automação, onde, como vimos, se objectiva o próprio
ciclo de acção incluindo as funções intermediárias conscientes, de controlo e
direcção. Como diz Gehlen, objectiva-se simultaneamente "a parte do
processo vital fisiológico que funciona sob a forma de processos cíclicos sensório-motores e a outra de nível superior
em que se produzem as regulações retransmitidas automaticamente, quimicamente,
por exemplo" (13).
Surgem assim os aparelhos de regulação técnica por transmissão, com base
no princípio de que o sistema não varia o seu funcionamento por um comando
exterior, mas sim, em função dos resultados obtidos. Trata-se de mecanismos concebidos
para regressarem sempre a si próprios num ciclo fechado e calculados de tal
modo que a corrente que atravessa todo o sistema é desviada numa ínfima parte
para a regulação dessa mesma corrente de energia.
Gehlen
acentua porém que este ciclo regulador não é apenas uma "cópia" do
ciclo de acção, quer dizer, não corresponde só ao exemplo do automóvel
automaticamente dirigido, dispensando condutor (hipótese perfeitamente possível
do ponto de vista técnico), porque além das acções humanas, diz, existem em nós
inúmeras regulações intracorporais obedecendo ao mesmo princípio estrutural,
como no caso do sistema que regula a tensão sanguínea que é um ciclo fechado de
acção regressiva. O ritmo respiratório, a concentração do sal, o doseamento do
açúcar no sangue e a temperatura do nosso corpo, são apenas mais alguns
exemplos dos inúmeros estados biológicos que obedecem ao mesmo princípio
regulador.
Apesar de todas estas semelhanças entre o autómato
e o orgânico, não se pode dizer, como nos adverte Gehlen, que o ciclo de
regulação técnica permite conhecer a própria "vida", nem subentender
que esta última seja de natureza mecânica. Verifica-se tão somente a existência
de uma "isomorfia". Uma
semelhança de formas, por certo, mas nenhuma igualdade substancial. O que
se passa é que com o progresso da técnica o homem transfere para a natureza
inanimada (aparelhagem técnica criada pelo próprio homem) um princípio de
organização que já vigora em diversos pontos do nosso organismo.
Ý 1.5 Transição para a cultura industrial: a
progressiva abstracção
Acabamos de
analisar as raízes profundas da técnica e o fundo instintivo e inconsciente que
está por detrás da sua evolução: o homem, como que se submetendo a uma espécie
de lei vital, esforça-se por ampliar o
seu poder sobre a natureza. Não se pode porém - diz Gehlen - explicar a técnica
só como resultante de uma ânsia de poder inerente ao homem, pois isso, ainda
que certo, seria muito insuficiente. O que se passa é que além disso o homem
procura objectivar-se a si próprio, encontra no mundo exterior os modelos e
imagens do seu misterioso ser e como que adjudica a sua acção ao mundo exterior
que a retoma e prossegue.
Provém daí a
estranha fascinação do automatismo, da monótona repetição do idêntico, do
movimento circular ordenado que o homem primeiramente descobriu no firmamento.
E se verificarmos quão profundamente o pensamento primitivo estava possuído das
leis da técnica sobrenatural, nunca se poderia esperar que a vida anímica do
homem não tivesse sido atingida pela transição para a cultura industrial. Realmente, esta surge com uma
tal amplitude de transformações no mundo que justifica, por si só, uma análise
atenta às suas principais características.
Para Gehlen,
o principal traço distintivo desta nova cultura industrial é a radical
intelectualização que se observa nos domínios autenticamente espirituais das
artes e das ciências e que corresponde à diminuição do apelo ao concreto, da
espontaneidade e da acessibilidade não problemática.
É esse
panorama que o leva a afirmar estarmos "perante uma das mais raras e
maiores transformações da condição humana, perante uma alteração secular, não
só dos comportamentos vitais e sociais, mas, mais profundamente ainda, das
próprias estruturas da consciência, da própria dinâmica dos impulsos humanos.
Vemos hoje em acção o entendimento humano no estádio posterior ao iluminismo,
emancipado da moral que o iluminismo julgava nele infundida e que assim se teve
de reduzir ao mísero papel de sujeição constante à alçada do produtivo, do
realizável e do pragmático" (14).
Assiste-se a
um processo de abstracção progressiva das artes e das ciências, em cujos
círculos "restritos dos chefes de fila de competência muitas vezes
internacional, que realmente criam e produzem, só poderá haver uma minoria de
leigos interessados e realmente preparados para as compreender" (15). Sempre orientado para a estreita relação da cultura
moderna com a técnica, Gehlen diz que entre ambos os domínios, o problema da
exequibilidade é o que ocupa a posição central. O que realmente é importante é
"variar os meios de representação, os modos de pensamento e os processos,
comprovando-os experimentalmente, pondo-os em jogo até esgotarem todas as
possibilidades e observar o que daí resulta" (16).
Neste sentido, para Gehlen, a palavra técnica conserva vestígios do seu
primitivo sentido de engenho, de habilidade, de algo que inesperadamente
resulta da experiência e do domínio final do sucesso obtido. O importante
agora é descobrir tudo o que se pode
fazer com certas técnicas e métodos conhecidos que variam constantemente sem
finalidade prévia, numa multi-modal experiência sucessiva.
Tudo isto
ocorre em obediência a uma atitude
experimental, que, inscrevendo-se no correspondente ambiente científico, vai
estender-se aos próprios domínios das ciências do espírito, fazendo com que se
esbata a diferença metodológica até aí observável entre estas e as ciências da
natureza. Encontramo-nos assim num mundo científico que já nada tem de clássico
e no qual nenhuns preconceitos subsistem relativamente às qualidades dos
objectos em questão. Verifica-se um cada vez maior afastamento do concreto e
assiste-se a um movimento geral de desconcretização dos objectos que é assim
descrito por Gehlen: "a penetração do espírito experimental em toda a
espécie de artes e ciências conduz necessariamente a uma deturpação dos
objectos, a despreocupadas decomposições e recomposições dos conteúdos, determinadas
exclusivamente pelo método escolhido. Inevitável também e necessária é a
radical racionalização dos objectos, ocasionada por este processo: perdem o
carácter sensível, tornam-se mais abstractos, menos concretos e por fim
'autónomos', de um modo dificilmente descritível a partir de fora. Os
resultados integralmente exactos não podem ser traduzidos por palavras ou são
apenas evidentes durante a operação metódica" (17).
Ý 1.6 O pensamento técnico invade a cultura
Essa
desconcretização e respectiva conceptualização, acrescidas de um certo
"primitivismo" do pensamento, representam um dos factores que mais influenciaram
o homem do nosso tempo na conformação dos seus valores, interesses e temas de
pensamento. O outro factor igualmente
decisivo foi a super-estrutura que passou a abranger toda a técnica, a
indústria e as ciências da natureza, em recíproco condicionamento. Sabe-se de
resto que em todas as épocas a consciência humana se deixou modelar pelas
formas de pensamento e de comportamento ditadas pela cultura do seu tempo,
tornando-se assim possível falar de uma "consciência epocal" que
reflecte a convicção de que as suas perspectivas culturais são as únicas
naturais e racionais ou, pelo menos, as mais compreensíveis. Segundo Gehlen,
estamos hoje em dia perante o mesmo fenómeno, podendo facilmente demonstrar-se,
por exemplo, que as formas de pensamento desenvolvidas pela técnica se
propagaram a domínios não técnicos a que não se ajustam. E é precisamente
porque isso já se tornou tão natural em nós que precisa de ser especialmente
notada e consciencializada a "íntima transformação que se operou na nossa
maneira de conceber realidades" (18).
Para Gehlen,
as próprias estruturas de consciência, a forma como trabalha a consciência, os
seus modos predilectos de acção, transformam-se nas grandes constantes
históricas pois uma cultura só secundariamente se descobre pelos conteúdos:
primeiramente, manifesta-se nas formas de apreensão da realidade e nas relações
em que é interpretada. Ora é muito
fácil descortinar hoje em dia uma série de princípios técnicos que se
implantaram completamente nas relações sociais de convívio. O princípio do
aproveitamento integral, da eliminação de pesos mortos e energias
desaproveitadas, por exemplo, tornou-se axiomático e é ele que dirige a
distribuição das forças de trabalho em qualquer empresa. Mas é apenas um entre
muitos exemplos possíveis.
Ý 1.7 O
ajustamento psicológico aos padrões técnicos
Se quisermos
agora mergulhar um pouco mais no grande teatro de operações que é o mundo concreto
do indivíduo no seu quotidiano, veremos que a complexidade crescente da
estrutura social a que a industrialização veio dar um colossal incremento, além
de afastar grande número de pessoas da produção original, tornando-as
habitantes das grandes urbes, forçou-as também a integrar-se em funções de tal
modo indirectas, complexas e super especializadas, que o ajustamento moral e
espiritual a essas situações se tornou para o indivíduo um problema de difícil
solução.
De notar que
a naturalidade com que o conceito de ajustamento se impôs nas investigações
sócio-psicológicas deixa já pressupor a noção de condicionamentos exteriores
refractários de qualquer influência aos
quais o organismo se não pode subtrair nem tão pouco modificar. E de facto, as
condições sociais, económicas e técnicas exercem hoje um predomínio que tornou
necessária a introdução do conceito de ajustamento quando se pretendem
descrever comportamentos humanos. As grandes super estruturas da nova
civilização tornam-se autónomas, alienam-se (segundo Hegel e Marx), obrigam o
comportamento exterior e interior dos homens a integrar-se numa forma de
ajustamento, processo este só
parcialmente voluntário e controlado,
em grande parte inconsciente. Isto dá-se sobretudo quando o ajustamento implica
uma alteração dos modos de representação, das formas de pensamento e até mesmo
das estruturas da consciência e não apenas a obrigatoriedade de aceitar e
dominar conteúdos sempre renovados. O "primitivismo" da nossa forma
de pensamento, que consiste na aceitação
de padrões técnicos, repercute-se, é certo, na consciência, mas realiza-se por
si inconscientemente e sem se dar por
isso.
O indivíduo
passou a experimentar uma falta de
correlação entre os seus conceitos relativos àquilo que faz e àquilo que lhe
acontece: por exemplo, realiza satisfatoriamente e, todavia, fica desempregado quando se desencadeia em
qualquer parte do globo uma crise que lhe é totalmente incompreensível. Não tem
então outra reacção possível que não seja a de se comportar como um primitivo
que também não compreende porque é que adoece e procura um culpado que é sempre
aquele que já não lhe era simpático por outros motivos. "Uma actividade
altamente especializada como a que a cultura industrial por toda a parte
requer, à excepção dos domínios da agricultura e de certo artesanato ainda
pré-industrial, está separada dos seus resultados e, portanto, do controlo do
sucesso ou insucesso. É fácil assim tornar-se vazia, estéril e até mesmo
imaginária quando perseguida em imperceptível contradição com os seus
fins" (19).
As funções
sociais são, em muitos casos, simplesmente realizadas e não vividas. A pessoa
desvirtua-se em portador ou detentor de qualificações, de exigências, de
características, realizações e direitos. O ajustamento às circunstâncias
espiritualmente inapreensíveis, moralmente incomensuráveis e todavia coercivas
pode dar-se de modo muito diverso. Pode por exemplo, assumir a forma de
oportunismo ou de abandono às circunstâncias variáveis, reacção esta tão fácil
e frequente que em contraposição a ela se exageram as exigências de convicção
ideológica com total desconhecimento dos factores realmente eficientes. Outra
forma de ajustamento que não raras vezes também se observa é a que se apaga,
que se refugia no que não dá nas vistas, no reflexo de fingir-se morto.
Finalmente uma terceira e muito importante modalidade consiste no
desenvolvimento da posição de consumidor, ou seja, numa nova passividade
"sui generis". Esta é uma atitude que actualmente se generaliza e tem
sido tão eficazmente acalentada por uma esbanjadora produção de artigos de
consumo e por uma média tão considerável de aquisição que já há quem fale de um
dever de consumo.
Cada vez se
tornam mais raras as pessoas que agem segundo princípios, impelidas por valores
pessoais e íntimos que lhes permitam manter uma orientação geral acima da
fortuita alteração das situações. E porque se tornam mais raras essas pessoas?
Porque as grandes oscilações económicas, políticas e sociais são
espiritualmente incompreensíveis, moralmente irrealizáveis e, além disso,
modificam-se a um ritmo demasiado veloz. "Num mundo em que isto é
possível, a crença em princípios firmes e orientadores corre o risco de ter de
prescindir daquele mínimo de confirmação exterior sem o qual não pode viver com
o correr dos tempos" (20). Este é, segundo Gehlen, o clima espiritual e moral da
contemporaneidade. Olhando o futuro, ele pensa, porém, que são de esperar
tentativas de extrair da coexistência social em massa os cânones morais, isto
é, o desenvolvimento de paradigmas a partir do simplesmente humano. Tais
paradigmas deverão ter acentuado carácter afectivo e ser conceptualmente pouco
definidos para que a imprevisível alteração das circunstâncias os não invalide
imediatamente e para que também, se necessário, estejam à altura de desempenhar
o papel de uma moral de convivência supra nacional e supra confessional, num
mundo que se tornou pequeno e apertado. É a estas exigências que um novo
humanismo parece querer fazer face, com as suas numerosas manifestações, desde
o armamento moral até aos estudos sobre "human relations", espalhadas
por todo o mundo.
Digamos que
a principal tónica deste novo humanismo é a "acceptance", a aceitação
do indivíduo tal como ele é, com as suas boas e más qualidades, o que seria
impossível sem a simultânea aceitação total da cultura de que provém, com todas
as suas características, podendo-se portanto reconhecer no conceito de
"acceptance" o germe de uma ética mundial que antecipadamente exclui
a pretensão à hegemonia intelectual e moral do espírito europeu.
Perante
todas estas dificuldades e problemas, no fundo, de ordem moral, é compreensível
o pendor para a passividade, que só o consumo pode satisfazer, a demanda de
estímulos físicos e espirituais, isto é, de "excitações" e
"vivências". A moral aplicada também deverá estar orientada para a
descontração e para o inofensivo, deverá excluir alternativas rigorosas na
ordem dos princípios e, possivelmente, coadunar-se radicalmente com a ética
mundial atrás referida.
Ý 1.8 Um novo primitivismo: a fuga para o
imaginário
Um outro
indício que tristemente caracteriza as contradições do mundo é a incontestável
dignidade moral do fantástico e do utópico, porque apela para as necessidades
ideais não satisfeitas mas imprescindíveis, ao passo que, pelo contrário, o
procedimento racional é constantemente desmentido pelas complicações que
origina. Gehlen, depois de insistir no facto de que o afastamento do quotidiano desenvolve em alto grau a capacidade de
viver num mundo imaginário, faz notar que tanto as culturas mágicas e rituais
dos primitivos como a cultura industrial, têm a característica comum de
arrancar o homem ao quotidiano. De facto, entre o primitivismo arcaico, que
recobre o mundo da experiência como uma teia onde florescem interpretações e
rituais fantásticos e o primitivismo actual, em que se é forçado à inserção num
sector de experiência extremamente restrito e monótono, pouca diferença
subsiste no tocante ao alheamento do mundo. No primeiro caso, são os mitos que
velam o horizonte, no segundo, são os jornais, diz Gehlen, raciocinando aqui
dentro das limitações do seu tempo, mas querendo por certo referir-se aos meios
de comunicação de massas.
"Se
alguém se sente apenas peça substituível e um tanto usada de uma grande
engrenagem, se além disso tem a justificada convicção de não ser imprescindível
para o girar dessa engrenagem, se nem sequer conhece as consequências da sua actividade
(....) o sentido da sua responsabilidade diminuirá na mesma proporção em que
aumenta o seu sentimento de perplexidade" (21). Perante
este quadro, é de supor que nunca tanto como actualmente tenha sido difícil
assimilar um sólido saber acerca dos grandes problemas. Porque o saber só pode
ser entendido como parte integrante de uma actividade cônscia da sua finalidade
e controlada. No pleno sentido da palavra, sabemos o que está no âmbito da
nossa actividade profissional e das circunstâncias de vida por que passamos e,
embora saibamos além disso muita coisa que aprendemos, o certo é que só de bom
grado aprendemos o que podemos justificadamente aceitar sob a responsabilidade
de outros a cujo âmbito profissional esse conhecimento compete.
De facto, um
conhecimento vasto dos dados do mundo social, político e económico da
actualidade e, em especial, das suas correlações, será possível apenas (nos
limites do que se pode de facto
atingir) àqueles que tiverem oportunidades de iniciativa, que actuem
responsavelmente nesses grandes complexos e que, portanto, estejam em condições
de interrogar os factos, até mesmo quando ainda obscuros. Quer isto dizer que
apenas está ao alcance de uma minoria. Os outros de modo algum podem alcançar os
superiores patamares do saber apesar de serem compelidos a reagir de algum modo
ao conjunto desses fenómenos. Restam-lhes então poucas possibilidades: ou
reagem associativamente e pelo impulso afectivo, isto é, de uma forma primária,
ou esse estado de coisas é personificado, não menos primariamente, e submete-se
com maior ou menor resignação ou revolta aos "que estão em cima". De
qualquer modo formam uma opinião que não deixará de ter os devidos reflexos,
quer na sua vida privada quer na esfera pública.
Ý 1.9 Formação de opiniões: a instituição de ordem
O processo
de formação da opinião, segundo Gehlen, é antes de mais, um caso especial da
"instituição da ordem". Com efeito, o homem, que tem a capacidade de
desenvolver inúmeros padrões fundamentais (categorias), variáveis e
conceptualmente muito rigorosos, precisa, no entanto, de inserir o máximo de
ordem, coesão e regularidade na desordenada torrente de acontecimentos que lhe
é dado observar.
Para Gehlen
(que recorre aqui aos estudos de Hofstatter), a superstição a que todos os
homens são atreitos representa apenas uma manifestação particular da tendência
generalizada para sobrestimar a ordem do fluxo dos acontecimentos. O
supersticioso simplifica o mundo com a ajuda de fórmulas de coincidência,
pseudo-regras de séries de acontecimentos, interpretando o curso dos fenómenos
de um modo mais ordenado e mais simplificado. Por exemplo, quando duas
ocorrências extraordinárias coincidem, é quase impossível não admitir uma
relação fatal de causa-efeito, que de futuro se poderia evitar. Gera-se então a
estereotipia da opinião pública, através da interpretação que se divulga e
populariza. A generalização de experiências isoladas desempenha aqui decerto um
papel importante, para além de ser igualmente provável que a "tendência
para a concisão", já demonstrada pela psicologia globalista da percepção,
domine toda a vida representativa. Gehlen refere-se à tendência da nossa aparelhagem
psíquica para corrigir e retocar toda a espécie de irregularidades, lacunas e
até faltas de rigor dos dados vitais, integrando-os em formas fechadas,
aperfeiçoadas e em alto grau apreensíveis no seu conjunto.
A juntar a
estes mecanismos para-conscientes, teremos ainda de considerar "os
sentimentos e afectos que exercem uma influência autónoma sobre as opiniões,
precisamente na mesma directriz simplificadora ou polarizadora" (22). Todos estes processos, contudo, integram uma
característica comum, que é a de actuarem no sentido da simplificação,
portanto, da sobrevalorização da ordem da realidade. Trata-se de uma
característica de importância vital para o homem, dado o seu alto potencial de
susceptibilidade aos estímulos, para além da constante necessidade que tem de
decidir para agir. Mas de entre os factores que exercem influência na formação
das nossas opiniões e convicções há um, de máxima importância, que ainda não
foi citado: a mediatização da própria experiência.
A verdade é
que entre o indivíduo, cujo autêntico círculo de experiências é sempre muito
reduzido, e os acontecimentos fatais e incompreensíveis na sua totalidade que
resultam das superestruturas sociais, económicas e políticas, interpõe-se cada
vez mais uma segunda instância: a "experiência em segunda mão".
Aquilo que outrora se aprendia 'de ouvido' é hoje transmitido em primeiro lugar
pela indústria informativa, pela imprensa, pela rádio, etc., a par da qual
continua, é claro, a correr a eterna fonte das próprias relações inter-humanas,
as narrativas, relatos, comunicações e agitações que correm mundo e na sua
maioria revertem às informações pelos "meios colectivos", que se
mantêm dia e noite em laboração. Muitos factos comunicados são já por sua vez informações
dirigidas, porque a detecção, formulação e divulgação dos factos é, em grande
parte, obra de grandes indústrias, a que não são estranhos quer o lucro
empresarial, quer o forçoso laconismo técnico e até a nunca totalmente evitável
subjectividade dos funcionários.
O
precipitado individual de todos estes processos é o que se chama a
"opinião" e compreendemos agora como é inevitável, visto que esses
conteúdos esquemáticos entram em acção quando é insuficiente o saber em
primeira mão, proveniente de uma experiência elaborada e responsável, e,
todavia, a importância das questões e a pressão da necessidade de reacção exige
uma tomada de posição. Aí, na actual impossibilidade de abarcar o mundo dos
factos, temos necessidade de recorrer a fontes secundárias que nos surgem pela
imagem e pela imprensa, com todas as credenciais de confiança. Necessitamos
delas para alcançarmos um certo "quid" de certeza no "mare
magnum" de incertezas.
Inversamente,
a opinião pública sobrestima por princípio a plausibilidade com que a uma
opinião ou convicção definida se segue a correspondente acção, quando por muito
grande que seja a força de convicção de certas opiniões expressas, estas não
são ainda de modo algum acções virtuais. E apesar disto ser certo, foi o
contrário que se tornou estereotipia.
Ý 1.
10 O homem com medo de si
próprio
A era do
iluminismo terminou. Mas, segundo Gehlen, as suas consequências perduram ainda integradas
nas evidências que desde então se radicaram entre nós. Já não se acredita hoje
que a razão, igual em todos os homens, possa chegar pelos seus meios próprios a
conhecimentos invulgares ou que a natureza seja radicalmente racionalizável.
Foi, porém, essa crença na omnipotência da razão que, na época industrial, deu
forma à disponibilidade ilimitada e optimista em relação a planificações,
objectivos e "reorganizações". E todavia, sabe-se como essa própria
crença é, em si mesma, irracional e insusceptível de fundamentação. Sucede que,
assim como a crença iluminista na razão se transformou numa geral receptividade
para reorganizações e planos, também na justificação da felicidade terrena -
outra descoberta do iluminismo - está a origem da segunda exigência da
sociedade industrial: a necessidade de consumo.
O direito a
uma vida confortável é o outro pressuposto fundamental tão incontestado como a
reorganização da sociedade que deverá ser, afinal, um meio para atingir esse
fim. A vocação da indústria não é, contudo, a de produzir segundo uma
tradicional tabela fixa de necessidades, mas, inversamente, a de fabricar as
próprias necessidades, traduzidas em produtos que ela desenvolve por si,
independentemente da procura que só poderá seguir-se à necessidade recentemente
criada. O processo é irreversível. Têm de se aumentar as quantidades de
produtos para fazer face ao aumento populacional e ao aumento de exigências.
Gehlen clama contra este estado de coisas sugerindo até que se deveria prever o processo e calcular
os custos espirituais e morais, isso enquanto é possível pois o sistema não se
baseia apenas no direito a uma vida
confortável, tende também a tornar impossível a posição contrária, ou seja, o
direito a renunciar à vida confortável e fá-lo, na medida em que produz e
automatiza as necessidades de consumo.
Não restam
dúvidas de que a transição para o industrialismo roubou força a muitas das
premissas de ordem e moralidade humanas (radicadas durante milénios). Além
disso, do ponto de vista psíquico-moral, é também muito significativa a não
existência de uma atitude ética face à natureza anorgânica. Perante a sua
descoberta e utilização, não há prévios limites éticos no alvo a atingir, mas
apenas limites técnicos e, mesmo esses,
simplesmente provisórios. Os homens não têm medo das poderosas energias
destruidoras dos núcleos atómicos, mas de si próprios. Não é a bomba H que
receiam, mas a si mesmos, na intuição certa de que as inibições que os impedem
de utilizar aquilo de que dispõem possam subitamente desaparecer por meras
razões de ordem fáctica, racional ou técnica.
PARTE
II
POR
UMA ÉTICA ANTROPOCÓSMICA
Ý 2.1 A ética e a sua base antropológica
A ética
pressupõe a co-presença de dois elementos essenciais: a acção e o outro. É no
agir consciente e respeitador da dignidade desse outro que toda a eticidade se
manifesta. Por isso a ética visa formular normas para a acção humana. Só que
tal formulação pressupõe e exige uma prévia definição da natureza do agente
humano. Essa é a base antropológica da ética: o tu deves ético antecede sempre
um tu és antropológico. E é precisamente aqui onde, afinal, tudo começa, que o
mero esboço de um qualquer questionamento ético sempre encontra a primeira grande
dificuldade. E porquê? Porque, como
mais adiante se verá, a actual era tecnológica assistiu a uma mudança
qualitativa da natureza da acção humana e corroeu as premissas antropológicas
em que repousavam todas as éticas tradicionais. Foi assim posta em causa a
validade das antigas prescrições sobre a nossa conduta individual e colectiva,
as quais se mostram agora desajustadas e inconsequentes. Primeira e mais
directa consequência prática: gorou-se a possibilidade de se emitirem juízos de
valor estáveis e consistentes sobre os efeitos das nossas acções. Importa,
pois, ver como foi possível chegar-se a este estado de coisas.
Sabe-se que
todas as éticas até hoje conhecidas tinham em comum as seguintes premissas
interdependentes:
- A
condição ou natureza humana era um dado intemporal
- Nessa
base, o bem humano era imediatamente determinado
- O
âmbito de acção e logo de responsabilidade humanas encontrava-se cuidadosamente delimitado
Mas, como
sustenta Hans Jonas, estas premissas perderam já toda a validade, sendo
inquestionável a repercussão desse facto na nossa condição moral. Com efeito,
certos desenvolvimentos dos nossos poderes fizeram com que mudasse a natureza
da acção humana e, uma vez que a ética diz respeito à acção, forçoso é concluir
que a mudança de natureza de acção humana exige uma igual mudança de acção na
ética. Jonas adverte que não se trata aqui de uma mera modificação no sentido
de novos objectos de acção se terem acrescentado a material empírico - ao qual
há que aplicar regras de conduta tidas como válidas - mas de uma alteração no
sentido mais profundo, que tenha em conta o facto da natureza qualitativamente
nova de algumas das nossas acções ter vindo abrir uma outra dimensão do
significado ético para a qual não existe precedente nos modelos e cânones da
ética tradicional.
Mas que
novos poderes são esses, afinal? Para Jonas, esses novos poderes são os da
técnica moderna. Poderes da técnica moderna porque, como já vimos em Gehlen, ao
longo dos tempos, o homem nunca se achou de todo desprovido de técnica. O que
agora está em causa não é, pois, a eventual inexistência da técnica em fases
históricas anteriores, mas sim, a diferença humana da técnica moderna face à
que a precedeu.
Ý 2.2 Da ética antropocêntrica à ética antropocósmica
Saber como
estes novos poderes da técnica moderna afectam o nosso agir, ou, dito de outro
modo, descobrir o que é que faz com que agir sob o seu domínio se torne
diferente do que tem sido através dos tempos, implica mergulhar na história,
particularmente no "ambiente" da polis, onde, relembremos, os
principais alicerces do respectivo edifício ético eram os seguintes:
- Tudo
o que tivesse a ver com o mundo não humano era eticamente neutro
- O
significado ético pertencia ao trato directo do homem com o homem, incluindo o
trato consigo próprio
- A
entidade Homem era considerada constante em essência e, em si mesma, não um
objecto passível de ser remodelado pela techne.
Como podemos
ver, toda e qualquer acção sobre coisas não humanas não constituía propriamente
esfera de autêntico significado ético e o facto deste último não ultrapassar
nunca a esfera da relação dos homens entre si ilustra bem como se tratava de
uma ética antropocêntrica. Mas para além disso era também uma ética da
contemporaneidade já que o alcance das
prescrições éticas se reduzia ao âmbito da relação com o próximo no momento
presente, que o mesmo é dizer: - o bem e o mal com que a acção tinha de se
preocupar permaneciam próximo do acto tanto na própria praxis como no seu
imediato raio de alcance. Em todas as injunções e máximas da ética tradicional,
o agente e o outro da sua acção partilham de um presente comum. São aqueles que
hoje se encontram vivos e com os quais se mantém alguma espécie de trato e que
têm uma palavra a dizer sobre a nossa conduta na medida em que ela os afecta
por actos ou omissões. O universo ético é composto por contemporâneos e o seu
horizonte futuro confina-se à duração previsível das suas vidas. Identicamente
limitado é o seu horizonte espacial no
interior do qual o agente e o outro se encontram como o próximo, o amigo e o
inimigo, o superior e o subordinado, o mais forte e o mais fraco e todos os
outros papéis nos quais os seres humanos interagem uns com os outros. Era com
este próximo raio de acção que toda a moralidade antiga se articulava e nele se
pode situar também um dos traços mais característicos da ética tradicional.
Pelo
contrário, a moderna intervenção tecnológica do homem, ao alterar tão
radicalmente a biosfera, retirou-lhe a sua anterior qualidade de pano de fundo
seguro e perene condição de possibilidade da própria acção humana. Foi, aliás,
a consciência desse facto que permitiu em todos nós a emergência de uma ideia
ecológica. Já Heidegger defendia a ideia de que a essência da técnica moderna
reside no facto de esta constituir uma "provocação" que coloca a
natureza em estado de fundo disponível para uso humano. Ao mesmo tempo, porém,
aludia a um dispositivo envolvente da acção - desfazendo desse modo a antiga
oposição entre sujeito humano activo e objecto não humano passivo e
inteiramente submissos à acção instrumental - de tal modo que ambos acabam por
se indiferenciar, imersos que se encontram numa igual disponibilidade. E sendo assim, nem a "natureza"
nem a "natureza humana" podem já ser aceites como dados últimos e
imutáveis para, com base neles, erguer uma avaliação ética dos efeitos da acção
técnica. É esta constatação que seguramente leva Jonas a preconizar agora uma
relação de responsabilidade com a natureza porque ela se encontra em nosso
poder. Surgirá assim uma nova prescrição ética que deve erigir-se "por mor
da natureza" e já não apenas "por mor do bem humano".
Por outro
lado, a imprevisibilidade das mudanças provocadas no pano de fundo natural pela
acção da técnica moderna introduz uma dimensão temporal na ética. A título de
exemplo, Jonas refere o caso da manipulação tecnológica da natureza no interior
do indivíduo, ou seja, a manipulação do pano de fundo biológico da nossa
espécie. Com efeito, não só os progressos das ciências biomédicas vieram romper
os limites tradicionais da finitude humana (o alargamento dos momentos do
nascimento e da morte) - que constituíam referentes seguros e imutáveis das
antigas éticas - como a engenharia genética se encontra agora em condições de
poder manipular de maneira duradoura o património genético do indivíduo e,
porventura, o da própria espécie.
Face a estes
desmedidos poderes que se encontram agora nas mãos do homem, ganha cada vez mais
consistência e credibilidade a ideia de
substituir as antigas éticas da contemporaneidade e da imediatez por uma
nova ética da prospectiva e da responsabilidade. E é justamente nesse terreno
de busca de uma nova ética para a era da técnica que vamos encontrar Jonas,
nomeadamente na sua obra "O princípio de responsabilidade" em que,
depois de denunciar a inadequação dos antigos imperativos éticos, de que o
imperativo kantiano é só o último exemplo ("age de tal maneira que possas
desejar que o princípio da tua acção se venha a transformar numa lei
universal") formula um novo imperativo que se poderia enunciar como
"age de tal maneira que os efeitos da tua acção sejam compatíveis com a
permanência da vida humana genuína".
Percebe-se a
razão de ser desta reiterada preocupação de Jonas em advogar a preservação da
natureza e o futuro da própria humanidade. É que o poder tecnológico impele-nos
actualmente para objectivos que ainda há pouco eram somente prerrogativas das
utopias, sendo por isso de temer que, face à sua absoluta novidade, possam
trazer consequências que o homem não esteja ainda habilitado a prever e
controlar.
Ý 2.3 O conflito potencial entre a política e a
tecnociência
E há, de
facto, motivos para preocupação, quanto
mais não seja, devido à própria lógica interna da técnica e do processo
científico a que surge associada. Recordemos, por exemplo, que a prossecução de
fins técnicos, por essência determinista, se distingue da livre discussão de
projectos humanos que caracteriza as sociedades democráticas. A este respeito,
Jonas compara a manipulação simbólica do indivíduo do tipo da
instrumentalização ideológica à manipulação tecnológica (própria da técnica moderna e que coarta a
liberdade do eu individual) mostrando a maior perigosidade desta última. E a
sua preocupação chega a tal ponto que não receia opor à tirania utópica da
tecnociência um não menos ditatorial conselho de sábios para vigiar os
cientistas que se arrogam de conhecimento suficiente para decidir acerca dos
destinos dos homens. Tais sábios, funcionariam assim como uma espécie de
guardiães de uma ética de investigação científica que agiria na própria fonte
de todos os perigos. E embora Jonas se
dê conta de que daí resultaria uma intervenção na liberdade de investigação,
acaba por considerá-la como um mal menor quando comparado com as prováveis
consequências funestas de um desenvolvimento científico sem freio.
Somos assim
reconduzidos ao potencial conflito entre a técnica e a política, ou, dito de outro
modo, a um conflito de legitimidades entre duas diferentes esferas de
conhecimento e da actividade humanos: a política e a tecnociência. É certo que
a tecnociência não é nem pode ser democrática, pois a formulação de leis
universais e necessárias de uma realidade físico-química ou biológica não tem
lugar pela mesma via de consenso maioritário através da qual, em democracia, se
conduz o processo de decisão. Há que reconhecer, porém, que existe um antes e
um depois da pesquisa que escapam à própria lógica tecno-científica. Logo, os
projectos de investigação e os programas de aplicação não podem ser subsumidos
à racionalidade científica, porque, como diz Jonas, a ciência é essencialmente
defectível quando se trata de explicar-se a si própria.
Assinalemos,
no entanto, que quando Jonas formula o seu "imperativo de
responsabilidade" não está tanto a pensar no perigo da pura e simples
destruição da humanidade mas mais
exactamente na sua morte essencial, isto é, naquela que advém da desconstrução
e reconstrução tecnológica do homem, que fatalmente põe em perigo a sua
sensibilidade ética. É que a faculdade ética só existe no homem tal como este
se constituiu natural e culturalmente, daí a necessidade de preservar o
complexo homem-natureza-cultura.
Para todos
os efeitos, o homem não é essencialmente estranho ao cosmos que o rodeia mas um
produto dele enquanto espécie natural. A solidariedade antropocósmica
obriga-nos a pensar a diferença antropológica - linguagem, consciência, pensamento - como algo que é imanente à
evolução e não como chegada de fora - de origem sobrenatural, divina,
espiritual, transcendente. Não podemos pois continuar a pensar a evolução nos
quadros do dualismo de matriz cartesiano, no qual se separa a res extensa,
redutível às leis da mecânica, absolutamente objectiva e inerte, da substância
espiritual e pensamento sem nada em comum com a anterior. E Jonas vem
justamente chamar a atenção para o facto da natureza não se reduzir à simples
naturalidade do puro ser-para que usualmente lhe é atribuído pela tecnociência.
Vai até mais longe quando admite - num aparente excesso - que se pode talvez
falar de uma aspiração da matéria que chegou a tomar consciência de si mesma e
que sente, o que configuraria uma nova metafísica da natureza: - a de que erradicaria
justamente todo o programa não antropocêntrico de Jonas que alarga a noção de
bem humano à preservação da natureza (dentro e fora do indivíduo), na sua
qualidade de portadora de um bem intrínseco, podendo e devendo por isso ser
tratada como um fim em si.
Ý 2.4 A heurística do medo e o policiamento do
poder técnico
Perante esta
revalorização da natureza, agora encarada como parte integrante do bem humano mais
geral e tendo ao mesmo tempo em conta a denunciada perigosidade que a autonomia
da lógica técnico-científica poderia acarretar se fosse eleita como supremo
critério de decisão nos projectos humanos, como poderemos finalmente
salvaguardar esse tão precioso bem e combater os aludidos perigos da
técnica?
Se em
Heidegger havia uma descrença radical na possibilidade de o utopismo humanista
proporcionar antídoto eficaz para os perigos da técnica, em Jonas vamos
encontrar uma "heurística do medo" que visa dizer-nos o que é que
está provavelmente em causa na era tecnológica e aquilo contra que devemos
acautelar-nos. Para ele, a grande
questão que se põe agora é a de saber se, sem se recorrer à ressuscitação da
categoria do sagrado (tão meticulosamente destruído pelo desenvolvimento
científico), nos é possível passar a dispor de uma ética que se mostre à altura de ombrear com os poderes extremos que hoje em dia
possuímos. E é justamente por entender que as consequências do uso desses
poderes são suficientemente iminentes para ainda nos chegarem a atingir que,
diz, o medo poderia aqui fazer as vezes do sagrado, que como se sabe, tantas
vezes funciona como o melhor substituto da virtude ou sabedoria genuínas.
Reconheçamos,
contudo, que esta utilização do medo como propulsor da atitude ética surge aqui
com contornos pouco claros, pelo que só é possivel aproximarmo-nos do seu
originário sentido se tivermos bem presente quais são as ideias fundamentais de
Jonas, relativamente aos problemas éticos que derivam do desmesurado
crescimento da técnica.
Em primeiro
lugar, Jonas admite que as antigas prescrições da ética ainda são válidas na
sua íntima contiguidade com a esfera mais próxima e quotidiana da interacção
humana. Simplesmente o que se passa é que "essa esfera é cada vez mais
ensombrada por um crescente domínio de acção colectiva em que agente, acção e
efeito já não são o que eram na esfera próxima e que, pela desmesura dos seus
poderes, impõe à ética uma nova dimensão de responsabilidade nunca antes
imaginada" (23). E refere como exemplo a extrema
vulnerabilidade actual da natureza à intervenção tecnológica do homem, uma
situação que era impensável antes de se ter começado a revelar os imensos danos
já causados que acabaram por estar na base da nova ciência da ecologia.
Um objecto
de uma ordem inteiramente diferente - a biosfera do planeta - foi acrescentado
àquilo pelo qual somos responsáveis em função do poder que temos sobre ele. E é curioso como Jonas
vê aqui ainda uma réstea de ligação com uma das características das éticas
tradicionais, quando afirma: "na medida em que é o destino do homem,
enquanto afectado pela condição em que estiver a natureza, que nos obriga a
preocupar com a preservação da
natureza, tal preocupação ainda conserva a focagem antropocêntrica de toda a
ética clássica" (24). Logo, porém, deixa bem claro que,
apesar disso, a diferença é muito grande, pois agora desapareceu a contenção
própria da proximidade e contemporaneidade, devido à dispersão temporal e
espacial das sequências causa-efeito que a prática tecnológica pôs em marcha. A
irreversibilidade dessas sequências a par da magnitude do seu conjunto,
introduz mais um novo factor de equação moral. Pode ainda acrescentar-se o seu
carácter cumulativo, que consiste no facto dos seus efeitos se irem acumulando
uns aos outros, tornando a situação para se ser e agir, diferente daquilo que
era para o agente inicial.
O
conhecimento ganha então um relevo muito especial e torna-se agora até num dever
primeiro, impondo-se que seja
proporcional à escala causal da nossa acção. E o facto de ele não poder
realmente ser tão proporcional como isso - já o conhecimento prospectivo fica
sempre atrás do conhecimento técnico que alimenta o nosso poder de agir - assume ele próprio importância ética, pois
"o reconhecimento da ignorância torna-se assim no anverso do dever de
conhecer e por esse meio, parte integrante da ética que tem de governar o cada
vez mais necessário autopoliciamento do nosso desproporcionado poder" (25). A verdade é que nenhuma ética anterior tinha de levar em
consideração a condição global da vida humana e o futuro distante ou até mesmo
a existência da espécie, pela simples razão de que, em si mesmas, à altura, não
se poderiam afirmar, sequer, como verdadeiras questões.
Em segundo
lugar, a techne, sob a forma da moderna tecnologia, não se contenta mais com a
procura pragmaticamente limitada de
outrora e torna-se num ímpeto infinito da espécie. "O homem é agora mais do que nunca o criador daquilo
que criou e o fazedor daquilo que pode fazer, e acima de tudo, o preparador
daquilo que será capaz de fazer em seguida" (26). Mas não está em questão aqui o és tu nem o
sou eu. O que conta é o conjunto e não o agente individual. É o futuro
indefinido que se constitui como o horizonte relevante da responsabilidade e já
não apenas o respectivo contexto contemporâneo. No dizer de Jonas, a cidade dos
homens, outrora um enclave no mundo não humano, estende-se à totalidade da
natureza terrestre e usurpa-lhe o lugar. E esta é uma ideia fundamental para a
constituição de uma nova ética, à qual se devem ligar duas constatações:
a) O
facto de há muito se ter desvanecido a diferença entre o artificial e o
natural, com o natural a ser engolido pela esfera do artificial, enquanto as
obras do homem com ele e por ele próprio feitas, dão origem a uma
"natureza" de sua própria autoria.
b) A
possibilidade real que o homem passou a ter de, com os seus actos, deteriorar o
"todo".
São questões
outrora nunca levantadas mas que parecem agora dever ser incluídas no sistema
normativo da "cidade global"
para que possa haver um mundo também para as gerações humanas que hão-de
vir. Evidentemente que podemos interrogar-nos sobre a necessidade deste
pressuposto: por que "tem de
haver" por todo o futuro fora um mundo que seja adequado à habitação
humana? Jonas não ignora a questão mas dá-lhe uma resposta meramente
expedita ou instrumental, argumentando que essa necessidade "é algo que de
pronto se afirmará como um axioma geral ou uma convincente excelência do
pensamento especulativo, tão convincente e indemonstrável como a proposição
segundo a qual é de todo melhor haver um mundo do que não haver nenhum" (27). Logo, para ele, parece nem fazer qualquer sentido essa
interrogação, pelo que se limita a fazer um juízo comparativo quando chama a
atenção para o facto da referida proposição moral, enquanto obrigação prática
perante a posteridade de um futuro distante e princípio de decisão para a acção
presente, ser muito diferente dos imperativos das anteriores éticas da
contemporaneidade, além de ter feito a sua entrada na cena moral apenas com os
nossos novos poderes e o novo raio de alcance da nossa presciência.
Ý 2.5 Um novo imperativo ético
Para
responder ao novo tipo de acção humana e tendo em conta as novas formas de
intervenção que a comanda, Jonas propõe então o novo imperativo "age de
tal maneira que os efeitos da tua acção não sejam destruidores da futura
possibilidade de vida humana" (28), cujo sentido e
justificação última se propõe clarificar, comparando-o com o imperativo
categórico de Kant.
A primeira
coisa para a qual nos chama a atenção é para o facto da violação deste novo
tipo de imperativo não implicar qualquer contradição racional. Com efeito,
qualquer um de nós pode desejar o bem presente com sacrifício do bem futuro.
Não há contradição lógica na ideia de que a felicidade das gerações presentes
deve ser feita à custa da infelicidade ou até da inexistência das gerações
futuras, ou vice-versa. O sacrifício do futuro pelo presente não é logicamente
mais passível de ataque do que o sacrifício do presente pelo futuro. A
diferença está apenas em que num caso a série continua e no outro não. Mas
quanto ao saber se deveria continuar ou não, tal não pode inferir-se da regra
de auto-coerência interna no interior da série. Essa resposta terá sempre de
ser procurada no seu exterior para
englobar a série no respectivo todo de que faz parte e, em última análise, a
sua fundamentação só pode ser de natureza metafísica.
Uma outra
característica deste novo imperativo é a de que ele se dirige muito mais à
iniciativa pública do que à conduta privada, pois esta não se situa na já
referida dimensão causal mais vasta a que este imperativo se aplica. Ora, como
se sabe, algo de bem diferente se passa com o imperativo de Kant, que além de
visar o indivíduo e ter o seu critério situado na esfera da aplicação imediata,
prescreve a cada um de nós que consideremos o que aconteceria se a nossa acção
presente fosse transformada em princípio a seguir por todos. Com efeito a regra
age de tal maneira que possas desejar que a máxima da tua acção se torne no
princípio de uma lei universal remete-nos para a necessidade de submeter a
nossa conduta ao critério da razão e da sua coerência consigo própria. O
"possas desejar" aqui invocado situa-se ao nível da mera
possibilidade racional, lógica, não emerge propriamente de uma qualquer
reflexão de ordem moral. Exprime se há
ou não compatibilidade lógica, mas passa completamente ao lado da eventual
aprovação ou repulsa moral. A coerência ou incoerência da universalização
hipotética funciona como teste da escolha privada. Mas não faz parte do
respectivo raciocínio a possibilidade dessa escolha privada de facto vir a
transformar-se em lei universal. A questão, para Jonas, coloca-se nestes
termos: "a universalização é uma experimentação do pensamento realizada
pelo agente privado para pôr à prova a moralidade imanente à sua acção. Com
efeito, as verdadeiras consequências de modo nenhum são levadas em conta e o
princípio não é da ordem da responsabilidade objectiva, mas da qualidade
subjectiva da minha autodeterminação" (29).
Já o novo
imperativo invoca uma diferente coerência. Não a coerência do acto consigo
mesmo, mas a dos seus prováveis efeitos com a permanência da intervenção humana
num futuro que se quer garantir. Não se trata já de proceder a uma
universalização hipotética, como em Kant, mas em vez disso, fazer com que as
acções de todo o colectivo encontrem a sua referência universal no respectivo
campo de eficácia, ou seja, "totalizá-las" no curso do seu próprio e
irreprimível movimento, o que vem acrescentar um horizonte temporal ao cálculo da moral. E era esta dimensão temporal que se
encontrava completamente ausente da já citada operação lógica instantânea do
imperativo kantiano. Pode então
afirmar-se que enquanto este último se funda no pressuposto de uma ordem sempre
eterna de compatibilidade abstracta, o novo imperativo projecta-se "num
previsível futuro real como dimensão inconclusa e aberta da nossa
responsabilidade" (30).
Finalmente,
diga-se, que - como Jonas assinala - poder-se-ia fazer comparações semelhantes
com todas as outras formas históricas da ética da contemporaneidade e
imediatez, pois a nova ordem da acção humana carece de uma ética prospectiva e
de responsabilidade, ou seja, de uma ética tão nova como o são as questões com
que tem de lidar.
Ý 2.6 O homem como objecto da própria tecnologia
Estas novas
questões são as que vão sendo suscitadas pelas obras do homo faber da era
tecnológica. Já aludimos aos perigos inerentes de algumas dessas obras mas
fizemo-lo sempre e apenas no âmbito das incursões pela natureza, ou seja, no
domínio não humano. Chegou o momento de analisarmos agora as intervenções
técnicas potencialmente mais ameaçadoras. Aquelas em que é o próprio homem que
se acrescenta, por assim dizer, aos objectos da tecnologia. São precisamente
essas que levam Jonas a chamar a atenção para as reais possibilidades de, a
médio ou longo prazo, a humanidade poder vir a encontrar-se num beco sem saída
ou até mesmo no fundo do precipício, seja pela artificial alteração da natureza
humana, seja pela sua directa ou indirecta auto-destruição. Por agora, apenas
meras hipóteses que se impõem ao nosso pensamento. Mas talvez que a
circunstância de tais ideias terem ascendido à dignidade de hipóteses já nos
deva merecer a devida preocupação. Parece por isso que, embora sem qualquer
despropositado alarmismo, está na hora de reflectir sobre estes assuntos... e
enquanto é tempo. Jonas dá-nos alguns exemplos muito concretos de áreas onde o
homem, a braços com o aparente culminar do seu poder - que o faz aspirar a
recriar o criador de tudo o resto - pode muito bem deitar tudo a perder se não
souber refrear a actual caminhada para
a imposição do artificial sobre a natureza. Como veremos, em qualquer
dos casos, fica a ideia de que, mais do que nunca, é imperioso fazer apelo aos
recursos extremos do pensamento ético pois, pela primeira vez, este vê-se confrontado com alternativas aos que sempre
foram considerados os termos definitivos da condição humana.
O primeiro
desses exemplos é o caso da mortalidade do homem e parece que ninguém tem
dúvidas sobre a novidade desta problemática. Realmente, quem alguma vez teve de
decidir acerca da medida mais desejável ou mais apropriada para a morte, no que
respeita ao seu, até há pouco impensável, retardamento? No capítulo da duração
da vida, nada havia a escolher quanto ao seu limite superior. A lei inexorável
da morte era apenas tema de lamentação, de resignação. É verdade que sempre circularam
algumas fantasias sobre eventuais excepções, mas quando não eram produto de
mitos, lendas ou imaginações mais ou menos delirantes, também não ultrapassavam
nunca o domínio da especulação, ou seja, não se repercutiam no plano da acção
humana concreta.
No mundo de
hoje, porém, os extraordinários progressos da biologia molecular, prometem (ou
ameaçam?) fazer dissipar essa inevitabilidade da morte, prolongando e talvez
até alargando indefinidamente a expectativa de vida, pela neutralização dos
processos biológicos de envelhecimento. A morte surgiria assim já não como uma
fatalidade própria da nossa natureza, mas como uma disfunção orgânica evitável
ou, pelo menos, controlável, a ponto de permitir o seu adiamento.
Mais do que
problematizar o futuro que daqui decorreria, Jonas agarra-se com toda a
determinação aos actuais padrões do nosso ser e viver, que utiliza como
referência para se interrogar sobre as vantagens do prometido cenário
sócio-biológico: "até que ponto é isto desejável? Até que ponto é desejável
para o indivíduo e até que ponto para a espécie?" (31).
A sua resposta (que, todavia, não assume como tal) parece ir no sentido
negativo e tem por base a (re)valorização de questões tais como o próprio
sentido da nossa finitude, a atitude perante a morte e a importância biológica
geral do equilíbrio entre morte e procriação. São estas questões que Jonas
aflora para melhor antever se a eventual concretização das duas hipóteses já
formuladas seria ou não vantajosa para a humanidade.
A primeira
dessas hipóteses tem a ver com o prolongamento da vida. A morte manter-se-ia
inexorável, mas o artificial prolongamento da idade atingiria uma amplitude
nunca sonhada até aqui. Neste caso, começa por se interrogar quanto aos
critérios que deveriam ser seguidos para saber quem poderia candidatar-se a tal
benesse: pessoas de especial qualidade e mérito? De grande destaque social?
Aqueles que a podem pagar? Toda a gente? E conclui que só esta última opção
seria justa. É, sem dúvida, um problema digno de ser levantado, pelos contornos
eminentemente éticos de que se reveste. Mas logo surge um outro problema,
susceptível de levantar ainda maior polémica. É que, "à escala da
população inteira, o preço da idade
prolongada não pode deixar de ser um proporcional abrandamento da substituição
das gerações, ou seja, um reduzido afluxo de nova vida. O resultado seria uma
proporção decrescente de juventude numa população crescentemente idosa" (32). Duas perguntas ocorrem a Jonas: que ganharia o homem ou a
espécie com isto? Seria justo apropriarmo-nos antecipadamente do espaço
reservado à juventude? Perguntas apenas deixadas no ar mas que, graças ao modo
como são formuladas, parecem exibir bem a preocupação e o cepticismo do seu autor.
A segunda
hipótese é a do caso mais extremo, que Jonas
não acredita que algum dia se materialize, mas que coloca aqui só como
base do seu raciocínio: a futura abolição da morte. Se tal acontecesse, diz
Jonas, teríamos de abolir também a procriação, pois esta última é a resposta da
vida à primeira, o que nos conduziria a um mundo de terceira idade, sem
juventude e de indivíduos já conhecidos, ou seja, sem qualquer expectativa de
surpresas, situação que como se sabe, nunca existiu. Pode acontecer, contudo,
que nessa garantia de promessa eternamente renovada da frescura, da
disponibilidade e do espírito de aventura próprios da juventude resida afinal o
grande segredo do modo como está determinada a nossa mortalidade. Talvez que
este principiar sempre renovado - pelo qual pagamos o preço de um fim também
incessantemente repetido - seja a melhor defesa contra o perigo de mergulhar
no desencanto e na rotina de uma realidade mecanicamente orientada e dirigida,
que mataria à nascença toda a espontaneidade na nossa vida.
Por outro
lado, há ainda que considerar até que ponto é para nós importante a certeza de
que um dia o momento da morte irá fatalmente chegar, bem como as consequências
previsíveis do seu eventual esbatimento, nomeadamente a hipótese de daí resultar
para a vida uma irremediável perda de sentido. Como sugere Jonas, é possível
que a nossa expectativa de vida precise de um limite inegociável que nos
incentive a fazer com que os nossos dias valham a pena. E sendo assim, aquilo
que à primeira vista e pela sua intenção é uma preciosa dádiva da ciência ao
homem, por lhe permitir finalmente escapar à mortalidade, poderá vir a
constituir-se em seu detrimento.
Mas para
além do receio suscitado por estes poderes quase utópicos, é igualmente
admissível uma preocupação análoga por outros tantos que podem vir a resultar
dos incríveis progressos das ciências biomédicas. Um dos que, segundo Jonas,
está mais perto de se poder concretizar é a manipulação do comportamento - mais
um campo de intervenção da técnica que excede os quadros categoriais das
antigas éticas. Por exemplo, o controlo da mente por meios químicos ou pela
acção directa sobre o cérebro por implante de eléctrodos carecem de uma
regulação normativa (ainda que levados a cabo com fins defensáveis e até dignos
de louvor) pois é cada vez mais difícil traçar a fronteira entre as sempre
presentes potencialidades benéficas e perigosas. Do alívio de um paciente
facilmente se pode passar ao alívio da sociedade do transtorno que lhe traz um
comportamento individual difícil entre os seus membros. Assim se estaria a
passar do campo de aplicação médica a um campo de aplicação social, o que desde
logo abre um leque de graves possibilidades. É que, numa sociedade de massas,
em que os problemas ligados à regulação social (e à ausência dela) se mostram tão melindrosos, o alargamento
daqueles métodos de manipulação a utilizações não médicas, não pode deixar de
se considerar como muito tentador em termos de controlo social.
Ý 2.7 A ética da responsabilidade
Levantam-se
assim questões de dignidade e direitos humanos que exigem ponderada reflexão.
Uma delas tem a ver com a grande dificuldade em lidar com a oposição entre a manipulação
tecnológica do indivíduo (que condiciona) e a manipulação simbólica (que
capacita). Que fazer? Induzir atitudes de aprendizagem nas crianças mediante
administração maciça de drogas ou apelar à motivação autónoma? Dominar a
agressividade através da neutralização electrónica de zonas cerebrais?
Deveremos nós gerar sensações de felicidade ou prazer através da estimulação
selectiva dos centros nervosos, independentemente dos objectos de prazer e
satisfação e da própria realização pessoal do indivíduo? O funcionalismo social
e respectivos mecanismos de controlo, são sem dúvida muito importantes, mas não
deixam de constituir apenas um aspecto da questão, pois saber de que tipo de
indivíduos se compõe a sociedade, é ainda mais decisivo para se poder validar a
sua existência como um todo. A resposta só poderá ser dada, portanto, em função
da imagem que tivermos do homem e esta, urge repensá-la à luz de tudo aquilo
que hoje lhe podemos fazer e que nunca antes foi possível fazer.
Idênticas
considerações se poderiam tecer acerca de um dos mais recentes objectos da
tecnologia aplicada ao próprio homem, o controlo genético das gerações futuras,
através do qual o homem se prepara para tomar a sua evolução nas próprias mãos,
com o objectivo não só de preservar a integridade da espécie mas também de a
modificar através de melhoramentos por si decididos. Tão ambiciosa intenção põe
desde logo o problema de saber, por um lado, se temos o direito de o fazer e
por outro, se estamos também realmente habilitados a assumir o papel criador
que nos é tornado possível pelos altos poderes da moderna tecnologia. Questões
igualmente muito importantes serão as de determinar quem poderá definir a
imagem ideal do homem, através de que critérios e com base em que conhecimento?
E já agora, que direito moral teremos de experimentar em seres humanos
futuros? O que Jonas insiste em dizer
é que, neste campo, não podemos embarcar numa viagem rumo ao desconhecido sem
que tenhamos antes as devidas respostas a este conjunto de tão vitais interrogações.
Ficam assim
elucidadas as duas grandes razões que levam Jonas a propor uma nova ética da
responsabilidade. Em primeiro lugar a propensão utópica que ele vê nas acções
levadas a cabo pela técnica moderna, quer quando esta trabalha sobre a natureza
não humana quer sobre a natureza humana, propensão essa que estaria
inclusivamente a reduzir a tradicional distância entre questões quotidianas e
questões extremas ou entre ocasiões que exigem a vulgar prudência e ocasiões
que pedem uma profunda reflexão e sabedoria. De facto, mergulhados que estamos
num clima de utopismo indesejado e automático, vemo-nos confrontados com
alternativas cuja escolha, diz Jonas, requer uma suprema sabedoria, situação
que se torna impossível para o homem em geral que não possui tal sabedoria e,
maxime, para o homem contemporâneo que, como se sabe, nega o próprio objecto do
saber, isto é, o valor objectivo, a verdade. Jonas não resiste mesmo a
assinalar esta suprema contradição: "é quando menos acreditamos na
sabedoria que mais dela precisamos" (33).
Em segundo
lugar, na medida em que a nova natureza do nosso agir passou a estar
directamente relacionada com o raio de alcance dos novos poderes de que
passamos a dispor e com o longo prazo dos seus possíveis efeitos, é agora
necessário que o homem assuma uma humildade distinta da que antes existia, ou
seja, uma humildade já não em face da pequenez de outrora mas da excessiva
magnitude do nosso actual poder que pode
ser avaliada em função da enorme diferença que passou a existir entre o nosso
real poder de agir e o nosso poder de prever e de ajuizar. Então, perante as
assombrosas possibilidades dos novos processos técnicos, a ignorância das
implicações últimas, em si mesma obviamente temível, torna-se ela própria numa
razão essencial para que se use sempre de um comedimento responsável nesta matéria e abre o caminho para aquilo a
que Jonas chama a heurística do medo.
Ý CONCLUSÃO
Na reflexão
que agora comcluímos, tivemos sob mira, num primeiro momento, a evolução da
técnica e os seus reflexos na cultura, na sociedade e no homem, inclusive, ao
nível da alteração das suas próprias estruturas de consciência. Valemo-nos aí
de Arnold Gehlen e da sua penetrante
análise socio-psicológica em "A alma na era da técnica". Mas num
segundo momento, embora mantendo a técnica como objecto de estudo e
preocupação, foi o pensamento ético de Hans Jonas, tão claramente espelhado na
sua obra "Ética, medicina e técnica", que nos levou a aprofundar o
maior questionamento ético dos nossos dias: o homem como objecto da própria
técnica. É agora altura de fazermos um rápido "balanço crítico" às
grandes linhas do pensamento de cada um dos citados autores, quer quanto à
evolução da técnica e seus progressivos efeitos humano-sociais, quer quanto à
necessidade de uma nova ética para responder também aos novos (e desmesurados)
poderes técnicos de que o homem passou a dispor.
Vimos que,
para Gehlen, a substituição do orgânico por materiais e forças anorgânicas
esteve e continua a estar na base do sucesso técnico. Esse processo, segundo
ele, algo misterioso, terá como fundamento o facto do domínio da natureza
orgânica ser muito mais acessível a um conhecimento racional e analítico, logo,
também mais susceptível de prática experimental. Quanto à tardia explosão da
era técnica ela poderá explicar-se pela persistente e prodigiosa influência da
magia, entendida aqui como "técnica natural", a qual, face à sua sobrevivência aos próprios desmentidos
da razão, em todo o mundo e em todas as épocas, incluindo a actual, deverá
radicar, no entender de Gehlen, em algo de antropologicamente fundamental. A
própria fascinação pelo automatismo que constitui o impulso pré-racional e
estratégico da técnica não pode ser simplesmente intelectual, tem de ter raízes
mais profundas, constitui um fenómeno de ressonância, pois o homem interpreta o
mundo à sua imagem e, inversamente, interpreta-se a si segundo as imagens do
mundo.
Há uma lei
humana fundamental - a tendência do homem para a diminuição do esforço - que se
articula com os seus dois diferentes ciclos de acção: o pequeno ciclo de acção,
correspondente à autêntica prática do trabalho, que diminui literalmente o
esforço físico e o grande ciclo de acção, inicialmente dominado pela magia, que
evita ao homem a paralização perante as forças da natureza, na medida em que
por assim dizer, reduz as coordenadas do mundo a padrões humanos. Não
surpreende, por isso, que, ao longo dos tempos, se tenha verificado uma
progressiva objectivação do trabalho humano e da crescente energia dispendida,
que, como ficou dito, teve por base a sequencial utilização técnica da
ferramenta, da máquina e da automação. Assim se tornou possível, assumir,
primeiramente, apenas a redução da força física e mais tarde, a sua total
objectivação e finalmente a supressão quer do desgaste físico quer do esforço intelectual, que, por
sua vez, deu lugar a uma correspondente e cada vez maior autonomia. A fase de
automação fica, aliás, a assinalar a conclusão do processo evolutivo da
objectivação técnica do trabalho (cujas origens remontam à pré-história) e é
também a que melhor define a nossa época. Uma época em que o pensamento técnico
invadiu a cultura e, propagando-se a domínios não técnicos a que, por vezes,
não se ajustam, deu origem, como diz Gehlen, à "íntima transformação que
se operou na nossa maneira de conceber realidades". Uma época, ainda, de
complexidade crescente da estrutura social onde a industrialização forçou as
pessoas a integrarem-se em funções de tal modo indirectas e especializadas, que
o ajustamento moral e espiritual a essas situações se tornou muito
problemático. Sabendo-se como uma actividade altamente especializada está,
logicamente, separada dos seus resultados e do controlo do seu sucesso ou
insucesso, logo se imagina como se torna tão vazia, estéril e até mesmo
imaginária, quando perseguida em imperceptível contradição com os seus fins .
Constatando
que cada vez se tornam mais raras as pessoas que agem segundo princípios,
impelidas por valores pessoais e íntimos que lhes permitam manter uma
orientação geral acima da fortuita alteração das situações, Gehlen diz que se
deve extrair da coexistência social em massa os respectivos cânones morais, o
que implica um desenvolvimento de paradigmas a partir do simplesmente humano.
Tais paradigmas deverão ter acentuado carácter afectivo e ser conceptualmente
pouco definidos para que a imprevisível alteração das circunstâncias os não
invalide imediatamente e também para que, se necessário, estejam à altura de
desempenhar o papel de uma moral de convivência supra nacional e supra
confessional, num mundo que se tornou pequeno e apertado. É que perante a
corrida à natureza anorgânica e à sua utilização, não há (ou não tem havido) prévios limites éticos
no alvo a atingir, mas apenas limites técnicos e, mesmo esses, simplesmente provisórios. Por isso os homens
não têm medo das poderosas energias destruidoras dos núcleos atómicos, mas de
si próprios, receando que as inibições que os impedem de utilizar aquilo de que
dispõem possam subitamente desaparecer por meras razões de ordem fáctica,
racional ou técnica. O conceito de "acceptance" enquanto aceitação do indivíduo tal como ele é, com
as suas boas e más qualidades - o que seria impossível sem a simultânea aceitação
total da cultura de que provém, com todas as suas características - surge aqui para Gehlen como o possível germe
de uma ética mundial que antecipadamente exclui a pretensão à hegemonia
intelectual e moral do espírito europeu. Estamos aqui, porém, ainda no âmbito
de uma ética da convivência, logo, da contemporaneidade, muito tributária das
éticas tradicionais, que continuando a ser válida numa óptica de proximidade e
de delimitação temporal, já não consegue responder aos novos desafios da
ciência e da técnica do nosso tempo, como Hans Jonas tão claramente veio
demonstrar.
Com efeito,
para Jonas, a actual era técnica
assistiu a uma mudança qualitativa da natureza da acção humana e corroeu as
premissas antropológicas em que repousavam todas as éticas tradicionais. Qual
foi a consequência mais directa dessa mudança? Pura e simplesmente a perda de
validade das antigas prescrições sobre a nossa conduta individual e colectiva.
Então o que está agora em causa já não é
a técnica em si mesma mas sim a diferença humana da técnica moderna face
à que a precedeu. Por outro lado, a moderna intervenção tecnológica do homem,
ao alterar tão radicalmente a biosfera, tornou-se responsável pela nova
situação que se nos depara: agora já nem a "natureza" nem a "natureza
humana" podem ser aceites como dados últimos e imutáveis para sobre eles
se proceder a uma avaliação ética dos efeitos da acção técnica. Finalmente, o
homem não é essencialmente estranho ao cosmos que o rodeia mas antes um produto
dele enquanto espécie natural e essa "solidariedade antropocósmica"
obriga-nos a pensar a diferença antropológica - linguagem, consciência, pensamento - como algo que é imanente à
evolução e não como chegada de fora - de origem sobrenatural, divina,
espiritual, transcendente. Logo, exige-se uma nova ética.
Outra razão
pela qual as éticas tradicionais ficaram para trás, reside no facto de agora
ser o futuro indefinido que se constitui como o horizonte relevante da
responsabilidade e já não apenas o respectivo contexto contemporâneo (como
naquelas). Isso sucede por três principais razões: primeiro, pelo facto de há
muito o natural vir a ser engolido pela esfera do artificial; segundo, porque
as obras do homem com ele e por ele próprio feitas, dão origem a uma
"natureza" de sua própria autoria e terceiro, porque na era actual a
possibilidade que o homem passou a ter de, com os seus actos, deteriorar o
"todo", já ficou, infelizmente, bem demonstrada, com múltiplos crimes
ecológicos a ocorrerem um pouco por todo o globo. Por isso Jonas resolve propor
um novo imperativo ético, "age de
tal maneira que os efeitos da tua acção não sejam destruidores da futura
possibilidade de vida humana", cuja coerência não se determina no acto em
si mesmo nem na mera concordância lógica (como sucede com o imperativo
categórico de Kant) mas sim na consideração dos seus prováveis efeitos, além de
vir introduzir uma dimensão temporal ao cálculo da moral, segundo ele,
completamente ausente da operação lógica instantânea característica do
imperativo kantiano.
Jonas,
contudo, está especialmente preocupado com as intervenções que considera
potencialmente mais perigosas, ou seja, aquelas em que é o próprio homem que
passa a figurar como objecto da tecnologia. Por isso alarga a sua reflexão a
quatro grandes áreas onde os incríveis progressos das ciências biomédicas estão
já a suscitar acesa polémica: o prolongamento da vida, a pseudo abolição da
morte, a manipulação do comportamento e o controlo genético das gerações
futuras. No que respeita ao artificial prolongamento da idade, formula desde
logo duas interrogações. Primeira questão: quem poderia e deveria candidatar-se
a tal benesse? Pessoas que obedecessem a certos critérios ou toda a gente? E na
primeira destas hipóteses, que critérios a seguir e quem teria competência para
os fixar? Segunda questão: mas seria bom para a espécie passar a ter uma
proporção decrescente de juventude numa população crescentemente idosa? Quanto
a uma futura abolição da morte, Jonas assume uma posição algo reaccionária, ao
admitir que este principiar sempre renovado (nascimento), pelo qual pagamos o
preço de um fim também incessantemente repetido (morte), possa ser a melhor
defesa contra o perigo de mergulhar numa realidade mecanicamente orientada e
dirigida, que mataria à nascença toda a espontaneidade na nossa vida. Jonas
alerta ainda para os perigos da
manipulação do comportamento através, por exemplo, do controlo da mente
por meios químicos, pois do alívio de um paciente facilmente se pode passar,
numa sociedade de massas, à sua tentadora utilização como instrumento de
regulação sócio-política. Por último, no caso do controlo genético das gerações
futuras, um dos mais recentes objectos da tecnologia aplicada ao homem, Jonas
vem chamar-nos a atenção para os quatro
importantes problemas que tão ambiciosa intenção desde logo levanta:
primeiro, o de saber se temos o direito de o fazer, segundo, se estamos
realmente habilitados a assumirmos o papel de criador que nos é dado pelos
altos poderes da tecnologia, terceiro, se temos o direito moral de experimentar
em seres humanos futuros e por último, determinar quem poderá definir a imagem
ideal do homem, o que sempre se apresenta como requisito prévio e necessário a
qualquer uma intervenção tecnológica em tais domínios.
A
tecnociência não é nem pode ser democrática, pois a formulação de leis
universais e necessárias de uma realidade físico-química ou biológica não tem
lugar pela mesma via da livre discussão e consenso maioritário através dos
quais, em democracia, se chega à decisão política. É por isso aceitável, diz
Jonas, criar um conselho de sábios para vigiar os cientistas. Certamente que
isso irá interferir na liberdade da investigação mas será sempre um mal menor
comparado com as funestas consequências que da autonomia da lógica técnico-científica
poderiam resultar se fosse eleita como supremo critério de decisão nos
projectos humanos. Como já foi
referido, existem um antes e um depois da pesquisa que escapam à própria lógica
tecno-científica e, nessa medida, parece legítimo impor à tecnociência uma
vontade exterior, traduzida pelas grandes decisões da própria sociedade. Jonas,
porém, ao falar igualmente da implantação de uma "heurística do medo"
quer seguramente ir mais longe e levar à consciência de todos, desde logo aos
técnicos e aos cientistas, a necessidade de uma sistemática oposição de um
juízo prudencial ao pendor utópico da técnica moderna. Haverá alguma razão
especial para assumir quanto antes esta
heurística do medo? Há duas, responde Jonas: uma que tem a ver com o facto do
conhecimento prospectivo ficar muito atrás do conhecimento técnico que alimenta
o nosso poder de agir e a outra, devido à techne se ter tornado num ímpeto infinito da espécie, que
leva o homem a ser mais do que nunca o criador daquilo que criou, o fazedor
daquilo que pode fazer, e, acima de tudo, o preparador daquilo que será capaz
de fazer em seguida. Propõe, por isso, uma nova ética da responsabilidade, que
tenha em conta a nova natureza do nosso
agir, agora directamente relacionada não só com o raio de alcance dos novos
poderes de que passamos a dispor como também com o longo prazo dos seus
possíveis efeitos. É então necessário que o homem passe a assumir uma grande
humildade perante os novos desafios que lhe são colocados pela técnica. Uma
humildade já não em face da pequenez de outrora mas sim da excessiva magnitude
do nosso actual poder, magnitude essa que sempre poderá ser avaliada em função
da enorme diferença que passou a existir entre o nosso real poder de agir e o
nosso poder de prever e de ajuizar.
É possível
estabelecer alguns pontos comuns entre os dois grandes pensadores que nos
acompanharam até aqui, nomeadamente, quando vemos que um e outro estão de
acordo numa questão tão fundamental para o estudo dos efeitos da técnica: o reconhecimento de que a natureza da
acção humana foi modificada. Gehlen situa essa alteração ao próprio nível das
estruturas da consciência. Jonas, por seu lado, fala de uma "mudança
qualitativa da natureza da acção humana", na sequência do desenvolvimento
dos nossos poderes técnicos. Mas um e outro, afastam, com isso, desde logo,
qualquer ideia de uma natureza humana ontologicamente intemporal, tal como era
entendida (e exigível) nos moldes das antigas éticas. Gehlen procede a uma
análise de acento sociológico com os olhos postos nos malefícios da sociedade
industrializada. Jonas centra-se nos últimos avanços da moderna tecnologia para
proceder a um questionamento ético-filosófico que nos oriente num futuro, a um
tempo, deslumbrante e temerário. É inegável o contributo de ambos para uma
adequada interpretação da cultura contemporânea, na medida em que nos deixam
antever que a técnica se afirma hoje em dia como factor determinante da nossa
sociedade, sem o qual, aliás, não seria possível compreender o que de mais
específico domina e constitui a chamada modernidade .
Nenhum
desses méritos, porém, parece retirar espaço a uma breve apreciação crítica. É
que não se pode, por exemplo, deixar sem reparo o nítido pendor de Gehlen para
olhar para o lado mais negativo da técnica, denunciando quase exclusivamente os
seus perversos efeitos sociais e humanos, tais como a desconcretização, a perda de sentido e a fuga para o
imaginário de todos quantos são forçados à divisão do trabalho para a qual a industrialização
os empurra, sem que alguma vez tenha posto no outro prato da balança os
respectivos benefícios a que a técnica nos conduz e que são, em última
instância, a sua própria razão de ser. Por outras palavras: essa
industrialização de que nos fala Gehlen, será a única possível? A verdade é
que, nos últimos tempos, vimos assistindo a progressos notáveis no campo da
negociação e concertação social que deixam antever, ainda que sem falsos ou
exagerados optimismos, a possibilidade da técnica não só abrandar a pressão e o
ónus sobre os trabalhadores, como contribuir para a sua verdadeira realização
social e humana. Subsistem nestes domínios, é certo, questões muito
importantes, tais como o poder e a propriedade, que não podem ficar ausentes de
uma análise global no terreno social e político. Mas essas nem são questões que
resultem da técnica nem estão subordinadas à eticidade que lhe é
especificamente aplicável.
No que
respeita a Jonas, realce-se a sua frontal crítica ao imperativo categórico de
Kant, que assim parece sair ferido de morte quanto à possibilidade de se manter
aplicável nos tempos que correm.
Entendemos, porém, que ainda não é desta que a máxima kantiana cede o seu lugar, pois os dois principais
argumentos a que Jonas recorre para a denunciar, não são suficientemente
consistentes e chegam até a parecer meros instrumentos de retórica. É o caso da
crítica que Jonas faz ao imperativo kantiano devido a, por um lado, remeter para uma instantânea operação lógica
de universalização (agir de modo que a nossa acção se pudesse tornar em máxima
universal) e, por outro, por se dirigir para a esfera privada do cidadão. Mas
aqui julgamos possível rebater Jonas, pois o facto do raciocínio moral ser
instantâneo não lhe retira necessariamente aplicabilidade nem valor, tudo
dependendo dos elementos que integrarmos em tal raciocínio. Assim, por exemplo,
num dado instante, podemos raciocinar e determinar qual será a nossa melhor
decisão, tendo em conta não só os seus presumíveis efeitos imediatos e próximos
(ética tradicional) como também as consequências que de tal decisão poderão
derivar, numa maior dimensão de distância e de tempo, incluindo a previsão das
gerações futuras (ética moderna). Quanto à questão do imperativo kantiano se
dirigir mais para a esfera de acção particular do que para a pública, convém
recordar que, se a esfera pública pode não coincidir com a esfera privada, é
sempre desta, contudo, que depende o "ente público" pois não é
imaginável uma sociedade boa com pessoas más. Jonas, poderia ainda
contra-argumentar que o imperativo de
Kant se funda numa mera coerência
lógica interna e que por isso mesmo, permanece alheio aos efeitos ou
consequências que da sua aplicação poderão resultar. Só que não se vê, por um
lado, em que é que a máxima kantiana exclui a ponderação dos próprios efeitos -
ou seja, a própria "vivência" desses efeitos e não apenas a sua
"representação intelectual" e, por outro, sendo essa concordância
lógica o critério de validade do raciocínio moral em Kant, parece poder
concluir-se que sempre será melhor dispor de um critério do que de nenhum, como
acontece no "novo imperativo" proposto por Jonas. Um novo imperativo
que, paradoxalmente, parece já ter
nascido velho, pois, se compararmos as duas regras morais em causa, o imperativo
de Jonas surge basicamente como um decalque da máxima kantiana, a que Jonas
apenas acrescenta o dever de se assegurar o futuro da humanidade.
O problema
da tecnociência não se poder afirmar como instância suprema de decisão dos
projectos humanos, devido à sua lógica interna de feição determinista e não
democrática, que, em si mesmo, colide
com a sociedade pluralista dos nossos dias, foi, como se viu, outro aspecto que
mereceu a atenção de Jonas, a ponto de o levar a propor o já referido
"Conselho de Sábios" para controlo e fiscalização das mais perigosas
actividades tecnológicas. Percebe-se a intenção com que subscreve tal proposta.
Mas se é no pluralismo democrático que tal iniciativa vai buscar o seu
fundamento, então, será necessário, antes de mais, saber como se processará o
funcionamento desse Conselho de Sábios
e como decorrerá a sua articulação com a tecnociência e com a sociedade
em geral, para que um novo totalitarismo não se venha a instalar à custa
daquele que pretende evitar.
Finalmente,
um reparo mais geral a Jonas, especialmente a partir do momento em que ele
analisa as intervenções da técnica na modelação do próprio homem. Em primeiro
lugar, porque também ele parece mais atraído para os perigos do que para as
venturas da técnica o que, sendo humanamente compreensível, já não parece
razoável no plano da análise teórica. Basta ver como na sua obra não surge, por
exemplo, qualquer referência às inúmeras vidas humanas que já foram salvas
devido exclusivamente à utilização de tais "desmesurados poderes
técnicos". Em segundo lugar, é notável
o seu empenho em combater a euforia tecnológica que pode levar o homem a
consequências tão nefastas e, em muitos casos, irremediáveis. A este respeito,
ficou-nos na memória a sua chamada de atenção para a necessidade do cientista
assumir uma grande humildade face à diferença
entre o seu enorme poder de agir e a sua capacidade de prever e julgar.
Mas o teor de algumas das interrogações que lança, a propósito das novas
possibilidades de intervenção da técnica em domínios como o prolongamento da
idade, a abolição da morte, a manipulação do comportamento e o controlo da
espécie, podem ser, de algum modo, conotáveis com uma atitude
"reaccionária", face ao respectivo progresso cientifico. Com efeito,
como explicar de outra forma o seu temor perante a possibilidade do
prolongamento da vida, que, segundo ele conduziria a uma proporção decrescente
de juventude numa população idosa? Alem do mais, esta sua conclusão, pressupõe
que só variaria o prolongamento da idade, mantendo-se constantes todos os
outros factores. Mas é sabido que o mundo não pára, como não pára a vida nem o
saber. Se se enveredar pelo prolongamento da idade, é certo que vai aumentar o
número de pessoas vivas, mas não se sabe se vai diminuir, automaticamente, o
número de jovens. Porque por um lado, é de esperar que os avanços da técnica se orientem cada vez mais para o
rejuvenescimento físico (e psicológico?) e por outro, estão já ao dispor
do homem novos processos de reprodução
humana de que a inseminação artificial e a fertilização in vitro são bons
exemplos e a clonagem talvez o venha a ser, também, em breve. Cenário utópico,
este? Mas não será muito mais utópico pensar
- como parece acontecer com Jonas - que a condição humana parou de
mudar, ou que a modificação do homem ocorrerá, no futuro, somente ao nível da
sua forma de agir? A seriedade da investigação feita por Jonas,
bem como a clareza com que nos expõe o
seu pensamento, merecem, porém, o devido louvor. E se não comungamos do seu
apontado cepticismo "reaccionário", a verdade é que sentimos que
devem ser nossas também as preocupações que manifesta quanto aos perigos da
manipulação do comportamento e à necessidade de se alargar o espaço de reflexão
sobre uma questão tão surpreendente quanto assustadora como é o novo poder do
controlo genético da espécie. É nestes termos que a sua ética da
responsabilidade parece justificar um crítico acolhimento.
_____________________
Ý NOTAS
(1) - Gehlen, Arnold, A ALMA NA ERA DA TÉCNICA, Livros do Brasil, Lisboa,
p. 18
(2) -Ibidem.
(3) -Ibidem, p. 19
(4) -Ibidem, p. 22
(5)
-Ibidem, p. 23
(6) -Ibidem, p. 24
(7) -Ibidem.
(8) -Ibidem, p. 25
(9) -Ibidem, p. 26
(10) -Ibidem.
(11) -Ibidem, p. 27
(12) -Ibidem, p 28
(13) -Ibidem, 29
(14)
-Ibidem, p 37
(15)
-Ibidem.
(16)
-Ibidem, p. 39
(17)
-Ibidem, p. 43
(18)
-Ibidem, p. 48
(19)
-Ibidem, P. 52
(20)
-Ibidem, p. 55
(21)
-Ibidem, p. 57
(22)
-Ibidem, p. 61
(23)
-Jonas, Hans, ÉTICA, MEDICINA E TÉCNICA, Vega, Lisboa, 1994, p. 37
(24)
-Ibidem, p. 38
(25)
-Ibidem, p. 39
(26)
-Ibidem, p. 42
(27)
-Ibidem, p. 44
(28)
-Ibidem, p. 46
(29) -Ibidem, p. 47
(30)
-Ibidem, p. 48
(31)
-Ibidem, p. 50
(32)
-Ibidem, p. 50
(33)
-Ibidem, p. 56
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